O minimalista, mas nada simplório humor deste que é um dos acontecimentos mais ricos da Inglaterra dos últimos anos... FLEABAG, uma série escrita, produzida, e estrelada pela incrível Phoebe Waller-Brigde, narra a história da protagonista de mesmo nome lidando com os problemas comuns às mulheres jovens-adultas: os relacionamentos, as decepções, as mudanças e a maturidade. Bastante curta, a primeira temporada velozmente nos apresenta a Fleabag e nos convida a acompanhá-la em suas situações esdrúxulas e involuntariamente cômicas (aquele tipo de comicidade que vem de uma cena de vergonha alheia ou de absoluto desconforto). Projetada como um humor “voltado ao universo feminino”, mas não se detendo a isso, esta produção utiliza muito bem o efeito da quebra da quarta parede, aliado a uma linguagem popular e super acessível, nas gírias, nas atuações e nos cenários. Valeria a pena só pela fineza do humor inglês, aqui tão desenvolto, mas a série é muito mais que isso e, certamente, pode falar por si só. Assista sem medo!
“Fleabag: Eu não sou obcecada com sexo, só não consigo parar de pensar nisso. Na sua performance. Na sua estranheza. No seu drama.”
Esta aqui, para alguns, não parece ter dado muito certo. DARK chega a sua conclusão numa terceira temporada que divide opiniões. Há quem diga que tudo se encerra de maneira realmente esplêndida, e quem tenha se cansado da quantidade de reviravoltas e mudanças um pouco... drásticas na trama e no destino dos personagens... A verdade é que aqui, na terceira instalação de DARK, ainda dirigida e produzida pela mesma equipe, há a adição de elementos não antes vistos, e que, mais uma vez, alteram todo o curso da coisa. Se antes já estava complicado seguir e compreender todas as linhas temporais de pessoas que iam e voltavam no tempo, umas ficando no passado, outras avançando e vivendo somente no futuro, e etc, agora, realmente, a coisa dá uma guinada inesperada e que passa a ser utilizada a todo momento... A centralização da trama em determinado romance, por quase todos os episódios, marca demais e se torna um tanto quanto previsível, e o elemento da profecia auto-realizadora se repete tantas vezes, que acaba cansando parte do público, que tão avidamente consumiu as temporadas anteriores. Tal cansaço é perceptível mesmo no mais dedicado espectador, sobretudo depois de horas assistindo aos intricados episódios desta última instalação. Contudo, para o que é, e o que representa para a Alemanha, DARK se despede como uma produção incrível, e que merece, sim, uma chance de todo mundo. É certo de que não agradará a todas as pessoas da mesma forma, mas é, definitivamente, um marco cultural para o povo alemão e, sendo bastante sincero, um marco ainda mais importante para a Netflix, que poucas vezes apresentou, desde o seu início, produções com este nível de complexidade e riqueza para o seu público. Assistam!
“H. G. Tannhaus: E se tudo que veio do passado foi influenciado pelo futuro?”
Baran Bo Odar assina, em 2019, a segunda instalação da aclamada série alemã DARK, no que parece ser a mais bem-dirigida e suspensiva das três temporadas. Seguindo a lógica da produção anterior, DARK convida seus espectadores a destrinchar seu labirinto detidamente trabalhado, com suas ranhuras e rachaduras propositais no tempo. O sumiço do protagonista Jonas, do episódio anterior, é sucedido por uma série de reviravoltas (muitas interessantes, outras nem tanto), e por ressignificações de cenas anteriores, no que pode representar a mais longa lista de subtramas escritas em cima de um mesmo personagem (ou de seu núcleo). É raro que uma produção altere tanto a sua estrutura e mesmo assim consiga vestir o que está escrevendo, mas é o que ocorre aqui: DARK consegue fechar várias pontas soltas e deixar um número suficiente de dúvidas para justificar uma terceira visita. Seu elenco segue trabalhando com a mesma primazia e o roteiro não deixa para menos - é, para muitos, o ponto alto de toda a produção. Saliento que, apesar de compreender a estrutura básica, não sei dizer se, com menos reviravoltas e cliffhangers, a série não se tornaria, na mesma medida, mais acessível e até mais desfrutável; é inegável que, mesmo maratonando, é preciso fazer um esforço para além do comum para compreendê-la, e nem todas as pessoas terão o tempo nem a paciência para fazê-lo. Segue sendo boa aqui, entretanto. Vale a conferida!
"Adam: Nós não temos livre-arbítrio no que fazemos porque não somos livres no que desejamos."
Steven Spielberg, com seu cinema referencial e sempre divertido, nos apresenta em “Catch me If You Can” a excêntrica história de um falsificador de identidades (ou, como chamamos por aqui, um baita agiota). Este filme esmiuça de maneira absolutamente instigante a biografia de Frank Abagnale, como contada pelo próprio: um notável vigarista, que se passou por diversas profissões (médico, FBI, piloto de avião...) e pagava tudo com seus cheques sem fundo. A falsificação de cheques, inclusive, o levaria ainda mais longe - mas contá-lo é entregar um pouco da surpresa que este filme guarda tão bem. Não diferente dos outros sucessos de Spielberg, PRENDA-ME... é mais uma das pérolas assinadas pelo diretor, estrelada por dois competentíssimos protagonistas, e conduzida de maneira cheia de fôlego. Dos seus mais recentes trabalhos, é um dos mais aclamados, e não é pra menos; trata-se de uma biografia, no mínimo, bastante incomum. Assista sem medo! Vale muito a pena.
“Frank Abagnale Jr.: Ah, as pessoas só sabem aquilo que você conta a elas, Carl.”
A difícil tarefa de abordar o legado ambíguo de Polanski. REPULSION é o segundo trabalho em longa-metragem do diretor franco-polaco Roman Polanski, e o primeiro de sua carreira a ser feito totalmente em inglês. O longa explora o deterioramento físico e mental que acomete Carol, uma jovem inglesa que é constantemente assediada e que possui, como o nome já diz, uma pronunciada repulsa ao sexo e à sua própria sexualidade. Trata-se, sim, de um filme com tomadas inovadoras, e todo um tratamento na trilha sonora, que casa perfeitamente com o clima de terror/suspense que sustenta toda a produção. Suas falhas incluem principalmente ser um filme lento e longo, unidimensional em seus núcleos e ligeiramente pretensioso na sua abordagem. Entretanto, é pelo menos estranho assistir a um filme que aborda violação e paranoia, por exemplo, quando dirigido por um homem que ainda hoje é perseguido pelo estupro que confessou cometer a uma menina de 13 anos, e por outros casos mais recentes de abuso sexual. Falar sobre o cinema de Polanski é falar do legado ambíguo de um homem que ao mesmo tempo que foi condenado por estupro em 1978, foi o recordista mundial de Césares das décadas seguintes - um cineasta que coleciona êxitos de todas as premiações europeias das quais participou. Por um lado, trata-se de um longa com estética distinta do que se fazia dos anos 60, a época de Audrey Hepburn em “Bonequinha de Luxo” e de “A Noviça Rebelde”, do mesmo ano. Roman desmistifica a “musa” sem ação e sem profundidade, e cria verdadeiros enigmas psicológicos e narrativos carregados por elas. Por outro lado, Polanski representa a epítome do homem branco que venceu os julgamentos contra si e seguiu fazendo cinema do seu jeito, ainda que foragido do sistema penal que o sentenciou à prisão naquela época... O filme em si não é ruim, mas é super-estimado. E talvez já seja a hora de olharmos (incluso eu) para os trabalhos mais recentes das novas gerações do Cinema. Tem muita gente boa fazendo trabalhos verdadeiros e inesquecíveis hoje mesmo. E talvez agora seja o tempo de optarmos por outro cinema.
Tenho sentimentos encontrados... “Retrato de uma Jovem em Chamas” é o quarto longa da diretora Céline Sciamma, que ficou conhecida pelo seu muito bem-avaliado “Tomboy”, um drama de 2011 que lhe rendeu vários prêmios em festivais europeus. Nesta nova instalação, mais robusta e poética (e mais “artística” de modo geral), Sciamma retrata a complexa relação que se dá entre duas mulheres que, por motivos de força maior, não poderão estar juntas - e explora detidamente a poesia que se pode pintar a partir desta infinita possibilidade... Evitando os clichês ultrarromânticos ou os desfechos trágicos, "Retrato...” é uma pérola viva e furta-cor de quão longe pode ir uma língua romântica como o Francês, em sua gramática quase que “feita-para-amar”; num amor que é velho-menina, que é trilha de lençóis e culpa, medo e maravilha. Trata-se de um filme recheado de tomadas incríveis, quase pinturas, e de diálogos poéticos, ainda que sem a dramaticidade excessiva dos romances antigos... Com cortes rápidos, atuações precisas e um roteiro que sabe aonde vai, este é um daqueles filmes que nos impressiona de tão bonito, tão bem-montado que é. E representa, ao mesmo tempo, um passo à frente em relação às produções anteriores da diretora, e também um passo atrás, um mergulho profundo e imperecível na geografia francesa, e no seu pesar, e no seu (quase insuportável) silêncio. O silêncio de um amor que ainda anda nos tangos, no vão dos oceanos...
“Héloïse: Todos os amantes sentem que estão inventando alguma coisa?”
O escritor Truman Capote, autor de um dos considerados melhores livros da história norte-americana, “A Sangue Frio”, ganhou em 2005 uma cinebiografia estrelada por Philip Seymour Hoffman, cujo talento lhe renderia de uma vez o Oscar, o BAFTA e o Globo de Ouro daquele ano... O longa, assinado por Bennett Miller, obteve êxito na bilheteria e foi, num geral, bastante premiado: todos os coadjuvantes receberam pelo menos uma indicação também. Ainda que tenha alguns problemas de condução - em alguns momentos, o filme parece mais longo do que realmente é -, a história da relação entre Truman e os assassinos da família Clutter vai se desenvolvendo de maneira intrigante e perigosa, como em todo bom drama policial. Elogiar o extenso trabalho de pesquisa que Hoffman fez aqui é cair nos clichês em que todos nós caímos; sua atuação como Capote vai além de um simples retrato de maneirismos e da distinta forma de falar que o autor tinha - trata-se de uma baita homenagem a este homem que, durante tantos anos, visitou dois assassinos condenados à morte, a fim de humanizá-los através de suas palavras tão precisas, tão preciosas. É um filme incrível. Assista!
“Truman Capote: Se eu sair daqui sem entender você, o mundo vai te ver como um monstro. Para sempre. E eu não quero isso.”
MULAN, a clássica animação lançada em 98, segue sendo uma referência tanto para seu gênero quanto para as questões sociais que aborda. Tendo recebido múltiplas indicações a prêmios (do Oscar ao Globo de Ouro), já se percebia então por quê a produção estadunidense viria para ficar - para muito além de sua receita e de seu legado para a Disney, "Mulan” de fato estava em outro patamar, e isso ainda é bastante evidente... A história da jovem chinesa que não se identifica com aspectos da socialização feminina, e passa a lutar no exército no lugar de seu pai, é bastante famosa, e por todas as boas razões: “Mulan” é um conto sobre ser mulher numa sociedade machista e estagnada, e subverter as expectativas - o status quo, as “coisas como sempre foram”. A história de Fa Mulan é a de toda menina que um dia pensou que a Cultura não a considerava, ou que dela esperava algo que não podia dar ou ser, ou pelo menos não queria; é contra isso que se constrói a jornada de amor-próprio, empatia e justiça social que se transborda em "Mulan”. Longe de ser o único filme que trata bem do assunto, este é talvez um dos mais acessíveis, sobretudo por se tratar de uma animação (teoricamente destinada ao público infantil) que fala sobre guerra, sexismo e machismo, e de forma bem lúdica e simples. Não se bastando nisso, o longa ainda traz uma história super envolvente e encanta, até hoje, crianças e adultos. Se você ainda não viu, faça-se este favor, e veja! Vale muito a pena.
“Mulan: Shang, eu os vi nas montanhas. Você tem que acreditar em mim! Shang: Por quê eu deveria? Mulan: Por que outro motivo eu voltaria? Você disse que confiava em Ping. Por quê com Mulan é diferente?”
O Grupo Chaski, fundado no Peru em 1982, lançou um de seus mais importantes filmes no fim daquela década. JULIANA, que viria para abalar as estruturas sociais que se mantinham firmes no país, é uma película dos co-fundadores Fernando Espinoza e Alejandro Legaspi, e se tornou referência na América Latina com um cinema social “novo”, ainda que com problemas antigos... O longa conta a história de Juliana, uma menina que sofre com os abusos e maus-tratos de seu padrasto, e que decide fugir para encontrar a sua sorte nas ruas. A produção aborda a infância peruana na situação de rua - trata sobre crianças desamparadas, desabrigadas e exploradas, que Juliana acaba conhecendo em seu caminho. Muitas vezes com sonhos, desejos e a curiosidade, que é sagrada na infância, essas crianças sem nome e sem rosto são vistas, ainda hoje, pelos ônibus peruanos cantando por alguns trocados. A relevância social que esta narrativa possui, não só para o Peru, mas para toda a Latino-América, é inegável, e ainda impressiona. Embora, para os padrões de hoje, pareça um filme “escuro demais”, com poucos recursos de iluminação e cenografia, nada pode tirar o poder do depoimento desta vida, de uma menina tão valente como Juliana, e com toda a coragem que lhe coube e que cabe, ainda hoje, pelas ruas de Lima. Notar que este problema se repete mesmo trinta anos depois de seu lançamento é perceber, também, a importância que o Cinema tem para a historiografia de uma região; para a sua análise e para o seu zelo. Zelo este que, de fato, nunca se deveria negar a alguém que está aprendendo a ser - a alguém como Juliana, a alguém como o Peru. Incrível.
“Chico: La vida está hecha de la misma tela con la que se hacen los sueños."
“Uma vez que você faz algo, você nunca esquece. Mesmo que não possa lembrá-lo...” Filme definitivo do Estúdio Ghibli, certamente o mais adorado e comentado entre eles (e por todas as razões certas), A VIAGEM DE CHIHIRO é um convite a um mundo surreal, ambos apaixonante e divertido, no qual realidade e ficção se entrelaçam numa teia de sonhos sem rosto, feitos só de cores, só de cores... CHIHIRO é o segundo longa a levar o Oscar de Melhor Animação, além de colecionar prêmios e reconhecimento por ambas sua inovação artística e latente poesia, facilmente perceptíveis na jornada de auto-conhecimento pela qual passa a protagonista. As leituras possíveis para cada cena são riquíssimas, e todos os elementos para um bom filme (condução, trilha, roteiro e ter o que dizer) se encontram aqui inequívocos. É daqueles que nasceu clássico, tão bom que é, e nos quais se pode mergulhar à vontade, várias vezes até, sem que se perca o sentido. Difícil traçar paralelos que façam jus a este filme, mesmo no cinema ocidental - ele talvez pudesse ser pensado como um encontro entre “O Labirinto do Fauno”, do Guillermo del Toro, e “Onde Vivem os Monstros”, de Spike Jonze - respeitando-se, claro, os diferentes enredos e linguagens que estes filmes possuem; mas pensar o cinema oriental sob os moldes do ocidental é, sem dúvidas, equivocar-se... Falar mais, ou teorizar sobre os significados de cada cena, é estragar a experiência para uma pessoa que ainda não a teve. É suficiente dizer que se trata do maior sucesso do Estúdio Ghibli até hoje, e se tornou um marco cultural tanto para o Japão, quanto para o restante do mundo, que tão profundamente se apaixonou por ele... Assista sem medo!
“Chihiro [para o Sem-Rosto]: Eu não quero dinheiro seu. O que eu quero você não pode me dar.”
Outra fantástica instalação do diretor Hayao Miyazaki, O CASTELO ANIMADO é um dos mais bem-sucedidos longas do Estúdio Ghibli, perdendo em popularidade e receita apenas para o irretocável “A Viagem de Chihiro”, lançado apenas três anos antes. Primeiro, é importante dizer que este filme é incrivelmente bem-planejado. Direção de arte, cenários e detalhes afinadíssimos entre si - um daqueles casos em que a identidade visual do trabalho chega a falar tão alto que, às vezes, sobrepuja até o enredo em si. Depois, a ótima dublagem e a notável escolha, ainda que pouco comum, de manter uma protagonista “da terceira idade” em praticamente toda uma animação “para crianças”. Entretanto, mesmo que tenha seus êxitos técnicos, é importante ressaltar, também, que se percebem certos problemas de pacing (lentidão) e de uma narrativa ligeiramente falocentrada - no sentido de que Sophie é claramente a protagonista, embora possua um papel secundário em sua própria história. Há, ainda, uma barriga da qual o filme não se recupera, em torno do último terço da obra, que realmente prejudica a sua fruição por completo... Mesmo assim, O CASTELO ANIMADO é sem dúvidas um trabalho com muito mais pontos bons do que ruins, tendo sido amplamente considerado como uma das melhores animações de seu país. Só por isso, já vale a pena experimentá-lo. Entre sem bater!
Essa série é tudo de bom, ainda que com algumas ressalvas... O gênero estadunidense de comédia sitcom, que ganhou força nos anos 70 e revigorou-se nos 90, ainda precisava, para esta década, de uma reinvenção. Tendo sido método para absolutos sucessos, como “Friends”, “The Big Bang Theory” e até “Two and a Half Man”, já se percebia então a necessidade de uma nova cara, um respiro para comédia norte-americana; o fato é que, nessas e noutras produções, a piada numa sitcom vinha mais por um preconceito (e pela sua manutenção) do que pela situação em si. Daí, surgiram temporadas inteiras de sitcons absolutamente machistas, homofóbicas e segregacionistas - a risada da pessoa diferente “porque ela é diferente”, e não pelo que acontece com ela. É no contexto da resposta a essas produções que BROOKLYN 99 é lançada, em 2013, desconstruindo padrões e rompendo com as “narrativas tradicionais” sobre a polícia estadunidense. Ainda que, em partes, pareça apologista às forças armadas dos EUA (que, há de se convir, são muito mais violentas e desonestas na vida real do que a turma de Jake Peralta), e ainda apresente piadas gordofóbicas e etaristas (sobretudo na maneira como Scully e Hitchcock são tratados pelo restante do elenco “desconstruído”), num geral a série se sai muito bem ao fazer humor às custas de, realmente, situações engraçadas, estranhas e inesperadas; tudo que uma boa comédia deve fazer. Evitando a manutenção de estereótipos e preconceitos, BROOKLYN 99 vale a pena não só por divertir, mas por fazer calar os ciclos de violência verbal e imagética que incessantemente se repetem na vida das pessoas 'fora da tela’, o que é extremamente importante nos dias de hoje. Ansioso pela próxima temporada!
Um conto fofíssimo sobre uma amizade ‘nas nuvens’... MEU AMIGO TOTORO, uma das primeiras animações do (hoje lendário) Estúdio Ghibli, ainda se apresenta como o filme leve, bonito e inesquecivelmente doce de anos atrás... O formato “anime”, que nos anos 80 teve um verdadeiro boom no mercado mundial (e também uma inegável reinvenção artística com o Ghibli), tem em “Totoro” uma fábula simples, fofa e divertida, sobre a improvável amizade que surge entre uma menina curiosa e um espírito da floresta... Os êxitos que este longa atingiu são uma prova da qualidade de cinema que fez desembocar (ainda que, para alguns, não seja um dos melhores de seu diretor, Hayao Miyazaki); de 1988 para cá, recebeu prêmios como o Anime Grand Prix, da Animage, e chegou a ser eleito, pela revista Time Out, como o melhor filme de animação da história. Tendo provavelmente inspirado outros longas aclamados, como “Onde Vivem os Monstros”, de Spike Jonze, MEU AMIGO TOTORO é uma experiência singular na filmografia de Miyazaki, tendo sido cultuado como um clássico e referenciado múltiplas vezes, sobretudo nos filmes seguintes do Estúdio Ghibli - do qual, inclusive, Totoro é desde então seu logotipo oficial. Daqueles filmes que acalentam o coração. Para ver e sentir sem nenhum medo!
“Tatsuo Kusakabe: Trees and people used to be good friends. I saw that tree and decided to buy the house. Hope Mom likes it too. Okay, let's pay our respects then get home for lunch.”
O ESCÂNDALO, novo filme de Jay Roach, aborda o processo pelo qual passou o ex-presidente e chefe executivo da FOX News, Roger Ailes, quando denunciado por assédio sexual pelas suas funcionárias. Tendo vencido o Oscar de melhor maquiagem e penteados, o filme é dinâmico e conta uma das principais histórias contemporâneas sobre práticas abusivas por um homem com poder – trata-se, também, de um dos casos que reavivou o movimento #MeToo nos Estados Unidos, e que mais tarde culminaria na prisão de outro magnata abusador, de nome Harvey Weinstein... O longa, em si, parece ter pouco fôlego e a necessidade de correr com todos os detalhes incomoda bastante. São personagens demais, há pouco tempo para processá-los e acaba se saindo muito rápido para o peso de seu tema, que precisa de uma delicadeza na abordagem que é posta de lado em favor de uma edição mais ágil e frenética, quase saltando capítulos sem dar espaço para respirar. Para além disso, o trio “bombshell blonde” formado por Kidman, Theron e Robbie não representa a atuação de peso que as três individualmente já apresentaram – como se o grupo não tivesse química junto, ou a direção das atrizes tenha sido pouco proveitosa. No mais, é aquele tipo de filme que você vê uma vez só. É relevante por contar um momento importante na história do feminismo contemporâneo, mesmo que às vezes pareça mal debatido aqui. Na média, ainda que seja intenso.
“Megyn Kelly: Se eu aprendi alguma coisa este ano, foi não se estender numa briga com alguém que tem uma razão melhor que você para fazê-lo.”
Um filme anti-herói que acaba se saindo melhor que muitos filmes de heróis por aí... MEGAMENTE, produção da DreamWorks dirigida por Tom McGrath (o mesmo responsável pela trilogia “Madagascar”), é outro dos exemplos pelos quais o estúdio de animação é o melhor de seu ramo em termos de comédia. O filme, que no original tem seus protagonistas dublados por Will Ferrell e Brad Pitt, se distancia de uma narrativa “comum” da dualidade super-herói/super-vilão e entra numa reflexão mais profunda, nunca antes vista, sobre a importância de escolher quem a gente é. Metro Man e MegaMente são os lados opostos de uma histórica batalha – a batalha do bem contra o mal. Porém, o filme sobre o seu adversário não é comum, uma vez que aborda explicitamente esta tomada de decisão: quem eu sou, afinal? MegaMente, depois de ser confrontado com uma situação atípica para os super-vilões, passa a precisar de uma companhia para se relacionar – o “eu” se constituindo em relação ao “outro”, como tantas vezes disse Lacan... É nisso que MEGAMENTE atinge seus maiores êxitos; ao fazer o vilão rever suas atitudes, e com isso repensar quem ele foi e quem deseja ser, o longa dá a ele uma chance de se reinventar, começar do zero, ser alguma outra coisa que não o “antagonista” de seu clássico combate. Com o desequilíbrio narrativo que esta decisão provoca, o filme não será mais o mesmo, e da metade para o final, o que regerá será a mudança, e para um lugar inesperado, mas muito, muito bonito... É uma grata surpresa. Vale a pipoca. Assista!
“Megamente: Interessante. Acho que o destino não é o caminho escolhido para nós, mas o caminho que nós escolhemos para nós mesmos.”
A coisa mais graciosa sobre este filme é como o tempo, que passou, tornou algumas “rebeldias” educadas, e algumas obediências bastante “rebeldes”. CURTINDO A VIDA ADOIDADO é um clássico da comédia estadunidense, estrelado pelo ironicamente desconhecido Matthew Broderick, e que tem sido um sucesso com todas as gerações que o assistiram. O filme, pertencente à trilogia da juventude americana de John Hughes, aborda um dia na vida de Ferris Bueller, um rapaz tido como vagabundo pelo colégio, mas santo pelos pais. O longa acompanha o dia de folga que Bueller decide tirar por estar “de saco cheio da escola”, e o seu resultado é maravilhoso pra dizer o mínimo... Quem lê o título hoje, ao encontrar esse adjetivo “adoidado”, pode pensar que o filme aborda toda uma relação com as drogas, sinestesias ou coisas do tipo, mas a “rebeldia” de Bueller passa longe disso: ele reivindica uma diversão quase “antiga”, associada à velhice: ir a um museu, assistir a um desfile e passear de carro por Chicago. Junto de seu melhor amigo Cameron e sua namorada Sloane, Bueller se diverte como o jovem que ele é e quer se manter sendo, porque “se você não parar e olhar em volta de vez em quando, você pode perder de vista a vida”. Os elogios são pouco para o que este filme faz com o nosso coração. Mesmo que por vezes soe datado, e precisemos abstrair algumas falas aqui e ali, o longa ainda hoje se sai muito bem, seja como comédia ou o como um retrato da juventude que cresceu e ganhou os anos 80, e que hoje assiste a ele com sua família – ou solitariamente, da maneira que a gente quiser. É uma graça – assista sem pensar duas vezes!
“Cameron: Eu não sei o que vou fazer. Sloane: Faculdade. Cameron: Sim, mas fazer o quê? Sloane: Você tem interesse em quê? Cameron: Nada. Sloane: Eu também não!”
É, definitivamente, um dos nossos marcos culturais. A notável diretora brasileira Laís Bodanzky inicia sua carreira em longa com um filme poético, visceral e disruptivo no melhor sentido possível: BICHO DE SETE CABEÇAS, estrelado por um já experiente Rodrigo Santoro, marca um momento no cinema novo do Brasil e segue vivo, atual e principalmente atuante na questão da luta antimanicomial que ocorria então – e ocorre até hoje. Recheado de preciosidades poético-musicais de Arnaldo Antunes, e contando com desempenhos fora da curva de Santoro e restante do elenco, o filme de Bodanzky elege o lado humano e nele firma suas mais fortes bases. Denunciando os abusos denunciados no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno, BICHO... ainda questiona, por exemplo, quem é que decide “quem é louco e quem não é”. O fato é que o encarceramento e o punitivismo, presentes nas práticas manicomiais, foram e ainda são uma realidade em alguns lugares do país, a despeito da aprovação da Lei Antimanicomial de 2001. O depoimento de Austregésilo, por isso mesmo, se apresenta até hoje como uma voz contrária à desumanização, que por tanto tempo vitimou os ditos “loucos” do nosso país. É ainda importante ressaltar a importância que este filme tem para o tema que ele aborda; a Lei da Reforma Psiquiátrica só seria aprovada em abril de 2001, o que significa que foi durante a sua produção. Laís Bodanzky produziu-o numa época em que o manicômio ainda era uma alternativa legal no Brasil, prevista por lei e respaldada por toda uma cultura normativa, e que a tornou o grande recurso no que tange a postura do Estado perante a Loucura. Falar mais é chover no molhado – assista. Assista sem receios.
“Interno Jornalista: É preciso fingir. Quem é que não finge nesse mundo, quem? É preciso dizer que tá bem-disposto, é preciso dizer que não tá com fome, que não tá com dor de dente, que não tá com medo. Senão não dá, não dá. Nenhum médico jamais me disse que a fome e a pobreza podem levar a um distúrbio mental, mas quem não come fica nervoso, quem não come e vê seus parentes sem comer pode chegar à loucura. Um desgosto pode levar à loucura, uma morte na família, o abandono do grande amor. A gente até precisa fingir que é louco sendo louco. Fingir que é poeta, sendo poeta. Vai até ali e leia...”
HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO, longa de estreia de Daniel Ribeiro, conta a história de Leonardo, um estudante de uma escola particular que passa pelas descobertas de sua adolescência. O filme, resultado de uma experiência em curta-metragem do diretor, busca retratar o cotidiano de uma pessoa com cegueira que se apaixona por um colega novo da escola, embora muito do que vejamos seja, na verdade, todas as coisas que não sejam isso. Há, neste filme, inúmeras decisões que denotam uma dificuldade em explicitar que este é, sim, um romance LGBT+. A impressão é a de que o filme tem “medo” de se assumir gay, então acaba desviando o foco de seu objetivo, e o que vemos é um compilado de cenas que não são interessantes para a trama central. Para além de gay, aliás, trata-se de um dos primeiros romances em que temos uma pessoa com deficiência e uma pessoa sem, e que infelizmente fica morno demais, perdendo o fôlego cedo e retratando uma realidade muito específica (e por isso mesmo "pouco brasileira”, se dá para falar assim). Problemática comum a vários longas de temática inclusiva/LGBT+: não há profundidade, não há filosofia ou uma real reflexão sobre a relação, a maneira como ela se dá, ou como as pessoas vão para frente com ela. Neste caso, as atuações são fracas e falta ao protagonista um carisma que ele não parece ter a consciência de precisar. No fim das contas, uma das principais características sobre Leonardo é desimportante para a trama, e o enredo quase não leva a lugar nenhum. Além de retratar uma juventude norte-americana clichê (e irreal aqui), o longa não prende em nenhum momento, e só segue morno do início ao fim. Não indico.
“Leonardo: Imagina que legal você ir pra um lugar onde ninguém te conhece? Ninguém sabe quem você é, sabe? Você pode inventar uma personalidade nova se quiser.”
O polêmico diretor de cinema alternativo Harmony Korine, underground dos anos 90, retorna às telonas após o estrondoso sucesso de “Spring Breakers”. THE BEACH BUM, sua sexta instalação em longa-metragem, toca em temas recorrentes na sua obra, hoje ‘tolerada’ pela crítica e ‘quase ignorada’ pelo grande público. Do desgaste humano em “Gummo” até o desmantelamento do Sonho Americano em “Trash Humpers”, Korine apresenta um trabalho com menos fôlego que seus antecessores, e que vem para tecer comentários que ele mesmo já fez (melhor) em outras ocasiões. THE BEACH BUM conta a história de um poeta boêmio e errante (Hemingway? Bukowski? Vinicius de Moraes?) que vê sua vida virar do avesso após perder um importante elo financeiro. A partir de sua queda monumental até seu (incerto) retorno ao topo, somos presenteados com largos comentários sobre o protagonismo de um personagem egoísta, improdutivo e narcisista na sociedade norte-americana. A ironia, como se vai percebendo, é que todos à sua volta amam seus poemas e querem vê-lo de volta ao topo – e poucos questionam, por exemplo, seus preconceitos e sua vida “regrada e voltada para si”. Quando Korine escreve sobre um homem cujo trabalho é amado apesar de ser ele, em essência, o próprio lixo, dá para pensar em muita gente, e em especial no presidente Donald Trump. Não poucas vezes o artista abordou a branquitude americana (em “Gummo” e “Spring Breakers” por exemplo) idolatrando o lixo – chegando inclusive a fornicar com ele. Diz muito sobre uma cultura misógina, racista e retrógrada que o “white trash” seja de tanto agrado, mesmo em sua plena decadência. Aliás, decadência esta que é uma chave para seus filmes, permitindo perceber de que maneira o estadunidense médio aplaude ao show de horrores que é a existência de um ser mesquinho como Moondog, e todo o absurdo que ele de fato representa. Entretanto, este longa não vai muito mais longe que isso. Sendo o filme menos suportável de Korine, tanto em como se arrasta quanto em como é montado, THE BEACH BUM figura entre os menos importantes discursos que o diretor fez, pelo menos nesta década. Entre este e seu antecessor, prefira “Spring Breakers” - não vai se arrepender. Este aqui não rolou.
“Moondog: ‘Na noite passada / Quando fui dormir em Havana / Estava pensando em você / Estava pensando em você. / E acordei às 4 horas / Tive que dar uma mijada / E como os caras fazem / Olhei para o meu pinto / E senti tanta afeição / No coração quando o fiz, / Saber que ele estivera dentro de você / Duas vezes hoje / Me fez sentir lindo’.”
Um monumental documentário sobre a importância da identidade. “Matangi / Maya / M.I.A.”, longa de estreia de Steve Loveridge, abre as portas para que conheçamos a polêmica porém misteriosa M.I.A., artista que mobilizou, nas últimas duas décadas, debates importantíssimos sobre o Sri Lanka e a sua cultura. Tendo sido chamada muitas vezes de “apologista ao terrorismo” e reduzida a adjetivos esdrúxulos na televisão norte-americana, a cantora tem, aqui, um retrato muito mais fiel de sua identidade como ativista, musicista e mulher nascida no Sri Lanka da guerra civil. Embora a própria Maya não tenha gostado deste filme, alegando sua pessoalidade exacerbada, é inegável que o longa de Loveridge, amigo com quem ela estudou em Londres, oferta muitas respostas a seu respeito. Da drum machine em que ela criou os beats do seminal “Arular” a suas primeiras apresentações ao vivo, do processo de gravação à consequente turnê mundial do álbum “Kala”, são vários os pontos altos que o doc apresenta, indo além da sua expressão artística e buscando, através da montagem de cenas íntimas com sua família, talvez a pintura mais humana que se poderia obter de uma celebridade como ela. As críticas à Madonna, à indústria do entretenimento e ao governo estadunidense são cerejas no bolo político-social que Maya representa. Sua lucidez flui com naturalidade, como qualquer pessoa que tenha pelo menos uma vez repensado seus ídolos e objetivos de vida. A cantora, hoje muito mais madura, vê-se a um espelho de si, de quem foi nos últimos vinte anos, e diante do que virá a seguir. Serão novos desafios, novas fronteiras, novos (e antigos) preconceitos – que, quem sabe, possam ser mais uma vez alertados através de sua música, sempre viva, de uma verve sempre atualizadora do panorama da Era da Informação. Vale muito a pena!
“MAYA: Sabe, há muitas pessoas que podem empatizar com o que é ter um pai que virou um banqueiro, um advogado, um juiz, qualquer merda. E isso é o que aconteceu com uma criança cujo pai virou um terrorista. Isso é sobre como isso fodeu a família. Sobre como isso fodeu as pessoas. Sobre como isso fodeu o país.”
Apaixonante! O drama de sucesso (e hoje um clássico) “Tomates Verdes Fritos” é uma viagem linda. Assinado por Jon Avnet, o longa conta a história da improvável amizade entre Evelyn, uma dona de casa reprimida e profundamente triste, e Ninny, uma senhora de 83 anos que vive num hospital, sem visitas, mas que ama contar histórias... A trama segue os encontros e reencontros das duas, e fala sobre como uma amizade pode efetivamente causar uma mudança na vida de alguém. Evelyn, vivida pela fantástica Kathy Bates, nos ensina, à medida que o filme passa, da importância de estar aberto à novidade, mesmo que ela venha numa forma que “pareça” antiga – porque a juventude é um estado de espírito, nunca de idade. Falar mais sobre essa lindeza é estragar o seu potencial apaixonante. Assista sem receio, mas sabendo que é um filme de quase 30 anos e que, por isso mesmo, não tem a mesma dinâmica que os mais recentes possuem... Lindo demais...
“Ninny Threadgoode: Todas essas pessoas vão viver desde que você se lembre delas.”
E outra vez, a parceria Disney-Pixar mostra por quê é a maior referência nas animações em 3D... INSIDE OUT marca o retorno de Pete Docter como diretor, tendo ele produzido nesta função os grandes sucessos “Monstros S.A.” e “Up! Altas Aventuras”. "Divertida Mente", desta vez, explora as emoções num contexto cerebral super interessante, e conta a história de Riley, uma menina que muda drasticamente de perspectiva depois que sua família se muda do meio-oeste estadunidense para São Francisco. Em sua cabeça, a Alegria, o Medo, o Raiva, a Nojinho e a Tristeza se revezam no comando central de uma fase difícil na vida dela, que agora passará por seus primeiros grandes desafios... Como um divertimento, agrada a todas as pessoas, mas este vencedor do Oscar vai um pouco mais longe que isso: INSIDE OUT consegue sintetizar, nessa hora e meia, a importância de não evitarmos nossas emoções, mesmo que negativas; e de que os seres humanos são feitos de combinações desses afetos, que discutem dentro de nós todos os dias, mas que têm a Felicidade como objetivo comum. Todos somos um pouco de tudo isso, porque é tudo isso humano como nós também somos. “Divertida Mente” é outra das grandes animações que a parceria Disney-Pixar fez desembocar. Um must-see para qualquer pessoa que curta este tipo de cinema. Lindo demais!
“Alegria: Ah não! Esses Fatos e Opiniões são tão parecidos! Bing Bong: Não se preocupe. Isso acontece o tempo todo.”
O lendário diretor franco-suíço Jean-Luc Godard dirige, em 1962, um de seus longas mais importantes. Sedimentando parte da estética do que se tornaria a Nouvelle Vague – nas tomadas excêntricas, no ocultamento dos rostos e na divisão do roteiro em partes nomeadas por detalhes – VIVRE SA VIE é um ensaio do movimento pelo qual o diretor se tornaria mais conhecido, e uma referência estética para o cinema que surgiria daí. Embora não seja uma história não-linear ou complexa nesse sentido, “Viver a Vida” é um conto sensível e humanizador sobre Nana, uma aspirante a atriz que acaba se tornando prostituta na França, retrato de uma vida feminina rodeada de incertezas e abusos. Conversando vagamente com feminismo de segunda onda que ocorre no país, Godard aborda temas que interessam muito, num contexto em que as mulheres casadas ainda não tinham o direito de trabalhar sem a permissão dos maridos (o que só seria possível três anos depois deste filme ser lançado). Trata-se de um longa marcado por diálogos incríveis, a exemplo da conversa sobre a linguagem e o amor, mais pro fim da história. Há cenas que são verdadeiras experiências cinematográficas radicais, como a abertura, em que não vemos os rostos dos personagens por quase dez minutos ininterruptos. A verdade é que Godard estava fazendo escola, e este filme representa uns dez passos à frente em relação ao seu primeiro longa, “Acossado”. Em “Viver a Vida”, o artista encontrou o equilíbrio entre a narrativa, a política, a filosofia e a acessibilidade, criando um de seus filmes “mais fáceis” mas não por isso “menos bons”. Este é um clássico com toda a força de um. Assista!
“Nana: O amor não deveria ser a única verdade? Filósofo: Para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é assim. Quando você tem vinte anos, não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só à sua experiência. Você diz ‘eu amo isso’, e é sempre uma mistura. Para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade, e isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro.”
Um filme-diálogo muito bonito entre um “paraíba” e um “galego”... CINEMAS, ASPIRINAS E URUBUS, o longa de estreia de Marcelo Gomes, se apresenta como uma experiência formidável. Com longas tomadas em contra-luz, na vibrante iluminação do sol no sertão nordestino, este filme "pé-na-estrada" conta a história do tio-avô do diretor, que conheceu um alemão na época da segunda guerra que viajava pelo Brasil fazendo propaganda para a Aspirina, um remédio que surgia então. O filme trata deste encontro, da amizade que se desenvolveu entre eles, das diferenças culturais e das diversas formas de ser, pensar e sentir quando se compartilha uma experiência em comum com o outro. A química entre os protagonistas Johann e Ranulpho mantém o longa interessante em todo o tempo. A edição é ágil, e os figurinos afinados com a década em que a história se passa. Regionalismos, diversidade e bons momentos de comédia fazem este filme ter de tudo um pouco, e não é por menos: em 2015, ele entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da ABRACCINE. No mais, é uma brincadeira com empatia e respeito pelas culturas e vivências de cada um. Em tempos em que pessoas não se sentem mais envergonhadas em ser preconceituosas, cabe demais um filme como esse, para fazer uma visita à sabedoria que jaz na compreensão do outro em sua plenitude e piedade... Para ser visto com muito, muito carinho...
“Ranulpho: O país tá cheio de filho da puta. Bota uma farda e pronto: sai gritando com todo mundo. Isso é jeito de tratar gente? Somente porque é flagelado. Johann: Você tratava as pessoas às vezes assim no caminho. Ranulpho: Eu fiz o que fizeram comigo; agora eu mudei. Posso não, é? Johann: Pode.”
Fleabag (1ª Temporada)
4.4 630 Assista AgoraO minimalista, mas nada simplório humor deste que é um dos acontecimentos mais ricos da Inglaterra dos últimos anos...
FLEABAG, uma série escrita, produzida, e estrelada pela incrível Phoebe Waller-Brigde, narra a história da protagonista de mesmo nome lidando com os problemas comuns às mulheres jovens-adultas: os relacionamentos, as decepções, as mudanças e a maturidade. Bastante curta, a primeira temporada velozmente nos apresenta a Fleabag e nos convida a acompanhá-la em suas situações esdrúxulas e involuntariamente cômicas (aquele tipo de comicidade que vem de uma cena de vergonha alheia ou de absoluto desconforto). Projetada como um humor “voltado ao universo feminino”, mas não se detendo a isso, esta produção utiliza muito bem o efeito da quebra da quarta parede, aliado a uma linguagem popular e super acessível, nas gírias, nas atuações e nos cenários. Valeria a pena só pela fineza do humor inglês, aqui tão desenvolto, mas a série é muito mais que isso e, certamente, pode falar por si só.
Assista sem medo!
“Fleabag: Eu não sou obcecada com sexo, só não consigo parar de pensar nisso. Na sua performance. Na sua estranheza. No seu drama.”
Dark (3ª Temporada)
4.3 1,3KEsta aqui, para alguns, não parece ter dado muito certo.
DARK chega a sua conclusão numa terceira temporada que divide opiniões. Há quem diga que tudo se encerra de maneira realmente esplêndida, e quem tenha se cansado da quantidade de reviravoltas e mudanças um pouco... drásticas na trama e no destino dos personagens...
A verdade é que aqui, na terceira instalação de DARK, ainda dirigida e produzida pela mesma equipe, há a adição de elementos não antes vistos, e que, mais uma vez, alteram todo o curso da coisa. Se antes já estava complicado seguir e compreender todas as linhas temporais de pessoas que iam e voltavam no tempo, umas ficando no passado, outras avançando e vivendo somente no futuro, e etc, agora, realmente, a coisa dá uma guinada inesperada e que passa a ser utilizada a todo momento...
A centralização da trama em determinado romance, por quase todos os episódios, marca demais e se torna um tanto quanto previsível, e o elemento da profecia auto-realizadora se repete tantas vezes, que acaba cansando parte do público, que tão avidamente consumiu as temporadas anteriores. Tal cansaço é perceptível mesmo no mais dedicado espectador, sobretudo depois de horas assistindo aos intricados episódios desta última instalação.
Contudo, para o que é, e o que representa para a Alemanha, DARK se despede como uma produção incrível, e que merece, sim, uma chance de todo mundo. É certo de que não agradará a todas as pessoas da mesma forma, mas é, definitivamente, um marco cultural para o povo alemão e, sendo bastante sincero, um marco ainda mais importante para a Netflix, que poucas vezes apresentou, desde o seu início, produções com este nível de complexidade e riqueza para o seu público.
Assistam!
“H. G. Tannhaus: E se tudo que veio do passado foi influenciado pelo futuro?”
Dark (2ª Temporada)
4.5 897Baran Bo Odar assina, em 2019, a segunda instalação da aclamada série alemã DARK, no que parece ser a mais bem-dirigida e suspensiva das três temporadas.
Seguindo a lógica da produção anterior, DARK convida seus espectadores a destrinchar seu labirinto detidamente trabalhado, com suas ranhuras e rachaduras propositais no tempo. O sumiço do protagonista Jonas, do episódio anterior, é sucedido por uma série de reviravoltas (muitas interessantes, outras nem tanto), e por ressignificações de cenas anteriores, no que pode representar a mais longa lista de subtramas escritas em cima de um mesmo personagem (ou de seu núcleo).
É raro que uma produção altere tanto a sua estrutura e mesmo assim consiga vestir o que está escrevendo, mas é o que ocorre aqui: DARK consegue fechar várias pontas soltas e deixar um número suficiente de dúvidas para justificar uma terceira visita. Seu elenco segue trabalhando com a mesma primazia e o roteiro não deixa para menos - é, para muitos, o ponto alto de toda a produção.
Saliento que, apesar de compreender a estrutura básica, não sei dizer se, com menos reviravoltas e cliffhangers, a série não se tornaria, na mesma medida, mais acessível e até mais desfrutável; é inegável que, mesmo maratonando, é preciso fazer um esforço para além do comum para compreendê-la, e nem todas as pessoas terão o tempo nem a paciência para fazê-lo.
Segue sendo boa aqui, entretanto. Vale a conferida!
"Adam: Nós não temos livre-arbítrio no que fazemos porque não somos livres no que desejamos."
Prenda-me Se For Capaz
4.2 1,6K Assista AgoraSteven Spielberg, com seu cinema referencial e sempre divertido, nos apresenta em “Catch me If You Can” a excêntrica história de um falsificador de identidades (ou, como chamamos por aqui, um baita agiota).
Este filme esmiuça de maneira absolutamente instigante a biografia de Frank Abagnale, como contada pelo próprio: um notável vigarista, que se passou por diversas profissões (médico, FBI, piloto de avião...) e pagava tudo com seus cheques sem fundo. A falsificação de cheques, inclusive, o levaria ainda mais longe - mas contá-lo é entregar um pouco da surpresa que este filme guarda tão bem.
Não diferente dos outros sucessos de Spielberg, PRENDA-ME... é mais uma das pérolas assinadas pelo diretor, estrelada por dois competentíssimos protagonistas, e conduzida de maneira cheia de fôlego. Dos seus mais recentes trabalhos, é um dos mais aclamados, e não é pra menos; trata-se de uma biografia, no mínimo, bastante incomum.
Assista sem medo! Vale muito a pena.
“Frank Abagnale Jr.: Ah, as pessoas só sabem aquilo que você conta a elas, Carl.”
Repulsa ao Sexo
4.0 464 Assista AgoraA difícil tarefa de abordar o legado ambíguo de Polanski.
REPULSION é o segundo trabalho em longa-metragem do diretor franco-polaco Roman Polanski, e o primeiro de sua carreira a ser feito totalmente em inglês. O longa explora o deterioramento físico e mental que acomete Carol, uma jovem inglesa que é constantemente assediada e que possui, como o nome já diz, uma pronunciada repulsa ao sexo e à sua própria sexualidade.
Trata-se, sim, de um filme com tomadas inovadoras, e todo um tratamento na trilha sonora, que casa perfeitamente com o clima de terror/suspense que sustenta toda a produção. Suas falhas incluem principalmente ser um filme lento e longo, unidimensional em seus núcleos e ligeiramente pretensioso na sua abordagem.
Entretanto, é pelo menos estranho assistir a um filme que aborda violação e paranoia, por exemplo, quando dirigido por um homem que ainda hoje é perseguido pelo estupro que confessou cometer a uma menina de 13 anos, e por outros casos mais recentes de abuso sexual.
Falar sobre o cinema de Polanski é falar do legado ambíguo de um homem que ao mesmo tempo que foi condenado por estupro em 1978, foi o recordista mundial de Césares das décadas seguintes - um cineasta que coleciona êxitos de todas as premiações europeias das quais participou.
Por um lado, trata-se de um longa com estética distinta do que se fazia dos anos 60, a época de Audrey Hepburn em “Bonequinha de Luxo” e de “A Noviça Rebelde”, do mesmo ano. Roman desmistifica a “musa” sem ação e sem profundidade, e cria verdadeiros enigmas psicológicos e narrativos carregados por elas. Por outro lado, Polanski representa a epítome do homem branco que venceu os julgamentos contra si e seguiu fazendo cinema do seu jeito, ainda que foragido do sistema penal que o sentenciou à prisão naquela época...
O filme em si não é ruim, mas é super-estimado. E talvez já seja a hora de olharmos (incluso eu) para os trabalhos mais recentes das novas gerações do Cinema. Tem muita gente boa fazendo trabalhos verdadeiros e inesquecíveis hoje mesmo.
E talvez agora seja o tempo de optarmos por outro cinema.
“Carol: Nós precisamos consertar esta rachadura.”
Retrato de uma Jovem em Chamas
4.4 904 Assista AgoraTenho sentimentos encontrados...
“Retrato de uma Jovem em Chamas” é o quarto longa da diretora Céline Sciamma, que ficou conhecida pelo seu muito bem-avaliado “Tomboy”, um drama de 2011 que lhe rendeu vários prêmios em festivais europeus. Nesta nova instalação, mais robusta e poética (e mais “artística” de modo geral), Sciamma retrata a complexa relação que se dá entre duas mulheres que, por motivos de força maior, não poderão estar juntas - e explora detidamente a poesia que se pode pintar a partir desta infinita possibilidade...
Evitando os clichês ultrarromânticos ou os desfechos trágicos, "Retrato...” é uma pérola viva e furta-cor de quão longe pode ir uma língua romântica como o Francês, em sua gramática quase que “feita-para-amar”; num amor que é velho-menina, que é trilha de lençóis e culpa, medo e maravilha. Trata-se de um filme recheado de tomadas incríveis, quase pinturas, e de diálogos poéticos, ainda que sem a dramaticidade excessiva dos romances antigos...
Com cortes rápidos, atuações precisas e um roteiro que sabe aonde vai, este é um daqueles filmes que nos impressiona de tão bonito, tão bem-montado que é. E representa, ao mesmo tempo, um passo à frente em relação às produções anteriores da diretora, e também um passo atrás, um mergulho profundo e imperecível na geografia francesa, e no seu pesar, e no seu (quase insuportável) silêncio.
O silêncio de um amor que ainda anda nos tangos, no vão dos oceanos...
“Héloïse: Todos os amantes sentem que estão inventando alguma coisa?”
Capote
3.8 372 Assista AgoraO escritor Truman Capote, autor de um dos considerados melhores livros da história norte-americana, “A Sangue Frio”, ganhou em 2005 uma cinebiografia estrelada por Philip Seymour Hoffman, cujo talento lhe renderia de uma vez o Oscar, o BAFTA e o Globo de Ouro daquele ano...
O longa, assinado por Bennett Miller, obteve êxito na bilheteria e foi, num geral, bastante premiado: todos os coadjuvantes receberam pelo menos uma indicação também. Ainda que tenha alguns problemas de condução - em alguns momentos, o filme parece mais longo do que realmente é -, a história da relação entre Truman e os assassinos da família Clutter vai se desenvolvendo de maneira intrigante e perigosa, como em todo bom drama policial.
Elogiar o extenso trabalho de pesquisa que Hoffman fez aqui é cair nos clichês em que todos nós caímos; sua atuação como Capote vai além de um simples retrato de maneirismos e da distinta forma de falar que o autor tinha - trata-se de uma baita homenagem a este homem que, durante tantos anos, visitou dois assassinos condenados à morte, a fim de humanizá-los através de suas palavras tão precisas, tão preciosas.
É um filme incrível. Assista!
“Truman Capote: Se eu sair daqui sem entender você, o mundo vai te ver como um monstro. Para sempre. E eu não quero isso.”
Mulan
4.2 1,1K Assista AgoraMULAN, a clássica animação lançada em 98, segue sendo uma referência tanto para seu gênero quanto para as questões sociais que aborda. Tendo recebido múltiplas indicações a prêmios (do Oscar ao Globo de Ouro), já se percebia então por quê a produção estadunidense viria para ficar - para muito além de sua receita e de seu legado para a Disney, "Mulan” de fato estava em outro patamar, e isso ainda é bastante evidente...
A história da jovem chinesa que não se identifica com aspectos da socialização feminina, e passa a lutar no exército no lugar de seu pai, é bastante famosa, e por todas as boas razões: “Mulan” é um conto sobre ser mulher numa sociedade machista e estagnada, e subverter as expectativas - o status quo, as “coisas como sempre foram”. A história de Fa Mulan é a de toda menina que um dia pensou que a Cultura não a considerava, ou que dela esperava algo que não podia dar ou ser, ou pelo menos não queria; é contra isso que se constrói a jornada de amor-próprio, empatia e justiça social que se transborda em "Mulan”. Longe de ser o único filme que trata bem do assunto, este é talvez um dos mais acessíveis, sobretudo por se tratar de uma animação (teoricamente destinada ao público infantil) que fala sobre guerra, sexismo e machismo, e de forma bem lúdica e simples. Não se bastando nisso, o longa ainda traz uma história super envolvente e encanta, até hoje, crianças e adultos.
Se você ainda não viu, faça-se este favor, e veja!
Vale muito a pena.
“Mulan: Shang, eu os vi nas montanhas. Você tem que acreditar em mim!
Shang: Por quê eu deveria?
Mulan: Por que outro motivo eu voltaria? Você disse que confiava em Ping. Por quê com Mulan é diferente?”
Juliana
3.9 5O Grupo Chaski, fundado no Peru em 1982, lançou um de seus mais importantes filmes no fim daquela década. JULIANA, que viria para abalar as estruturas sociais que se mantinham firmes no país, é uma película dos co-fundadores Fernando Espinoza e Alejandro Legaspi, e se tornou referência na América Latina com um cinema social “novo”, ainda que com problemas antigos...
O longa conta a história de Juliana, uma menina que sofre com os abusos e maus-tratos de seu padrasto, e que decide fugir para encontrar a sua sorte nas ruas. A produção aborda a infância peruana na situação de rua - trata sobre crianças desamparadas, desabrigadas e exploradas, que Juliana acaba conhecendo em seu caminho. Muitas vezes com sonhos, desejos e a curiosidade, que é sagrada na infância, essas crianças sem nome e sem rosto são vistas, ainda hoje, pelos ônibus peruanos cantando por alguns trocados. A relevância social que esta narrativa possui, não só para o Peru, mas para toda a Latino-América, é inegável, e ainda impressiona.
Embora, para os padrões de hoje, pareça um filme “escuro demais”, com poucos recursos de iluminação e cenografia, nada pode tirar o poder do depoimento desta vida, de uma menina tão valente como Juliana, e com toda a coragem que lhe coube e que cabe, ainda hoje, pelas ruas de Lima.
Notar que este problema se repete mesmo trinta anos depois de seu lançamento é perceber, também, a importância que o Cinema tem para a historiografia de uma região; para a sua análise e para o seu zelo. Zelo este que, de fato, nunca se deveria negar a alguém que está aprendendo a ser - a alguém como Juliana, a alguém como o Peru.
Incrível.
“Chico: La vida está hecha de la misma tela con la que se hacen los sueños."
A Viagem de Chihiro
4.5 2,3K Assista Agora“Uma vez que você faz algo, você nunca esquece. Mesmo que não possa lembrá-lo...”
Filme definitivo do Estúdio Ghibli, certamente o mais adorado e comentado entre eles (e por todas as razões certas), A VIAGEM DE CHIHIRO é um convite a um mundo surreal, ambos apaixonante e divertido, no qual realidade e ficção se entrelaçam numa teia de sonhos sem rosto, feitos só de cores, só de cores...
CHIHIRO é o segundo longa a levar o Oscar de Melhor Animação, além de colecionar prêmios e reconhecimento por ambas sua inovação artística e latente poesia, facilmente perceptíveis na jornada de auto-conhecimento pela qual passa a protagonista. As leituras possíveis para cada cena são riquíssimas, e todos os elementos para um bom filme (condução, trilha, roteiro e ter o que dizer) se encontram aqui inequívocos.
É daqueles que nasceu clássico, tão bom que é, e nos quais se pode mergulhar à vontade, várias vezes até, sem que se perca o sentido. Difícil traçar paralelos que façam jus a este filme, mesmo no cinema ocidental - ele talvez pudesse ser pensado como um encontro entre “O Labirinto do Fauno”, do Guillermo del Toro, e “Onde Vivem os Monstros”, de Spike Jonze - respeitando-se, claro, os diferentes enredos e linguagens que estes filmes possuem; mas pensar o cinema oriental sob os moldes do ocidental é, sem dúvidas, equivocar-se...
Falar mais, ou teorizar sobre os significados de cada cena, é estragar a experiência para uma pessoa que ainda não a teve. É suficiente dizer que se trata do maior sucesso do Estúdio Ghibli até hoje, e se tornou um marco cultural tanto para o Japão, quanto para o restante do mundo, que tão profundamente se apaixonou por ele...
Assista sem medo!
“Chihiro [para o Sem-Rosto]: Eu não quero dinheiro seu. O que eu quero você não pode me dar.”
O Castelo Animado
4.4 1,3K Assista AgoraOutra fantástica instalação do diretor Hayao Miyazaki, O CASTELO ANIMADO é um dos mais bem-sucedidos longas do Estúdio Ghibli, perdendo em popularidade e receita apenas para o irretocável “A Viagem de Chihiro”, lançado apenas três anos antes.
Primeiro, é importante dizer que este filme é incrivelmente bem-planejado. Direção de arte, cenários e detalhes afinadíssimos entre si - um daqueles casos em que a identidade visual do trabalho chega a falar tão alto que, às vezes, sobrepuja até o enredo em si. Depois, a ótima dublagem e a notável escolha, ainda que pouco comum, de manter uma protagonista “da terceira idade” em praticamente toda uma animação “para crianças”.
Entretanto, mesmo que tenha seus êxitos técnicos, é importante ressaltar, também, que se percebem certos problemas de pacing (lentidão) e de uma narrativa ligeiramente falocentrada - no sentido de que Sophie é claramente a protagonista, embora possua um papel secundário em sua própria história. Há, ainda, uma barriga da qual o filme não se recupera, em torno do último terço da obra, que realmente prejudica a sua fruição por completo...
Mesmo assim, O CASTELO ANIMADO é sem dúvidas um trabalho com muito mais pontos bons do que ruins, tendo sido amplamente considerado como uma das melhores animações de seu país. Só por isso, já vale a pena experimentá-lo.
Entre sem bater!
“Sophie: O coração é um fardo pesado.”
Brooklyn Nine-Nine (1ª Temporada)
4.3 437 Assista AgoraEssa série é tudo de bom, ainda que com algumas ressalvas...
O gênero estadunidense de comédia sitcom, que ganhou força nos anos 70 e revigorou-se nos 90, ainda precisava, para esta década, de uma reinvenção. Tendo sido método para absolutos sucessos, como “Friends”, “The Big Bang Theory” e até “Two and a Half Man”, já se percebia então a necessidade de uma nova cara, um respiro para comédia norte-americana; o fato é que, nessas e noutras produções, a piada numa sitcom vinha mais por um preconceito (e pela sua manutenção) do que pela situação em si. Daí, surgiram temporadas inteiras de sitcons absolutamente machistas, homofóbicas e segregacionistas - a risada da pessoa diferente “porque ela é diferente”, e não pelo que acontece com ela.
É no contexto da resposta a essas produções que BROOKLYN 99 é lançada, em 2013, desconstruindo padrões e rompendo com as “narrativas tradicionais” sobre a polícia estadunidense. Ainda que, em partes, pareça apologista às forças armadas dos EUA (que, há de se convir, são muito mais violentas e desonestas na vida real do que a turma de Jake Peralta), e ainda apresente piadas gordofóbicas e etaristas (sobretudo na maneira como Scully e Hitchcock são tratados pelo restante do elenco “desconstruído”), num geral a série se sai muito bem ao fazer humor às custas de, realmente, situações engraçadas, estranhas e inesperadas; tudo que uma boa comédia deve fazer.
Evitando a manutenção de estereótipos e preconceitos, BROOKLYN 99 vale a pena não só por divertir, mas por fazer calar os ciclos de violência verbal e imagética que incessantemente se repetem na vida das pessoas 'fora da tela’, o que é extremamente importante nos dias de hoje.
Ansioso pela próxima temporada!
“Jake Peralta: Title of your sex tape.”
Meu Amigo Totoro
4.3 1,3K Assista AgoraUm conto fofíssimo sobre uma amizade ‘nas nuvens’...
MEU AMIGO TOTORO, uma das primeiras animações do (hoje lendário) Estúdio Ghibli, ainda se apresenta como o filme leve, bonito e inesquecivelmente doce de anos atrás...
O formato “anime”, que nos anos 80 teve um verdadeiro boom no mercado mundial (e também uma inegável reinvenção artística com o Ghibli), tem em “Totoro” uma fábula simples, fofa e divertida, sobre a improvável amizade que surge entre uma menina curiosa e um espírito da floresta...
Os êxitos que este longa atingiu são uma prova da qualidade de cinema que fez desembocar (ainda que, para alguns, não seja um dos melhores de seu diretor, Hayao Miyazaki); de 1988 para cá, recebeu prêmios como o Anime Grand Prix, da Animage, e chegou a ser eleito, pela revista Time Out, como o melhor filme de animação da história. Tendo provavelmente inspirado outros longas aclamados, como “Onde Vivem os Monstros”, de Spike Jonze, MEU AMIGO TOTORO é uma experiência singular na filmografia de Miyazaki, tendo sido cultuado como um clássico e referenciado múltiplas vezes, sobretudo nos filmes seguintes do Estúdio Ghibli - do qual, inclusive, Totoro é desde então seu logotipo oficial.
Daqueles filmes que acalentam o coração. Para ver e sentir sem nenhum medo!
“Tatsuo Kusakabe: Trees and people used to be good friends. I saw that tree and decided to buy the house. Hope Mom likes it too. Okay, let's pay our respects then get home for lunch.”
O Escândalo
3.6 460 Assista AgoraO ESCÂNDALO, novo filme de Jay Roach, aborda o processo pelo qual passou o ex-presidente e chefe executivo da FOX News, Roger Ailes, quando denunciado por assédio sexual pelas suas funcionárias. Tendo vencido o Oscar de melhor maquiagem e penteados, o filme é dinâmico e conta uma das principais histórias contemporâneas sobre práticas abusivas por um homem com poder – trata-se, também, de um dos casos que reavivou o movimento #MeToo nos Estados Unidos, e que mais tarde culminaria na prisão de outro magnata abusador, de nome Harvey Weinstein...
O longa, em si, parece ter pouco fôlego e a necessidade de correr com todos os detalhes incomoda bastante. São personagens demais, há pouco tempo para processá-los e acaba se saindo muito rápido para o peso de seu tema, que precisa de uma delicadeza na abordagem que é posta de lado em favor de uma edição mais ágil e frenética, quase saltando capítulos sem dar espaço para respirar. Para além disso, o trio “bombshell blonde” formado por Kidman, Theron e Robbie não representa a atuação de peso que as três individualmente já apresentaram – como se o grupo não tivesse química junto, ou a direção das atrizes tenha sido pouco proveitosa.
No mais, é aquele tipo de filme que você vê uma vez só. É relevante por contar um momento importante na história do feminismo contemporâneo, mesmo que às vezes pareça mal debatido aqui.
Na média, ainda que seja intenso.
“Megyn Kelly: Se eu aprendi alguma coisa este ano, foi não se estender numa briga com alguém que tem uma razão melhor que você para fazê-lo.”
Megamente
3.8 1,9K Assista AgoraUm filme anti-herói que acaba se saindo melhor que muitos filmes de heróis por aí...
MEGAMENTE, produção da DreamWorks dirigida por Tom McGrath (o mesmo responsável pela trilogia “Madagascar”), é outro dos exemplos pelos quais o estúdio de animação é o melhor de seu ramo em termos de comédia. O filme, que no original tem seus protagonistas dublados por Will Ferrell e Brad Pitt, se distancia de uma narrativa “comum” da dualidade super-herói/super-vilão e entra numa reflexão mais profunda, nunca antes vista, sobre a importância de escolher quem a gente é.
Metro Man e MegaMente são os lados opostos de uma histórica batalha – a batalha do bem contra o mal. Porém, o filme sobre o seu adversário não é comum, uma vez que aborda explicitamente esta tomada de decisão: quem eu sou, afinal? MegaMente, depois de ser confrontado com uma situação atípica para os super-vilões, passa a precisar de uma companhia para se relacionar – o “eu” se constituindo em relação ao “outro”, como tantas vezes disse Lacan...
É nisso que MEGAMENTE atinge seus maiores êxitos; ao fazer o vilão rever suas atitudes, e com isso repensar quem ele foi e quem deseja ser, o longa dá a ele uma chance de se reinventar, começar do zero, ser alguma outra coisa que não o “antagonista” de seu clássico combate. Com o desequilíbrio narrativo que esta decisão provoca, o filme não será mais o mesmo, e da metade para o final, o que regerá será a mudança, e para um lugar inesperado, mas muito, muito bonito...
É uma grata surpresa. Vale a pipoca.
Assista!
“Megamente: Interessante. Acho que o destino não é o caminho escolhido para nós, mas o caminho que nós escolhemos para nós mesmos.”
Curtindo a Vida Adoidado
4.2 2,3K Assista AgoraA coisa mais graciosa sobre este filme é como o tempo, que passou, tornou algumas “rebeldias” educadas, e algumas obediências bastante “rebeldes”.
CURTINDO A VIDA ADOIDADO é um clássico da comédia estadunidense, estrelado pelo ironicamente desconhecido Matthew Broderick, e que tem sido um sucesso com todas as gerações que o assistiram. O filme, pertencente à trilogia da juventude americana de John Hughes, aborda um dia na vida de Ferris Bueller, um rapaz tido como vagabundo pelo colégio, mas santo pelos pais. O longa acompanha o dia de folga que Bueller decide tirar por estar “de saco cheio da escola”, e o seu resultado é maravilhoso pra dizer o mínimo...
Quem lê o título hoje, ao encontrar esse adjetivo “adoidado”, pode pensar que o filme aborda toda uma relação com as drogas, sinestesias ou coisas do tipo, mas a “rebeldia” de Bueller passa longe disso: ele reivindica uma diversão quase “antiga”, associada à velhice: ir a um museu, assistir a um desfile e passear de carro por Chicago. Junto de seu melhor amigo Cameron e sua namorada Sloane, Bueller se diverte como o jovem que ele é e quer se manter sendo, porque “se você não parar e olhar em volta de vez em quando, você pode perder de vista a vida”.
Os elogios são pouco para o que este filme faz com o nosso coração. Mesmo que por vezes soe datado, e precisemos abstrair algumas falas aqui e ali, o longa ainda hoje se sai muito bem, seja como comédia ou o como um retrato da juventude que cresceu e ganhou os anos 80, e que hoje assiste a ele com sua família – ou solitariamente, da maneira que a gente quiser.
É uma graça – assista sem pensar duas vezes!
“Cameron: Eu não sei o que vou fazer.
Sloane: Faculdade.
Cameron: Sim, mas fazer o quê?
Sloane: Você tem interesse em quê?
Cameron: Nada.
Sloane: Eu também não!”
Bicho de Sete Cabeças
4.0 1,1K Assista AgoraÉ, definitivamente, um dos nossos marcos culturais.
A notável diretora brasileira Laís Bodanzky inicia sua carreira em longa com um filme poético, visceral e disruptivo no melhor sentido possível: BICHO DE SETE CABEÇAS, estrelado por um já experiente Rodrigo Santoro, marca um momento no cinema novo do Brasil e segue vivo, atual e principalmente atuante na questão da luta antimanicomial que ocorria então – e ocorre até hoje.
Recheado de preciosidades poético-musicais de Arnaldo Antunes, e contando com desempenhos fora da curva de Santoro e restante do elenco, o filme de Bodanzky elege o lado humano e nele firma suas mais fortes bases. Denunciando os abusos denunciados no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno, BICHO... ainda questiona, por exemplo, quem é que decide “quem é louco e quem não é”. O fato é que o encarceramento e o punitivismo, presentes nas práticas manicomiais, foram e ainda são uma realidade em alguns lugares do país, a despeito da aprovação da Lei Antimanicomial de 2001. O depoimento de Austregésilo, por isso mesmo, se apresenta até hoje como uma voz contrária à desumanização, que por tanto tempo vitimou os ditos “loucos” do nosso país.
É ainda importante ressaltar a importância que este filme tem para o tema que ele aborda; a Lei da Reforma Psiquiátrica só seria aprovada em abril de 2001, o que significa que foi durante a sua produção. Laís Bodanzky produziu-o numa época em que o manicômio ainda era uma alternativa legal no Brasil, prevista por lei e respaldada por toda uma cultura normativa, e que a tornou o grande recurso no que tange a postura do Estado perante a Loucura.
Falar mais é chover no molhado – assista.
Assista sem receios.
“Interno Jornalista: É preciso fingir. Quem é que não finge nesse mundo, quem? É preciso dizer que tá bem-disposto, é preciso dizer que não tá com fome, que não tá com dor de dente, que não tá com medo. Senão não dá, não dá. Nenhum médico jamais me disse que a fome e a pobreza podem levar a um distúrbio mental, mas quem não come fica nervoso, quem não come e vê seus parentes sem comer pode chegar à loucura. Um desgosto pode levar à loucura, uma morte na família, o abandono do grande amor. A gente até precisa fingir que é louco sendo louco. Fingir que é poeta, sendo poeta. Vai até ali e leia...”
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho
4.1 3,2K Assista AgoraHOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO, longa de estreia de Daniel Ribeiro, conta a história de Leonardo, um estudante de uma escola particular que passa pelas descobertas de sua adolescência. O filme, resultado de uma experiência em curta-metragem do diretor, busca retratar o cotidiano de uma pessoa com cegueira que se apaixona por um colega novo da escola, embora muito do que vejamos seja, na verdade, todas as coisas que não sejam isso.
Há, neste filme, inúmeras decisões que denotam uma dificuldade em explicitar que este é, sim, um romance LGBT+. A impressão é a de que o filme tem “medo” de se assumir gay, então acaba desviando o foco de seu objetivo, e o que vemos é um compilado de cenas que não são interessantes para a trama central. Para além de gay, aliás, trata-se de um dos primeiros romances em que temos uma pessoa com deficiência e uma pessoa sem, e que infelizmente fica morno demais, perdendo o fôlego cedo e retratando uma realidade muito específica (e por isso mesmo "pouco brasileira”, se dá para falar assim).
Problemática comum a vários longas de temática inclusiva/LGBT+: não há profundidade, não há filosofia ou uma real reflexão sobre a relação, a maneira como ela se dá, ou como as pessoas vão para frente com ela. Neste caso, as atuações são fracas e falta ao protagonista um carisma que ele não parece ter a consciência de precisar.
No fim das contas, uma das principais características sobre Leonardo é desimportante para a trama, e o enredo quase não leva a lugar nenhum. Além de retratar uma juventude norte-americana clichê (e irreal aqui), o longa não prende em nenhum momento, e só segue morno do início ao fim.
Não indico.
“Leonardo: Imagina que legal você ir pra um lugar onde ninguém te conhece? Ninguém sabe quem você é, sabe? Você pode inventar uma personalidade nova se quiser.”
The Beach Bum: Levando a Vida Numa Boa
2.9 47O polêmico diretor de cinema alternativo Harmony Korine, underground dos anos 90, retorna às telonas após o estrondoso sucesso de “Spring Breakers”. THE BEACH BUM, sua sexta instalação em longa-metragem, toca em temas recorrentes na sua obra, hoje ‘tolerada’ pela crítica e ‘quase ignorada’ pelo grande público. Do desgaste humano em “Gummo” até o desmantelamento do Sonho Americano em “Trash Humpers”, Korine apresenta um trabalho com menos fôlego que seus antecessores, e que vem para tecer comentários que ele mesmo já fez (melhor) em outras ocasiões.
THE BEACH BUM conta a história de um poeta boêmio e errante (Hemingway? Bukowski? Vinicius de Moraes?) que vê sua vida virar do avesso após perder um importante elo financeiro. A partir de sua queda monumental até seu (incerto) retorno ao topo, somos presenteados com largos comentários sobre o protagonismo de um personagem egoísta, improdutivo e narcisista na sociedade norte-americana. A ironia, como se vai percebendo, é que todos à sua volta amam seus poemas e querem vê-lo de volta ao topo – e poucos questionam, por exemplo, seus preconceitos e sua vida “regrada e voltada para si”.
Quando Korine escreve sobre um homem cujo trabalho é amado apesar de ser ele, em essência, o próprio lixo, dá para pensar em muita gente, e em especial no presidente Donald Trump. Não poucas vezes o artista abordou a branquitude americana (em “Gummo” e “Spring Breakers” por exemplo) idolatrando o lixo – chegando inclusive a fornicar com ele. Diz muito sobre uma cultura misógina, racista e retrógrada que o “white trash” seja de tanto agrado, mesmo em sua plena decadência. Aliás, decadência esta que é uma chave para seus filmes, permitindo perceber de que maneira o estadunidense médio aplaude ao show de horrores que é a existência de um ser mesquinho como Moondog, e todo o absurdo que ele de fato representa.
Entretanto, este longa não vai muito mais longe que isso. Sendo o filme menos suportável de Korine, tanto em como se arrasta quanto em como é montado, THE BEACH BUM figura entre os menos importantes discursos que o diretor fez, pelo menos nesta década. Entre este e seu antecessor, prefira “Spring Breakers” - não vai se arrepender.
Este aqui não rolou.
“Moondog: ‘Na noite passada / Quando fui dormir em Havana / Estava pensando em você / Estava pensando em você. / E acordei às 4 horas / Tive que dar uma mijada / E como os caras fazem / Olhei para o meu pinto / E senti tanta afeição / No coração quando o fiz, / Saber que ele estivera dentro de você / Duas vezes hoje / Me fez sentir lindo’.”
Matangi / Maya / M.I.A.
4.6 77 Assista AgoraUm monumental documentário sobre a importância da identidade.
“Matangi / Maya / M.I.A.”, longa de estreia de Steve Loveridge, abre as portas para que conheçamos a polêmica porém misteriosa M.I.A., artista que mobilizou, nas últimas duas décadas, debates importantíssimos sobre o Sri Lanka e a sua cultura. Tendo sido chamada muitas vezes de “apologista ao terrorismo” e reduzida a adjetivos esdrúxulos na televisão norte-americana, a cantora tem, aqui, um retrato muito mais fiel de sua identidade como ativista, musicista e mulher nascida no Sri Lanka da guerra civil.
Embora a própria Maya não tenha gostado deste filme, alegando sua pessoalidade exacerbada, é inegável que o longa de Loveridge, amigo com quem ela estudou em Londres, oferta muitas respostas a seu respeito. Da drum machine em que ela criou os beats do seminal “Arular” a suas primeiras apresentações ao vivo, do processo de gravação à consequente turnê mundial do álbum “Kala”, são vários os pontos altos que o doc apresenta, indo além da sua expressão artística e buscando, através da montagem de cenas íntimas com sua família, talvez a pintura mais humana que se poderia obter de uma celebridade como ela.
As críticas à Madonna, à indústria do entretenimento e ao governo estadunidense são cerejas no bolo político-social que Maya representa. Sua lucidez flui com naturalidade, como qualquer pessoa que tenha pelo menos uma vez repensado seus ídolos e objetivos de vida. A cantora, hoje muito mais madura, vê-se a um espelho de si, de quem foi nos últimos vinte anos, e diante do que virá a seguir. Serão novos desafios, novas fronteiras, novos (e antigos) preconceitos – que, quem sabe, possam ser mais uma vez alertados através de sua música, sempre viva, de uma verve sempre atualizadora do panorama da Era da Informação.
Vale muito a pena!
“MAYA: Sabe, há muitas pessoas que podem empatizar com o que é ter um pai que virou um banqueiro, um advogado, um juiz, qualquer merda. E isso é o que aconteceu com uma criança cujo pai virou um terrorista. Isso é sobre como isso fodeu a família. Sobre como isso fodeu as pessoas. Sobre como isso fodeu o país.”
Tomates Verdes Fritos
4.2 1,3K Assista AgoraApaixonante!
O drama de sucesso (e hoje um clássico) “Tomates Verdes Fritos” é uma viagem linda. Assinado por Jon Avnet, o longa conta a história da improvável amizade entre Evelyn, uma dona de casa reprimida e profundamente triste, e Ninny, uma senhora de 83 anos que vive num hospital, sem visitas, mas que ama contar histórias...
A trama segue os encontros e reencontros das duas, e fala sobre como uma amizade pode efetivamente causar uma mudança na vida de alguém. Evelyn, vivida pela fantástica Kathy Bates, nos ensina, à medida que o filme passa, da importância de estar aberto à novidade, mesmo que ela venha numa forma que “pareça” antiga – porque a juventude é um estado de espírito, nunca de idade.
Falar mais sobre essa lindeza é estragar o seu potencial apaixonante. Assista sem receio, mas sabendo que é um filme de quase 30 anos e que, por isso mesmo, não tem a mesma dinâmica que os mais recentes possuem...
Lindo demais...
“Ninny Threadgoode: Todas essas pessoas vão viver desde que você se lembre delas.”
Divertida Mente
4.3 3,2K Assista AgoraE outra vez, a parceria Disney-Pixar mostra por quê é a maior referência nas animações em 3D...
INSIDE OUT marca o retorno de Pete Docter como diretor, tendo ele produzido nesta função os grandes sucessos “Monstros S.A.” e “Up! Altas Aventuras”. "Divertida Mente", desta vez, explora as emoções num contexto cerebral super interessante, e conta a história de Riley, uma menina que muda drasticamente de perspectiva depois que sua família se muda do meio-oeste estadunidense para São Francisco. Em sua cabeça, a Alegria, o Medo, o Raiva, a Nojinho e a Tristeza se revezam no comando central de uma fase difícil na vida dela, que agora passará por seus primeiros grandes desafios...
Como um divertimento, agrada a todas as pessoas, mas este vencedor do Oscar vai um pouco mais longe que isso: INSIDE OUT consegue sintetizar, nessa hora e meia, a importância de não evitarmos nossas emoções, mesmo que negativas; e de que os seres humanos são feitos de combinações desses afetos, que discutem dentro de nós todos os dias, mas que têm a Felicidade como objetivo comum.
Todos somos um pouco de tudo isso, porque é tudo isso humano como nós também somos. “Divertida Mente” é outra das grandes animações que a parceria Disney-Pixar fez desembocar. Um must-see para qualquer pessoa que curta este tipo de cinema.
Lindo demais!
“Alegria: Ah não! Esses Fatos e Opiniões são tão parecidos!
Bing Bong: Não se preocupe. Isso acontece o tempo todo.”
Viver a Vida
4.2 391O lendário diretor franco-suíço Jean-Luc Godard dirige, em 1962, um de seus longas mais importantes. Sedimentando parte da estética do que se tornaria a Nouvelle Vague – nas tomadas excêntricas, no ocultamento dos rostos e na divisão do roteiro em partes nomeadas por detalhes – VIVRE SA VIE é um ensaio do movimento pelo qual o diretor se tornaria mais conhecido, e uma referência estética para o cinema que surgiria daí.
Embora não seja uma história não-linear ou complexa nesse sentido, “Viver a Vida” é um conto sensível e humanizador sobre Nana, uma aspirante a atriz que acaba se tornando prostituta na França, retrato de uma vida feminina rodeada de incertezas e abusos. Conversando vagamente com feminismo de segunda onda que ocorre no país, Godard aborda temas que interessam muito, num contexto em que as mulheres casadas ainda não tinham o direito de trabalhar sem a permissão dos maridos (o que só seria possível três anos depois deste filme ser lançado).
Trata-se de um longa marcado por diálogos incríveis, a exemplo da conversa sobre a linguagem e o amor, mais pro fim da história. Há cenas que são verdadeiras experiências cinematográficas radicais, como a abertura, em que não vemos os rostos dos personagens por quase dez minutos ininterruptos. A verdade é que Godard estava fazendo escola, e este filme representa uns dez passos à frente em relação ao seu primeiro longa, “Acossado”. Em “Viver a Vida”, o artista encontrou o equilíbrio entre a narrativa, a política, a filosofia e a acessibilidade, criando um de seus filmes “mais fáceis” mas não por isso “menos bons”.
Este é um clássico com toda a força de um. Assista!
“Nana: O amor não deveria ser a única verdade?
Filósofo: Para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é assim. Quando você tem vinte anos, não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só à sua experiência. Você diz ‘eu amo isso’, e é sempre uma mistura. Para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade, e isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro.”
Cinema, Aspirinas e Urubus
3.9 365 Assista AgoraUm filme-diálogo muito bonito entre um “paraíba” e um “galego”...
CINEMAS, ASPIRINAS E URUBUS, o longa de estreia de Marcelo Gomes, se apresenta como uma experiência formidável. Com longas tomadas em contra-luz, na vibrante iluminação do sol no sertão nordestino, este filme "pé-na-estrada" conta a história do tio-avô do diretor, que conheceu um alemão na época da segunda guerra que viajava pelo Brasil fazendo propaganda para a Aspirina, um remédio que surgia então. O filme trata deste encontro, da amizade que se desenvolveu entre eles, das diferenças culturais e das diversas formas de ser, pensar e sentir quando se compartilha uma experiência em comum com o outro.
A química entre os protagonistas Johann e Ranulpho mantém o longa interessante em todo o tempo. A edição é ágil, e os figurinos afinados com a década em que a história se passa. Regionalismos, diversidade e bons momentos de comédia fazem este filme ter de tudo um pouco, e não é por menos: em 2015, ele entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da ABRACCINE.
No mais, é uma brincadeira com empatia e respeito pelas culturas e vivências de cada um. Em tempos em que pessoas não se sentem mais envergonhadas em ser preconceituosas, cabe demais um filme como esse, para fazer uma visita à sabedoria que jaz na compreensão do outro em sua plenitude e piedade...
Para ser visto com muito, muito carinho...
“Ranulpho: O país tá cheio de filho da puta. Bota uma farda e pronto: sai gritando com todo mundo. Isso é jeito de tratar gente? Somente porque é flagelado.
Johann: Você tratava as pessoas às vezes assim no caminho.
Ranulpho: Eu fiz o que fizeram comigo; agora eu mudei. Posso não, é?
Johann: Pode.”