Um filme robusto, com edição fina e boníssimas atuações. COMO NOSSOS PAIS é o mais recente longa de Laís Bodanzky, que anos atrás dirigiu o notável “Bicho de Sete Cabeças”. Representa uma análise precisa da situação dos gêneros, e sua divisão (social) de trabalho no nosso país. Trata da maternidade, da sobrecarga da mulher no ambiente doméstico e do desequilíbrio existente (quase que naturalmente) numa relação heteronormativa, em que filhos são uma responsabilidade e o trabalho é uma realidade com a qual sempre se deve lidar. Um estudo muito bem-editado sobre as relações humanas, neste caso entre mãe e filha, esposa e esposo, e mãe e filhas. A busca incessante por uma representação paterna, o desnorteamento das emoções e o desmantelamento das relações são alguns dos temas adjacentes, possíveis de ser lidos também. O filme de Bodanzky é, sobretudo, um drama humano, no que se percebe por sua direção expressiva e seu argumento aparentemente simples, mas talhado de maneira profunda e comovente. Um dos nossos muito bons dramas. Assista!
“Rosa: Pra eu ter tesão em você de noite, você tem que ter sido legal o dia inteiro comigo. Ter me ajudado nas tarefas do dia-a-dia. Eu não consigo simplesmente ter tesão em você de noite, abstrair de tudo isso e gozar.”
“E, havendo [o Cordeiro] aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vá, e veja.” Apocalipse 6:7. IDI I SMOTRI, derradeiro filme de Elem Klimov, considerado por muitos sua obra prima, é o ápice dos filmes anti-guerra feitos até então. Oferecendo uma visão distinta da estadunidense ‘tradicional’, o longa narra a trajetória de Florya, um menino aspirante da guerra que se une à guerrilha soviética contra as tropas nazistas. Entretanto, ao contrário do que ele espera, a segunda guerra mundial não se apresenta a brincadeira de criança que ele pensava ser, e o horror e o absurdo vão encontrá-lo muito mais rápido, muito mais alto e muito mais perto do que ele imagina... “Vá e Veja” é uma referência no cinema internacional; seja pela estonteante fotografia, pelos efeitos pirotécnicos ou pela profundidade de seus simbolismos, o longa tem um roteiro escrito com precisão, e que toma tempo para digerir. Ele evidencia a total estupidez da guerra, onde nunca há amor, somente ódio, e o massivo investimento de energia para a aniquilação do outro, quase que simplesmente por sua diferença em relação a nós. Falamos da cultura da morte, dos aniquilamentos em massa e, principalmente, do etnocentrismo, que foi a mola mestra que catapultou, em todos os séculos, o que mais tarde se chamaria de 'imperialismo'. Sendo assim, “Vá e Veja” é um gigantesco manifesto anti-guerra e anti-fascismo. Humanizando este “outro”, e apresentando lados da guerra de maneira justa, IDI I SMOTRI faz-nos participar da filosofia da resistência soviética, num sentido amplo e muito bonito, que é toda a força de vida que ainda está por vir. Lembrando sempre, é claro, que a violência reativa de um grupo/nação oprimida nunca está em pé de igualdade com a violência de quem exerce o poder sobre ela. Uma reação a uma violência não sobrepõe-se à violência primeira, que é o próprio caos em si, e o desgaste humano em sua essência. Definitivamente um dos filmes obrigatórios para quem gosta de cinema.
“Oficial Alemão: Sim, eu disse isso: ‘Saiam e deixem as crianças’. Eu disse isso porque com as crianças começaria tudo de novo. Você não tem direito de existir. Nem todas as raças têm o direito de existir. Escutem! Escutem todos! As raças inferiores propagam o contágio do comunismo. Você não tem direito de existir. E nossa missão será cumprida. Se não hoje, amanhã.”
Oh hi Mark! Segundo o próprio Tommy Wiseau, em THE DISASTER ARTIST, James Franco conseguiu captar 99.9% da essência do que foi a produção do (dito) pior filme da história estadunidense. THE ROOM, que teve direção, roteiro, produção e protagonismo de Wiseau, estreou em 2003 sem alcançar grandes públicos e encerrou sua temporada como um grande fracasso de crítica e audiência. Trucidado por anos, o filme ganhou status cult e, em 2017, uma espécie de refilmagem/paródia/biografia estranha, mas mesmo assim muito especial. De fato, James Franco (e seu companheiro de sempre, Seth Rogen) embarcam numa jornada que demonstra empatia e compreensão, sobretudo da parte de Franco – que, diga-se de passagem, também dirigiu, produziu e protagonizou este filme. Nos moldes do THE ROOM original, Franco conduz a narrativa escrita pelo melhor amigo de Wiseau, Greg Sestero, contando a história de como nasceu a amizade que eles têm até hoje, e os bastidores do que foi um longa que teve quatro equipes técnicas diferentes e foi filmado em dois formatos. Embora vejamos pouco da protagonista Juliette Danielle aqui, e detalhes importantes sobre Tommy sejam simplesmente insondáveis (até por ele próprio), THE DISASTER ARTIST conta sua história com críticas pertinentes e momentos de comédia genuinamente bons – como a cena do terraço com a garrafa e o diálogo entre Greg e Tommy sobre violência contra a mulher. A atuação de Franco como Wiseau é incrível – e denota bem como tudo pareceu, àquela época, como uma desajeitada tentativa de pertencer à sociedade norte-americana, por parte de um imigrante que não sabia falar inglês direito mas tinha o sonho de fazer um longa em Hollywood. Quem assiste para rir se diverte, e quem procura informações até psicológicas, também encontra aqui. É um filme significativamente melhor do que o filme sobre o qual ele fala, mas é também uma verdadeira declaração de carinho por um cineasta iniciante, que nunca foi esquecido – mesmo que pelos motivos errados. Assistam! Vale a pena.
“Sandy Schklair: Tomada 67, ação! Tommy Wiseau: Eu bati nela! Sandy Schklair: Não! Você quer mudar a fala? Greg Sestero: Você tá ótimo, cara. Vamos chegar lá!”
Um longa interessante sobre uma situação nada absurda. Quase como que uma continuação involuntária de “Juno”, TALLULAH nos apresenta questões muito importantes sobre maternidade, e também maternidade compulsória. Ellen Page está, como sempre, trabalhando com excelência, e o restante do elenco faz a sua parte tranquilamente. O roteiro, também assinado pela diretora Sian Heder, tem boas reviravoltas e segue interessante por todo o curso a história – sua direção, aliás, é atenta e detida, como todo bom drama apresenta. Embora seja um filme “raso”, no sentido que as questões psicológicas/sociais que envolvem o sequestro não sejam profundamente abordadas, TALLULAH é um bom entretenimento – em especial, pela bela construção dos arcos das 'antagonistas' Tallulah e Carolyn. Se você assiste sem saber o enredo, o susto é ainda maior... Um bom filme.
“Tallulah: Seu plano dependia de outras pessoas. Outras pessoas são uma merda, e vão te desapontar todas as vezes.”
Pesado, absolutamente triste e – talvez – além do suportável como cinema... Nos últimos tempos, venho me perguntando a necessidade da exposição de certas formas de violência nos filmes. Por vezes gratuitas, há cenas que, de tanto serem repetidas, parecem ganhar mais força, com o objetivo de chocar e fazer o espectador revirar o estômago. Deixando qualquer filme de terror no chinelo, filmes com tal grau de “realismo” e “consciência” chocam, mas também fazem questionar o sentido da superexposição dessa “violência gratuita”, como mais tarde criticaria o austríaco Michael Haneke. Assim ocorre em “Para Sempre Lilya”, terceiro filme de Lukas Moodysson, que mais tarde produziria o também elogiado “Container”, de 2006. Aqui, Lilya vive o caso real de Danguole Rasalaite, uma lituana órfã enviada para a Suécia nas mesmas condições que a personagem, e que encontrou no país uma realidade ainda mais severa que aquela que vivera antes. O caso chocou o mundo, reacendendo o debate sobre tráfico humano e resultando neste roteiro, também assinado por Moodysson. Como em seus filmes anteriores, o protagonismo é dos adolescentes que, neste caso, são os órfãos do império soviético, a Rússia pós-dissolução. Crianças e jovens encaram a crise russa no desalento silencioso de uma realidade cinzenta, fria e distante. Não há qualquer tipo de assistencialismo – e o Estado, como em tantos casos, não dá conta da demanda social, sobretudo a das “meninas-mulheres”. De qualquer forma, fica o questionamento: qual a necessidade de fazer um filme nesses moldes, com tanta porrada que acaba “desconvidando” o espectador a acompanhá-lo? É claro que se trata de uma realidade duríssima, e que deve ser contada e debatida, mas há muitas escolhas artísticas aqui que tornaram este filme raso, e violento de maneira até desequilibrada. Em tempos como os de hoje, fica difícil acompanhar ativamente uma experiência tão dolorosa, e que às vezes soa gratuitamente dolorosa. Ninguém precisa submeter o olhar a tanta violência por tanto tempo simplesmente “porque é violência”. E nem precisa ver tudo, exatamente como acontece, todas as vezes. Para isso existe a metáfora – para que possamos acessar as sensações sem necessariamente termos que materialmente entrar em contato com a experiência. Às vezes, pode ser melhor ler sobre o caso e acompanhar o debate do que necessariamente assistir ao filme. E talvez este seja o caso.
“Professora: Um futuro brilhante te espera... É brincadeira.”
O cinema poético e documental de Petra Costa encontra o de Lea Glob numa produção diferente, em que o real parece “dirigido”, e o teatral parece “ainda mais real”. OLMO E A GAIVOTA aborda um ano na vida de Olivia Corsini e Serge Nicolai, um casal de atores que passa pela gestação de seu primeiro filho – explorando os acontecimentos e suas nuances nas vidas dos dois. Com a direção cuidadosa de Petra, e suas ocasionais intervenções, o documentário não tem tanta cara de “doc”, parecendo que Olivia e Serge estão constantemente “atuando” sobre suas próprias vidas. Esta brincadeira entre o real e o teatral (imaginário e ilusório) ocorre algumas vezes, e sempre em boa hora. Contudo, mesmo que seja um longa com sua dose de beleza e poesia, senti que, dentre os da Petra, é o menos cativante, e o que mais parece ter sido “descoberto à medida que ia sendo filmado”. Muito do que se vê aqui é o dia-a-dia, a rotina e o cansaço pelo qual passa Olivia, seguindo a verdadeira essência do cinema que vai em direção ao feminino; Petra e Lea, afinal de contas, conseguem chegar a um retrato bonito da vida de uma mulher artista, embora não saibamos se este retrato é confiável ou não: uma das belíssimas e possíveis traições do verbo... É bem bonito, mesmo que não seja um favorito.
O terror, como um gênero cinematográfico, tem precisado de renovação há tempos. Os filmes da A24, por exemplo, têm sido uma boa caminhada nesse sentido (“A Bruxa”, “Hereditário”, “Clímax”...) e EL HOYO parece querer entrar para a lista – mas não consegue fazê-lo... O longa, dirigido pelo estreante Galder Gaztelu-Urrutia, narra a história de um homem que acorda numa espécie de cyber-prisão, em que duplas convivem por um mês juntas, numa sala cúbica, por cujo buraco central passa a comida, de cubo em cubo, indefinidamente. A arquitetura da produção lembra muito aquele clássico “O Cubo” (1997), só que com a adição de uma metáfora poderosa sobre a luta de classes: o acesso à comida como forma vertical da manutenção do poder. Pessoas egoístas, invejosas e doentes, partilham da mesma ceia, comendo o quanto quiserem, sem se importar com o cubo debaixo, onde outras pessoas esperam pela mesma comida... Não se esgota a discussão social que “O Poço” promove, mas é importante ressaltar que, como um filme de terror/ficção científica, ele tem furos demais para funcionar plenamente. Além disso, as escolhas narrativas para o final são só frustrantes e desestimulantes – parece que uma pessoa escreveu metade do filme, e outra fez o resto, tão diferentes que são as duas metades desta produção. O que começa com uma pegada alternativa e experimental acaba virando mais um slasher gratuito, jogando fora a metáfora de que se valeu para ficar em pé. É outro dos filmes que, apesar da boa intenção, acaba sendo só mais um título mal-acabado da Netflix – que, até então, produziu muito boas séries, mas cinematograficamente tem ficado para trás... À exceção de um filme ou outro, geralmente o que a empresa produz no formato longa costuma ser bem abaixo do padrão de qualidade que eles têm para o formato série. EL HOYO, infelizmente, não é exceção para isso. Não indico!
“Goreng: Há três tipos de pessoas; as que estão em cima, as que estão abaixo, e as que caem.”
Um dos queridinhos do cinema alternativo/underground, COHERENCE é uma experiência mista – um pouco boa, um pouco ruim – que aborda conceitos da física quântica aplicando-os na prática, durante a passagem de um misterioso cometa pela superfície terrestre... O longa, do estreante James Ward Byrkit (que foi roteirista da animação “Rango”, de 2011) apresenta um grupo de oito amigos que se reúnem e recebem, misteriosamente, uma caixa contendo a foto de cada um, com um número atrás, e uma raquete de tênis de mesa. Intrigado, o grupo passa a discutir a metafísica que deriva disso num dos filmes de baixo orçamento mais “assistíveis” dos últimos anos. Dá para compará-lo com os também alternativos “Cubo 2: Hipercubo” e “Quem Somos Nós?”, que discutem as mesmas questões, só que com abordagens diferentes. Filmes simples, munidos de ideias poderosas e desafiadoras, sempre valerão a pena ser conferidos. Não é diferente com “Coerência”, pelo bom suspense que conduz e pelo conceito que apresenta, esmiuçado e explicadinho, dos efeitos coerentes na teoria do Gato de Schrödinger. Embora por vezes mostre sinais de amadorismo (muita escuridão, problemas graves de foco e algumas atuações bem furrecas) o filme passa como um exercício mental divertido e elegante, divergindo do cinema como é produzido ainda hoje. Sigo crendo que uma boa ideia sobrepõe-se a orçamentos enormes e efeitos de ponta. É raro ver filmes de circuito fechado abordando questões tão experimentais, portanto vale a pena assisti-lo pelo menos uma vez, para conhecer este tipo de cinema, feito com o mínimo, mas com bastante poder em sua mensagem... Dê uma olhada!
“Amir: Esta foto foi tirada hoje. Em: O quê? Como sabe disso? Amir: Eu comprei este suéter hoje, então ela é de hoje.”
Para longe dos filmes “B” ou “inassistíveis” de sua época, THE ROOM impressiona não pela sua (já sabida) péssima qualidade, mas pela experiência verdadeiramente hipnótica que proporciona aos seus espectadores (há quase 20 anos)... A verdade é a seguinte: filmes realmente ruins a gente não assiste até o final. Quando são péssimos, cheios de furos e tudo mais, não vemos até o fim – mas THE ROOM é diferente disso. Seguindo à risca o conceito do “paracinema”, Tommy Wiseau dirigiu, produziu, escreveu e protagonizou uma produção que não tem nenhum atributo positivo, mas que por isso mesmo chama a atenção dos cinéfilos até hoje. Quase como uma qualidade irônica, o filme é uma comédia involuntária em todas as suas decisões artísticas: o uso desnecessário da grua, os péssimos enquadramentos, as cenas que se estendem sem necessidade, as falas mal-escritas (em atuações terríveis) e o cenário dolorosamente anti-natural em que a ação se dá... Tudo é, por algum misterioso motivo, feito da maneira errada, e isso, inexplicavelmente, funciona a ponto de ficarmos até o final, para ver aonde ele quer chegar. Fato é que não houve, na história do cinema estadunidense, outra produção do tipo, tão esculachada pela mídia e ignorada pelo grande público, que resistiu ao tempo e tem marcado gerações, tendo sido cultuada até hoje em alguns cinemas alternativos de São Francisco. Ninguém discute que, cinematograficamente, o filme é um manual do que “não-fazer”; mas que é uma experiência diferente de todas as outras, isso ninguém pode tirar. Assistindo como um drama sério, é o pior que já existiu; mas como uma comédia, ele funciona até que bastante bem. Eu diria para você dar uma chance. Talvez também se impressione...
“Johnny: Eu não bati nela. Não é verdade. É mentira! Eu não bati nela! Não bati! Oh, olá, Mark.”
Este aqui simplesmente não rolou. AMARELO MANGA, o longa de estreia de Cláudio Assis, com sua verve “suja” e “pouco poética”, conseguiu adquirir (quem diria?) um status ‘cult’ com a virada da década. O enredo é multi-facetado, sendo vivido pelos habitantes do Recife Antigo, numa estética “crua”, quase sem efeitos especiais e com produção de baixíssimo orçamento (mesmo para a época). Infelizmente, abordar só a estética e o enredo não é falar tanto. Este drama se estende por tempo demais, tornando-se monótono na primeira meia-hora, e não justifica sua existência mesmo quando resolve os arcos que apresenta. Há nudez feminina desnecessária para a trama, e o abate de um animal que é igualmente desnecessário. Há cenas, também, parece que “feitas para chocar”, o “soco pelo soco” – num Gaspar Noé brasileiro e sem a megalomania deste. As trajetórias dos protagonistas não cativam, algumas atuações (sobretudo as de Kanibal e Dayse) são ruins e o resultado só sai... Chato, cansativo e insatisfatório. Compreendo que tenha seus apoiadores, mas penso que filmes deste nicho específico, com doses de “crueza”, “violência” e “a vida como ela é”, na verdade são só uma maneira de capitalizar a cultura da morte – a cultura do abate, do tiro na cara e do assédio sexual. São maneiras que o consumo encontrou para erotizar a violência – e este filme faz isso muito bem, a começar pelo seu pôster, da vagina “amarelo manga” perseguida no longa. Respeito quem curta esta abordagem, mas para mim não fala tanto mais. E o Brasil tá longe de ser só todo esse pessimismo e essa violência desenfreada... Eu não indico.
“Padre: O ser humano é estômago e sexo. E tem diante de si uma condenação: terá obrigatoriamente que ser livre. Mas ele mata e se mata com medo de viver. Por isso meus olhos estão cegos: para não enxergar a gosma desses pecadores. Meus ouvidos escutam uma voz que diz ‘padre! Morrer não dói! Morrer não dói! Estamos todos condenados! Eternamente condenados... Condenados a ser livres’.”
O horror, o horror, meu deus... Seguindo a pós-retomada do cinema brasileiro, O LOBO ATRÁS DA PORTA é um suspense terrível, e por isso mesmo excelente. Recheado de diálogos intensos, e construindo uma trama a cada minuto mais pesada, o longa de Fernando Coimbra chega a um clímax chocante e bastante traumático (apesar de previsível, se soubermos sobre quem é esta história). Além de absolutamente brasileiro – nas gírias, nos cenários e nas locações do Rio – este aqui é um baita filme policial: cobrindo um caso ocorrido na Penha em 1960, O LOBO... se apresenta no mesmo nível dos suspenses estadunidenses sobre casos chocantes, como “Um Crime Americano” e “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal”. Se você não sabe qual é o caso sobre o qual este filme fala, assista a ele primeiro: o choque será muito maior. Para além disso, resta dizer que o respeito à nossa cultura, ao nosso cinema e à nossa língua é a ferramenta necessária para a verdadeira construção da identidade brasileira. Para que o vira-latismo brasileiro pereça, será preciso que mais brasileiros assistam aos fantásticos longas que produzimos aqui, no país que criou a Tropicália, mas também gerou uma fera na Penha, de cujo horror você não se esquecerá... Vale muito a pena! Suspense dos bons.
“Delegado: Eu pedi pro senhor voltar aqui porque eu tô precisando de mais alguns detalhes sobre o seu envolvimento com a Rosa. Quero entender isso, como é... Bernardo: Ah, caso de rotina, doutor, essas coisas que acontecem... Sexo sem envolvimento emocional, essas coisas. Rotina. Coisa de homem, inevitável. Essas coisas que acontecem com a gente, o senhor sabe bem como é, não é? Delegado: Não, não sei não, senhor Bernardo.”
“Eu não quero casar com essa bunda. Eu quero comprar ela pra mim.” O CHEIRO DO RALO é incrível. Heitor Dhalia numa direção impecavelmente afiada, e Selton Mello colaborando com a excelência que ele sempre teve, numa atuação complexa, profunda e difícil de esquecer. Complexo, aliás, é pouco para o personagem de Lourenço, barbaramente esmiuçado pelo autor Lourenço Mutarelli e transposto para o cinema pelo próprio diretor. É um longa muito bem feito, recheado de bons diálogos e simbologias interessantes. Dá para analisá-lo por vieses psicológicos, sociológicos, antropológicos e até filosóficos – não se esgotando nem na primeira nem na décima revisita. Dhalia produziu um dos grandes filmes do cinema pós-retomada do Brasil, criando analogias e metáforas fortes numa produção que mistura abuso de poder com comédia, e seriedade com bizarrice psicanalítica. Como na sinopse do livro, ‘entre a bunda e o ralo, não lhe resta saída que não seja ir para o buraco’; assim ocorre no longa de maneira excepcional, calando a tudo e todos. É pesado e diferente de um jeito muito bom – para ser visto, sentido e degustado como só o cheiro da merda de Lourenço poderia ser. Assista! Não vai se arrepender!
“Lourenço: ‘O cheiro do ralo’. Sinto um prazer estranho quando eu digo isso. É como se eu me reencontrasse. Talvez o cheiro seja meu. Foi o cheiro que me trouxe à bunda. É um presente do inferno.”
Um filme morno (apesar de bem-editado) e infelizmente xenofóbico... Sofia Coppola produziu em 2003 um dos seus mais importantes longas; LOST IN TRANSLATION, cujo título tem traduções diferentes para cada país em que foi lançado. Com a intricada arquitetura de Tóquio como uma metáfora para o romance pseudo-profundo que Coppola tentou escrever, “Encontros e Desencontros” tenta ser o que não é, e de morno acaba virando enfadonho nos primeiros minutos – e xenofóbico nos restantes... O esvaziamento de sentido causado pelo acúmulo de riqueza material encontra em LOST IN TRANSLATION o tédio, seja no casamento mal-vivido de Charlotte, ou na insatisfação profissional de Bob depois de anos de carreira. Ambos, aliás, não passam de burgueses da classe alta que perderam seus objetivos e desejos para criar movimento em suas próprias vidas. É desse esvaziamento que se fala quando se aborda uma vida regrada de regalias, na qual faltam emoções, imperfeições e (re)descobertas. Ademais, a forma como este filme coloca o povo japonês no lugar do “exótico”, “excêntrico” e “cômico” não é só feia, mas também xenofóbica e até racista. Os exageros para com o povo amarelo falam por si só: tudo é caricato, engraçado, motivo para rir das diferenças culturais entre os estadunidenses “intelectuais e civilizados” e o “povo que adora comer dedo podre”. O olhar blasé de Bob para toda pessoa não-branca no filme entrega como este é um baita desrespeito com a cultura japonesa – maior até do que fazer Tom Cruise ser “O Último Samurai” do Japão, filme que saiu no mesmo ano inclusive. Para além disso, “Encontros e Desencontros” é só um longa chato, que não sabe aonde quer chegar e nem tem ideia de como caminhar até lá – uma outra metáfora para a confusão de seus personagens, que se estende também para a diretora/roteirista disso aqui. Coppola conduz com o mesmo desinteresse, quase um tédio melancólico que contagia o espectador, bastante real e por isso mesmo pouco vivo e muito morno. Pode ter sido o filme que originou o mumblecore dos millenials, mas isso não o torna mais assistível ou mesmo tão importante assim. Este tipo de cinema já deu.
Só amor, só carinho pelo centro do nosso mundo... CENTRAL DO BRASIL é um verdadeiro manifesto brasileiro: da nossa gente, da nossa cultura, do nosso país. Do centro do Rio a uma cidadezinha no interior do Nordeste, Walter Salles conduziu talvez o seu melhor longa com grande maestria, bonita de se ver e sentir. O filme, que conta com a soberba Fernanda Montenegro (e uma atuação nada mal do estreante Vinícius de Oliveira), parte de uma história aparentemente simples para um olhar importantíssimo sobre o nosso povo, seja pela abordagem ao analfabetismo e à pobreza, ou até à riqueza cultural que o nosso povo tem – e nunca vai perder. Este filme é tão bom que torna quase insuportável o vira-latismo de alguns ao desmerecê-lo: trata-se do longa que o Brasil levou pro Oscar daquele ano, como Melhor Filme Estrangeiro, e com Montenegro sendo indicada a Melhor Atriz. Não é pouca coisa para uma produção brasileira conquistar, ainda mais contando a nossa história e os nossos lugares no chamado ‘terceiro mundo’. CENTRAL DO BRASIL é um dos grandes filmes que o nosso cinema fez desembocar – de fazer rir e chorar com a mesma eficácia, retendo-nos por todo o seu percurso e sedimentando-se em nossas memórias sem fazer esforço. Walter Salles foi um artista muito feliz nesta produção; e as histórias-testemunhos dessas pessoas ficarão para sempre guardadas em nosso cinema – e naqueles que o encontraram verdadeiramente também. Perfeito. Assista o quanto antes!
“Dora: Nunca deixe de roubar mortadela. Josué: Eu DETESTO mortadela.”
O robustíssimo cinema de Pedro Almodóvar originou outra pérola cinematográfica que, para hoje, apresenta problemas muito sérios. ÁTAME! é a oitava instalação em longa-metragem do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que aqui já era notável pelo seu cinema cheio de cores vivas e roteiros (cada vez mais) complexos. Antes de chegar a argumentos do calibre de “Má Educação” ou “Volver”, Pedro produziu em 1990 um dos filmes que viraria sua marca registrada – justamente por suas cores e decisões não-convencionais, sobretudo para com o protagonista Ricky. Apesar de possuir atuações e design de produção excelentes, ÁTAME nos deixa ao final com um gosto ruim na boca...
O grande problema está na sua ética/política: um homem que sequestra uma mulher e diz querer que ela se apaixone por ele já seria questionável por si só, mas o que resulta desta estranha relação é algo que simplesmente soa errado, questionável, machista até. Segue a linha de raciocínio de que, se qualquer homem insistir e ameaçar por tempo suficiente, ele terá a mulher que quiser, não importando como ela se sente sobre ele; é assim que ocorre com Marina Osorio, a personagem central mas pouco-explorada deste ‘romance’. Parece que o filme é como que uma desculpa para prender e amordaçar a atriz – como num fetiche mesmo – a começar pelo pôster. Não se deve questionar o fenômeno que ficou conhecido como Síndrome de Estocolmo, mas é evidente que “Ata-me!” não oferta muito para construir o seu efeito, uma vez que, quase que de uma cena para outra, toda a situação muda na cabeça de Marina e a partir de agora seu ela se sujeita conscientemente a ter uma relação com o seu abusador (bem no estilo daquele filme “Elle”, de Paul Verhoeven).
De um modo geral, é um longa que entretém, mas que causa muito desconforto por essa decisão. Como uma produção independente, não vai tão longe, e como um filme do Almodóvar, não está entre os melhores. Em seu lugar, pegaria facilmente “Má Educação” ou “Volver” mesmo para assistir. Este aqui não funciona tão bem assim.
“Ricky: Tentei falar com você, mas não me deixou. Por isso tive de raptá-la, para que me conheça melhor. Tenho certeza que se apaixonará por mim, como estou apaixonado por você.”
Apesar de ser brasileira, é uma série bastante mediana. ONISCIENTE é a nova aposta do produtor Pedro Aguilera, roteirista da bem-sucedida “3%”, também da Netflix. Aqui e ali, em vários momentos, vemos decisões de direção/figurino/cenário que lembram o Processo, a Causa e outros elementos da série – embora, tirando a ficção científica, ambas não tenham tanto assim em comum. “Onisciente” tem um bom gancho inicial, que estabelece uma dúvida e vontade de assistir genuínas, mas que vai, aos poucos, se desintegrando no percurso da série. Para além das obviedades do roteiro (sobretudo o final absolutamente previsível), ONISCIENTE tem vários momentos desnecessários, como aquela cena íntima de Olívia e todo aquele rolê do Daniel, lá para o meio da produção. A sensação que há, apesar de a série ser curta, é que ela poderia ser ainda menor, e não perderia nada – o roteiro não vai tão longe e se torna desinteressante quase que nos primeiros três episódios. Junte-se a isso as péssimas atuações, principalmente dos irmãos protagonistas; quase não há verdade ali, e é tudo caricato demais para que empatizemos com a sua situação... Enfim, não vale a pena. É melhor mesmo assistir às temporadas de 3%, porque pelo menos movimentos narrativos e reviravoltas ocorrem de fato. Esta aqui não rolou, infelizmente.
Aquela história do falso-anarquismo, né? SUCKER PUNCH, longa de Zack Snyder (“300”, “Batman vs. Superman”) é pomposo e explosivo, mas entrega pouco de sua própria mitologia, e resulta num fiasco tanto narrativo como de investimento (já que o filme basicamente só se pagou e olhe lá). É difícil um diretor dizer que seu filme é uma “crítica à cultura grega de sexualização de mulheres” quando as protagonistas da história usam roupas curtas e fetichizantes quase todo o tempo – mais ou menos o problema da Arlequina, em “Esquadrão Suicida”, só que quatro vezes maior. A trama, que se propõe “feminista” e “libertadora”, conta uma história simplória, repetitiva e previsível, com atuações fraquíssimas e ainda com a pinta de um “grande épico”. A trilha e o design de produção realmente ajudam na estética do longa, mas isso não o faz ir muito longe: há elementos demais contra o filme, em especial a edição, a direção das atrizes e a fetichização exacerbada pela qual todas passam. Parece que, para agradar seu público de adolescentes, Snyder investiu num filme quase steampunk, pseudo-feminista e anarquista, buscando representar o “girl power” através de minisaias, lingerie e mulheres lindas empunhando armas letais, ou, como Snyder mesmo definiu, “Alice no País das Maravilhas com metralhadoras”. A versão estendida ainda consegue piorar (por justamente estender) este fiasco. Os pontos positivos não funcionam a ponto de salvá-lo porque os negativos gritam demais, a todo o tempo, o quanto que este filme é só moldura bonita. Um bom roteiro, com uma direção menos focada na bunda dessas meninas e com uma verdadeira revolução ao final teria sido mil vezes mais efetivo (como mensagem e como cinema) do que SUCKER PUNCH realmente foi. Péssimo. Péssimo mesmo. Fuja deste aqui!
“Blue Jones: Perdeu a vontade de brigar, foi? Baby Doll: Não, acabei de achá-la.”
Um filme para muito além da tal da “especulação imobiliária”... Kleber Mendonça Filho volta ao cinema depois do estarrecedor “O Som ao Redor”, com um filme robusto, intenso e dolorosamente cru – e por isso mesmo, profundamente real e perturbador. Sônia Braga trabalha com a maestria que só uma atriz muito experiente conseguiria ter, e os personagens antagonistas (porque são vários, nunca apenas um) são retratados fielmente, com o deboche e a cara “guapa” que na realidade todos eles têm mesmo... Aqui Kleber sintetizou antagonismos fundamentais para a compreensão de um Brasil contemporâneo e em constante mudança: o avanço da tecnologia contra a resistência analógica, "antiga"; os baby-boomers contra a geração Y; a privatização contra o espaço privado, a pessoa jurídica contra a pessoa civil, e por aí vai... O filme inteiro é recheado de contrastes, e elementos que evidenciam como é a vida neste “aquário”, seja por meio do uso constante do azul (em quase toda cena), aos simbolismos mais pesados lá pro final; uma vida em desequilíbrio externo, por um agente da violência que advoga sempre em vontade própria, no sentido da destruição da história, da memória afetiva e do lugar onde nasceu, cresceu, viveu (e morrerá!) uma família do Brasil. É uma produção que gera debates extensos, mas que para o fim desta resenha sintetiza-se num único imperativo: assista! Você tá é perdendo tempo se dedicando a outro cinema! Kleber Mendonça Filho é um dos grandes nomes de sua geração – e que ecoará para muito depois do tempo de hoje; pode escrever aí! Filmaço.
“Clara: Então quando você gosta, é vintage; quando não gosta, é velho.”
Pesado, denso e profundamente depressivo... BIUTIFUL é um dos grandes longas do mexicano Alejandro Iñárritu, o mais conhecido de sua primeira fase (antes de mudar sua pegada) e talvez o mais depressivo deles. O enredo conta a história de Uxbal, um criminoso decadente que vê tudo ao seu redor desmoronar gradualmente, junto de sua saúde e crescente solidão. Javier Bardem mostra, mais uma vez, por quê é considerado um dos maiores atores de sua geração, num trabalho absolutamente impecável, que Iñárritu dirige com grande destreza. É um filme plural porque trata de muitos assuntos complexos ao mesmo tempo – a situação dos imigrantes, o tráfico e o vício em drogas, a traição num casamento, a ética de um homem fora da lei e a espiritualidade de um altruísta para com pessoas enlutadas. Tudo isso é abordado largamente ao longo dessas quase duas horas e meia de ação interna, hermética, fechada-em-si. Quase todo o filme é no silêncio dessa tristeza, dessa depressão dolorosamente humana pela qual passa Uxbal – e é na força dessa tristeza que o filme estabelece suas firmes bases e nos leva até o seu final derradeiro... Pessoalmente, prefiro seus longas mais recentes, o que não invalida a força desta instalação. A história de Uxbal é a de muitas pessoas, o que não deve ser esquecido. A realidade é inconsolável, mas no cinema ela é poesia. E a poesia resiste aqui.
“Ana: Pai! Como se escreve 'beautiful'? Uxbal: Desse jeito, como a palavra soa. B-I-U-T-I-F-U-L.”
Um filme divertido e super proveitoso sobre a política feminina nos anos 60. THE HELP é o premiado longa de Tate Taylor, uma adaptação do livro de mesmo nome de Kathryn Stockett. Trata-se de uma análise social da situação da mulher num momento muito específico da história estadunidense; ambientado no Mississipi dos anos 60, “Histórias Cruzadas” analisa os recortes sociais de mulheres brancas e negras pelas estruturas de poder que ordenam suas relações. As “madames” e as “criadas” compõem um espectro riquíssimo de vivências muito diferentes entre si – como que justificando a necessidade de mais de um feminismo, para dar vasão às experiências tão diversas que elas vivem. Enquanto algumas mulheres lutavam por votos e maior participação política, outras, de uma etnia diferente, lutavam para ter o direito de trabalhar para sobreviver. Enquanto umas buscavam status e ascensão social através de bens de consumo, outras consumiam só o necessário para viver, não tendo acesso aos mesmos recursos que elas. Enquanto umas são as “senhoras”, outras são as “empregadas”, hierárquica e historicamente postas de lado na luta por direitos, por muitos e muitos anos. Leituras sobre as heranças para o povo negro sobre este tipo de trabalho são muitas, e este filme consegue fazer desembocar várias reflexões a este respeito. Embora tenha elementos da cultura “white savior” e do protagonismo branco em detrimento do negro (que é, por fim, o tema do filme), THE HELP se sai como uma baita produção, para se rever várias vezes. Consegue ser divertido, informativo e muito bem atuado, em especial pelos fantásticos trabalhos da Viola Davis e da Octavia Spencer. Muito bom! Assistam!
“Aibileen Clark: You is kind. You is smart. You is important.”
Meh. LE TEMPS DU LOUP é outro dos longas de Michael Haneke que parece um pouco fora de forma. Desta vez, o diretor austríaco destrincha a situação de uma família burguesa num contexto sitiado, distópico, quase auto-destrutivo: a miséria coletiva numa área rural da França. Um evento misterioso impede o suprimento de todo o país e as pessoas que sobrevivem passam a viver numa situação nômade, sem valores civilizatórios ou humanitários. Haneke é conhecido por seus filmes longos e tediosos, em que o esvaziamento de sentido pela apropriação capitalista é uma realidade irreprimível, e aqui não é diferente. Embora não se passe totalmente no ambiente privado, “Tempos de Lobo” é o primeiro longa do diretor que aborda a coletividade de forma mais externa e ampla, nas ruas e estradas, e com a maior quantidade de atores. A todo momento, porém, somos desconvidados a empatizar por essas pessoas que, a cada dia que passa, se mostram mais hostis e desesperadas por sobreviver. Sexo em troca de água, escambo de todos os bens materiais (agora inúteis), o alimentar-se de cadáveres na estrada e o assassinato como método absoluto de imposição do poder: o Lobo é esta fome, este caminhar a esmo, esta espera inadiável. Haneke sintetizou, em 2003, a sua versão de “Esperando Godot”, que, aqui, se manifesta no trem com mantimentos, uma esperança indubitável de prosperidade que parece nunca chegar. Mesmo assim, o longa, em si, não vai mais longe. O choque da cena inicial é seguido por um marasmo quase absoluto, em que nem o amor nem a violência encontram grandes expressões. A apatia das duas horas seguintes contrasta muito os minutos iniciais, e torna a experiência repetitiva e até pouco proveitosa. Ao contrário de filmes dele como “O Sétimo Continente” ou “Amour”, em que o amor e a violência coexistem e efetivamente resultam em algo, “Tempos de Lobo” não só não chega perto como também não adiciona tanto à filmografia já consolidada do diretor. Não é um dos que eu indicaria – provavelmente um dos outros dois apresentaria o seu trabalho melhor. Uma experiência mediana, afinal. Infelizmente.
“Eva: Sei que pareço confusa, e na verdade estou; por isso mesmo estou escrevendo: porque tudo é muito confuso e espero poder entender melhor escrevendo. Quero te contar para tentar passar uma ideia de como a vida está sendo agora.”
Surpreendentemente bom. THE INVISIBLE MAN é o novo longa de Leigh Whannell (responsável pelas famosas trilogias “Jogos Mortais” e “Sobrenatural”), que retorna às telonas com uma releitura do conto homônimo de H. G. Wells. Aqui, porém, a trama recebe um novo elemento, muito bem utilizado: a temática da violência doméstica e a dinâmica de um relacionamento abusivo. Elisabeth Moss (a essa altura, uma verdadeira deusa da atuação) carrega o filme nas costas e o elenco secundário a sustenta embora não faça mais que o necessário. Aqui e ali, apesar de algumas cenas mal executadas (em especial aquela quando ela sai da casa para procurar seu assediador), o filme apresenta bons jumpscares, não cai em redundâncias e evita absurdos narrativos, comuns inclusive nas trilogias que fizeram este diretor conhecido. Há pouco exagero, e o longa é, num geral, crível – até porque, esta pesquisa sobre a invisibilidade já é antiga, e tem encontrado na Física alguns avanços impressionantes... Não sendo tão fantasioso assim, “O Homem Invisível” é um bom suspense. Aborda assuntos como a “histeria das mulheres” e o assédio pelo qual elas passam, sobretudo em casos de relacionamentos abusivos e desequilibrados. Moss, embora nunca submissa, encarna verdadeiramente a mulher que toma as rédeas de sua situação e responde à altura todo o abuso pelo qual passou, e ainda em grande estilo. Um bom suspense! Vale a pena conferir.
“Cecilia Kass: Ele disse que em qualquer lugar que eu fosse, ele ia me encontrar, andar até mim, e eu não conseguiria vê-lo.”
Um filme absolutamente péssimo. Em todos os sentidos – na abordagem, nas montagens, nas entrevistas, em tudo... Tudo em VOYEUR funciona de maneira capenga e se arrasta até o seu desfecho insatisfatório sem cativar o público. Era para ser um documentário sobre um caso emblemático coberto pelo celebrado jornalista Gay Talese: Gerald Foos, o dono de um motel que durante anos espiou seus hóspedes pela ventilação do prédio. Entretanto, o filme se perde em si mesmo nos primeiros 20 minutos e muda o foco para 1 – a matéria que Gay escreve sobre ele e 2 – para o lançamento do livro que cobre a sua vida, também escrito pelo jornalista. Nenhum dos assuntos é minimamente interessante, e o tempo em tela é consumido por situações péssimas, em que o jornalista é convidado repetidas vezes a conversar com o voyeur sem efetivamente discutirem, até que ele decide jogar tudo pro alto e acusa os próprios diretores/câmeras de estarem fazendo um trabalho lixoso de informação (ele literalmente aponta o dedo pra eles e fala isso). E para piorar, o documentário nunca adereça a culpa do crime de invasão de privacidade que Foos cometeu repetidas vezes naqueles anos, e da situação em que ele foi cúmplice de um assassinato – tendo observado uma mulher ser morta em seu motel e fingido não ter visto quem o fez. Este doc é quase uma apologia ao cara, e um trabalho dúbio por justamente passar o pano em muitos elementos problemáticos desta história – como se ninguém da produção soubesse sobre que tipo de abuso de poder estão, de fato, falando. Péssimo, absolutamente péssimo. Passem longe.
"Gay Talese: Não dá pra acreditar nessa história, é impossível inventar essa história."
Um filme ok. Outra das comédias românticas dos anos 90/2000 que viralizou na época, e que, vista hoje, apresenta sinais característicos de envelhecimento. HOW TO LOSE A GUY... é sobre uma aposta entre duas pessoas, sem que elas saibam, para que uma namore com ela e a outra queira largá-la – um paradoxo instigante e gostoso de assistir. Kate Hudson e Matthew McConaughey têm boa química e o elenco secundário sustenta bem essas duas horas de um romance bobo e um pouco previsível. Porém, como em casos semelhantes (nas comédias inglesas da época), há, aqui e ali, piadinhas preconceituosas, e alguns temas são só datados mesmo – embora tenhamos que pensar (sempre!) o filme em seu contexto histórico também... Para além disso, é um divertimento simples e direto ao ponto. Não vai mais longe que o raso – e nem se propõe a fazê-lo. Um filme ok; faltou a ele talvez um pouco mais de roteiro e reviravolta, mas num geral desempenha seu entretenimento de maneira razoável. Ok.
“Andie: Você não pode perder algo que nunca teve.”
Como Nossos Pais
3.8 445Um filme robusto, com edição fina e boníssimas atuações.
COMO NOSSOS PAIS é o mais recente longa de Laís Bodanzky, que anos atrás dirigiu o notável “Bicho de Sete Cabeças”. Representa uma análise precisa da situação dos gêneros, e sua divisão (social) de trabalho no nosso país. Trata da maternidade, da sobrecarga da mulher no ambiente doméstico e do desequilíbrio existente (quase que naturalmente) numa relação heteronormativa, em que filhos são uma responsabilidade e o trabalho é uma realidade com a qual sempre se deve lidar.
Um estudo muito bem-editado sobre as relações humanas, neste caso entre mãe e filha, esposa e esposo, e mãe e filhas. A busca incessante por uma representação paterna, o desnorteamento das emoções e o desmantelamento das relações são alguns dos temas adjacentes, possíveis de ser lidos também. O filme de Bodanzky é, sobretudo, um drama humano, no que se percebe por sua direção expressiva e seu argumento aparentemente simples, mas talhado de maneira profunda e comovente.
Um dos nossos muito bons dramas. Assista!
“Rosa: Pra eu ter tesão em você de noite, você tem que ter sido legal o dia inteiro comigo. Ter me ajudado nas tarefas do dia-a-dia. Eu não consigo simplesmente ter tesão em você de noite, abstrair de tudo isso e gozar.”
Vá e Veja
4.5 756 Assista Agora“E, havendo [o Cordeiro] aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vá, e veja.” Apocalipse 6:7.
IDI I SMOTRI, derradeiro filme de Elem Klimov, considerado por muitos sua obra prima, é o ápice dos filmes anti-guerra feitos até então. Oferecendo uma visão distinta da estadunidense ‘tradicional’, o longa narra a trajetória de Florya, um menino aspirante da guerra que se une à guerrilha soviética contra as tropas nazistas. Entretanto, ao contrário do que ele espera, a segunda guerra mundial não se apresenta a brincadeira de criança que ele pensava ser, e o horror e o absurdo vão encontrá-lo muito mais rápido, muito mais alto e muito mais perto do que ele imagina...
“Vá e Veja” é uma referência no cinema internacional; seja pela estonteante fotografia, pelos efeitos pirotécnicos ou pela profundidade de seus simbolismos, o longa tem um roteiro escrito com precisão, e que toma tempo para digerir. Ele evidencia a total estupidez da guerra, onde nunca há amor, somente ódio, e o massivo investimento de energia para a aniquilação do outro, quase que simplesmente por sua diferença em relação a nós. Falamos da cultura da morte, dos aniquilamentos em massa e, principalmente, do etnocentrismo, que foi a mola mestra que catapultou, em todos os séculos, o que mais tarde se chamaria de 'imperialismo'.
Sendo assim, “Vá e Veja” é um gigantesco manifesto anti-guerra e anti-fascismo. Humanizando este “outro”, e apresentando lados da guerra de maneira justa, IDI I SMOTRI faz-nos participar da filosofia da resistência soviética, num sentido amplo e muito bonito, que é toda a força de vida que ainda está por vir. Lembrando sempre, é claro, que a violência reativa de um grupo/nação oprimida nunca está em pé de igualdade com a violência de quem exerce o poder sobre ela. Uma reação a uma violência não sobrepõe-se à violência primeira, que é o próprio caos em si, e o desgaste humano em sua essência.
Definitivamente um dos filmes obrigatórios para quem gosta de cinema.
“Oficial Alemão: Sim, eu disse isso: ‘Saiam e deixem as crianças’. Eu disse isso porque com as crianças começaria tudo de novo. Você não tem direito de existir. Nem todas as raças têm o direito de existir. Escutem! Escutem todos! As raças inferiores propagam o contágio do comunismo. Você não tem direito de existir. E nossa missão será cumprida. Se não hoje, amanhã.”
Artista do Desastre
3.8 555 Assista AgoraOh hi Mark!
Segundo o próprio Tommy Wiseau, em THE DISASTER ARTIST, James Franco conseguiu captar 99.9% da essência do que foi a produção do (dito) pior filme da história estadunidense. THE ROOM, que teve direção, roteiro, produção e protagonismo de Wiseau, estreou em 2003 sem alcançar grandes públicos e encerrou sua temporada como um grande fracasso de crítica e audiência. Trucidado por anos, o filme ganhou status cult e, em 2017, uma espécie de refilmagem/paródia/biografia estranha, mas mesmo assim muito especial.
De fato, James Franco (e seu companheiro de sempre, Seth Rogen) embarcam numa jornada que demonstra empatia e compreensão, sobretudo da parte de Franco – que, diga-se de passagem, também dirigiu, produziu e protagonizou este filme. Nos moldes do THE ROOM original, Franco conduz a narrativa escrita pelo melhor amigo de Wiseau, Greg Sestero, contando a história de como nasceu a amizade que eles têm até hoje, e os bastidores do que foi um longa que teve quatro equipes técnicas diferentes e foi filmado em dois formatos.
Embora vejamos pouco da protagonista Juliette Danielle aqui, e detalhes importantes sobre Tommy sejam simplesmente insondáveis (até por ele próprio), THE DISASTER ARTIST conta sua história com críticas pertinentes e momentos de comédia genuinamente bons – como a cena do terraço com a garrafa e o diálogo entre Greg e Tommy sobre violência contra a mulher. A atuação de Franco como Wiseau é incrível – e denota bem como tudo pareceu, àquela época, como uma desajeitada tentativa de pertencer à sociedade norte-americana, por parte de um imigrante que não sabia falar inglês direito mas tinha o sonho de fazer um longa em Hollywood.
Quem assiste para rir se diverte, e quem procura informações até psicológicas, também encontra aqui. É um filme significativamente melhor do que o filme sobre o qual ele fala, mas é também uma verdadeira declaração de carinho por um cineasta iniciante, que nunca foi esquecido – mesmo que pelos motivos errados.
Assistam! Vale a pena.
“Sandy Schklair: Tomada 67, ação!
Tommy Wiseau: Eu bati nela!
Sandy Schklair: Não! Você quer mudar a fala?
Greg Sestero: Você tá ótimo, cara. Vamos chegar lá!”
Tallulah
3.6 234 Assista AgoraUm longa interessante sobre uma situação nada absurda.
Quase como que uma continuação involuntária de “Juno”, TALLULAH nos apresenta questões muito importantes sobre maternidade, e também maternidade compulsória. Ellen Page está, como sempre, trabalhando com excelência, e o restante do elenco faz a sua parte tranquilamente. O roteiro, também assinado pela diretora Sian Heder, tem boas reviravoltas e segue interessante por todo o curso a história – sua direção, aliás, é atenta e detida, como todo bom drama apresenta.
Embora seja um filme “raso”, no sentido que as questões psicológicas/sociais que envolvem o sequestro não sejam profundamente abordadas, TALLULAH é um bom entretenimento – em especial, pela bela construção dos arcos das 'antagonistas' Tallulah e Carolyn. Se você assiste sem saber o enredo, o susto é ainda maior...
Um bom filme.
“Tallulah: Seu plano dependia de outras pessoas. Outras pessoas são uma merda, e vão te desapontar todas as vezes.”
Para Sempre Lilya
4.2 868Pesado, absolutamente triste e – talvez – além do suportável como cinema...
Nos últimos tempos, venho me perguntando a necessidade da exposição de certas formas de violência nos filmes. Por vezes gratuitas, há cenas que, de tanto serem repetidas, parecem ganhar mais força, com o objetivo de chocar e fazer o espectador revirar o estômago. Deixando qualquer filme de terror no chinelo, filmes com tal grau de “realismo” e “consciência” chocam, mas também fazem questionar o sentido da superexposição dessa “violência gratuita”, como mais tarde criticaria o austríaco Michael Haneke.
Assim ocorre em “Para Sempre Lilya”, terceiro filme de Lukas Moodysson, que mais tarde produziria o também elogiado “Container”, de 2006. Aqui, Lilya vive o caso real de Danguole Rasalaite, uma lituana órfã enviada para a Suécia nas mesmas condições que a personagem, e que encontrou no país uma realidade ainda mais severa que aquela que vivera antes. O caso chocou o mundo, reacendendo o debate sobre tráfico humano e resultando neste roteiro, também assinado por Moodysson.
Como em seus filmes anteriores, o protagonismo é dos adolescentes que, neste caso, são os órfãos do império soviético, a Rússia pós-dissolução. Crianças e jovens encaram a crise russa no desalento silencioso de uma realidade cinzenta, fria e distante. Não há qualquer tipo de assistencialismo – e o Estado, como em tantos casos, não dá conta da demanda social, sobretudo a das “meninas-mulheres”.
De qualquer forma, fica o questionamento: qual a necessidade de fazer um filme nesses moldes, com tanta porrada que acaba “desconvidando” o espectador a acompanhá-lo? É claro que se trata de uma realidade duríssima, e que deve ser contada e debatida, mas há muitas escolhas artísticas aqui que tornaram este filme raso, e violento de maneira até desequilibrada. Em tempos como os de hoje, fica difícil acompanhar ativamente uma experiência tão dolorosa, e que às vezes soa gratuitamente dolorosa.
Ninguém precisa submeter o olhar a tanta violência por tanto tempo simplesmente “porque é violência”. E nem precisa ver tudo, exatamente como acontece, todas as vezes. Para isso existe a metáfora – para que possamos acessar as sensações sem necessariamente termos que materialmente entrar em contato com a experiência.
Às vezes, pode ser melhor ler sobre o caso e acompanhar o debate do que necessariamente assistir ao filme. E talvez este seja o caso.
“Professora: Um futuro brilhante te espera... É brincadeira.”
Olmo e a Gaivota
3.9 149O cinema poético e documental de Petra Costa encontra o de Lea Glob numa produção diferente, em que o real parece “dirigido”, e o teatral parece “ainda mais real”.
OLMO E A GAIVOTA aborda um ano na vida de Olivia Corsini e Serge Nicolai, um casal de atores que passa pela gestação de seu primeiro filho – explorando os acontecimentos e suas nuances nas vidas dos dois. Com a direção cuidadosa de Petra, e suas ocasionais intervenções, o documentário não tem tanta cara de “doc”, parecendo que Olivia e Serge estão constantemente “atuando” sobre suas próprias vidas. Esta brincadeira entre o real e o teatral (imaginário e ilusório) ocorre algumas vezes, e sempre em boa hora. Contudo, mesmo que seja um longa com sua dose de beleza e poesia, senti que, dentre os da Petra, é o menos cativante, e o que mais parece ter sido “descoberto à medida que ia sendo filmado”.
Muito do que se vê aqui é o dia-a-dia, a rotina e o cansaço pelo qual passa Olivia, seguindo a verdadeira essência do cinema que vai em direção ao feminino; Petra e Lea, afinal de contas, conseguem chegar a um retrato bonito da vida de uma mulher artista, embora não saibamos se este retrato é confiável ou não: uma das belíssimas e possíveis traições do verbo...
É bem bonito, mesmo que não seja um favorito.
O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraO terror, como um gênero cinematográfico, tem precisado de renovação há tempos. Os filmes da A24, por exemplo, têm sido uma boa caminhada nesse sentido (“A Bruxa”, “Hereditário”, “Clímax”...) e EL HOYO parece querer entrar para a lista – mas não consegue fazê-lo...
O longa, dirigido pelo estreante Galder Gaztelu-Urrutia, narra a história de um homem que acorda numa espécie de cyber-prisão, em que duplas convivem por um mês juntas, numa sala cúbica, por cujo buraco central passa a comida, de cubo em cubo, indefinidamente. A arquitetura da produção lembra muito aquele clássico “O Cubo” (1997), só que com a adição de uma metáfora poderosa sobre a luta de classes: o acesso à comida como forma vertical da manutenção do poder. Pessoas egoístas, invejosas e doentes, partilham da mesma ceia, comendo o quanto quiserem, sem se importar com o cubo debaixo, onde outras pessoas esperam pela mesma comida...
Não se esgota a discussão social que “O Poço” promove, mas é importante ressaltar que, como um filme de terror/ficção científica, ele tem furos demais para funcionar plenamente. Além disso, as escolhas narrativas para o final são só frustrantes e desestimulantes – parece que uma pessoa escreveu metade do filme, e outra fez o resto, tão diferentes que são as duas metades desta produção. O que começa com uma pegada alternativa e experimental acaba virando mais um slasher gratuito, jogando fora a metáfora de que se valeu para ficar em pé.
É outro dos filmes que, apesar da boa intenção, acaba sendo só mais um título mal-acabado da Netflix – que, até então, produziu muito boas séries, mas cinematograficamente tem ficado para trás... À exceção de um filme ou outro, geralmente o que a empresa produz no formato longa costuma ser bem abaixo do padrão de qualidade que eles têm para o formato série.
EL HOYO, infelizmente, não é exceção para isso.
Não indico!
“Goreng: Há três tipos de pessoas; as que estão em cima, as que estão abaixo, e as que caem.”
Coerência
4.0 1,3K Assista AgoraUm dos queridinhos do cinema alternativo/underground, COHERENCE é uma experiência mista – um pouco boa, um pouco ruim – que aborda conceitos da física quântica aplicando-os na prática, durante a passagem de um misterioso cometa pela superfície terrestre...
O longa, do estreante James Ward Byrkit (que foi roteirista da animação “Rango”, de 2011) apresenta um grupo de oito amigos que se reúnem e recebem, misteriosamente, uma caixa contendo a foto de cada um, com um número atrás, e uma raquete de tênis de mesa. Intrigado, o grupo passa a discutir a metafísica que deriva disso num dos filmes de baixo orçamento mais “assistíveis” dos últimos anos. Dá para compará-lo com os também alternativos “Cubo 2: Hipercubo” e “Quem Somos Nós?”, que discutem as mesmas questões, só que com abordagens diferentes.
Filmes simples, munidos de ideias poderosas e desafiadoras, sempre valerão a pena ser conferidos. Não é diferente com “Coerência”, pelo bom suspense que conduz e pelo conceito que apresenta, esmiuçado e explicadinho, dos efeitos coerentes na teoria do Gato de Schrödinger. Embora por vezes mostre sinais de amadorismo (muita escuridão, problemas graves de foco e algumas atuações bem furrecas) o filme passa como um exercício mental divertido e elegante, divergindo do cinema como é produzido ainda hoje.
Sigo crendo que uma boa ideia sobrepõe-se a orçamentos enormes e efeitos de ponta. É raro ver filmes de circuito fechado abordando questões tão experimentais, portanto vale a pena assisti-lo pelo menos uma vez, para conhecer este tipo de cinema, feito com o mínimo, mas com bastante poder em sua mensagem...
Dê uma olhada!
“Amir: Esta foto foi tirada hoje.
Em: O quê? Como sabe disso?
Amir: Eu comprei este suéter hoje, então ela é de hoje.”
The Room
2.3 492Para longe dos filmes “B” ou “inassistíveis” de sua época, THE ROOM impressiona não pela sua (já sabida) péssima qualidade, mas pela experiência verdadeiramente hipnótica que proporciona aos seus espectadores (há quase 20 anos)...
A verdade é a seguinte: filmes realmente ruins a gente não assiste até o final. Quando são péssimos, cheios de furos e tudo mais, não vemos até o fim – mas THE ROOM é diferente disso. Seguindo à risca o conceito do “paracinema”, Tommy Wiseau dirigiu, produziu, escreveu e protagonizou uma produção que não tem nenhum atributo positivo, mas que por isso mesmo chama a atenção dos cinéfilos até hoje.
Quase como uma qualidade irônica, o filme é uma comédia involuntária em todas as suas decisões artísticas: o uso desnecessário da grua, os péssimos enquadramentos, as cenas que se estendem sem necessidade, as falas mal-escritas (em atuações terríveis) e o cenário dolorosamente anti-natural em que a ação se dá... Tudo é, por algum misterioso motivo, feito da maneira errada, e isso, inexplicavelmente, funciona a ponto de ficarmos até o final, para ver aonde ele quer chegar.
Fato é que não houve, na história do cinema estadunidense, outra produção do tipo, tão esculachada pela mídia e ignorada pelo grande público, que resistiu ao tempo e tem marcado gerações, tendo sido cultuada até hoje em alguns cinemas alternativos de São Francisco. Ninguém discute que, cinematograficamente, o filme é um manual do que “não-fazer”; mas que é uma experiência diferente de todas as outras, isso ninguém pode tirar.
Assistindo como um drama sério, é o pior que já existiu; mas como uma comédia, ele funciona até que bastante bem.
Eu diria para você dar uma chance. Talvez também se impressione...
“Johnny: Eu não bati nela. Não é verdade. É mentira! Eu não bati nela! Não bati! Oh, olá, Mark.”
Amarelo Manga
3.8 543 Assista AgoraEste aqui simplesmente não rolou.
AMARELO MANGA, o longa de estreia de Cláudio Assis, com sua verve “suja” e “pouco poética”, conseguiu adquirir (quem diria?) um status ‘cult’ com a virada da década. O enredo é multi-facetado, sendo vivido pelos habitantes do Recife Antigo, numa estética “crua”, quase sem efeitos especiais e com produção de baixíssimo orçamento (mesmo para a época).
Infelizmente, abordar só a estética e o enredo não é falar tanto. Este drama se estende por tempo demais, tornando-se monótono na primeira meia-hora, e não justifica sua existência mesmo quando resolve os arcos que apresenta. Há nudez feminina desnecessária para a trama, e o abate de um animal que é igualmente desnecessário. Há cenas, também, parece que “feitas para chocar”, o “soco pelo soco” – num Gaspar Noé brasileiro e sem a megalomania deste. As trajetórias dos protagonistas não cativam, algumas atuações (sobretudo as de Kanibal e Dayse) são ruins e o resultado só sai... Chato, cansativo e insatisfatório.
Compreendo que tenha seus apoiadores, mas penso que filmes deste nicho específico, com doses de “crueza”, “violência” e “a vida como ela é”, na verdade são só uma maneira de capitalizar a cultura da morte – a cultura do abate, do tiro na cara e do assédio sexual. São maneiras que o consumo encontrou para erotizar a violência – e este filme faz isso muito bem, a começar pelo seu pôster, da vagina “amarelo manga” perseguida no longa.
Respeito quem curta esta abordagem, mas para mim não fala tanto mais. E o Brasil tá longe de ser só todo esse pessimismo e essa violência desenfreada...
Eu não indico.
“Padre: O ser humano é estômago e sexo. E tem diante de si uma condenação: terá obrigatoriamente que ser livre. Mas ele mata e se mata com medo de viver. Por isso meus olhos estão cegos: para não enxergar a gosma desses pecadores. Meus ouvidos escutam uma voz que diz ‘padre! Morrer não dói! Morrer não dói! Estamos todos condenados! Eternamente condenados... Condenados a ser livres’.”
O Lobo Atrás da Porta
4.0 1,3K Assista AgoraO horror, o horror, meu deus...
Seguindo a pós-retomada do cinema brasileiro, O LOBO ATRÁS DA PORTA é um suspense terrível, e por isso mesmo excelente. Recheado de diálogos intensos, e construindo uma trama a cada minuto mais pesada, o longa de Fernando Coimbra chega a um clímax chocante e bastante traumático (apesar de previsível, se soubermos sobre quem é esta história).
Além de absolutamente brasileiro – nas gírias, nos cenários e nas locações do Rio – este aqui é um baita filme policial: cobrindo um caso ocorrido na Penha em 1960, O LOBO... se apresenta no mesmo nível dos suspenses estadunidenses sobre casos chocantes, como “Um Crime Americano” e “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal”. Se você não sabe qual é o caso sobre o qual este filme fala, assista a ele primeiro: o choque será muito maior.
Para além disso, resta dizer que o respeito à nossa cultura, ao nosso cinema e à nossa língua é a ferramenta necessária para a verdadeira construção da identidade brasileira. Para que o vira-latismo brasileiro pereça, será preciso que mais brasileiros assistam aos fantásticos longas que produzimos aqui, no país que criou a Tropicália, mas também gerou uma fera na Penha, de cujo horror você não se esquecerá...
Vale muito a pena! Suspense dos bons.
“Delegado: Eu pedi pro senhor voltar aqui porque eu tô precisando de mais alguns detalhes sobre o seu envolvimento com a Rosa. Quero entender isso, como é...
Bernardo: Ah, caso de rotina, doutor, essas coisas que acontecem... Sexo sem envolvimento emocional, essas coisas. Rotina. Coisa de homem, inevitável. Essas coisas que acontecem com a gente, o senhor sabe bem como é, não é?
Delegado: Não, não sei não, senhor Bernardo.”
O Cheiro do Ralo
3.7 1,1K Assista Agora“Eu não quero casar com essa bunda. Eu quero comprar ela pra mim.”
O CHEIRO DO RALO é incrível. Heitor Dhalia numa direção impecavelmente afiada, e Selton Mello colaborando com a excelência que ele sempre teve, numa atuação complexa, profunda e difícil de esquecer. Complexo, aliás, é pouco para o personagem de Lourenço, barbaramente esmiuçado pelo autor Lourenço Mutarelli e transposto para o cinema pelo próprio diretor.
É um longa muito bem feito, recheado de bons diálogos e simbologias interessantes. Dá para analisá-lo por vieses psicológicos, sociológicos, antropológicos e até filosóficos – não se esgotando nem na primeira nem na décima revisita. Dhalia produziu um dos grandes filmes do cinema pós-retomada do Brasil, criando analogias e metáforas fortes numa produção que mistura abuso de poder com comédia, e seriedade com bizarrice psicanalítica.
Como na sinopse do livro, ‘entre a bunda e o ralo, não lhe resta saída que não seja ir para o buraco’; assim ocorre no longa de maneira excepcional, calando a tudo e todos. É pesado e diferente de um jeito muito bom – para ser visto, sentido e degustado como só o cheiro da merda de Lourenço poderia ser.
Assista! Não vai se arrepender!
“Lourenço: ‘O cheiro do ralo’. Sinto um prazer estranho quando eu digo isso. É como se eu me reencontrasse. Talvez o cheiro seja meu. Foi o cheiro que me trouxe à bunda. É um presente do inferno.”
Encontros e Desencontros
3.8 1,7K Assista AgoraUm filme morno (apesar de bem-editado) e infelizmente xenofóbico...
Sofia Coppola produziu em 2003 um dos seus mais importantes longas; LOST IN TRANSLATION, cujo título tem traduções diferentes para cada país em que foi lançado. Com a intricada arquitetura de Tóquio como uma metáfora para o romance pseudo-profundo que Coppola tentou escrever, “Encontros e Desencontros” tenta ser o que não é, e de morno acaba virando enfadonho nos primeiros minutos – e xenofóbico nos restantes...
O esvaziamento de sentido causado pelo acúmulo de riqueza material encontra em LOST IN TRANSLATION o tédio, seja no casamento mal-vivido de Charlotte, ou na insatisfação profissional de Bob depois de anos de carreira. Ambos, aliás, não passam de burgueses da classe alta que perderam seus objetivos e desejos para criar movimento em suas próprias vidas. É desse esvaziamento que se fala quando se aborda uma vida regrada de regalias, na qual faltam emoções, imperfeições e (re)descobertas.
Ademais, a forma como este filme coloca o povo japonês no lugar do “exótico”, “excêntrico” e “cômico” não é só feia, mas também xenofóbica e até racista. Os exageros para com o povo amarelo falam por si só: tudo é caricato, engraçado, motivo para rir das diferenças culturais entre os estadunidenses “intelectuais e civilizados” e o “povo que adora comer dedo podre”. O olhar blasé de Bob para toda pessoa não-branca no filme entrega como este é um baita desrespeito com a cultura japonesa – maior até do que fazer Tom Cruise ser “O Último Samurai” do Japão, filme que saiu no mesmo ano inclusive.
Para além disso, “Encontros e Desencontros” é só um longa chato, que não sabe aonde quer chegar e nem tem ideia de como caminhar até lá – uma outra metáfora para a confusão de seus personagens, que se estende também para a diretora/roteirista disso aqui. Coppola conduz com o mesmo desinteresse, quase um tédio melancólico que contagia o espectador, bastante real e por isso mesmo pouco vivo e muito morno.
Pode ter sido o filme que originou o mumblecore dos millenials, mas isso não o torna mais assistível ou mesmo tão importante assim.
Este tipo de cinema já deu.
“Bob: For relaxing times, make it Suntory time.”
Central do Brasil
4.1 1,8K Assista AgoraSó amor, só carinho pelo centro do nosso mundo...
CENTRAL DO BRASIL é um verdadeiro manifesto brasileiro: da nossa gente, da nossa cultura, do nosso país. Do centro do Rio a uma cidadezinha no interior do Nordeste, Walter Salles conduziu talvez o seu melhor longa com grande maestria, bonita de se ver e sentir. O filme, que conta com a soberba Fernanda Montenegro (e uma atuação nada mal do estreante Vinícius de Oliveira), parte de uma história aparentemente simples para um olhar importantíssimo sobre o nosso povo, seja pela abordagem ao analfabetismo e à pobreza, ou até à riqueza cultural que o nosso povo tem – e nunca vai perder.
Este filme é tão bom que torna quase insuportável o vira-latismo de alguns ao desmerecê-lo: trata-se do longa que o Brasil levou pro Oscar daquele ano, como Melhor Filme Estrangeiro, e com Montenegro sendo indicada a Melhor Atriz. Não é pouca coisa para uma produção brasileira conquistar, ainda mais contando a nossa história e os nossos lugares no chamado ‘terceiro mundo’. CENTRAL DO BRASIL é um dos grandes filmes que o nosso cinema fez desembocar – de fazer rir e chorar com a mesma eficácia, retendo-nos por todo o seu percurso e sedimentando-se em nossas memórias sem fazer esforço.
Walter Salles foi um artista muito feliz nesta produção; e as histórias-testemunhos dessas pessoas ficarão para sempre guardadas em nosso cinema – e naqueles que o encontraram verdadeiramente também.
Perfeito. Assista o quanto antes!
“Dora: Nunca deixe de roubar mortadela.
Josué: Eu DETESTO mortadela.”
Ata-me!
3.7 550O robustíssimo cinema de Pedro Almodóvar originou outra pérola cinematográfica que, para hoje, apresenta problemas muito sérios.
ÁTAME! é a oitava instalação em longa-metragem do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que aqui já era notável pelo seu cinema cheio de cores vivas e roteiros (cada vez mais) complexos. Antes de chegar a argumentos do calibre de “Má Educação” ou “Volver”, Pedro produziu em 1990 um dos filmes que viraria sua marca registrada – justamente por suas cores e decisões não-convencionais, sobretudo para com o protagonista Ricky. Apesar de possuir atuações e design de produção excelentes, ÁTAME nos deixa ao final com um gosto ruim na boca...
O grande problema está na sua ética/política: um homem que sequestra uma mulher e diz querer que ela se apaixone por ele já seria questionável por si só, mas o que resulta desta estranha relação é algo que simplesmente soa errado, questionável, machista até. Segue a linha de raciocínio de que, se qualquer homem insistir e ameaçar por tempo suficiente, ele terá a mulher que quiser, não importando como ela se sente sobre ele; é assim que ocorre com Marina Osorio, a personagem central mas pouco-explorada deste ‘romance’.
Parece que o filme é como que uma desculpa para prender e amordaçar a atriz – como num fetiche mesmo – a começar pelo pôster. Não se deve questionar o fenômeno que ficou conhecido como Síndrome de Estocolmo, mas é evidente que “Ata-me!” não oferta muito para construir o seu efeito, uma vez que, quase que de uma cena para outra, toda a situação muda na cabeça de Marina e a partir de agora seu ela se sujeita conscientemente a ter uma relação com o seu abusador (bem no estilo daquele filme “Elle”, de Paul Verhoeven).
De um modo geral, é um longa que entretém, mas que causa muito desconforto por essa decisão. Como uma produção independente, não vai tão longe, e como um filme do Almodóvar, não está entre os melhores. Em seu lugar, pegaria facilmente “Má Educação” ou “Volver” mesmo para assistir.
Este aqui não funciona tão bem assim.
“Ricky: Tentei falar com você, mas não me deixou. Por isso tive de raptá-la, para que me conheça melhor. Tenho certeza que se apaixonará por mim, como estou apaixonado por você.”
Onisciente (1ª Temporada)
3.4 74 Assista AgoraApesar de ser brasileira, é uma série bastante mediana.
ONISCIENTE é a nova aposta do produtor Pedro Aguilera, roteirista da bem-sucedida “3%”, também da Netflix. Aqui e ali, em vários momentos, vemos decisões de direção/figurino/cenário que lembram o Processo, a Causa e outros elementos da série – embora, tirando a ficção científica, ambas não tenham tanto assim em comum.
“Onisciente” tem um bom gancho inicial, que estabelece uma dúvida e vontade de assistir genuínas, mas que vai, aos poucos, se desintegrando no percurso da série. Para além das obviedades do roteiro (sobretudo o final absolutamente previsível), ONISCIENTE tem vários momentos desnecessários, como aquela cena íntima de Olívia e todo aquele rolê do Daniel, lá para o meio da produção. A sensação que há, apesar de a série ser curta, é que ela poderia ser ainda menor, e não perderia nada – o roteiro não vai tão longe e se torna desinteressante quase que nos primeiros três episódios. Junte-se a isso as péssimas atuações, principalmente dos irmãos protagonistas; quase não há verdade ali, e é tudo caricato demais para que empatizemos com a sua situação...
Enfim, não vale a pena. É melhor mesmo assistir às temporadas de 3%, porque pelo menos movimentos narrativos e reviravoltas ocorrem de fato.
Esta aqui não rolou, infelizmente.
Sucker Punch: Mundo Surreal
3.4 3,1K Assista AgoraAquela história do falso-anarquismo, né?
SUCKER PUNCH, longa de Zack Snyder (“300”, “Batman vs. Superman”) é pomposo e explosivo, mas entrega pouco de sua própria mitologia, e resulta num fiasco tanto narrativo como de investimento (já que o filme basicamente só se pagou e olhe lá).
É difícil um diretor dizer que seu filme é uma “crítica à cultura grega de sexualização de mulheres” quando as protagonistas da história usam roupas curtas e fetichizantes quase todo o tempo – mais ou menos o problema da Arlequina, em “Esquadrão Suicida”, só que quatro vezes maior. A trama, que se propõe “feminista” e “libertadora”, conta uma história simplória, repetitiva e previsível, com atuações fraquíssimas e ainda com a pinta de um “grande épico”. A trilha e o design de produção realmente ajudam na estética do longa, mas isso não o faz ir muito longe: há elementos demais contra o filme, em especial a edição, a direção das atrizes e a fetichização exacerbada pela qual todas passam. Parece que, para agradar seu público de adolescentes, Snyder investiu num filme quase steampunk, pseudo-feminista e anarquista, buscando representar o “girl power” através de minisaias, lingerie e mulheres lindas empunhando armas letais, ou, como Snyder mesmo definiu, “Alice no País das Maravilhas com metralhadoras”.
A versão estendida ainda consegue piorar (por justamente estender) este fiasco. Os pontos positivos não funcionam a ponto de salvá-lo porque os negativos gritam demais, a todo o tempo, o quanto que este filme é só moldura bonita. Um bom roteiro, com uma direção menos focada na bunda dessas meninas e com uma verdadeira revolução ao final teria sido mil vezes mais efetivo (como mensagem e como cinema) do que SUCKER PUNCH realmente foi.
Péssimo. Péssimo mesmo.
Fuja deste aqui!
“Blue Jones: Perdeu a vontade de brigar, foi?
Baby Doll: Não, acabei de achá-la.”
Aquarius
4.2 1,9K Assista AgoraUm filme para muito além da tal da “especulação imobiliária”...
Kleber Mendonça Filho volta ao cinema depois do estarrecedor “O Som ao Redor”, com um filme robusto, intenso e dolorosamente cru – e por isso mesmo, profundamente real e perturbador. Sônia Braga trabalha com a maestria que só uma atriz muito experiente conseguiria ter, e os personagens antagonistas (porque são vários, nunca apenas um) são retratados fielmente, com o deboche e a cara “guapa” que na realidade todos eles têm mesmo...
Aqui Kleber sintetizou antagonismos fundamentais para a compreensão de um Brasil contemporâneo e em constante mudança: o avanço da tecnologia contra a resistência analógica, "antiga"; os baby-boomers contra a geração Y; a privatização contra o espaço privado, a pessoa jurídica contra a pessoa civil, e por aí vai... O filme inteiro é recheado de contrastes, e elementos que evidenciam como é a vida neste “aquário”, seja por meio do uso constante do azul (em quase toda cena), aos simbolismos mais pesados lá pro final; uma vida em desequilíbrio externo, por um agente da violência que advoga sempre em vontade própria, no sentido da destruição da história, da memória afetiva e do lugar onde nasceu, cresceu, viveu (e morrerá!) uma família do Brasil.
É uma produção que gera debates extensos, mas que para o fim desta resenha sintetiza-se num único imperativo: assista! Você tá é perdendo tempo se dedicando a outro cinema! Kleber Mendonça Filho é um dos grandes nomes de sua geração – e que ecoará para muito depois do tempo de hoje; pode escrever aí!
Filmaço.
“Clara: Então quando você gosta, é vintage; quando não gosta, é velho.”
Biutiful
4.0 1,1KPesado, denso e profundamente depressivo...
BIUTIFUL é um dos grandes longas do mexicano Alejandro Iñárritu, o mais conhecido de sua primeira fase (antes de mudar sua pegada) e talvez o mais depressivo deles. O enredo conta a história de Uxbal, um criminoso decadente que vê tudo ao seu redor desmoronar gradualmente, junto de sua saúde e crescente solidão. Javier Bardem mostra, mais uma vez, por quê é considerado um dos maiores atores de sua geração, num trabalho absolutamente impecável, que Iñárritu dirige com grande destreza.
É um filme plural porque trata de muitos assuntos complexos ao mesmo tempo – a situação dos imigrantes, o tráfico e o vício em drogas, a traição num casamento, a ética de um homem fora da lei e a espiritualidade de um altruísta para com pessoas enlutadas. Tudo isso é abordado largamente ao longo dessas quase duas horas e meia de ação interna, hermética, fechada-em-si. Quase todo o filme é no silêncio dessa tristeza, dessa depressão dolorosamente humana pela qual passa Uxbal – e é na força dessa tristeza que o filme estabelece suas firmes bases e nos leva até o seu final derradeiro...
Pessoalmente, prefiro seus longas mais recentes, o que não invalida a força desta instalação. A história de Uxbal é a de muitas pessoas, o que não deve ser esquecido. A realidade é inconsolável, mas no cinema ela é poesia.
E a poesia resiste aqui.
“Ana: Pai! Como se escreve 'beautiful'?
Uxbal: Desse jeito, como a palavra soa. B-I-U-T-I-F-U-L.”
Histórias Cruzadas
4.4 3,8K Assista AgoraUm filme divertido e super proveitoso sobre a política feminina nos anos 60.
THE HELP é o premiado longa de Tate Taylor, uma adaptação do livro de mesmo nome de Kathryn Stockett. Trata-se de uma análise social da situação da mulher num momento muito específico da história estadunidense; ambientado no Mississipi dos anos 60, “Histórias Cruzadas” analisa os recortes sociais de mulheres brancas e negras pelas estruturas de poder que ordenam suas relações. As “madames” e as “criadas” compõem um espectro riquíssimo de vivências muito diferentes entre si – como que justificando a necessidade de mais de um feminismo, para dar vasão às experiências tão diversas que elas vivem.
Enquanto algumas mulheres lutavam por votos e maior participação política, outras, de uma etnia diferente, lutavam para ter o direito de trabalhar para sobreviver. Enquanto umas buscavam status e ascensão social através de bens de consumo, outras consumiam só o necessário para viver, não tendo acesso aos mesmos recursos que elas. Enquanto umas são as “senhoras”, outras são as “empregadas”, hierárquica e historicamente postas de lado na luta por direitos, por muitos e muitos anos.
Leituras sobre as heranças para o povo negro sobre este tipo de trabalho são muitas, e este filme consegue fazer desembocar várias reflexões a este respeito. Embora tenha elementos da cultura “white savior” e do protagonismo branco em detrimento do negro (que é, por fim, o tema do filme), THE HELP se sai como uma baita produção, para se rever várias vezes. Consegue ser divertido, informativo e muito bem atuado, em especial pelos fantásticos trabalhos da Viola Davis e da Octavia Spencer.
Muito bom! Assistam!
“Aibileen Clark: You is kind. You is smart. You is important.”
O Tempo do Lobo
3.6 72 Assista AgoraMeh.
LE TEMPS DU LOUP é outro dos longas de Michael Haneke que parece um pouco fora de forma. Desta vez, o diretor austríaco destrincha a situação de uma família burguesa num contexto sitiado, distópico, quase auto-destrutivo: a miséria coletiva numa área rural da França. Um evento misterioso impede o suprimento de todo o país e as pessoas que sobrevivem passam a viver numa situação nômade, sem valores civilizatórios ou humanitários.
Haneke é conhecido por seus filmes longos e tediosos, em que o esvaziamento de sentido pela apropriação capitalista é uma realidade irreprimível, e aqui não é diferente. Embora não se passe totalmente no ambiente privado, “Tempos de Lobo” é o primeiro longa do diretor que aborda a coletividade de forma mais externa e ampla, nas ruas e estradas, e com a maior quantidade de atores. A todo momento, porém, somos desconvidados a empatizar por essas pessoas que, a cada dia que passa, se mostram mais hostis e desesperadas por sobreviver. Sexo em troca de água, escambo de todos os bens materiais (agora inúteis), o alimentar-se de cadáveres na estrada e o assassinato como método absoluto de imposição do poder: o Lobo é esta fome, este caminhar a esmo, esta espera inadiável. Haneke sintetizou, em 2003, a sua versão de “Esperando Godot”, que, aqui, se manifesta no trem com mantimentos, uma esperança indubitável de prosperidade que parece nunca chegar.
Mesmo assim, o longa, em si, não vai mais longe. O choque da cena inicial é seguido por um marasmo quase absoluto, em que nem o amor nem a violência encontram grandes expressões. A apatia das duas horas seguintes contrasta muito os minutos iniciais, e torna a experiência repetitiva e até pouco proveitosa. Ao contrário de filmes dele como “O Sétimo Continente” ou “Amour”, em que o amor e a violência coexistem e efetivamente resultam em algo, “Tempos de Lobo” não só não chega perto como também não adiciona tanto à filmografia já consolidada do diretor. Não é um dos que eu indicaria – provavelmente um dos outros dois apresentaria o seu trabalho melhor.
Uma experiência mediana, afinal. Infelizmente.
“Eva: Sei que pareço confusa, e na verdade estou; por isso mesmo estou escrevendo: porque tudo é muito confuso e espero poder entender melhor escrevendo. Quero te contar para tentar passar uma ideia de como a vida está sendo agora.”
O Homem Invisível
3.8 2,0K Assista AgoraSurpreendentemente bom.
THE INVISIBLE MAN é o novo longa de Leigh Whannell (responsável pelas famosas trilogias “Jogos Mortais” e “Sobrenatural”), que retorna às telonas com uma releitura do conto homônimo de H. G. Wells. Aqui, porém, a trama recebe um novo elemento, muito bem utilizado: a temática da violência doméstica e a dinâmica de um relacionamento abusivo.
Elisabeth Moss (a essa altura, uma verdadeira deusa da atuação) carrega o filme nas costas e o elenco secundário a sustenta embora não faça mais que o necessário. Aqui e ali, apesar de algumas cenas mal executadas (em especial aquela quando ela sai da casa para procurar seu assediador), o filme apresenta bons jumpscares, não cai em redundâncias e evita absurdos narrativos, comuns inclusive nas trilogias que fizeram este diretor conhecido. Há pouco exagero, e o longa é, num geral, crível – até porque, esta pesquisa sobre a invisibilidade já é antiga, e tem encontrado na Física alguns avanços impressionantes...
Não sendo tão fantasioso assim, “O Homem Invisível” é um bom suspense. Aborda assuntos como a “histeria das mulheres” e o assédio pelo qual elas passam, sobretudo em casos de relacionamentos abusivos e desequilibrados. Moss, embora nunca submissa, encarna verdadeiramente a mulher que toma as rédeas de sua situação e responde à altura todo o abuso pelo qual passou, e ainda em grande estilo.
Um bom suspense! Vale a pena conferir.
“Cecilia Kass: Ele disse que em qualquer lugar que eu fosse, ele ia me encontrar, andar até mim, e eu não conseguiria vê-lo.”
Voyeur
3.0 57Um filme absolutamente péssimo.
Em todos os sentidos – na abordagem, nas montagens, nas entrevistas, em tudo... Tudo em VOYEUR funciona de maneira capenga e se arrasta até o seu desfecho insatisfatório sem cativar o público. Era para ser um documentário sobre um caso emblemático coberto pelo celebrado jornalista Gay Talese: Gerald Foos, o dono de um motel que durante anos espiou seus hóspedes pela ventilação do prédio.
Entretanto, o filme se perde em si mesmo nos primeiros 20 minutos e muda o foco para 1 – a matéria que Gay escreve sobre ele e 2 – para o lançamento do livro que cobre a sua vida, também escrito pelo jornalista. Nenhum dos assuntos é minimamente interessante, e o tempo em tela é consumido por situações péssimas, em que o jornalista é convidado repetidas vezes a conversar com o voyeur sem efetivamente discutirem, até que ele decide jogar tudo pro alto e acusa os próprios diretores/câmeras de estarem fazendo um trabalho lixoso de informação (ele literalmente aponta o dedo pra eles e fala isso).
E para piorar, o documentário nunca adereça a culpa do crime de invasão de privacidade que Foos cometeu repetidas vezes naqueles anos, e da situação em que ele foi cúmplice de um assassinato – tendo observado uma mulher ser morta em seu motel e fingido não ter visto quem o fez. Este doc é quase uma apologia ao cara, e um trabalho dúbio por justamente passar o pano em muitos elementos problemáticos desta história – como se ninguém da produção soubesse sobre que tipo de abuso de poder estão, de fato, falando.
Péssimo, absolutamente péssimo.
Passem longe.
"Gay Talese: Não dá pra acreditar nessa história, é impossível inventar essa história."
Como Perder um Homem em 10 Dias
3.4 907 Assista AgoraUm filme ok.
Outra das comédias românticas dos anos 90/2000 que viralizou na época, e que, vista hoje, apresenta sinais característicos de envelhecimento. HOW TO LOSE A GUY... é sobre uma aposta entre duas pessoas, sem que elas saibam, para que uma namore com ela e a outra queira largá-la – um paradoxo instigante e gostoso de assistir.
Kate Hudson e Matthew McConaughey têm boa química e o elenco secundário sustenta bem essas duas horas de um romance bobo e um pouco previsível. Porém, como em casos semelhantes (nas comédias inglesas da época), há, aqui e ali, piadinhas preconceituosas, e alguns temas são só datados mesmo – embora tenhamos que pensar (sempre!) o filme em seu contexto histórico também...
Para além disso, é um divertimento simples e direto ao ponto. Não vai mais longe que o raso – e nem se propõe a fazê-lo. Um filme ok; faltou a ele talvez um pouco mais de roteiro e reviravolta, mas num geral desempenha seu entretenimento de maneira razoável.
Ok.
“Andie: Você não pode perder algo que nunca teve.”