poucos diretores homens transmitem uma visão tão potente sobre a figura feminina como faz Almodóvar. sua sensibilidade ao tratar da vivência e dos sentimentos de mulheres cis e trans já virou marca registrada, tanto que o público reconhece de longe a força dramática de suas produções. o diretor envelheceu, mas se, de um lado, as histórias têm ficado menos rocambolescas, de outro, seus personagens possuem relações cada vez mais maduras e essa mudança só enriquece sua filmografia. é o caso de Mães Paralelas.
abertamente mais político que os anteriores, seu novo filme retoma temas como maternidade e a força das relações femininas, porém acrescentando a importância da memória como um pano de fundo que confronta o passado fascista da Espanha. e, como não poderia deixar de ser, se comunicando com a realidade brasileira quase de imediato. no filme temos uma protagonista que, enquanto tenta fazer justiça sobre o passado de dor da sua família, opta por ocultar circunstâncias igualmente doloridas sobre a própria existência.
não é à toa que Almodóvar nomeia seu novo projeto de Mães Paralelas. as narrativas de Janis, Ana e das outras mulheres do filme se encontram e separam sob a força própria da existência feminina, tão cara e bem desenvolvida na obra do diretor. ao mesmo tempo, ele aponta a impossibilidade de vida ou de sobrevivência (num paralelo à maternidade) enquanto não compreendermos e preservarmos nosso passado. para fazer crescer a vida é necessário um solo fértil, plano, sem mortos esquecidos pelo tempo, mas sim devidamente saudados.
o filme tem alguns problemas de desenvolvimento, falta um pouco de atenção ao construir o desfecho que conecta os dois principais temas da história. apesar do deslize (que atrapalha parte da experiência final), é notável o quão Almodóvar se tornou dono do universo que ele criou para si. em Mães Paralelas o público pode esperar ver as tão aclamadas cores, uma trilha sensacional e atuações marcantes. Penélope Cruz dá sua melhor interpretação desde Volver e acrescenta uma carga de verdade tão palpável ao filme que, sem ela, Mães Paralelas talvez não conseguisse ser tão grande.
talvez a melhor definição pra First Cow seja realmente esta: um pequeno grande filme. é absolutamente sutil a forma como a diretora Kelly Reichardt escolhe filmar a história, um mito nem um pouco épico sobre a criação da América que nunca teríamos encontrado nos livros. ela se interessa mesmo é pelos detalhes e é minuciosa a ponto de, numa só tacada, contar uma bela história de amizade ao mesmo tempo em que desconstrói o western tradicional (inclusive esteticamente, substituindo paisagens desérticas por muito verde) e faz um retrato das origens políticas dos EUA.
o filme é intrigante, melancólico e muito bonito, quase ingênuo. mas não é pra todo mundo. por mais coerentes que sejam as escolhas da diretora (de usar menos cortes, focar nos planos detalhe e sempre priorizar pequenos gestos a muita ação), a coisa perde um pouco o controle. fica visível sua intenção de fazer o espectador imergir na história, mas os primeiros 40 minutos podem ser bem maçantes. porém, mesmo que seja maravilhoso poder contemplar aquele tanto de natureza através de uma fotografia tão bonita, First Cow cresce mesmo quando finalmente conta a história que havia prometido.
quando Cookie (John Magaro) e King-Lu (Orion Lee) começam a ficar amigos, o filme passa, aos poucos, a adquirir um tom lúdico que é irresistível. em meio a uma realidade ainda tão bruta, o americano e o chinês, numa amizade que só poderia existir na ficção, começam a transformar o dia a dia dos moradores da vila com os bolinhos feitos com leite roubado. ainda que a saída para fazer fortuna não seja a mais correta, fica impossível não se identificar com esforços tão genuínos de vencer quando são negadas todas as oportunidades.
é a partir da sutileza retirada dos subtextos dessa pequena história que First Cow provoca tanto encantamento. um filme simples e muito específico que homenageia todas as fábulas aparentemente insignificantes com o maior dos caprichos.
Shiva Baby é um daqueles filmes de aparência inocente, mas que reservam uma tensão que ninguém espera até apertar o play. ele é a mistura perfeita entre comédia e tragédia social, quase um experimento para entender quais os efeitos psicológicos que uma quantidade absurda de pressão pode exercer em sua protagonista, a jovem-adulta Danielle (Rachel Sennott).
ao longo de pouco mais de uma hora, assistimos Danielle à beira de um colapso nervoso porque simplesmente não consegue lidar com tantas questões ao mesmo tempo: sua desconexão com o judaísmo, o ressentimento que envolve o fim do namoro com Maya (Molly Gordon), a forma como a família a pressiona sobre o futuro e os esforços pra tentar esconder que, na verdade, é uma sugar baby. ao mesmo tempo em que o filme cria uma situação embaraçosamente engraçada atrás da outra, ele nos faz sentir toda a claustrofobia que Danielle está sentindo e o resultado é um horror muito inesperado.
já em seu primeiro longa como diretora e roteirista, a canadense Emma Seligman faz aqui um trabalho autoral com doses agudas de humor ácido, autodepreciação e falso moralismo, nos obrigando a encarar nossas próprias inseguranças e conflitos internos através da piada. ao encontrar graça em situações absurdas, Shiva Baby ri das desgraças de sua protagonista que, no fundo, são nossas também. Emma é certeira ao apostar numa câmera inquieta e montagem frenética pra transmitir os sentimentos de Danielle.
depois das tantas, algumas situações se repetem sem muita sutileza e se tornam cansativas sim, mas é sensacional embarcar nessa grande estufa de pesadelos juvenis e se deixar envolver. os problemas de ritmo estão lá, mas Shiva Baby consegue quebrar convenções das comédias clássicas e fisgar o espectador com um sarcasmo delicioso. sem se perder em conceitos mirabolantes, o longa é fiel à sua intenção de ser simples e divertido e termina proporcionando momentos de autêntico desconforto. uma comédia inconveniente e constrangedora que 2020 nem imaginava estar precisando.
em Nomadland, a diretora Chloé Zhao escolhe caminhar entre a ficção documental e o realismo poético para contar a história de uma mulher que abandonou os valores concebidos pelo capitalismo pra viver uma liberdade irrestrita como nômade. aqui, ela faz um trabalho muito sensível e cuidadoso em que reflete sobre a possibilidade de criarmos narrativas diferentes pra nós mesmos, procurando nunca julgar, mas sim retratar esse modo de vida envolto em tantas idealizações.
talvez o resultado alcançado por Chloé só tenha sido possível porque, ao invés de atores, ela tenha colocado no filme apenas pessoas reais pra interagir com sua protagonista. com exceção de David Strathairn, todos os nômades que Fern (Frances McDormand) encontra pelo caminho são nômades reais, com histórias reais que acrescentam muita humanidade ao longa. o olhar de Chloé acompanha a forma como eles ajudam Fern a se adaptar à nova vida com uma obsessão quase documental, fazendo com que cada nova descoberta se torne parte do seu processo de desapego, que é mais emocional que físico.
como esperávamos, Frances desenvolve muito bem as camadas da personagem e seu desempenho é excepcional, evidenciando uma mulher experiente, ainda presa à morte do marido e aos pratos que o pai lhe deu, mas explorando as possibilidades dessa nova vida. e é lindo ver cada passo seu em direção à autonomia, refletindo sobre o que realmente significa se desapegar de tudo pra viver na estrada. mesmo que precise encarar a solidão e outras tantas dificuldades da vida nômade, pra sua surpresa, Fern descobre pessoas com um forte senso de comunidade e elas se tornam fundamentais pro seu crescimento.
Nomadland é trágico, mas belo ao mesmo tempo. além da história de Fern, ele retrata com muita inteligência uma condição marcada pela instabilidade de pessoas que, muitas vezes, perderam tudo. ao homenagear todos aqueles que foram obrigados a partir, o filme celebra laços de afeto que acabam sendo maiores que qualquer efemeridade de suas existências.
em seu primeiro trabalho como diretor, o francês Florian Zeller nem hesita diante da possibilidade de meter um tapa na cara do espectador. ele é perverso e sabe disso, os recursos narrativos que usa em Meu Pai, baseado em uma peça escrita por ele mesmo, estão lá justamente pra produzir este efeito. e o resultado é angustiante, desesperador, do tipo que corrói profundamente só de lembrar.
num trabalho primoroso, Meu Pai faz o público encarar uma situação que pouco imaginamos até nos depararmos com ela: o momento em que precisamos virar pais dos nossos pais. no filme, Olivia Colman vive Anne, uma das filhas de Anthony (Anthony Hopkins), que aos 80 anos tem uma vida independente até começar a apresentar sintomas de esquecimento e demência. Anne, que estava disposta a se mudar pra Paris, acaba precisando adiar seus planos até que ela e seu pai consigam entender como agir diante dessa nova realidade.
o filme poderia ter sido construído da forma mais tradicional possível e se reduzir a um drama que provavelmente a gente já assistiu por aí. mas Zeller tomou a decisão genial de nos colocar na visão dos personagens, tanto de Anthony quanto de Anne. as mudanças sutis no design de produção, o uso de dois atores como um mesmo personagem e a edição imperceptível da passagem de tempo são alguns dos recursos que deixam o espectador confuso e desorientado, exatamente como Anthony. é difícil e talvez até impossível entender se o que vemos é real ou não, e a experiência chega a ser assustadora.
a indicação ao Oscar dos dois protagonistas é mais que merecida. Olivia Colman consegue passar sentimentos com uma verdade impressionante: a paciência ao cuidar do pai, a tristeza ao vê-lo se distanciando dela e o peso de precisar lidar com tudo sozinha. Anthony Hopkins não fica pra trás e dá aqui uma de suas melhores interpretações desde O Silêncio dos Inocentes, indo de um senhor teimoso e seguro até um homem completamente vulnerável diante de uma doença. que é exatamente como ficamos depois de assistir um filme como esse, belamente devastador.
Druk é inteligente, emocionante e cativante, fazendo jus à parceria entre o diretor e roteirista Thomas Vinterberg e o ator Mads Mikkelsen, que começou lá em 2012, com A Caça. o sentimento de angústia daquele longa, que fala sobre os efeitos de uma mentira numa comunidade violenta e preconceituosa, passa um tanto longe do clima mais ameno do novo filme, mas nem por isso Druk fica para trás. valeu a pena esperar pelo retorno da dupla, dessa vez discutindo uma das lições mais importantes da vida: o equilíbrio.
Druk conta a história de quatro professores de ensino médio passando por uma crise de meia idade. na tentativa de fugir do tédio e voltar a ter o controle de suas vidas, eles resolvem testar uma teoria que diz que nosso organismo funcionaria melhor com um nível constante de álcool. de início, os resultados são bastante animadores, eles conseguem se renovar e melhorar seus relacionamentos, mas no decorrer da experiência, vão entendendo que nem tudo é tão simples assim.
ao explorar o álcool como possível saída para esse vazio existencial que os personagens estão sentindo, Vinterberg soma uma enorme potência crítica à mensagem simples de Druk. sem qualquer tipo de moralismo, o diretor analisa os efeitos positivos e negativos dessa experiência, não focando no álcool em si, mas no que a embriaguez pode revelar. ao mesmo tempo que funciona como um incentivo, a bebida os força a lidar com suas fraquezas e é incrível o modo como possibilita que o público se questione também.
a dinâmica entre os personagens é divertida e fisga o espectador logo de cara. é por conta da leveza da amizade deles que fica tão fácil pensar sobre um tema tão delicado, e essa simplicidade torna a experiência encantadora. mesmo que não seja um filme sobre álcool, Druk é muito acertivo ao não romantizar a bebida e, da forma mais honesta possível, celebra os momentos felizes e a maravilhosa sensação de se estar vivo. mas, claro, sem deixar de defender que não faz mal a ninguém comemorar a vida com uma bebedeira moderada e bem acompanhada.
acho que todos já aprendemos que, num filme, quando uma família resolve se mudar para uma casa antiga e afastada da cidade, alguma coisa muito ruim acontece. em O Refúgio, o recurso da casa assombrada é utilizado de forma muito precisa justamente para compor uma narrativa complexa num tom assustador. mas engana-se quem pensa que o longa escrito e dirigido por Sean Durkin é um filme de terror. na verdade, O Refúgio é um drama forte sobre uma família em ruínas, condenada a viver sob uma energia tão sinistra quanto a da própria casa.
estamos na Inglaterra dos anos 80, momento em que todos queriam estar por cima o quanto antes, e qual tragédia mais assustadora do que nunca estar satisfeito? depois de viver muito tempo nos EUA, Rory (Jude Law) decide voltar com a esposa Allison (Carrie Coon) e seus dois filhos para sua Inglaterra natal na esperança de aproveitar o boom econômico. mas apesar de todo o luxo da bela mansão onde eles passam a morar, a ambição de Rory dá origem a um distanciamento entre eles, abrindo fissuras na relação e criando um clima de hostilidade entre os elementos da família.
talvez nenhum elemento sobrenatural ajudaria essa história a ser mais perturbadora ou brutal, não existe nada mais angustiante que se deparar com a realidade. enquanto Rory busca a todo custo ficar rico com o mínimo de esforço, só para alimentar seu ego gigante, Allison não tem nenhuma vergonha de trabalhar duro, mas acaba insatisfeita e desamparada quando escolhe abandonar sua vida para perseguir os sonhos do marido. sonhos pautados pelo dinheiro, que acaba devastando a família pouco a pouco.
O Refúgio não acrescenta nada exatamente novo a filmes que abordam dramas familiares, mas as nuances que resultam do uso dos elementos do terror da direção de Sean são muito interessantes. some isso à excelente interpretação de Carrie Coon, internalizando e expondo suas frustrações de forma impressionante, e temos um longa sofisticado sobre uma família em pedaços morando não exatamente numa mansão assombrada, mas num castelo de cartas prestes a desmoronar.
Central do Brasil não foi o primeiro e nem será o último filme a contar a história de dois personagens com personalidades diferentes que acabam construindo uma amizade poderosa, mesmo entrando em conflito constantemente.
enquanto o filme de Walter Salles adaptou esse enredo com maestria para a realidade crua e sofrida do nosso país, Relatos do Mundo escolhe retomar os westerns que carregavam certo drama (como Bravura Indômita, por exemplo) e o resultado é bastante satisfatório, ainda que não seja extraordinário.
dirigido por Paul Greengrass, responsável pela excelente trilogia Bourne, Relatos do Mundo traz Tom Hanks interpretando Cap. Kidd, um veterano da guerra que viaja através do Texas lendo notícias de jornal em troca de algumas moedas. numa de suas viagens, ele se depara com Johanna, uma menina de 10 anos, alemã, que foi raptada e cresceu como integrante da tribo Kiowa. Cap. Kidd então aceita levá-la até sua família biológica e, no caminho, mesmo com todas as dificuldades, suas vidas se cruzam de forma definitiva.
se por um lado a escolha de colocar Tom Hanks no papel principal não ter sido uma das mais acertadas (um ator desconhecido poderia adicionar mais desconfiança em relação ao caráter do personagem e o filme seria um pouco mais interessante), por outro, o diretor acerta no tom dos protagonistas, que não parecem nem fofos nem cascudos demais.
existem aqui sequências belíssimas de momentos ternos e bastante simbólicos, que misturam de forma singela a ingenuidade infantil com a dureza do contexto histórico do filme. mas Greengrass, especialista em cenas de ação, não deixa de imprimir seu estilo aos momentos mais tensos do longa, que são poucos, mas de muita qualidade.
Relatos do Mundo pode não ser tão marcante quanto a parceria anterior entre Greengrass e Tom Hanks (Capitão Phillips, 2013), mas prende a atenção, emociona e diverte na mesma medida. vale o play.
acho particularmente maravilhoso poder descobrir e assistir filmes que transmitem mensagens bonitas, mas de uma forma não óbvia. com criatividade e delicadeza dá pra fazer coisas inesquecíveis e comoventes sem precisar passar nem perto dos clichês que existem aos montes por aí.
A Garota Ideal, com certeza, não é um deles. ele não força o choro, não subestima a capacidade do espectador e parte de uma premissa inesperada pra trazer aquele irresistível quentinho no coração. ele está bem escondidinho lá no catálogo da @primevideobr e da @globoplay, mas vale a busca e o investimento, é um filme simplesmente apaixonante.
em A Garota Ideal, Lars é um homem gentil, tímido e ermitão que mora numa cidadezinha no interior do meio do nada. certo dia, Lars aparece na casa do irmão Gus, seu vizinho, pra dizer que convidou pra jantar uma moça que conheceu pela internet, por quem sente estar apaixonado. ele e a esposa Karin acham maravilhoso ver Lars, finalmente, buscando algum tipo de interação social, mas logo se desesperam ao ver que Bianca é, na verdade, uma boneca de sexshop.
só essa quebra de expectativa por conta da boneca é impagável, mas o que se segue é que ficamos atônitos junto com Gus e Karin justamente porque nada parece forçado no que está acontecendo e entramos na história sem questionar. o que o longa faz de melhor é ser muito delicado ao mostrar como a boneca se torna o artifício que o personagem usa para materializar e falar, da forma mais pura e ingênua possível, sobre suas dificuldades em se relacionar com o outro.
e se, de início, as coisas são vistas com certo medo pela família, logo, o que acontece é o acolhimento de Bianca e, consequentemente, de Lars por todos na cidade. a melhor coisa é ver como é lindo todos abraçarem sua crise e “entrarem na mesma onda” que ele no momento em que ajudam Bianca a se enturmar, convidam os dois para uma festa ou a chamam para ser voluntária no hospital da cidade, por exemplo.
toda a comunidade passa a ser importante nessa fase de Lars e é isso o que torna A Garota Ideal tão inteligente e humano. um dos melhores filmes sobre empatia que já assisti.
não é pra menos que Nunca Raramente Às Vezes Sempre foi categoricamente esnobado em premiações como o Oscar. difícil uma indústria construída e formada por homens brancos, ricos e cristãos dar visibilidade, numa boa, à história honesta de uma adolescente tentando fazer um aborto. mas é justamente quando a sociedade decide ignorar uma obra que toca em diversas questões da vivência feminina que mais deveríamos dar atenção a ela.
também não é só por isso. a diretora e roteirista Eliza Hittman entrega aqui um trabalho excelente, sensível e muito íntimo. em seu filme, conhecemos Autumn, uma jovem de 17 anos que acaba de descobrir que está grávida. não podendo realizar o procedimento na cidade onde mora, ela viaja escondida com sua prima Skylar para fazer um aborto numa clínica especializada, em Nova York.
a jornada das garotas surpreende pelo tom preciso, que não apela pro melodrama e nem se perde em clichês. a presença de figuras masculinas opressoras é a grande vilã e permite ao espectador sentir o quão desconfortável pode ser estar na pele de uma mulher, se sentir vulnerável e sem saída. ao mesmo tempo, esse incômodo destaca a beleza da amizade das protagonistas, tão real e palpável, como se existissem de verdade.
Eliza conduz a história com respeito e empatia e sua decisão por não julgar Autumn só mostra o quanto ela entende como os motivos que levam uma mulher a procurar um aborto nunca são fáceis ou simples. assim, ela defende o direito de procurá-lo, questionando uma sociedade misógina que prefere ver desamparada a mulher oprimida e “irresponsável”.
Nunca Raramente Às Vezes Sempre cresce mais a cada olhar, palavra não dita e demonstração de afeto, até culminar na cena que dá título ao filme. é quando a atuação de Sidney Flanigan como Autumn extravasa a introspecção e seu olhar diz muito mais do que ela conseguiria dizer em palavras. nós a entendemos, sentimos e acolhemos sua dor, que não pode nem deve ser ignorada. ela pede socorro e nós conseguimos ouvir.
existem filmes que vez ou outra aparecem por aí, geralmente remakes e continuações, e nos perguntamos “pra quê?”. ninguém pediu por ele, mas Um Príncipe em Nova York 2 estreou há quase uma semana, 30 anos depois de sua primeira parte, e continuamos nos perguntando “pra quê?”.
o filme de 88 foi um sucesso, consolidou o auge da carreira de Eddie Murphy e marcou a vida de muita gente. o mínimo que se espera é que sua continuação tivesse um propósito, né? mas Um Príncipe 2 não só deixa de acrescentar à história como também faz de tudo pra recriar as mesmas situações e relembrar seus personagens só pelo prazer da nostalgia. mas “pra quê?”.
na trama, Akeem se torna rei de Zamunda, mas descobre que teve um filho bastardo quando viajou com Semmi para o Queens. decidido a ter um homem como herdeiro, Akeem retorna aos EUA para encontrar seu filho, LaVelle, e prepará-lo para ser príncipe.
temos aqui um roteiro perdido nele mesmo e desesperado pra te fazer rir. o primeiro grande apelo é a nostalgia, já que a todo momento ele tenta descaradamente segurar o espectador com referências ao primeiro filme. o segundo é a forma nada sutil com que ele tenta empurrar o discurso politicamente correto que passou longe do antigo filme, mas o resultado é confuso e até incoerente.
outra coisa que não funciona é a inversão de papéis. a graça do filme de 88 era ver um príncipe vivendo como um homem normal, mas quando LaVelle é convidado a ter uma vida de príncipe, boa parte do humor se perde, muito porque Jermaine Fowler não tem nem metade do carisma de Eddie Murphy. aliás, o próprio Eddie não está bem aqui, sua atuação passa tão distante do personagem que ele criou que, às vezes, nem parece o mesmo Akeem que conhecemos décadas atrás.
em resumo, Um Príncipe 2 precisava ter algo a dizer além da nostalgia. ele é atrapalhado, apelativo e não tem material nem força suficiente pra bancar uma boa continuação do clássico. sabendo de tudo isso, pra quê mexeram no que tava quieto? pra quê?
com muita vitalidade e interesse em contar uma história relevante da forma merecida, Judas e o Messias Negro traz para o público a ascensão do ativista Fred Hampton dentro do movimento dos Panteras Negras, na década de 60. naquela época, a força de seus discursos construiu uma união potente e necessária para que uma revolução acontecesse, mesmo que de forma controversa.
o longa acompanha William O’Neal e o início do acordo feito entre ele e o agente do FBI Roy Mitchell para se livrar de alguns anos de prisão. Roy propõe que Bill (William) se infiltre na sede dos Panteras e coloque a agência sempre um passo à frente de qualquer plano arquitetado pelos revolucionários.
o filme, então, destaca a relação entre Fred e Bill num paralelo direto com a história bíblica, numa narrativa muito mais atrativa e estilosa do que se poderia imaginar. o diretor Shaka King alcança um desempenho louvável, não só extraindo grandes atuações, mas também conduzindo a história com ritmo suficiente para que o espectador não desvie a atenção da tela.
Lakeith Stanfield (Bill) e Jesse Plemons (Roy) fazem trabalhos excelentes, mas quem rouba mesmo a cena é Daniel Kaluuya, fazendo por merecer toda a atenção que vem recebendo nos últimos anos. sua presença é magnética, não só quando pronuncia discursos apaixonados, mas também quando está a sós em momentos intimistas com a companheira Deborah Johnson (a ótima Dominique Fishback).
Judas e o Messias Negro não é apenas mais um filme sobre defesa de direitos civis. ele é articulado, bem-acabado e impactante em sua totalidade. sua maior virtude talvez seja ter observado a ironia da comparação que escolheu fazer: os crimes não foram cometidos apenas contra Hampton e os Panteras, mas também contra Bill. ele também foi mais uma vítima do governo estudianense, usado como delator daqueles que defendiam sua própria causa.
a acidez de Eu Me Importo já começa no título. a protagonista Marla Grayson não poderia se importar menos com as consequências de suas trambiqueiragens, todas absolutamente baixas, frias e de uma falta de piedade sem tamanho.
seus alvos são os velhinhos: ela é líder de um esquema criminoso que consegue permissão jurídica pra internar idosos solitários e “mentalmente incapazes” em uma casa de repouso pra daí então leiloar seus bens e embolsar todo o dinheiro.
mas o filme deixa bem claro que nenhum dos personagens presta, então, ironicamente, te deixa livre pra decidir qual deles é o menos pior. a intenção não é necessariamente te fazer escolher um herói, mas sim alimentar o grande jogo de gato e rato.
porém o que vai definir o quão divertida vai ser a experiência é o seu nível de descompromisso com a história. Eu Me Importo é exagerado, irrealista e venenoso, mas tudo o que ele quer de você é aquele sorrisinho de canto de boca. cabe a você decidir se está disposto a relevar as facilitações e excessos da trama em troca de duas horas de um delicioso humor ácido.
o filme gira em torno do que acontece quando Marla decide usar seu esquema contra uma senhorinha rica e aparentemente inofensiva, mas que, na verdade, guarda muitos segredos.
a atriz Rosamund Pike é, inegavelmente, a grande atração aqui. sua desenvoltura como a digníssima salafrária que é Marla Grayson é sensacional e vale cada segundo do seu tempo, principalmente pelo sorrisinho de louca que virou sua especialidade em Garota Exemplar.
Dianne Wiest e Peter Dinklage também estão fantásticos, mesmo não sendo tão favorecidos pelos delírios do roteiro. Depois de um certo ponto a história fica difícil de engolir, ela perde a noção sobre o tom que quer alcançar e de até onde o sarcasmo pode ir sem virar um problema, mas é tudo muito divertido. Desconfortável também, mas se você embarca na história, vai se divertir com certeza.
os fãs do jogo Detetive conhecem bem as perguntas inconfundíveis que permeiam o imaginário de gerações há mais de 70 anos.
foi em 1949 que Anthony E. Pratt lançou na Inglaterra aquele que seria um best-seller, um verdadeiro clássico dos dias chuvosos e das noites em família. se você nunca jogou Detetive, está perdendo uma ótima oportunidade de se sentir um verdadeiro personagem da Agatha Christie.
buscando atrair os fãs, em 1985 o diretor Jonathan Lynn lançou Os Sete Suspeitos, trazendo os famosos personagens do jogo para as telas em um mistério inédito e ainda com a proposta de exibir diferentes desfechos da história em diferentes salas de exibição.
o filme opta por uma abordagem bastante cômica, mas ainda assim com suspense, e acerta em cheio no tom divertido e caricaturesco que o jogo carrega.
a história começa quando Professor Plum, Sra. Peacock, Miss Scarlet, Sra. White, Coronel Mostarda e Sr. Green chegam para um misterioso jantar na mansão do Sr. Boddy. eles são recepcionados pelo mordomo Wadsworth até que um crime acontece e, então, cabe a eles desmascarar o verdadeiro assassino antes que a polícia chegue ao local.
repleto de diálogos ágeis e humor afiado (mesmo que em alguns momentos meio bobo), Os Sete Suspeitos é divertido como jogar Detetive, mas com a vantagem de ter Tim Curry no comando, indicando o que deve ser feito para resolver o mistério.
o ator, famoso por sua atuação em The Rocky Horror Picture Show e It, aparece aqui num papel sensacional, certamente o ponto alto do filme, que tem um roteiro eficiente, mas também caótico em alguns momentos, como se ele não quisesse que o espectador resolvesse o caso.
Os Sete Suspeitos não é nenhuma obra de arte, mas cumpre bem sua proposta de divertir sem se levar a sério demais. funciona bem como comédia clássica dos anos 80, mas talvez seja bem mais atraente para os fãs de Detetive, que têm aqui um fan service bastante charmoso.
a gente vive constantemente dificultando nossas existências quando fazemos comparações desnecessárias, estabelecemos padrões inalcançáveis ou quando nunca nos damos por satisfeitos.
faz parte da natureza humana e do mundo que criamos pra nós agir dessa forma, porém existem, sim, existências que por si só são mais complicadas que outras e uma das coisas mais legais do cinema é nos mostrar realidades diversas pra que possamos refletir sobre as nossas.
XXY é um filme argentino disposto a tratar de um tema imensamente complexo da forma mais natural possível, sem privar o espectador dos momentos difíceis, mas, mesmo assim, se mantendo igualmente tocante e bonito.
nele, Alex é uma adolescente de 15 anos que se mudou com os pais para um pequeno vilarejo no Uruguai esperando evitar que os médicos tentassem interferir em sua ambiguidade genital. mas a garota está em pleno desenvolvimento de sua sexualidade e seus pais entendem que não vão poder proteger a filha dos julgamentos da sociedade pra sempre.
não fica claro de início sobre o que o filme quer falar, mas aos poucos entendemos que Alex é aquela letra I quase sempre ignorada na sigla LGBT: uma pessoa intersexo, invisibilizada justamente por ser uma “anomalia” dentro da cisnormatividade.
essa singularidade biológica não apenas obriga o espectador a pensar sobre nossa necessidade compulsória de rotular pessoas, mas também ressignifica a narrativa de amadurecimento do filme, potencializando os questionamentos da personagem sobre identidade de gênero e sexualidade.
uma das maiores virtudes de XXY é não nos deixar passivos diante da história de Alex, ele faz com que a gente perceba nosso despreparo como sociedade para lidar com o diferente, com aquilo que não conhecemos.
outra virtude é não julgar a garota esperando que ela escolha um dos gêneros para se identificar: mesmo com todas as humilhações que sofreu, o filme apenas espera que ela seja ela, em toda a sua singularidade.
durante uma longa noite de discussões infinitas sobre seu relacionamento, o casal Malcolm e Marie leva o espectador à exaustão. são muitos diálogos onde, pouco a pouco, aprendemos sobre o passado dos personagens, suas personalidades e aquilo que pensam um do outro, mas nem tudo é agradável.
a casa onde moram é repleta de janelas e portas de vidro, como se convidasse o espectador a ver o que está acontecendo. preenchendo bem cada um dos cômodos, a lavação de roupa suja se estende por horas como num jogo de tênis, um rebatendo o outro, a bola caindo algumas vezes, alguns intervalos.
e é cansativo, quando termina estamos esgotados. pena que pelos motivos errados.
a boa direção de Sam Levinson faz o charme da história e a fotografia em preto e branco realça a sensação de “lados opostos” em que os protagonistas se colocam, mas acaba faltando propósito à narrativa, algo que justifique um relacionamento tóxico ser retratado com tanto desinteresse.
logo de início, a história começa a oscilar bruscamente entre momentos muito intensos e outros onde o tema principal é praticamente abandonado, o que incomoda bem mais pela história do que pelo ponto de vista técnico, como se o filme passasse pano para um relacionamento que não faz bem para nenhum dos dois.
mas a vontade do roteiro é discutir questões além da dinâmica do casal. e quando outros temas são adicionados à história, o tiro sai pela culatra, transformando o filme num conjunto de bons momentos que não conseguem se conectar numa narrativa equilibrada.
o resultado disso tudo é indiferença. Malcolm & Marie se perde tanto em seu propósito como filme que, no final, não importa, nós realmente não ligamos pro que vai acontecer entre eles.
e acaba sendo triste que uma proposta tão interessante tenha descambado justamente pro desinteresse.
pode parecer meio monótona a decisão da diretora e roteirista Kitty Green de manter a câmera em sua protagonista durante toda a hora e meia de A Assistente, que entrou para o catálogo do @primevideobr no dia 7 de janeiro. por conta dessa decisão, não temos outra escolha exceto acompanhar momento a momento a rotina de trabalho de Jane, que é assistente de um poderoso magnata do entretenimento.
é arriscado? com certeza. mas este termina sendo um artifício interessantíssimo para contar uma história que, infelizmente, é mais comum do que imaginamos: exemplos de assédio e abuso de autoridade no ambiente de trabalho.
não faz muito tempo esta mesma temática foi discutida por O Escândalo (Bombshell, 2019), que contou o caso real do ex-CEO da Fox News, acusado de assédio sexual por várias de suas funcionárias. mesmo abordando o mesmo tema, os dois filmes são bem diferentes: enquanto O Escândalo é mais escrachado e convencional, A Assistente vai pelo caminho inverso e utiliza sutilezas para apresentar o problema, se tornando não apenas uma obra extremamente necessária, mas um grande estudo de personagem.
Julia Garner vem consolidando sua carreira na série Ozark, da @netflixbrasil, mas em A Assistente ela prova que consegue, literalmente, carregar um filme e ainda é responsável por uma atuação irretocável.
Jane não tem muitas falas, mas o olhar da atriz diante das situações mais humilhantes e machistas que vive naquele dia de trabalho é suficiente para dizer ao espectador cada um dos sentimentos que lhe atravessam: angústia, aflição, raiva, impotência.
A Assistente não se preocupa nem um pouco em pegar na mão do espectador e explicá-lo a verdadeira dinâmica do escritório de Jane, mas tem um roteiro suficientemente inteligente para deixar conclusões nas entrelinhas sem que ninguém se perca.
lamentavelmente, nem tem como não entender. com cada vez mais denúncias de situações como as do filme levadas a público, fica bastante claro como funciona o ambiente claustrofóbico em que ela trabalha e como, em alguns momentos, parece inútil denunciá-lo e cada vez mais difícil se ver livre dele.
Martha começa a se despedaçar durante os primeiros trinta minutos de filme, num plano-sequência angustiante, pra nós e pra ela, que passa por complicações durante o trabalho de parto e vê sua filha morrer poucos minutos depois de vir ao mundo.
é uma cena extremamente forte e sufocante, assustadora até, aquela que você vai lembrar mesmo depois que os créditos subirem porque foi nesse momento que os pedaços se separaram, e nós junto com eles, porque não tem como assistir uma cena como essa e se manter indiferente.
saber que o roteiro simbólico de Pieces of a Woman foi inspirado numa história real também só contribui pra que a angústia cresça ainda mais. a roteirista Kata Wéber e o diretor Kornél Mundruczó, usaram sua experiência pessoal para idealizar um filme que pudesse tratar o luto de uma forma hiper-realista, porém sem excessos, mostrando apenas o necessário para transmitir o processo de cura de sua protagonista.
diferente das pessoas ao seu redor, Martha prefere esconder seus sentimentos, mas suas reações silenciosas e distantes são diretamente responsáveis pela dor contida nela, que não a abandona mesmo enquanto assiste sua vida desmoronar diante de si.
depois de um começo perturbadoramente inquieto, Pieces of a Woman pisa no freio pra mostrar como o casamento da protagonista vai desmoronando pouco a pouco, já que seu marido (interpretado por Shia LaBeouf), confrontado pela situação, começa a perder sua postura de bom moço procurando compensações frívolas pra sua personalidade agressiva (ficção imita realidade?).
ao mesmo tempo, sua mãe (numa atuação excelente de Ellen Burstyn), também entra em conflito com Martha por querer ajudar a filha, muitas vezes com interesse próprio, mas ao mesmo tempo sem saber como.
mas a alma despedaçada de Pieces of a Woman, a mais difícil de se reconstruir, é a de Martha, interpretada de forma excepcional por Vanessa Kirby, marcante e sem excessos. através de olhares e hesitações, a atriz constrói uma mulher desnorteada à procura dos próximos passos, nem sempre disposta a satisfazer os outros, mas buscando seu próprio jeito de sobreviver.
o que Sing Street faz não é só beber na fonte das comédias adolescentes de John Hughes, mas, carinhosamente, revisitar todo o encantamento criado pelo diretor para essa fase traduzida nas histórias sensacionais que adoramos ver e rever até hoje. o clima é tão divertido e apaixonante que a conexão com o universo de Hughes é imediata, simplesmente por trazer a magia que ele sempre dedicou a esse momento da vida das pessoas. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ a genialidade de John Carney aqui é conseguir unir a influência do mestre dos anos 80 ao seu próprio jeito de fazer filmes, já conhecido por nomes como Apenas Uma Vez e Mesmo se Nada Der Certo, que só de serem lembrados trazem um quentinho no coração. o fato de Sing Street se passar no mesmo local e época em que ele mesmo foi adolescente (Dublin, anos 80), faz com que este projeto tenha uma cara ainda mais pessoal, de ter sido cuidado com todo o amor. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ e é com amor que ele olha pra seus personagens, garotos no auge da adolescência se deparando pela primeira vez com problemas que até então nunca sequer imaginavam, mas que encontram na música uma forma de forma de extravasar suas frustrações e inseguranças. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ o protagonista da trama é Conor, jovem de 14 anos, que acabou de entrar num colégio público porque seus pais estão passando por dificuldades financeiras. em meio aos atritos com novos colegas e professores, ele decide formar uma banda com alguns amigos (a Sing Street) e tentar conquistar Raphina, a linda garota que mora na casa da frente. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ como já de praxe na filmografia de Carney, não é só a história que cativa o espectador, mas também a trilha sonora original, desta vez pensada inteiramente a partir das referências musicais que Brendan, irmão de Conor, apresenta ao garoto, já que este não entende absolutamente nada de música. é aí que os membros da banda usam e abusam de Duran Duran, Depeche Mode, A-Ha, The Cure e Hall & Oates para compor canções que falam de amor, pertencimento e diversão. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ Sing Street é um delicioso mergulho num universo de sonhos e synthpop, apaixonante desde os primeiros minutos e divertido muito além da conta ao retratar o impulso adolescente de se encontrar no mundo.
não vou mentir que tenho um carinho especial por filmes que contam histórias cotidianas da vida de pessoas simples, onde os grandes sentimentos e mudanças acontecem muito além do que pode se observar com o olhar desatento. é lindo ver determinadas ações e acontecimentos entrando no personagem, repercutindo internamente e daí saindo através de um olhar, um gesto ou uma atitude diferente. filmes assim soam familiares, geram identificação e, com o tempo, crescem na nossa memória, porque não é preciso ir muito além pra contar grandes histórias, o que também não significa que seja fácil. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ Temporada é um desses belos exemplos que chegam como-quem-não-quer-nada e reverberam dentro da gente até tomar proporções muito maiores do que se imaginava. isso porque, aqui, quem está no centro de tudo é Juliana, uma mulher negra passando por mudanças externas decisivas que vão ecoar dentro dela e produzir transformações bastante sensíveis em quem ela é. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ no filme, ela se muda para Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, depois de ter passado num concurso pra Agente Comunitário de Saúde, trabalhando no combate de endemias. é a partir do momento em que Juliana sai da casa onde morava com o marido para viver numa outra cidade que seu dia a dia começa a se transformar. uma vez sozinha, tendo que se adaptar à nova rotina, fazer novos amigos e procurar apoio em outros lugares, ela vai descobrindo, ao poucos, o quão potente é a sua independência. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ claro que a complexidade da personagem não seria nada sem uma atriz à altura. Grace Passô parece ter aqui firmado bem seus pés no hall de grandes nomes do cinema nacional fazendo uma coisa que é para poucos: interpretar uma mulher que poderia ser eu ou você, sem firulas, maquiagem ou figurino elaborado. ela não tem onde ou no que se esconder além dos sentimentos que perpassam as vivências de Juliana e que a transformam na mulher que vemos ao final do filme. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ Temporada faz um belíssimo trabalho ao entender que cada pessoa é um mundo, uma história, com suas próprias lutas e bagagens. uma jóia do catálogo da Netflix que você não deveria deixar passar.
(resenha publicada no meu perfil @crystallribeiro)
não sei você, mas eu nunca tinha assistido um filme indiano antes de Toilet. ele foi uma recomendação da Ju Wallauer em algum Mamilos podcast e ficou perdido por um longo tempo na minha lista da Netflix até eu perceber que era hora de lhe dar uma chance. e o filme é tão legal, mas tão legal, que essa espera toda foi uma enorme perda de tempo.
já de início, o que mais chama atenção é a história, no mínimo, inusitada: Jaya pede divórcio logo depois do casamento quando descobre que a casa do marido Keshav, onde vai morar, não tem um banheiro. desesperado, ele tenta convencer sua família e seus vizinhos a construírem um banheiro comunitário pra que ela volte a morar com ele.
o mais legal em Toilet é que o longa discute o embate entre antigas tradições e avanços modernos, hoje ainda muito comum na Índia, mas sob um olhar leve e bem engraçado, como parece ser característico da maioria das produções bollywoodianas. então, ao mesmo tempo em que você vai ver um romance fofo e muitas dancinhas indianas em Toilet, também vai assistir um filme repleto de discussões bastante sérias.
se pra nós, ocidentais, saneamento básico é um direito de qualquer cidadão, muitas comunidades indianas acreditam que fazer necessidades fisiológicas dentro de casa seria como deixar o lar impuro. é aí que se torna permitido que homens façam xixi e cocô em qualquer lugar que desejam, desde que seja fora de casa. já as mulheres precisam esperar até às quatro da manhã pra sair junto com outras mulheres da aldeia e andar quilômetros até o rio mais próximo, fazer suas necessidades e jogar tudo na água.
é por isso que Jaya, protagonista feminista que é, criada quase como uma ocidental que cursa faculdade e tem acesso a espaços que muitas indianas não têm (como a um banheiro, por exemplo), fica abismada com as regras arcaicas, não só do sogro brâmane, mas de todos na cidade, que não enxergam o quão essa situação é humilhante e extremamente desagradável, principalmente para as mulheres. e nada impede que ela cause uma pequena revolução.
mesmo longo e até meio brega, Toilet é um filme divertidíssimo e muito inteligente. uma ótima oportunidade de sair da bolha e conhecer uma outra cultura.
(resenha publicada em meu perfil @crystallribeiro)
fazia tempo que um filme não me empolgava de um jeito tão arrebatador e genuíno quanto aconteceu com Projeto Flórida, um daqueles longas com orçamento limitado e uma história simples e dura sobre pessoas comuns. o que o diretor e roteirista Sean Baker fez aqui foi cinema de afeto, um retrato da infância sem lentes amenizadoras, mas com um olhar sensível e bastante consciente.
não é preciso ir muito além pra entender que Projeto Flórida não é pra todo mundo. se eu te convencer de alguma forma a dar uma chance ao longa, não vá esperando grandes acontecimentos ou personagens cativantes, porque ao invés disso o que você vai ver são pessoas na margem da sociedade, tomando decisões questionáveis e sem nenhuma perspectiva de mudança.
o longa segue o dia a dia de Moonee, uma garotinha de seis anos que junto com seus amigos provoca o caos no motel onde mora com sua mãe Halley, que mais parece sua irmã (em idade e atitudes). Halley não consegue arranjar emprego pra sustentar a filha, vive de pequenos golpes e cria a menina com uma negligência que deixa qualquer um de cabelo em pé.
sendo assim, pelo menos nos primeiros 40 minutos, é bem difícil ter qualquer tipo de simpatia por esses personagens tamanha a confusão que eles parecem ser. mas, ultrapassada essa barreira, o texto é tão bem construído, tão humano e sutil que é impossível não ficar completamente hipnotizado pelo filme. as atuações ultrarrealistas de Projeto Flórida só intensificam a experiência. o trio Brooklynn Prince, Bria Vinaite e Willem Dafoe (que interpreta o gerente do motel e melhor personagem do filme) está completamente estonteante em seus papéis, mas a mensagem do longa extrapola qualquer qualidade técnica.
Projeto Flórida surpreende por mostrar o amor nos lugares onde menos esperamos vê-lo. o contraste entre o afeto artificial da Disney e o desajustado motel Magic Castle são gritantes, mas para quem assiste ao filme não há dúvidas: por mais problemáticos que sejam seus moradores, é na realidade nada alienadora do não-conto de fadas onde podemos encontrar amor em sua forma mais verdadeira.
o terror dos anos 80 não teria sido o mesmo sem o mestre John Carpenter que com criatividade, efeitos práticos e muito gore fez clássicos eternos como The Thing, também conhecido como O Enigma de Outro Mundo. devo dizer que não sou fã do cinema do gênero, são poucos os filmes atuais de terror que eu chego a assistir, mas certos elementos em The Thing são simplesmente irresistíveis, principalmente o fato do suspense ser seu ponto forte.
o enredo tem o tipo de simplicidade que sempre me deixa curiosa: coisas estranhas passam a acontecer depois da chegada de um cachorro a uma estação americana na Antártica onde trabalham doze cientistas. não é fácil escrever histórias que se passam em ambientes fechados com poucos personagens, mas quando um bom texto consegue fazer isso bem, ele se torna especialmente interessante.
o roteiro é enxuto, começa como quem não quer nada e lentamente vai ficando cada vez mais tenso, não te deixando desgrudar os olhos da tela. o ambiente claustrofóbico e a sensação de que cada um dos personagens pode ser o inimigo estabelecem o suspense, que se complementa de forma certeira pela trilha sonora de outro mestre, o Ennio Morricone. aqui ele preenche qualquer falha de Carpenter com talento e essa sutileza se torna indispensável para elevar o suspense a outro patamar.
de longe, o que mais diverte e encanta em The Thing é o fato do terror não ser tanto a criatura (construída por meio de efeitos práticos fascinantes), mas sim a desconfiança sobre cada um dos personagens, compartilhada por eles e pelo público. quem é homem e quem é monstro? é impossível não ficar apreensivo na cena em que o personagem do Kurt Russell começa a testar cada amostra de sangue para encontrar qual não é a humana.
saber quem é confiável ou não é o jogo de tensão que John Carpenter nos propõe neste filme sensacional que envelheceu muito bem, um clássico atemporal do sci-fi que prende qualquer espectador e merece algumas horas do seu tempo.
Assisti primeiro o remake da Sofia Copolla, mas fiquei tão intrigada com a história que vim logo assistir o original, dito melhor que o de 2017. E é verdade. Existe muito mais vida aqui. Gostei muito das interpretações sutis do remake, mas o filme de 71 consegue deixar a história mais interessante, deixa mais explícito (de um jeito bom) a intenção dos personagens e seus desejos. Em relação a esse tópico, achei que são quase dois filmes diferentes, aqui é possível ver melhor a malícia do soldado, o desejo das mulheres por ele, além de suscitar outros temas com a existência de outros personagens que não estão no filme da Sofia. A única coisa que me incomodou foi o diretor ter apelado para explicitar alguns pensamentos dos personagens, achei um recurso pobre e que passaria perfeitamente sem ele. É uma história propositalmente estranha e que chega a ter consequências extremamente inesperadas, mas é isso que o torna tão fascinante.
Mães Paralelas
3.7 416poucos diretores homens transmitem uma visão tão potente sobre a figura feminina como faz Almodóvar. sua sensibilidade ao tratar da vivência e dos sentimentos de mulheres cis e trans já virou marca registrada, tanto que o público reconhece de longe a força dramática de suas produções. o diretor envelheceu, mas se, de um lado, as histórias têm ficado menos rocambolescas, de outro, seus personagens possuem relações cada vez mais maduras e essa mudança só enriquece sua filmografia. é o caso de Mães Paralelas.
abertamente mais político que os anteriores, seu novo filme retoma temas como maternidade e a força das relações femininas, porém acrescentando a importância da memória como um pano de fundo que confronta o passado fascista da Espanha. e, como não poderia deixar de ser, se comunicando com a realidade brasileira quase de imediato. no filme temos uma protagonista que, enquanto tenta fazer justiça sobre o passado de dor da sua família, opta por ocultar circunstâncias igualmente doloridas sobre a própria existência.
não é à toa que Almodóvar nomeia seu novo projeto de Mães Paralelas. as narrativas de Janis, Ana e das outras mulheres do filme se encontram e separam sob a força própria da existência feminina, tão cara e bem desenvolvida na obra do diretor. ao mesmo tempo, ele aponta a impossibilidade de vida ou de sobrevivência (num paralelo à maternidade) enquanto não compreendermos e preservarmos nosso passado. para fazer crescer a vida é necessário um solo fértil, plano, sem mortos esquecidos pelo tempo, mas sim devidamente saudados.
o filme tem alguns problemas de desenvolvimento, falta um pouco de atenção ao construir o desfecho que conecta os dois principais temas da história. apesar do deslize (que atrapalha parte da experiência final), é notável o quão Almodóvar se tornou dono do universo que ele criou para si. em Mães Paralelas o público pode esperar ver as tão aclamadas cores, uma trilha sensacional e atuações marcantes. Penélope Cruz dá sua melhor interpretação desde Volver e acrescenta uma carga de verdade tão palpável ao filme que, sem ela, Mães Paralelas talvez não conseguisse ser tão grande.
(crítica publicada no perfil @crysresenha)
First Cow: A Primeira Vaca da América
3.8 133 Assista Agoratalvez a melhor definição pra First Cow seja realmente esta: um pequeno grande filme. é absolutamente sutil a forma como a diretora Kelly Reichardt escolhe filmar a história, um mito nem um pouco épico sobre a criação da América que nunca teríamos encontrado nos livros. ela se interessa mesmo é pelos detalhes e é minuciosa a ponto de, numa só tacada, contar uma bela história de amizade ao mesmo tempo em que desconstrói o western tradicional (inclusive esteticamente, substituindo paisagens desérticas por muito verde) e faz um retrato das origens políticas dos EUA.
o filme é intrigante, melancólico e muito bonito, quase ingênuo. mas não é pra todo mundo. por mais coerentes que sejam as escolhas da diretora (de usar menos cortes, focar nos planos detalhe e sempre priorizar pequenos gestos a muita ação), a coisa perde um pouco o controle. fica visível sua intenção de fazer o espectador imergir na história, mas os primeiros 40 minutos podem ser bem maçantes. porém, mesmo que seja maravilhoso poder contemplar aquele tanto de natureza através de uma fotografia tão bonita, First Cow cresce mesmo quando finalmente conta a história que havia prometido.
quando Cookie (John Magaro) e King-Lu (Orion Lee) começam a ficar amigos, o filme passa, aos poucos, a adquirir um tom lúdico que é irresistível. em meio a uma realidade ainda tão bruta, o americano e o chinês, numa amizade que só poderia existir na ficção, começam a transformar o dia a dia dos moradores da vila com os bolinhos feitos com leite roubado. ainda que a saída para fazer fortuna não seja a mais correta, fica impossível não se identificar com esforços tão genuínos de vencer quando são negadas todas as oportunidades.
é a partir da sutileza retirada dos subtextos dessa pequena história que First Cow provoca tanto encantamento. um filme simples e muito específico que homenageia todas as fábulas aparentemente insignificantes com o maior dos caprichos.
(texto publicado no perfil @crysresenha)
Shiva Baby
3.8 282 Assista AgoraShiva Baby é um daqueles filmes de aparência inocente, mas que reservam uma tensão que ninguém espera até apertar o play. ele é a mistura perfeita entre comédia e tragédia social, quase um experimento para entender quais os efeitos psicológicos que uma quantidade absurda de pressão pode exercer em sua protagonista, a jovem-adulta Danielle (Rachel Sennott).
ao longo de pouco mais de uma hora, assistimos Danielle à beira de um colapso nervoso porque simplesmente não consegue lidar com tantas questões ao mesmo tempo: sua desconexão com o judaísmo, o ressentimento que envolve o fim do namoro com Maya (Molly Gordon), a forma como a família a pressiona sobre o futuro e os esforços pra tentar esconder que, na verdade, é uma sugar baby. ao mesmo tempo em que o filme cria uma situação embaraçosamente engraçada atrás da outra, ele nos faz sentir toda a claustrofobia que Danielle está sentindo e o resultado é um horror muito inesperado.
já em seu primeiro longa como diretora e roteirista, a canadense Emma Seligman faz aqui um trabalho autoral com doses agudas de humor ácido, autodepreciação e falso moralismo, nos obrigando a encarar nossas próprias inseguranças e conflitos internos através da piada. ao encontrar graça em situações absurdas, Shiva Baby ri das desgraças de sua protagonista que, no fundo, são nossas também. Emma é certeira ao apostar numa câmera inquieta e montagem frenética pra transmitir os sentimentos de Danielle.
depois das tantas, algumas situações se repetem sem muita sutileza e se tornam cansativas sim, mas é sensacional embarcar nessa grande estufa de pesadelos juvenis e se deixar envolver. os problemas de ritmo estão lá, mas Shiva Baby consegue quebrar convenções das comédias clássicas e fisgar o espectador com um sarcasmo delicioso. sem se perder em conceitos mirabolantes, o longa é fiel à sua intenção de ser simples e divertido e termina proporcionando momentos de autêntico desconforto. uma comédia inconveniente e constrangedora que 2020 nem imaginava estar precisando.
(texto publicado no perfil @crysresenha)
Nomadland
3.9 902 Assista Agoraem Nomadland, a diretora Chloé Zhao escolhe caminhar entre a ficção documental e o realismo poético para contar a história de uma mulher que abandonou os valores concebidos pelo capitalismo pra viver uma liberdade irrestrita como nômade. aqui, ela faz um trabalho muito sensível e cuidadoso em que reflete sobre a possibilidade de criarmos narrativas diferentes pra nós mesmos, procurando nunca julgar, mas sim retratar esse modo de vida envolto em tantas idealizações.
talvez o resultado alcançado por Chloé só tenha sido possível porque, ao invés de atores, ela tenha colocado no filme apenas pessoas reais pra interagir com sua protagonista. com exceção de David Strathairn, todos os nômades que Fern (Frances McDormand) encontra pelo caminho são nômades reais, com histórias reais que acrescentam muita humanidade ao longa. o olhar de Chloé acompanha a forma como eles ajudam Fern a se adaptar à nova vida com uma obsessão quase documental, fazendo com que cada nova descoberta se torne parte do seu processo de desapego, que é mais emocional que físico.
como esperávamos, Frances desenvolve muito bem as camadas da personagem e seu desempenho é excepcional, evidenciando uma mulher experiente, ainda presa à morte do marido e aos pratos que o pai lhe deu, mas explorando as possibilidades dessa nova vida. e é lindo ver cada passo seu em direção à autonomia, refletindo sobre o que realmente significa se desapegar de tudo pra viver na estrada. mesmo que precise encarar a solidão e outras tantas dificuldades da vida nômade, pra sua surpresa, Fern descobre pessoas com um forte senso de comunidade e elas se tornam fundamentais pro seu crescimento.
Nomadland é trágico, mas belo ao mesmo tempo. além da história de Fern, ele retrata com muita inteligência uma condição marcada pela instabilidade de pessoas que, muitas vezes, perderam tudo. ao homenagear todos aqueles que foram obrigados a partir, o filme celebra laços de afeto que acabam sendo maiores que qualquer efemeridade de suas existências.
(texto publicado em meu perfil @crysresenha)
Meu Pai
4.4 1,2K Assista Agoraem seu primeiro trabalho como diretor, o francês Florian Zeller nem hesita diante da possibilidade de meter um tapa na cara do espectador. ele é perverso e sabe disso, os recursos narrativos que usa em Meu Pai, baseado em uma peça escrita por ele mesmo, estão lá justamente pra produzir este efeito. e o resultado é angustiante, desesperador, do tipo que corrói profundamente só de lembrar.
num trabalho primoroso, Meu Pai faz o público encarar uma situação que pouco imaginamos até nos depararmos com ela: o momento em que precisamos virar pais dos nossos pais. no filme, Olivia Colman vive Anne, uma das filhas de Anthony (Anthony Hopkins), que aos 80 anos tem uma vida independente até começar a apresentar sintomas de esquecimento e demência. Anne, que estava disposta a se mudar pra Paris, acaba precisando adiar seus planos até que ela e seu pai consigam entender como agir diante dessa nova realidade.
o filme poderia ter sido construído da forma mais tradicional possível e se reduzir a um drama que provavelmente a gente já assistiu por aí. mas Zeller tomou a decisão genial de nos colocar na visão dos personagens, tanto de Anthony quanto de Anne. as mudanças sutis no design de produção, o uso de dois atores como um mesmo personagem e a edição imperceptível da passagem de tempo são alguns dos recursos que deixam o espectador confuso e desorientado, exatamente como Anthony. é difícil e talvez até impossível entender se o que vemos é real ou não, e a experiência chega a ser assustadora.
a indicação ao Oscar dos dois protagonistas é mais que merecida. Olivia Colman consegue passar sentimentos com uma verdade impressionante: a paciência ao cuidar do pai, a tristeza ao vê-lo se distanciando dela e o peso de precisar lidar com tudo sozinha. Anthony Hopkins não fica pra trás e dá aqui uma de suas melhores interpretações desde O Silêncio dos Inocentes, indo de um senhor teimoso e seguro até um homem completamente vulnerável diante de uma doença. que é exatamente como ficamos depois de assistir um filme como esse, belamente devastador.
(texto publicado no meu IG @crysresenha)
Druk: Mais Uma Rodada
3.9 817 Assista AgoraDruk é inteligente, emocionante e cativante, fazendo jus à parceria entre o diretor e roteirista Thomas Vinterberg e o ator Mads Mikkelsen, que começou lá em 2012, com A Caça. o sentimento de angústia daquele longa, que fala sobre os efeitos de uma mentira numa comunidade violenta e preconceituosa, passa um tanto longe do clima mais ameno do novo filme, mas nem por isso Druk fica para trás. valeu a pena esperar pelo retorno da dupla, dessa vez discutindo uma das lições mais importantes da vida: o equilíbrio.
Druk conta a história de quatro professores de ensino médio passando por uma crise de meia idade. na tentativa de fugir do tédio e voltar a ter o controle de suas vidas, eles resolvem testar uma teoria que diz que nosso organismo funcionaria melhor com um nível constante de álcool. de início, os resultados são bastante animadores, eles conseguem se renovar e melhorar seus relacionamentos, mas no decorrer da experiência, vão entendendo que nem tudo é tão simples assim.
ao explorar o álcool como possível saída para esse vazio existencial que os personagens estão sentindo, Vinterberg soma uma enorme potência crítica à mensagem simples de Druk. sem qualquer tipo de moralismo, o diretor analisa os efeitos positivos e negativos dessa experiência, não focando no álcool em si, mas no que a embriaguez pode revelar. ao mesmo tempo que funciona como um incentivo, a bebida os força a lidar com suas fraquezas e é incrível o modo como possibilita que o público se questione também.
a dinâmica entre os personagens é divertida e fisga o espectador logo de cara. é por conta da leveza da amizade deles que fica tão fácil pensar sobre um tema tão delicado, e essa simplicidade torna a experiência encantadora. mesmo que não seja um filme sobre álcool, Druk é muito acertivo ao não romantizar a bebida e, da forma mais honesta possível, celebra os momentos felizes e a maravilhosa sensação de se estar vivo. mas, claro, sem deixar de defender que não faz mal a ninguém comemorar a vida com uma bebedeira moderada e bem acompanhada.
(texto publicado no perfil @crysresenha)
O Refúgio
3.2 70 Assista Agoraacho que todos já aprendemos que, num filme, quando uma família resolve se mudar para uma casa antiga e afastada da cidade, alguma coisa muito ruim acontece. em O Refúgio, o recurso da casa assombrada é utilizado de forma muito precisa justamente para compor uma narrativa complexa num tom assustador. mas engana-se quem pensa que o longa escrito e dirigido por Sean Durkin é um filme de terror. na verdade, O Refúgio é um drama forte sobre uma família em ruínas, condenada a viver sob uma energia tão sinistra quanto a da própria casa.
estamos na Inglaterra dos anos 80, momento em que todos queriam estar por cima o quanto antes, e qual tragédia mais assustadora do que nunca estar satisfeito? depois de viver muito tempo nos EUA, Rory (Jude Law) decide voltar com a esposa Allison (Carrie Coon) e seus dois filhos para sua Inglaterra natal na esperança de aproveitar o boom econômico. mas apesar de todo o luxo da bela mansão onde eles passam a morar, a ambição de Rory dá origem a um distanciamento entre eles, abrindo fissuras na relação e criando um clima de hostilidade entre os elementos da família.
talvez nenhum elemento sobrenatural ajudaria essa história a ser mais perturbadora ou brutal, não existe nada mais angustiante que se deparar com a realidade. enquanto Rory busca a todo custo ficar rico com o mínimo de esforço, só para alimentar seu ego gigante, Allison não tem nenhuma vergonha de trabalhar duro, mas acaba insatisfeita e desamparada quando escolhe abandonar sua vida para perseguir os sonhos do marido. sonhos pautados pelo dinheiro, que acaba devastando a família pouco a pouco.
O Refúgio não acrescenta nada exatamente novo a filmes que abordam dramas familiares, mas as nuances que resultam do uso dos elementos do terror da direção de Sean são muito interessantes. some isso à excelente interpretação de Carrie Coon, internalizando e expondo suas frustrações de forma impressionante, e temos um longa sofisticado sobre uma família em pedaços morando não exatamente numa mansão assombrada, mas num castelo de cartas prestes a desmoronar.
(texto publicado em meu perfil @crysresenha)
Relatos do Mundo
3.5 318 Assista AgoraCentral do Brasil não foi o primeiro e nem será o último filme a contar a história de dois personagens com personalidades diferentes que acabam construindo uma amizade poderosa, mesmo entrando em conflito constantemente.
enquanto o filme de Walter Salles adaptou esse enredo com maestria para a realidade crua e sofrida do nosso país, Relatos do Mundo escolhe retomar os westerns que carregavam certo drama (como Bravura Indômita, por exemplo) e o resultado é bastante satisfatório, ainda que não seja extraordinário.
dirigido por Paul Greengrass, responsável pela excelente trilogia Bourne, Relatos do Mundo traz Tom Hanks interpretando Cap. Kidd, um veterano da guerra que viaja através do Texas lendo notícias de jornal em troca de algumas moedas. numa de suas viagens, ele se depara com Johanna, uma menina de 10 anos, alemã, que foi raptada e cresceu como integrante da tribo Kiowa. Cap. Kidd então aceita levá-la até sua família biológica e, no caminho, mesmo com todas as dificuldades, suas vidas se cruzam de forma definitiva.
se por um lado a escolha de colocar Tom Hanks no papel principal não ter sido uma das mais acertadas (um ator desconhecido poderia adicionar mais desconfiança em relação ao caráter do personagem e o filme seria um pouco mais interessante), por outro, o diretor acerta no tom dos protagonistas, que não parecem nem fofos nem cascudos demais.
existem aqui sequências belíssimas de momentos ternos e bastante simbólicos, que misturam de forma singela a ingenuidade infantil com a dureza do contexto histórico do filme. mas Greengrass, especialista em cenas de ação, não deixa de imprimir seu estilo aos momentos mais tensos do longa, que são poucos, mas de muita qualidade.
Relatos do Mundo pode não ser tão marcante quanto a parceria anterior entre Greengrass e Tom Hanks (Capitão Phillips, 2013), mas prende a atenção, emociona e diverte na mesma medida. vale o play.
(texto publicado em @crysresenha)
A Garota Ideal
3.8 1,2K Assista Agoraacho particularmente maravilhoso poder descobrir e assistir filmes que transmitem mensagens bonitas, mas de uma forma não óbvia. com criatividade e delicadeza dá pra fazer coisas inesquecíveis e comoventes sem precisar passar nem perto dos clichês que existem aos montes por aí.
A Garota Ideal, com certeza, não é um deles. ele não força o choro, não subestima a capacidade do espectador e parte de uma premissa inesperada pra trazer aquele irresistível quentinho no coração. ele está bem escondidinho lá no catálogo da @primevideobr e da @globoplay, mas vale a busca e o investimento, é um filme simplesmente apaixonante.
em A Garota Ideal, Lars é um homem gentil, tímido e ermitão que mora numa cidadezinha no interior do meio do nada. certo dia, Lars aparece na casa do irmão Gus, seu vizinho, pra dizer que convidou pra jantar uma moça que conheceu pela internet, por quem sente estar apaixonado. ele e a esposa Karin acham maravilhoso ver Lars, finalmente, buscando algum tipo de interação social, mas logo se desesperam ao ver que Bianca é, na verdade, uma boneca de sexshop.
só essa quebra de expectativa por conta da boneca é impagável, mas o que se segue é que ficamos atônitos junto com Gus e Karin justamente porque nada parece forçado no que está acontecendo e entramos na história sem questionar. o que o longa faz de melhor é ser muito delicado ao mostrar como a boneca se torna o artifício que o personagem usa para materializar e falar, da forma mais pura e ingênua possível, sobre suas dificuldades em se relacionar com o outro.
e se, de início, as coisas são vistas com certo medo pela família, logo, o que acontece é o acolhimento de Bianca e, consequentemente, de Lars por todos na cidade. a melhor coisa é ver como é lindo todos abraçarem sua crise e “entrarem na mesma onda” que ele no momento em que ajudam Bianca a se enturmar, convidam os dois para uma festa ou a chamam para ser voluntária no hospital da cidade, por exemplo.
toda a comunidade passa a ser importante nessa fase de Lars e é isso o que torna A Garota Ideal tão inteligente e humano. um dos melhores filmes sobre empatia que já assisti.
(texto publicado em @crysresenha)
Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre
4.0 220 Assista Agoranão é pra menos que Nunca Raramente Às Vezes Sempre foi categoricamente esnobado em premiações como o Oscar. difícil uma indústria construída e formada por homens brancos, ricos e cristãos dar visibilidade, numa boa, à história honesta de uma adolescente tentando fazer um aborto. mas é justamente quando a sociedade decide ignorar uma obra que toca em diversas questões da vivência feminina que mais deveríamos dar atenção a ela.
também não é só por isso. a diretora e roteirista Eliza Hittman entrega aqui um trabalho excelente, sensível e muito íntimo. em seu filme, conhecemos Autumn, uma jovem de 17 anos que acaba de descobrir que está grávida. não podendo realizar o procedimento na cidade onde mora, ela viaja escondida com sua prima Skylar para fazer um aborto numa clínica especializada, em Nova York.
a jornada das garotas surpreende pelo tom preciso, que não apela pro melodrama e nem se perde em clichês. a presença de figuras masculinas opressoras é a grande vilã e permite ao espectador sentir o quão desconfortável pode ser estar na pele de uma mulher, se sentir vulnerável e sem saída. ao mesmo tempo, esse incômodo destaca a beleza da amizade das protagonistas, tão real e palpável, como se existissem de verdade.
Eliza conduz a história com respeito e empatia e sua decisão por não julgar Autumn só mostra o quanto ela entende como os motivos que levam uma mulher a procurar um aborto nunca são fáceis ou simples. assim, ela defende o direito de procurá-lo, questionando uma sociedade misógina que prefere ver desamparada a mulher oprimida e “irresponsável”.
Nunca Raramente Às Vezes Sempre cresce mais a cada olhar, palavra não dita e demonstração de afeto, até culminar na cena que dá título ao filme. é quando a atuação de Sidney Flanigan como Autumn extravasa a introspecção e seu olhar diz muito mais do que ela conseguiria dizer em palavras. nós a entendemos, sentimos e acolhemos sua dor, que não pode nem deve ser ignorada. ela pede socorro e nós conseguimos ouvir.
(texto publicado em meu perfil @crysresenha)
Um Príncipe em Nova York 2
2.8 462 Assista Agoraexistem filmes que vez ou outra aparecem por aí, geralmente remakes e continuações, e nos perguntamos “pra quê?”. ninguém pediu por ele, mas Um Príncipe em Nova York 2 estreou há quase uma semana, 30 anos depois de sua primeira parte, e continuamos nos perguntando “pra quê?”.
o filme de 88 foi um sucesso, consolidou o auge da carreira de Eddie Murphy e marcou a vida de muita gente. o mínimo que se espera é que sua continuação tivesse um propósito, né? mas Um Príncipe 2 não só deixa de acrescentar à história como também faz de tudo pra recriar as mesmas situações e relembrar seus personagens só pelo prazer da nostalgia. mas “pra quê?”.
na trama, Akeem se torna rei de Zamunda, mas descobre que teve um filho bastardo quando viajou com Semmi para o Queens. decidido a ter um homem como herdeiro, Akeem retorna aos EUA para encontrar seu filho, LaVelle, e prepará-lo para ser príncipe.
temos aqui um roteiro perdido nele mesmo e desesperado pra te fazer rir. o primeiro grande apelo é a nostalgia, já que a todo momento ele tenta descaradamente segurar o espectador com referências ao primeiro filme. o segundo é a forma nada sutil com que ele tenta empurrar o discurso politicamente correto que passou longe do antigo filme, mas o resultado é confuso e até incoerente.
outra coisa que não funciona é a inversão de papéis. a graça do filme de 88 era ver um príncipe vivendo como um homem normal, mas quando LaVelle é convidado a ter uma vida de príncipe, boa parte do humor se perde, muito porque Jermaine Fowler não tem nem metade do carisma de Eddie Murphy. aliás, o próprio Eddie não está bem aqui, sua atuação passa tão distante do personagem que ele criou que, às vezes, nem parece o mesmo Akeem que conhecemos décadas atrás.
em resumo, Um Príncipe 2 precisava ter algo a dizer além da nostalgia. ele é atrapalhado, apelativo e não tem material nem força suficiente pra bancar uma boa continuação do clássico. sabendo de tudo isso, pra quê mexeram no que tava quieto? pra quê?
(texto publicado em meu perfil @crysresenha)
Judas e o Messias Negro
4.1 518 Assista Agoracom muita vitalidade e interesse em contar uma história relevante da forma merecida, Judas e o Messias Negro traz para o público a ascensão do ativista Fred Hampton dentro do movimento dos Panteras Negras, na década de 60. naquela época, a força de seus discursos construiu uma união potente e necessária para que uma revolução acontecesse, mesmo que de forma controversa.
o longa acompanha William O’Neal e o início do acordo feito entre ele e o agente do FBI Roy Mitchell para se livrar de alguns anos de prisão. Roy propõe que Bill (William) se infiltre na sede dos Panteras e coloque a agência sempre um passo à frente de qualquer plano arquitetado pelos revolucionários.
o filme, então, destaca a relação entre Fred e Bill num paralelo direto com a história bíblica, numa narrativa muito mais atrativa e estilosa do que se poderia imaginar. o diretor Shaka King alcança um desempenho louvável, não só extraindo grandes atuações, mas também conduzindo a história com ritmo suficiente para que o espectador não desvie a atenção da tela.
Lakeith Stanfield (Bill) e Jesse Plemons (Roy) fazem trabalhos excelentes, mas quem rouba mesmo a cena é Daniel Kaluuya, fazendo por merecer toda a atenção que vem recebendo nos últimos anos. sua presença é magnética, não só quando pronuncia discursos apaixonados, mas também quando está a sós em momentos intimistas com a companheira Deborah Johnson (a ótima Dominique Fishback).
Judas e o Messias Negro não é apenas mais um filme sobre defesa de direitos civis. ele é articulado, bem-acabado e impactante em sua totalidade. sua maior virtude talvez seja ter observado a ironia da comparação que escolheu fazer: os crimes não foram cometidos apenas contra Hampton e os Panteras, mas também contra Bill. ele também foi mais uma vítima do governo estudianense, usado como delator daqueles que defendiam sua própria causa.
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Eu Me Importo
3.3 1,2K Assista Agoraa acidez de Eu Me Importo já começa no título. a protagonista Marla Grayson não poderia se importar menos com as consequências de suas trambiqueiragens, todas absolutamente baixas, frias e de uma falta de piedade sem tamanho.
seus alvos são os velhinhos: ela é líder de um esquema criminoso que consegue permissão jurídica pra internar idosos solitários e “mentalmente incapazes” em uma casa de repouso pra daí então leiloar seus bens e embolsar todo o dinheiro.
mas o filme deixa bem claro que nenhum dos personagens presta, então, ironicamente, te deixa livre pra decidir qual deles é o menos pior. a intenção não é necessariamente te fazer escolher um herói, mas sim alimentar o grande jogo de gato e rato.
porém o que vai definir o quão divertida vai ser a experiência é o seu nível de descompromisso com a história. Eu Me Importo é exagerado, irrealista e venenoso, mas tudo o que ele quer de você é aquele sorrisinho de canto de boca. cabe a você decidir se está disposto a relevar as facilitações e excessos da trama em troca de duas horas de um delicioso humor ácido.
o filme gira em torno do que acontece quando Marla decide usar seu esquema contra uma senhorinha rica e aparentemente inofensiva, mas que, na verdade, guarda muitos segredos.
a atriz Rosamund Pike é, inegavelmente, a grande atração aqui. sua desenvoltura como a digníssima salafrária que é Marla Grayson é sensacional e vale cada segundo do seu tempo, principalmente pelo sorrisinho de louca que virou sua especialidade em Garota Exemplar.
Dianne Wiest e Peter Dinklage também estão fantásticos, mesmo não sendo tão favorecidos pelos delírios do roteiro. Depois de um certo ponto a história fica difícil de engolir, ela perde a noção sobre o tom que quer alcançar e de até onde o sarcasmo pode ir sem virar um problema, mas é tudo muito divertido. Desconfortável também, mas se você embarca na história, vai se divertir com certeza.
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Os 7 Suspeitos
3.8 359 Assista Agoraquem foi? onde foi? com que arma?
os fãs do jogo Detetive conhecem bem as perguntas inconfundíveis que permeiam o imaginário de gerações há mais de 70 anos.
foi em 1949 que Anthony E. Pratt lançou na Inglaterra aquele que seria um best-seller, um verdadeiro clássico dos dias chuvosos e das noites em família. se você nunca jogou Detetive, está perdendo uma ótima oportunidade de se sentir um verdadeiro personagem da Agatha Christie.
buscando atrair os fãs, em 1985 o diretor Jonathan Lynn lançou Os Sete Suspeitos, trazendo os famosos personagens do jogo para as telas em um mistério inédito e ainda com a proposta de exibir diferentes desfechos da história em diferentes salas de exibição.
o filme opta por uma abordagem bastante cômica, mas ainda assim com suspense, e acerta em cheio no tom divertido e caricaturesco que o jogo carrega.
a história começa quando Professor Plum, Sra. Peacock, Miss Scarlet, Sra. White, Coronel Mostarda e Sr. Green chegam para um misterioso jantar na mansão do Sr. Boddy. eles são recepcionados pelo mordomo Wadsworth até que um crime acontece e, então, cabe a eles desmascarar o verdadeiro assassino antes que a polícia chegue ao local.
repleto de diálogos ágeis e humor afiado (mesmo que em alguns momentos meio bobo), Os Sete Suspeitos é divertido como jogar Detetive, mas com a vantagem de ter Tim Curry no comando, indicando o que deve ser feito para resolver o mistério.
o ator, famoso por sua atuação em The Rocky Horror Picture Show e It, aparece aqui num papel sensacional, certamente o ponto alto do filme, que tem um roteiro eficiente, mas também caótico em alguns momentos, como se ele não quisesse que o espectador resolvesse o caso.
Os Sete Suspeitos não é nenhuma obra de arte, mas cumpre bem sua proposta de divertir sem se levar a sério demais. funciona bem como comédia clássica dos anos 80, mas talvez seja bem mais atraente para os fãs de Detetive, que têm aqui um fan service bastante charmoso.
(crítica publicada em meu perfil @crysresenha)
XXY
3.8 509 Assista Agoraa gente vive constantemente dificultando nossas existências quando fazemos comparações desnecessárias, estabelecemos padrões inalcançáveis ou quando nunca nos damos por satisfeitos.
faz parte da natureza humana e do mundo que criamos pra nós agir dessa forma, porém existem, sim, existências que por si só são mais complicadas que outras e uma das coisas mais legais do cinema é nos mostrar realidades diversas pra que possamos refletir sobre as nossas.
XXY é um filme argentino disposto a tratar de um tema imensamente complexo da forma mais natural possível, sem privar o espectador dos momentos difíceis, mas, mesmo assim, se mantendo igualmente tocante e bonito.
nele, Alex é uma adolescente de 15 anos que se mudou com os pais para um pequeno vilarejo no Uruguai esperando evitar que os médicos tentassem interferir em sua ambiguidade genital. mas a garota está em pleno desenvolvimento de sua sexualidade e seus pais entendem que não vão poder proteger a filha dos julgamentos da sociedade pra sempre.
não fica claro de início sobre o que o filme quer falar, mas aos poucos entendemos que Alex é aquela letra I quase sempre ignorada na sigla LGBT: uma pessoa intersexo, invisibilizada justamente por ser uma “anomalia” dentro da cisnormatividade.
essa singularidade biológica não apenas obriga o espectador a pensar sobre nossa necessidade compulsória de rotular pessoas, mas também ressignifica a narrativa de amadurecimento do filme, potencializando os questionamentos da personagem sobre identidade de gênero e sexualidade.
uma das maiores virtudes de XXY é não nos deixar passivos diante da história de Alex, ele faz com que a gente perceba nosso despreparo como sociedade para lidar com o diferente, com aquilo que não conhecemos.
outra virtude é não julgar a garota esperando que ela escolha um dos gêneros para se identificar: mesmo com todas as humilhações que sofreu, o filme apenas espera que ela seja ela, em toda a sua singularidade.
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Malcolm & Marie
3.5 313 Assista Agoradurante uma longa noite de discussões infinitas sobre seu relacionamento, o casal Malcolm e Marie leva o espectador à exaustão. são muitos diálogos onde, pouco a pouco, aprendemos sobre o passado dos personagens, suas personalidades e aquilo que pensam um do outro, mas nem tudo é agradável.
a casa onde moram é repleta de janelas e portas de vidro, como se convidasse o espectador a ver o que está acontecendo. preenchendo bem cada um dos cômodos, a lavação de roupa suja se estende por horas como num jogo de tênis, um rebatendo o outro, a bola caindo algumas vezes, alguns intervalos.
e é cansativo, quando termina estamos esgotados. pena que pelos motivos errados.
a boa direção de Sam Levinson faz o charme da história e a fotografia em preto e branco realça a sensação de “lados opostos” em que os protagonistas se colocam, mas acaba faltando propósito à narrativa, algo que justifique um relacionamento tóxico ser retratado com tanto desinteresse.
logo de início, a história começa a oscilar bruscamente entre momentos muito intensos e outros onde o tema principal é praticamente abandonado, o que incomoda bem mais pela história do que pelo ponto de vista técnico, como se o filme passasse pano para um relacionamento que não faz bem para nenhum dos dois.
mas a vontade do roteiro é discutir questões além da dinâmica do casal. e quando outros temas são adicionados à história, o tiro sai pela culatra, transformando o filme num conjunto de bons momentos que não conseguem se conectar numa narrativa equilibrada.
o resultado disso tudo é indiferença. Malcolm & Marie se perde tanto em seu propósito como filme que, no final, não importa, nós realmente não ligamos pro que vai acontecer entre eles.
e acaba sendo triste que uma proposta tão interessante tenha descambado justamente pro desinteresse.
(texto publicado em meu perfil @crysresenha)
A Assistente
3.3 206 Assista Agorapode parecer meio monótona a decisão da diretora e roteirista Kitty Green de manter a câmera em sua protagonista durante toda a hora e meia de A Assistente, que entrou para o catálogo do @primevideobr no dia 7 de janeiro. por conta dessa decisão, não temos outra escolha exceto acompanhar momento a momento a rotina de trabalho de Jane, que é assistente de um poderoso magnata do entretenimento.
é arriscado? com certeza. mas este termina sendo um artifício interessantíssimo para contar uma história que, infelizmente, é mais comum do que imaginamos: exemplos de assédio e abuso de autoridade no ambiente de trabalho.
não faz muito tempo esta mesma temática foi discutida por O Escândalo (Bombshell, 2019), que contou o caso real do ex-CEO da Fox News, acusado de assédio sexual por várias de suas funcionárias. mesmo abordando o mesmo tema, os dois filmes são bem diferentes: enquanto O Escândalo é mais escrachado e convencional, A Assistente vai pelo caminho inverso e utiliza sutilezas para apresentar o problema, se tornando não apenas uma obra extremamente necessária, mas um grande estudo de personagem.
Julia Garner vem consolidando sua carreira na série Ozark, da @netflixbrasil, mas em A Assistente ela prova que consegue, literalmente, carregar um filme e ainda é responsável por uma atuação irretocável.
Jane não tem muitas falas, mas o olhar da atriz diante das situações mais humilhantes e machistas que vive naquele dia de trabalho é suficiente para dizer ao espectador cada um dos sentimentos que lhe atravessam: angústia, aflição, raiva, impotência.
A Assistente não se preocupa nem um pouco em pegar na mão do espectador e explicá-lo a verdadeira dinâmica do escritório de Jane, mas tem um roteiro suficientemente inteligente para deixar conclusões nas entrelinhas sem que ninguém se perca.
lamentavelmente, nem tem como não entender. com cada vez mais denúncias de situações como as do filme levadas a público, fica bastante claro como funciona o ambiente claustrofóbico em que ela trabalha e como, em alguns momentos, parece inútil denunciá-lo e cada vez mais difícil se ver livre dele.
(texto publicado em meu perfil @crysresenha)
Pedaços De Uma Mulher
3.8 541 Assista AgoraMartha começa a se despedaçar durante os primeiros trinta minutos de filme, num plano-sequência angustiante, pra nós e pra ela, que passa por complicações durante o trabalho de parto e vê sua filha morrer poucos minutos depois de vir ao mundo.
é uma cena extremamente forte e sufocante, assustadora até, aquela que você vai lembrar mesmo depois que os créditos subirem porque foi nesse momento que os pedaços se separaram, e nós junto com eles, porque não tem como assistir uma cena como essa e se manter indiferente.
saber que o roteiro simbólico de Pieces of a Woman foi inspirado numa história real também só contribui pra que a angústia cresça ainda mais. a roteirista Kata Wéber e o diretor Kornél Mundruczó, usaram sua experiência pessoal para idealizar um filme que pudesse tratar o luto de uma forma hiper-realista, porém sem excessos, mostrando apenas o necessário para transmitir o processo de cura de sua protagonista.
diferente das pessoas ao seu redor, Martha prefere esconder seus sentimentos, mas suas reações silenciosas e distantes são diretamente responsáveis pela dor contida nela, que não a abandona mesmo enquanto assiste sua vida desmoronar diante de si.
depois de um começo perturbadoramente inquieto, Pieces of a Woman pisa no freio pra mostrar como o casamento da protagonista vai desmoronando pouco a pouco, já que seu marido (interpretado por Shia LaBeouf), confrontado pela situação, começa a perder sua postura de bom moço procurando compensações frívolas pra sua personalidade agressiva (ficção imita realidade?).
ao mesmo tempo, sua mãe (numa atuação excelente de Ellen Burstyn), também entra em conflito com Martha por querer ajudar a filha, muitas vezes com interesse próprio, mas ao mesmo tempo sem saber como.
mas a alma despedaçada de Pieces of a Woman, a mais difícil de se reconstruir, é a de Martha, interpretada de forma excepcional por Vanessa Kirby, marcante e sem excessos. através de olhares e hesitações, a atriz constrói uma mulher desnorteada à procura dos próximos passos, nem sempre disposta a satisfazer os outros, mas buscando seu próprio jeito de sobreviver.
(texto publicado em meu perfil @crysresenha)
Sing Street - Música e Sonho
4.1 717 Assista Agorao que Sing Street faz não é só beber na fonte das comédias adolescentes de John Hughes, mas, carinhosamente, revisitar todo o encantamento criado pelo diretor para essa fase traduzida nas histórias sensacionais que adoramos ver e rever até hoje. o clima é tão divertido e apaixonante que a conexão com o universo de Hughes é imediata, simplesmente por trazer a magia que ele sempre dedicou a esse momento da vida das pessoas.
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a genialidade de John Carney aqui é conseguir unir a influência do mestre dos anos 80 ao seu próprio jeito de fazer filmes, já conhecido por nomes como Apenas Uma Vez e Mesmo se Nada Der Certo, que só de serem lembrados trazem um quentinho no coração. o fato de Sing Street se passar no mesmo local e época em que ele mesmo foi adolescente (Dublin, anos 80), faz com que este projeto tenha uma cara ainda mais pessoal, de ter sido cuidado com todo o amor.
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e é com amor que ele olha pra seus personagens, garotos no auge da adolescência se deparando pela primeira vez com problemas que até então nunca sequer imaginavam, mas que encontram na música uma forma de forma de extravasar suas frustrações e inseguranças.
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o protagonista da trama é Conor, jovem de 14 anos, que acabou de entrar num colégio público porque seus pais estão passando por dificuldades financeiras. em meio aos atritos com novos colegas e professores, ele decide formar uma banda com alguns amigos (a Sing Street) e tentar conquistar Raphina, a linda garota que mora na casa da frente.
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como já de praxe na filmografia de Carney, não é só a história que cativa o espectador, mas também a trilha sonora original, desta vez pensada inteiramente a partir das referências musicais que Brendan, irmão de Conor, apresenta ao garoto, já que este não entende absolutamente nada de música. é aí que os membros da banda usam e abusam de Duran Duran, Depeche Mode, A-Ha, The Cure e Hall & Oates para compor canções que falam de amor, pertencimento e diversão.
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Sing Street é um delicioso mergulho num universo de sonhos e synthpop, apaixonante desde os primeiros minutos e divertido muito além da conta ao retratar o impulso adolescente de se encontrar no mundo.
(texto publicado em meu perfil @crystallribeiro)
Temporada
3.9 146 Assista Agoranão vou mentir que tenho um carinho especial por filmes que contam histórias cotidianas da vida de pessoas simples, onde os grandes sentimentos e mudanças acontecem muito além do que pode se observar com o olhar desatento. é lindo ver determinadas ações e acontecimentos entrando no personagem, repercutindo internamente e daí saindo através de um olhar, um gesto ou uma atitude diferente. filmes assim soam familiares, geram identificação e, com o tempo, crescem na nossa memória, porque não é preciso ir muito além pra contar grandes histórias, o que também não significa que seja fácil.
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Temporada é um desses belos exemplos que chegam como-quem-não-quer-nada e reverberam dentro da gente até tomar proporções muito maiores do que se imaginava. isso porque, aqui, quem está no centro de tudo é Juliana, uma mulher negra passando por mudanças externas decisivas que vão ecoar dentro dela e produzir transformações bastante sensíveis em quem ela é.
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no filme, ela se muda para Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, depois de ter passado num concurso pra Agente Comunitário de Saúde, trabalhando no combate de endemias. é a partir do momento em que Juliana sai da casa onde morava com o marido para viver numa outra cidade que seu dia a dia começa a se transformar. uma vez sozinha, tendo que se adaptar à nova rotina, fazer novos amigos e procurar apoio em outros lugares, ela vai descobrindo, ao poucos, o quão potente é a sua independência.
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claro que a complexidade da personagem não seria nada sem uma atriz à altura. Grace Passô parece ter aqui firmado bem seus pés no hall de grandes nomes do cinema nacional fazendo uma coisa que é para poucos: interpretar uma mulher que poderia ser eu ou você, sem firulas, maquiagem ou figurino elaborado. ela não tem onde ou no que se esconder além dos sentimentos que perpassam as vivências de Juliana e que a transformam na mulher que vemos ao final do filme.
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Temporada faz um belíssimo trabalho ao entender que cada pessoa é um mundo, uma história, com suas próprias lutas e bagagens. uma jóia do catálogo da Netflix que você não deveria deixar passar.
(resenha publicada no meu perfil @crystallribeiro)
Toilet Ek Prem Katha
4.1 19 Assista Agoranão sei você, mas eu nunca tinha assistido um filme indiano antes de Toilet. ele foi uma recomendação da Ju Wallauer em algum Mamilos podcast e ficou perdido por um longo tempo na minha lista da Netflix até eu perceber que era hora de lhe dar uma chance. e o filme é tão legal, mas tão legal, que essa espera toda foi uma enorme perda de tempo.
já de início, o que mais chama atenção é a história, no mínimo, inusitada: Jaya pede divórcio logo depois do casamento quando descobre que a casa do marido Keshav, onde vai morar, não tem um banheiro. desesperado, ele tenta convencer sua família e seus vizinhos a construírem um banheiro comunitário pra que ela volte a morar com ele.
o mais legal em Toilet é que o longa discute o embate entre antigas tradições e avanços modernos, hoje ainda muito comum na Índia, mas sob um olhar leve e bem engraçado, como parece ser característico da maioria das produções bollywoodianas. então, ao mesmo tempo em que você vai ver um romance fofo e muitas dancinhas indianas em Toilet, também vai assistir um filme repleto de discussões bastante sérias.
se pra nós, ocidentais, saneamento básico é um direito de qualquer cidadão, muitas comunidades indianas acreditam que fazer necessidades fisiológicas dentro de casa seria como deixar o lar impuro. é aí que se torna permitido que homens façam xixi e cocô em qualquer lugar que desejam, desde que seja fora de casa. já as mulheres precisam esperar até às quatro da manhã pra sair junto com outras mulheres da aldeia e andar quilômetros até o rio mais próximo, fazer suas necessidades e jogar tudo na água.
é por isso que Jaya, protagonista feminista que é, criada quase como uma ocidental que cursa faculdade e tem acesso a espaços que muitas indianas não têm (como a um banheiro, por exemplo), fica abismada com as regras arcaicas, não só do sogro brâmane, mas de todos na cidade, que não enxergam o quão essa situação é humilhante e extremamente desagradável, principalmente para as mulheres. e nada impede que ela cause uma pequena revolução.
mesmo longo e até meio brega, Toilet é um filme divertidíssimo e muito inteligente. uma ótima oportunidade de sair da bolha e conhecer uma outra cultura.
(resenha publicada em meu perfil @crystallribeiro)
Projeto Flórida
4.1 1,1Kfazia tempo que um filme não me empolgava de um jeito tão arrebatador e genuíno quanto aconteceu com Projeto Flórida, um daqueles longas com orçamento limitado e uma história simples e dura sobre pessoas comuns. o que o diretor e roteirista Sean Baker fez aqui foi cinema de afeto, um retrato da infância sem lentes amenizadoras, mas com um olhar sensível e bastante consciente.
não é preciso ir muito além pra entender que Projeto Flórida não é pra todo mundo. se eu te convencer de alguma forma a dar uma chance ao longa, não vá esperando grandes acontecimentos ou personagens cativantes, porque ao invés disso o que você vai ver são pessoas na margem da sociedade, tomando decisões questionáveis e sem nenhuma perspectiva de mudança.
o longa segue o dia a dia de Moonee, uma garotinha de seis anos que junto com seus amigos provoca o caos no motel onde mora com sua mãe Halley, que mais parece sua irmã (em idade e atitudes). Halley não consegue arranjar emprego pra sustentar a filha, vive de pequenos golpes e cria a menina com uma negligência que deixa qualquer um de cabelo em pé.
sendo assim, pelo menos nos primeiros 40 minutos, é bem difícil ter qualquer tipo de simpatia por esses personagens tamanha a confusão que eles parecem ser. mas, ultrapassada essa barreira, o texto é tão bem construído, tão humano e sutil que é impossível não ficar completamente hipnotizado pelo filme. as atuações ultrarrealistas de Projeto Flórida só intensificam a experiência. o trio Brooklynn Prince, Bria Vinaite e Willem Dafoe (que interpreta o gerente do motel e melhor personagem do filme) está completamente estonteante em seus papéis, mas a mensagem do longa extrapola qualquer qualidade técnica.
Projeto Flórida surpreende por mostrar o amor nos lugares onde menos esperamos vê-lo. o contraste entre o afeto artificial da Disney e o desajustado motel Magic Castle são gritantes, mas para quem assiste ao filme não há dúvidas: por mais problemáticos que sejam seus moradores, é na realidade nada alienadora do não-conto de fadas onde podemos encontrar amor em sua forma mais verdadeira.
(texto retirado do meu perfil @crystallribeiro)
O Enigma de Outro Mundo
4.0 1,0K Assista Agorao terror dos anos 80 não teria sido o mesmo sem o mestre John Carpenter que com criatividade, efeitos práticos e muito gore fez clássicos eternos como The Thing, também conhecido como O Enigma de Outro Mundo. devo dizer que não sou fã do cinema do gênero, são poucos os filmes atuais de terror que eu chego a assistir, mas certos elementos em The Thing são simplesmente irresistíveis, principalmente o fato do suspense ser seu ponto forte.
o enredo tem o tipo de simplicidade que sempre me deixa curiosa: coisas estranhas passam a acontecer depois da chegada de um cachorro a uma estação americana na Antártica onde trabalham doze cientistas. não é fácil escrever histórias que se passam em ambientes fechados com poucos personagens, mas quando um bom texto consegue fazer isso bem, ele se torna especialmente interessante.
o roteiro é enxuto, começa como quem não quer nada e lentamente vai ficando cada vez mais tenso, não te deixando desgrudar os olhos da tela. o ambiente claustrofóbico e a sensação de que cada um dos personagens pode ser o inimigo estabelecem o suspense, que se complementa de forma certeira pela trilha sonora de outro mestre, o Ennio Morricone. aqui ele preenche qualquer falha de Carpenter com talento e essa sutileza se torna indispensável para elevar o suspense a outro patamar.
de longe, o que mais diverte e encanta em The Thing é o fato do terror não ser tanto a criatura (construída por meio de efeitos práticos fascinantes), mas sim a desconfiança sobre cada um dos personagens, compartilhada por eles e pelo público. quem é homem e quem é monstro? é impossível não ficar apreensivo na cena em que o personagem do Kurt Russell começa a testar cada amostra de sangue para encontrar qual não é a humana.
saber quem é confiável ou não é o jogo de tensão que John Carpenter nos propõe neste filme sensacional que envelheceu muito bem, um clássico atemporal do sci-fi que prende qualquer espectador e merece algumas horas do seu tempo.
(texto retirado do meu perfil @crystallribeiro)
O Estranho Que Nós Amamos
3.9 136 Assista AgoraAssisti primeiro o remake da Sofia Copolla, mas fiquei tão intrigada com a história que vim logo assistir o original, dito melhor que o de 2017. E é verdade. Existe muito mais vida aqui. Gostei muito das interpretações sutis do remake, mas o filme de 71 consegue deixar a história mais interessante, deixa mais explícito (de um jeito bom) a intenção dos personagens e seus desejos. Em relação a esse tópico, achei que são quase dois filmes diferentes, aqui é possível ver melhor a malícia do soldado, o desejo das mulheres por ele, além de suscitar outros temas com a existência de outros personagens que não estão no filme da Sofia. A única coisa que me incomodou foi o diretor ter apelado para explicitar alguns pensamentos dos personagens, achei um recurso pobre e que passaria perfeitamente sem ele. É uma história propositalmente estranha e que chega a ter consequências extremamente inesperadas, mas é isso que o torna tão fascinante.