Em uma pequena cidade do interior, o sádico e desumano coveiro Josefel Zanatas, conhecido como Zé do Caixão (Mojica), é temido e odiado. Ele é obcecado por gerar o filho perfeito, que possa lhe dar a continuidade de seu sangue, e assim se tornar imortal. Para tal objetivo, ele vai até às últimas consequências, mas verá que suas vítimas irão cobrar uma cara vingança. Filme fundamental para fãs de terror, “À Meia-noite Levarei sua Alma” foi uma produção das mais peculiares já feitas. Com um orçamento extremamente reduzido, às custas da venda de todos os bens do diretor/roteirista/produtor/protagonista, José Mojica Marins foi quase a falência, sendo obrigado a vender os direitos do filme antes mesmo da estreia. Embora o filme tenha sido um sucesso de público, não rendeu nenhum vintém ao seu criador. Um dos pontos fundamentais de seu sucesso, fruto da genialidade de Mojica, é o tom subversivo e anárquico do filme. Zé do Caixão é um verdadeiro monstro: pega o que quer e consegue tudo que objetiva, passando por cima de leis, regras e costumes, igreja ou Estado. A atmosfera de horror gore é apavorante e amedrontadora, exatamente como o período histórico da época, além de extremamente realista e inovadora, inaugurando o gênero no Brasil. “À Meia-noite Levarei sua Alma” é uma demoníaca jóia na história do cinema nacional. Um filme que custou a ser compreendido e admirado pela crítica local, mas que sempre atingiu os espectadores em seus medos mais profundos e secretos, exatamente como queria Mojica.
4 vampiros ancestrais dividem moradia em uma república na periferia da Wellington dos dias de hoje. O cotidiano da vida de Viago (Waititi), um dândi do século XVII, Deacon (Brugh), o caçula do grupo com apenas 183 anos, Vladislav (Clement), o famoso conde romeno e Petyr (Fransham), um nosferatu de 8 mil, é registrado por uma equipe de filmagem (devidamente protegida com crucifixos) em um estilo reality show documentário. Problemas como uma pilha de louça suja de 5 anos, encontrar sangue humano em festa noturnas, lidar com a luz solar e não conseguirem adequar a maneira de se vestirem aos padrões sociais são mostrados de maneira rotineira e hilária. “O que Fazemos nas Sombras” é uma comédia única por saber contrapor situações do cotidiano com o fabulário geral coletivo que temos sobre vampiros. O roteiro é fluido e simples, nos colocando como espectadores dos personagens, como em um Big Brother macabro. É surpreendentemente engraçado ver conversas sobre temas como morte, dilaceração e lacaios sexuais com tamanha serenidade e desdém. Destaque para as atuações dos protagonistas, sempre no limite do absurdo, mas fiéis aos personagens propostos. “O que Fazemos nas Sombras” é uma surpresa ao gênero e um deleite aos amantes dos sugadores de sangue.
Ana (Egrei), uma estudante de psicologia, é contratada como babá pela matriarca de uma família que vive em um casarão isolado no meio das montanhas de Petrópolis. Ela é deixada sozinha com as crianças e o vigilante Augusto (Gomes); logo começa a receber insistentes telefonemas ameaçadores durante a noite e nota que existe algo de perturbador na casa. “O Anjo da Noite” é um filme único. Nos aspectos da direção, é impressionante como Khouri consegue nos passar tanto com tão pouco. Basta um plano detalhe em um olhar de Ana para nos sentirmos representados subjetivamente na cena. Já que, assim como a protagonista, não sabemos se há realmente uma presença maligna na casa, se é tudo fruto da imaginação e do cansaço ou se é a própria casa a fonte do medo. Há um momento que o vigia Augusto diz: "Eu só não gosto é da casa… É bonita, mas não é amiga da gente”. A fotografia do italiano Antonio Meliande (imortalizado posteriormente nas Pornochanchadas) é bela e funcional, imprimindo, mesmo em locações externas, planos claustrofóbicos e angustiantes ‒ vide o constante enquadramento do teto da casa pela visão de Ana. “O Anjo da Noite” é um clássico esquecido do horror nacional, uma pérola que merece ser relembrada e vista.
O “documentário” nos mostra quando Nev Schulman finalmente vai conhecer a sua namorada virtual, Megan, que conheceu pelo Facebook. Particularmente, sempre desejei ver um filme de terror que fosse verdadeiramente um documentário. Aqui, “Catfish” chega bem perto. De estrutura bastante simples, quase rudimentar, o filme nunca se preocupa por parecer amador ou improvisado. Os artifícios acabam funcionando perfeitamente para o que é proposto, passando um constante clima de descoberta e surpresa, muitas vezes assustador. Dessa forma, nos identificamos quase que instantaneamente com o protagonista, compartilhando de suas ansiedades e medos. Ao longo do filme, vamos descobrindo os fatos juntos a Nev, até chegarmos ao clímax do filme, que, apesar de previsível, impressiona pela forma como trabalha o seu desfecho, distanciando-se de uma visão moralista, não querendo julgar ou constranger os seus personagens, mas sim explicá-los. Assim, o filme mostra suas angústias mais íntimas e suas motivações profundas. “Catfish” é um filme atual que consegue vencer as barreiras dos tradicionais mockumentary, já que, por se tratar de uma trama tão realista e delicada, pouco importa se é uma história verídica ou não.
Após a sua morte, um homem (Casey Affleck) retorna a sua casa e a de sua esposa (Rooney Mara). Desviando de uma aparência fantasmagórica esperada, este carrega um clássico lençol, que se arrasta junto a ele. Aqui, altera-se também a perspectiva usual de filmes sobrenaturais: acompanhamos o ponto de vista do que escapa ao humano, de quem é levado, em silêncio, rumo ao esquecimento. O medo, em “A Ghost Story”, é existencialista, do tempo menor da vida humana. A solidão e a angústia de quem vai ao lado da tristeza e lamento de quem fica: o luto em, literalmente, diferentes planos. Abordando as dificuldades que temos de aceitar o fim, as mudanças, o filme reflete sobre a efemeridade que nos é imposta pela existência, enquanto insiste a esperança de encontrarmos algo que se lembre de nós.
Depois de um longo período, um cavaleiro (Von Sydow) retorna das Cruzadas a sua nação pátria e a encontra morrediça, arrasada pela Peste Negra. Completamente desolado, a Morte (Ekerot) aparece a sua frente, inclinada a levá-lo. Tentando ganhar tempo, ele a desafia para uma partida de xadrez que decidirá se sua hora chegou ou não. Tudo depende da sua vitória no jogo e a Morte concorda com o desafio, já que não perde nunca. “O Sétimo Selo” teve seu roteiro baseado em uma peça também escrita por Bergman, lançada em um período auge de temor pós-guerra, além do crescente medo em relação à guerra fria e sua constante ameaça de uma hecatombe nuclear. O filme faz um paralelo entre essa época, que parecia beirar um apocalipse, e a devastada civilização europeia medieval. Ao propor um jogo com a Morte para tentar atrasá-la, o Cavaleiro questiona não somente a sua fé e os caminhos que ela o levou, como também a sua própria existência em um mundo tão duro e cruel. A espera da conclusão profética, que é a abertura do sétimo selo, se torna não somente um presságio apocalíptico divino, mas uma noção irremediável que a todo homem o fim é invencível e que, independente de como, sua morte será pesarosa e solitária. Não há salvação no sagrado ou no profano, apenas o eco de orações mudas e impostoras. Tão atual como no ano de seu lançamento, “O Sétimo Selo” se mantém como uma tocha em brasa a desnudar hipocrisias religiosas contemporâneas em uma sociedade que sempre parece estar a beira do colapso.
Rubens (de Oliveira) é um professor de natação infantil que tem uma ótima relação com seus alunos ‒ em especial, crianças ‒ e não raramente estabelece uma relação próxima e de amizade com muitas delas. Um de seus alunos, Alex (Mello), está passando por um momento bastante conturbado: seus pais estão se separando e ele se vê cada vez mais distante das pessoas que o rodeiam. Diante da situação, Rubens não demora a tentar se aproximar do garoto para ajudá-lo. No entanto, as coisas mudam completamente quando Alex diz à sua mãe que o professor lhe deu um beijo na boca no vestiário. Acho impossível fazer uma indicação de “Aos Teus Olhos” sem inicialmente falar de sua fotografia. O diretor de fotografia, Azul Serra, trabalha com uma iluminação realista, quase imperceptível, nos entregando planos que, ao mesmo tempo que são frios e desoladores, conseguem extrair cada milímetro de beleza de paredes azulejadas e fundos infinitos azul piscina. Além desse, outro ponto importantíssimo para sua narrativa está na montagem. Há uma transição, por exemplo, que corta de Rubens no fundo da piscina para uma chaleira de água fervendo, que é fantástica por conseguir criar um paralelo da situação vivida pelo protagonista. Tentando fugir de clichês maniqueístas, “Aos Teus Olhos” não nos entrega respostas, antes busca uma análise complexa das personagens. Desse modo, não estabelece mocinhos nem vilões, fazendo, portanto, uma análise delicada e imparcial de comportamentos humanos em sociedade e do potencial tóxico que o desespero e a incomunicabilidade podem produzir.
Seis pacientes se encontram, por um erro de agenda, na sala de espera do consultório do renomado Dr. Palomero. Entre acertos e desentendimentos, eles descobrem que todos sofrem de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). O problema é que o psiquiatra nunca chega à terapia e pouco a pouco eles são obrigados a se entenderem e tirarem suas próprias conclusões. Baseado em uma peça homônima espanhola de bastante sucesso, “Toc Toc” consegue levar o ritmo dos palcos para a tela. A montagem é ágil, o compasso é rápido, as piadas fluem com uma exatidão milimétrica. Os personagens, com suas diferentes condições, trazem uma riqueza de timbres e nuances aos diálogos e à mise-en-scène como um todo, nos envolvemos completamente. A cada sequência o filme se renova e o riso brota naturalmente. Mesmo se tratando de uma comédia, é difícil não refletir um pouco e problematizar o cerne nas gags envolvidas, o TOC. Porém, a naturalidade com que as personagens reagem aos tipos de transtornos uns dos outros acaba por nos aproximar deles, trazendo luz ao assunto. Como é esperado em uma sociedade, primeiro há o pré-julgamento, afastamento, compreensão e, por fim, empatia
Alicia Huberman (Bergman) vê o pai sendo preso, acusado de ser um espião alemão. Logo em seguida, ela recebe a visita de um agente do governo (Grant) que pergunta se ela concorda em ser uma espiã americana no Rio de Janeiro, onde nazistas amigos do pai dela estão operando secretamente Para dar continuidade ao plano americano, ela se vê obrigada a casar com um antigo conhecido alemão, mas se apaixona pelo seu contato no governo americano. Em 1946, Alfred Hitchcock já tinha dirigido quase 40 longa metragens, no entanto, ainda estava se estabelecendo como mestre do suspense. “Interlúdio” mostra claramente essa tendência e, mais importante, um nítido talento. Os elementos marcantes em suas obras estão todos aí. Desde características mais fundamentais como o uso de planos detalhes ou close em olhares como instrumento narrativo, a trilha sonora envolvente e sombria e um trabalho de montagem milimétrico assumindo muitas vezes um caráter construtivista até particularidades típicas de Hitchcock que viraram um constante como suas aparições escondidas (aqui ele é um dos homens bebendo champanhe na festa), protagonistas loiras frias e reprimidas e o uso sutil do humor (vide cena final). Apesar de não configurar entre as obras primas do diretor Interlúdio é um celeiro de ideias do suspense e merece ser lembrado e revisto.
1940, Inglaterra, em plena invasão alemã na França durante o período mais duro da Segunda Guerra Mundial. Esse é o cenário em que o até então parlamentar Winston Churchill (Oldman) irá assumir o cargo de primeiro ministro britânico. É impossível não pensar na linda sessão dupla que “O Destino de Uma Nação” faz com Dunkirk (Nolan, 2017), mas mostrando pontos de vista completamente diferentes sobre um mesmo momento histórico. Outra característica compartilhada pelos dois filmes e, sem dúvida, onde “O Destino de Uma Nação” consegue mostrar a sua grandiosidade, é o cuidado e a beleza de sua composição visual e, principalmente, mise en scène. A delicadeza de certos planos do filme é encantadora, assim como recorrentes rimas visuais como as cenas que mostram a rotina da população inglesa em frente ao parlamento, mas em diferentes momentos (tempos de paz e de guerra). Ainda destacando essas duas essas cenas, é muito interessante notar a função narrativa que o contraste da fotografia desempenha, nos mostrando a diferença do ânimo das pessoas com a evolução da guerra, assim como vários enquadramentos do protagonista, sempre em planos fechados, claustrofóbicos, indicando o isolamento e a pressão sofrida por ele. Porém, se podemos exaltar a Forma e sua funcionalidade, a recíproca não é verdadeira se falando de Conteúdo, já que, ao final do filme, nos falta a sensação de termos conhecido Churchill como uma pessoa completa e não apenas um personagem histórico. Pontuado por diversas passagens que, mesmo inverossímeis (cena do metrô), ajudam a compor a persona, “O Destino de Uma Nação” reside em um meio termo entre filme ficcional e biográfico,tendo mais acertos no primeiro.
É um grande momento na vida de Johnny (Wiseau). Ele tem um ótimo trabalho em um banco de São Francisco, uma namorada que o ama (Danielle no papel de Lisa) e o melhor amigo que poderia escolher (Sestero no papel de Mark). Tudo vai bem, até a véspera de seu casamento. Quando Lisa e Mark começam a se enxergar de uma forma diferente. Particularmente, tenho uma grande estima por alguns péssimos filmes que já vi, não somente pela memória afetiva, mas pelo aprendizado que alguns deles me proporcionaram. Filmes ruins muitas vezes nos abrem os olhos de uma maneira única. Dito isso, consigo classificar The Room como o pior filme que já vi. Logo pude provar esta minha premissa mais uma vez. Seja pela montagem completamente descontínua e confusa ou por atuações que sempre nos deixam constrangidos e incrédulos, o filme nos apresenta uma série de problemas, facilmente identificados e muitas vezes de aparente simples correção. Mas então porque ele se transformou em um filme ícone? Além, claro, de incitar o deboche, como uma irônica ode ao lixo, The Room causa fascínio ao nos provocar com a pergunta: Porque alguém fez esse filme? A resposta definitiva eu não sei, mas penso que ele pode facilmente ser considerado o Plano 9 (Ed Wood, 1959) dessa geração e assim como seu irmão cinquentista, eles compartilham algo que é inspirador. Esses filmes foram feitos pelo amor sincero e visceral de seus realizadores (em ambos casos os diretores) pelo cinema. E isso é nítido em cada sequência irregular, em cada diálogo canastrão, atuação improvisada ou nítida falta de recurso dos cenários ou figurinos. Esse amor funcionou como um motor que mesmo inconsequente, não deixa de ser uma declaração desnudada e comovente.
Não sabemos a data precisa, não sabemos o motivo, mas o mundo vai mal. O clima desértico domina as paisagens, clãs lutam entre si disputando território, violência e selvageria estabelecem a lei vigente. E é exatamente para esse caldeirão armagedônico que chega nossa protagonista Arlen (Waterhouse), para completar, não imaginamos o motivo do seu exílio forçado nesse Texas desolado. Já logo de início, o filme nos propõe um exercício que iremos repetir durante todos a sua duração. Somos apresentados a alguns conceitos diegéticos que regem aquele universo, nos surpreendemos, buscamos entender como se relacionam os personagens com ele e seus efeitos na narrativa. Assim vamos montando um quebra cabeças complexo e muitas vezes indefinido, porque várias informações nos falta, vamos sendo inseridos naquele ambiente não de uma maneira onisciente como é comum ao expectador, mas de uma forma passiva, amedrontada. Assim entendo Amores Canibais como um filme de atmosfera, com sua coleção de clichês apocalípticos (tribos canibais, escassez de recursos, seitas radicais, comunidades insanas) ele nos propõe a acompanhar uma simples história de amor, ou quase amor, porém em uma situação grotesca. O que não deixa de ser um espectro atual e corrompido de nossas vivências.
Inicialmente o plano do cineasta e ciclista amador Bryan Fogel era registrar um experimento sobre doping esportivo e os mecanismos para mascará-lo. Dessa forma Fogel se propôs a aplicar, nele próprio, um extenso programa de treino e medicações ilegais, assim como monitorar os resultados em suas provas de ciclismo e, ao fim, tentar driblar um exame anti-doping. Essas seriam as bases do seu documentário. Porém, para esse tentame funcionar, era crucial o suporte de algum profissional com a expertise necessária para ministrar o delicado e perigoso coquetel de anabolizantes e hormônios. Assim surge à tela Grigory Rodchenkov, o chefe do laboratório antidoping russo. Ele não só iria viabilizar todo o plano do documentário como também mudar completamente os seus rumos, se transformando em um extenso e audacioso trabalho investigativo que envolveu não só a comissão olímpica russa, como também instituições e laboratórios dos EUA. É muito interessante notar a coragem, quase ingênua, que serviu de motor para que tudo fosse documentado. Digo ingênua, porque era impossível prever a proporção que o filme iria tomar ao final de quase dois anos de filmagens. E aí reside a força de Ícaro. Algo como uma obrigação imparável com a verdade, próximo a uma perseverança quase religiosa com a câmera documental e também com os seus espectadores. Ícaro se afirma como um filme denúncia obrigatório e necessário.
Tonya Harding (Robbie em sua melhor atuação) começou a treinar patinação no gelo ainda criança, incentivada por sua mãe LaVona (Janney). Tempos depois ela se consagra como uma das melhores patinadoras do mundo ao se tornar a primeira mulher americana a completar o Axel Triplo em uma grande competição. Essa pequena sinopse, como todas as outras, não nos conta tudo do filme. Por outro lado, esse resumo, essa meia verdade já nos adianta um interessante fato sobre a natureza de “Eu, Tonya”. Logo no início do filme escutamos Tonya protestar: “E os haters sempre dizem: "Tonya, diga a verdade!" Não existe tal coisa como a verdade. Todos têm sua própria verdade”. A cinebiografia de Tonya Harding investiga os extremos entre a verdade dos fatos e a verdade de cada um. Estabelecendo que sempre existe mais de uma versão para um mesmo acontecimento. Roterísticamente falando, há uma frase do diretor Martin Scorsese que ficou martelando em minha mente, logo após o término da sessão. “Cinema é a importância do que está dentro do quadro e o que está fora.“ O filme é um ótimo exemplo dessa afirmativa, mesmo não sendo da maneira original em que ela foi pensada. Seus meandros narrativos brincam a todo tempo com o espectador, chegando inclusive a nos mostrar algo enquanto conta exatamente o contrário. Ainda nesse campo, é interessante notar o contraste entre o caráter documental e seus clássicos enquadramentos de entrevistas (principalmente os envolvendo a própria Tonya, sua mãe e seu marido), criando um aspecto quase televisivo, e a linha narrativa ficcional, explorando até mesmo, na fantástica cena do tiro de espingarda, a quebra da quarta parede, funcionando mesmo tempo uma ruptura da expectativa e um alívio cômico.
Durante as filmagens do filme “O Mundo de Andy” (Miloš Forman, 1999), muitas horas de gravação dos bastidores foram feitas por Lynne Margulies e Bob Zmuda (namorada e amigo de Andy Kaufman respectivamente). O material girava principalmente em torno da caracterização de Jim Carrey do comediante Andy Kaufman e do cotidiano dos outros atores e da produção. Esse conteúdo seria a base de um documentário, mas temendo processos trabalhistas (e por lobby), os estúdios Universal vetaram a exibição e distribuição das filmagens. Jim & Andy é uma compilação inédita, um documentário secreto, do processo que trouxe Andy e também Tony Clifton de voltas às telas. É gratificante ver de perto a rotina de trabalho de grandes profissionais da indústria cinematográfica como Forman e De Vito, ainda mais considerando o trato que eles tiveram que desenvolver para com Carrey. Perdão. Kaufman, durante as filmagens. Funcionando tanto como análise do processo criativo de um ator como um documentário biográfico, o filme nos expõem a fragilidade de Carrey ao optar por se colocar em “stand by” para incorporar Kaufman e Clifton, não se limitando simplesmente a imitar tom de voz e posturas mas sim, assimilar com exatidão a personalidade e sentimentos da dupla. Além de proporcionar momentos sublimes como o encontro de Carrey/Kaufman com sua filha Maria Colonna. Nascida de um relacionamento adolescente, Colonna não chegou a conhecer o pai em vida. Por fim, e não poderia ser diferente, há a exaltação da atmosfera de deboche criada pelos comediantes, assim como o clima de desconfiança gerado no espectador. Esse último só quebrado durante uma última cena pós-créditos.
Em um orfanato no início do gélido inverno canadense, duas alunas, Kat (Shipka) e Rose (Boynton), deixam de ir para casa durante o feriado, ficando no internato apenas com duas cuidadoras. Em paralelo, a narrativa nos apresenta Joan (Roberts) que acaba de fugir de alguma instituição médica. Logo notamos algo de estranho em Kat, que sempre busca a solidão e parece conversar com uma sinistra silhueta negra que a acompanha. Assim como em outros filmes recentemente lançados do gênero como “A Bruxa”, “Babadook” e “Corra!”. “A Enviada do Mal” possui um claro subtexto que funciona tanto como alegoria, como mote principal. Isso não é novidade ao Terror, mas esse novo pulso de lançamentos deve ser celebrado, pois resgata a origem do horror no cinema: A razão dos nossos medos. Aqui temos três meninas que serão de maneiras distintas tocadas pelo Mal. Por serem “problemáticas, desajustadas, tentadoras”. Exatamente como a sociedade atual. Privando, castrando e podando as mulheres. A fotografia escura, suja e fria tem a função de nos situar fisicamente naquele universo. E é interessante, ao mesmo tempo que doentio, notar o contraste causado pelo aparecimentos de elementos de cores quentes nas cenas que envolvem a sala da caldeira. Como se apenas naquele recinto houvesse calor e aconchego. Destaque para a cena final que ao mesmo tempo encerra a narrativa e a deixa em aberto, nos forçando a pensar e problematizar aquele ciclo demoníaco.
O primeiro longa de Marjane Satrapi fora do território Francês é sem nenhuma dúvida um filme exótico. Completamente diferente de seus últimos filmes, de forte caráter autobiográfico, como Persépolis e Frango Com Ameixas, onde também trabalhou como roteirista, As Vozes conta a história de Jerry (Reynolds), exemplar funcionário em uma fábrica de banheiras, mas que tem crises de angustia, principalmente quando resolve chamar sua colega de trabalho Fiona (Arterton) para sair. Em constante acompanhamento psiquiátrico, Jerry tem como fuga de suas crises, longas conversas com seu cachorro Bosco (Reynolds) e seu gato Mr. Whiskers (Reynolds), o problema surge quando eles começam a responder. O ponto alto narrativo do filme é saber medir precisamente os momentos cômicos (personificado no cão Bosco) e os trágico violentos (revelados por Mr. Whiskers, que tem nítidas inclinações homicidas) e nesse dual equilíbrio há uma análise profunda da natureza humana, principalmente voltada para nossos inexoráveis momentos de desesperos e ansiedade. Note como a brusca diferença na fotografia e até no design de produção sempre nos situam subjetivamente quando Jerry está ou não tomando seus remédios corretamente. Assumindo um claro tom surreal em seu terço final, As Vozes se mostra um filme que mesmo despretensioso e informal consegue ter conteúdo e apresentar uma nova ótica a um tema tão recorrente no cinema.
O primeiro longa do diretor espanhol Eduardo Casanova foi baseado em seu mais conhecido curta "Eat my Shit" de 2015. O filme acompanha a história de 3 mulheres: Laura, uma menina que nasceu sem os olhos, Samantha, que que possui o ânus no lugar da boca e Ana, que tem uma parte de seu rosto com uma severa deformação. Todas buscando se auto afirmar e encontrar o seu lugar em uma sociedade cada vez mais aficionada pela normatização de tudo. É difícil passar ileso a essa obra, talvez até de sua sinopse. Se por um lado Peles é esteticamente funcional e metalinguístico (não atoa a cor dominante observada é um frio tom de rosa claro, cor de pele), por outro é dotado de um roteiro complexo e provocador, evocando temas relacionados ao amor próprio e a aceitação, como também "tabus sexuais" desde prostituição e pedofilia até uma gama de fetiches que chamaria a atenção até mesmo de Calígula. Impossível ignorar o caráter episódico do filme, que gera uma sensação de algo fragmentado e descontinuo, mas assim como a imagem que estampa o seu cartaz, Peles costura organicamente a trajetória de seus protagonistas expondo que ao final somos todos feitos de pele, medo e pele.
Vessel, documentário de Diana Whitten, registra a história do inicio do projeto Women on Waves, organização pró-aborto criada pela Dra. Rebecca Gomperts. A missão da ONG é atender e dar suporte a mulheres que desejam realizar um aborto seguro em países onde a prática é ilegal. Para conseguir funcionar, a clinica do WoW é instalada em uma embarcação (Vessel) e pode operar apenas em águas internacionais. O documentário impressiona já em sua primeira sequencia pela coragem e determinação dessas mulheres. Como é de se esperar, elas não são bem recebidas pela turba conservadora em diversos países aonde chegam. Então a motivação de trabalho de toda equipa é sempre o silencio escondido na gritaria. Silencio de milhares de mulheres com medo, obrigadas a sentir culpa, forçadas a sofrer por parâmetros puramente sócio culturais. O trabalho investigativo jornalístico da diretora é visível na passagem dos anos. À medida que cabelos se tornam brancos, as próprias formas de agir da ONG vão mudando, o leque de ação se torna mais amplo e a embarcação, ainda presente, se torna um símbolo de resistência e sororidade. Um filme necessário e urgente, principalmente para retirar homens, como eu, de sua privilegiada zona de conforto.
No final da Segunda Guerra mundial um grupo de jovens alemães, prisioneiros do derrotado exercito nazista, são obrigados a desenterrar 2 milhões de minas terrestres com as próprias mãos em mais 6 mil quilômetros de linha costeira na Dinamarca. Terra de Minas, indicado a Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2017, é um filme de muitos pontos de vista. Há um arco narrativo muito interessante do filme que é o processo de humanização de seus personagens. Incialmente focado no Sargento Carl (Møller) que não esconde a raiva e escárnio que sente por seus prisioneiros devido ao que eles fizeram ao seu país durante a guerra. Note o quão amedrontador é o seu olhar na cena inicial do filme, ao descobrir uma bandeira na mão de um dos soldados presos. Porém, assim que nos é apresentada a equipe de “especialistas” que irá compor a comitiva do Sargento, temos um primeiro baque. Não estamos mais vendo soldados nazistas, estamos lidando com seres humanos, jovens (máximo de 17 anos), machucados ou doentes, assustados e a milhares de quilômetros de casa. E aí reside a beleza do filme, não explorar dinâmicas de exércitos ou estratégias bélicas, mas sim a rotina de escravos de guerra, crianças tão vitimas quanto às que fazem parte da nação vitoriosa.
Cinema, antes de tudo, é linguagem. Muitas vezes nos esquecemos disso dado o seu caráter de entretenimento. Afinal, uma das bases da Sétima Arte é a comunicação. Life, Animated (Indicado a melhor documentário no Oscar 2017) conta a história de Owen Suskind desde a sua infância e o diagnostico de autismo até o final da adolescência com a sua saída de casa para ir morar sozinho. Mas o cerne do filme se concentra em como animações da Disney foram cruciais para Owen conseguir se expressar e conviver em comunidade. Além de ter um papel importante em educar e informar sobre o Autismo, Life, Animated traz um dos metalinguismos mais belos e poderosos que já vi em documentários. O cinema (narrativa) não somente como uma ferramenta de dialogo, mas como um meio vital de intercomunicação. Impossível não se maravilhar com a cena em que o pai de Owen (Ron Suskind, escritor do livro Life, Animated: A Story of Sidekicks, Heroes, and Autism) conta como, com a ajuda do Iago de Aladdin, teve a sua primeira conversa com filho pós o desenvolvimento do autismo. Infelizmente, no terço final, o filme perde um pouco do foco narrativo ao gastar muito tempo de tela com algumas atividades rotineiras de Owen, mas que mesmo assim cumpre uma função ao mostrar o quão independente ele se tornou ao longo dos anos
Wawa é apaixonada por Dain, neto do líder dos Yakel, porém, contra a sua vontade, ela é oferecida em casamento para selar um acordo de paz com uma tribo inimiga. Eles vão ter que escolher entre seguir juntos ou honrar a tradição secular da ilha de Tanna. O concorrente australiano a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro na edição 2017 do Oscar é um filme, que de tão único, se torna difícil de ser analisado. A escolha de ser rodado inteiramente no idioma nauvhal, em locações de Vanuatu e somente com atores nativos traz uma honestidade à tela que ofusca facilmente todos os pequenos deslizes do longa, como o roteiro simplório e as atuações iniciantes do elenco. A fotografia aproveita intensamente da iluminação natural, criando um ar documental impossível de não ser sentido. Com seus planos belíssimos explorando as paisagens naturais: como a imersiva floresta tropical que rodeia a aldeia e a imponente e hostil planície do vulcão Yasur. Voltando ao roteiro, é interessante notar que embora rudimentar e trivial, se trata de um relato histórico da tribo e seu acontecimento mudou drasticamente os costumes patriarcais vigentes. Destaque para a alegoria explícita com a família real inglesa, onde se nota que noções de “sociedade civilizada” devem ser sempre questionadas e revistas.
Quando fui ver A paixão de Cristo de Mel Gibson, lembro-me de sair do cinema e um amigo me dizer que não gostou. Perguntei por que e ele disse que não gostou da história. Sorri. A não ser que façam uma completa releitura de filmes bíblicos (como existem vários) quase todo o mundo ocidental (para não me arriscar muito) sabe quem são os personagens principais, o esqueleto da história e o que irá acontecer. Eu, como muitos, de família católica sabia um pouco mais, já conhecia a agressividade e sede de vingança do deus do Antigo Testamento. Cedi-me à Noé de Aronofsky, justamente por trazer o divino ao seio do ser humano. Há muita bondade no filme, mas ela nasce nas pessoas e não por medo de deus, mas por compaixão aos seus semelhantes. Nóe é claramente um homem bom e justo e o filme nos mostra detalhadamente sua corrupção, causada por um fardo inimaginável. Aqui não existem heróis. Entrando nos aspectos técnicos, notei todos os pontos fortes de outros filmes do diretor. A fotografia fantástica, mas mesmo assim realista de Arvore da Vida, o dilema e medo do protagonista, assim como Pi e O Lutador e a total desconstrução e queda de uma célula familiar por suas próprias escolhas como em Réquiem para um Sonho e Cisne Negro. Claro que o filme não se limita a ser revisionista, mas me mostrou um cinema autoral, seja em estética ou em conteúdo.
Existem bons filmes de biografias pífias e péssimos sobre pessoas lendárias. Clube de Compras Dallas é um filme fabuloso e tocante sobre um babaca. Posso tomar um soco por classificar Ron Woodroof dessa forma, mas para mim foi isso o que mais me envolveu e emocionou. O caminho que o protagonista toma é algo como uma saga divina, onde há a selvageria, o sofrimento, o conhecimento e a compaixão. Dessa forma sempre entendemos as atitudes dos personagens, mesmo quando não concordamos, elas são sinceras e autenticas à essência da trama. Não há como não relacionar isso as atuações espetaculares de Leto e Mcconaughey, notar o carinho que surge entre os dois e as quebras de paradigmas que isso envolve são a liga necessária para fazer do filme um dos melhores lançamentos do ano. Destaque impossível de não citar para a cena em que Ron chora no carro. Mesmo em um plano fechado, conseguimos sentir a dor e solidão dele neste momento, um homem em uma estrada com um só caminho a seguir, sem encruzilhadas ou desvios.
À Meia-Noite Levarei Sua Alma
3.9 286 Assista AgoraEm uma pequena cidade do interior, o sádico e desumano coveiro Josefel Zanatas, conhecido como Zé do Caixão (Mojica), é temido e odiado. Ele é obcecado por gerar o filho perfeito, que possa lhe dar a continuidade de seu sangue, e assim se tornar imortal. Para tal objetivo, ele vai até às últimas consequências, mas verá que suas vítimas irão cobrar uma cara vingança. Filme fundamental para fãs de terror, “À Meia-noite Levarei sua Alma” foi uma produção das mais peculiares já feitas. Com um orçamento extremamente reduzido, às custas da venda de todos os bens do diretor/roteirista/produtor/protagonista, José Mojica Marins foi quase a falência, sendo obrigado a vender os direitos do filme antes mesmo da estreia. Embora o filme tenha sido um sucesso de público, não rendeu nenhum vintém ao seu criador. Um dos pontos fundamentais de seu sucesso, fruto da genialidade de Mojica, é o tom subversivo e anárquico do filme. Zé do Caixão é um verdadeiro monstro: pega o que quer e consegue tudo que objetiva, passando por cima de leis, regras e costumes, igreja ou Estado. A atmosfera de horror gore é apavorante e amedrontadora, exatamente como o período histórico da época, além de extremamente realista e inovadora, inaugurando o gênero no Brasil. “À Meia-noite Levarei sua Alma” é uma demoníaca jóia na história do cinema nacional. Um filme que custou a ser compreendido e admirado pela crítica local, mas que sempre atingiu os espectadores em seus medos mais profundos e secretos, exatamente como queria Mojica.
O Que Fazemos nas Sombras
4.0 663 Assista Agora4 vampiros ancestrais dividem moradia em uma república na periferia da Wellington dos dias de hoje. O cotidiano da vida de Viago (Waititi), um dândi do século XVII, Deacon (Brugh), o caçula do grupo com apenas 183 anos, Vladislav (Clement), o famoso conde romeno e Petyr (Fransham), um nosferatu de 8 mil, é registrado por uma equipe de filmagem (devidamente protegida com crucifixos) em um estilo reality show documentário. Problemas como uma pilha de louça suja de 5 anos, encontrar sangue humano em festa noturnas, lidar com a luz solar e não conseguirem adequar a maneira de se vestirem aos padrões sociais são mostrados de maneira rotineira e hilária. “O que Fazemos nas Sombras” é uma comédia única por saber contrapor situações do cotidiano com o fabulário geral coletivo que temos sobre vampiros. O roteiro é fluido e simples, nos colocando como espectadores dos personagens, como em um Big Brother macabro. É surpreendentemente engraçado ver conversas sobre temas como morte, dilaceração e lacaios sexuais com tamanha serenidade e desdém. Destaque para as atuações dos protagonistas, sempre no limite do absurdo, mas fiéis aos personagens propostos. “O que Fazemos nas Sombras” é uma surpresa ao gênero e um deleite aos amantes dos sugadores de sangue.
O Anjo da Noite
3.7 28Ana (Egrei), uma estudante de psicologia, é contratada como babá pela matriarca de uma família que vive em um casarão isolado no meio das montanhas de Petrópolis. Ela é deixada sozinha com as crianças e o vigilante Augusto (Gomes); logo começa a receber insistentes telefonemas ameaçadores durante a noite e nota que existe algo de perturbador na casa. “O Anjo da Noite” é um filme único. Nos aspectos da direção, é impressionante como Khouri consegue nos passar tanto com tão pouco. Basta um plano detalhe em um olhar de Ana para nos sentirmos representados subjetivamente na cena. Já que, assim como a protagonista, não sabemos se há realmente uma presença maligna na casa, se é tudo fruto da imaginação e do cansaço ou se é a própria casa a fonte do medo. Há um momento que o vigia Augusto diz: "Eu só não gosto é da casa… É bonita, mas não é amiga da gente”. A fotografia do italiano Antonio Meliande (imortalizado posteriormente nas Pornochanchadas) é bela e funcional, imprimindo, mesmo em locações externas, planos claustrofóbicos e angustiantes ‒ vide o constante enquadramento do teto da casa pela visão de Ana. “O Anjo da Noite” é um clássico esquecido do horror nacional, uma pérola que merece ser relembrada e vista.
Catfish
4.0 346O “documentário” nos mostra quando Nev Schulman finalmente vai conhecer a sua namorada virtual, Megan, que conheceu pelo Facebook. Particularmente, sempre desejei ver um filme de terror que fosse verdadeiramente um documentário. Aqui, “Catfish” chega bem perto. De estrutura bastante simples, quase rudimentar, o filme nunca se preocupa por parecer amador ou improvisado. Os artifícios acabam funcionando perfeitamente para o que é proposto, passando um constante clima de descoberta e surpresa, muitas vezes assustador. Dessa forma, nos identificamos quase que instantaneamente com o protagonista, compartilhando de suas ansiedades e medos. Ao longo do filme, vamos descobrindo os fatos juntos a Nev, até chegarmos ao clímax do filme, que, apesar de previsível, impressiona pela forma como trabalha o seu desfecho, distanciando-se de uma visão moralista, não querendo julgar ou constranger os seus personagens, mas sim explicá-los. Assim, o filme mostra suas angústias mais íntimas e suas motivações profundas. “Catfish” é um filme atual que consegue vencer as barreiras dos tradicionais mockumentary, já que, por se tratar de uma trama tão realista e delicada, pouco importa se é uma história verídica ou não.
Sombras da Vida
3.8 1,3K Assista AgoraApós a sua morte, um homem (Casey Affleck) retorna a sua casa e a de sua esposa (Rooney Mara). Desviando de uma aparência fantasmagórica esperada, este carrega um clássico lençol, que se arrasta junto a ele. Aqui, altera-se também a perspectiva usual de filmes sobrenaturais: acompanhamos o ponto de vista do que escapa ao humano, de quem é levado, em silêncio, rumo ao esquecimento. O medo, em “A Ghost Story”, é existencialista, do tempo menor da vida humana. A solidão e a angústia de quem vai ao lado da tristeza e lamento de quem fica: o luto em, literalmente, diferentes planos. Abordando as dificuldades que temos de aceitar o fim, as mudanças, o filme reflete sobre a efemeridade que nos é imposta pela existência, enquanto insiste a esperança de encontrarmos algo que se lembre de nós.
O Sétimo Selo
4.4 1,0KDepois de um longo período, um cavaleiro (Von Sydow) retorna das Cruzadas a sua nação pátria e a encontra morrediça, arrasada pela Peste Negra. Completamente desolado, a Morte (Ekerot) aparece a sua frente, inclinada a levá-lo. Tentando ganhar tempo, ele a desafia para uma partida de xadrez que decidirá se sua hora chegou ou não. Tudo depende da sua vitória no jogo e a Morte concorda com o desafio, já que não perde nunca. “O Sétimo Selo” teve seu roteiro baseado em uma peça também escrita por Bergman, lançada em um período auge de temor pós-guerra, além do crescente medo em relação à guerra fria e sua constante ameaça de uma hecatombe nuclear. O filme faz um paralelo entre essa época, que parecia beirar um apocalipse, e a devastada civilização europeia medieval. Ao propor um jogo com a Morte para tentar atrasá-la, o Cavaleiro questiona não somente a sua fé e os caminhos que ela o levou, como também a sua própria existência em um mundo tão duro e cruel. A espera da conclusão profética, que é a abertura do sétimo selo, se torna não somente um presságio apocalíptico divino, mas uma noção irremediável que a todo homem o fim é invencível e que, independente de como, sua morte será pesarosa e solitária. Não há salvação no sagrado ou no profano, apenas o eco de orações mudas e impostoras. Tão atual como no ano de seu lançamento, “O Sétimo Selo” se mantém como uma tocha em brasa a desnudar hipocrisias religiosas contemporâneas em uma sociedade que sempre parece estar a beira do colapso.
Aos Teus Olhos
3.4 288 Assista AgoraRubens (de Oliveira) é um professor de natação infantil que tem uma ótima relação com seus alunos ‒ em especial, crianças ‒ e não raramente estabelece uma relação próxima e de amizade com muitas delas. Um de seus alunos, Alex (Mello), está passando por um momento bastante conturbado: seus pais estão se separando e ele se vê cada vez mais distante das pessoas que o rodeiam. Diante da situação, Rubens não demora a tentar se aproximar do garoto para ajudá-lo. No entanto, as coisas mudam completamente quando Alex diz à sua mãe que o professor lhe deu um beijo na boca no vestiário. Acho impossível fazer uma indicação de “Aos Teus Olhos” sem inicialmente falar de sua fotografia. O diretor de fotografia, Azul Serra, trabalha com uma iluminação realista, quase imperceptível, nos entregando planos que, ao mesmo tempo que são frios e desoladores, conseguem extrair cada milímetro de beleza de paredes azulejadas e fundos infinitos azul piscina. Além desse, outro ponto importantíssimo para sua narrativa está na montagem. Há uma transição, por exemplo, que corta de Rubens no fundo da piscina para uma chaleira de água fervendo, que é fantástica por conseguir criar um paralelo da situação vivida pelo protagonista. Tentando fugir de clichês maniqueístas, “Aos Teus Olhos” não nos entrega respostas, antes busca uma análise complexa das personagens. Desse modo, não estabelece mocinhos nem vilões, fazendo, portanto, uma análise delicada e imparcial de comportamentos humanos em sociedade e do potencial tóxico que o desespero e a incomunicabilidade podem produzir.
Toc Toc
3.7 597Seis pacientes se encontram, por um erro de agenda, na sala de espera do consultório do renomado Dr. Palomero. Entre acertos e desentendimentos, eles descobrem que todos sofrem de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). O problema é que o psiquiatra nunca chega à terapia e pouco a pouco eles são obrigados a se entenderem e tirarem suas próprias conclusões. Baseado em uma peça homônima espanhola de bastante sucesso, “Toc Toc” consegue levar o ritmo dos palcos para a tela. A montagem é ágil, o compasso é rápido, as piadas fluem com uma exatidão milimétrica. Os personagens, com suas diferentes condições, trazem uma riqueza de timbres e nuances aos diálogos e à mise-en-scène como um todo, nos envolvemos completamente. A cada sequência o filme se renova e o riso brota naturalmente. Mesmo se tratando de uma comédia, é difícil não refletir um pouco e problematizar o cerne nas gags envolvidas, o TOC. Porém, a naturalidade com que as personagens reagem aos tipos de transtornos uns dos outros acaba por nos aproximar deles, trazendo luz ao assunto. Como é esperado em uma sociedade, primeiro há o pré-julgamento, afastamento, compreensão e, por fim, empatia
Interlúdio
4.0 269 Assista AgoraAlicia Huberman (Bergman) vê o pai sendo preso, acusado de ser um espião alemão. Logo em seguida, ela recebe a visita de um agente do governo (Grant) que pergunta se ela concorda em ser uma espiã americana no Rio de Janeiro, onde nazistas amigos do pai dela estão operando secretamente Para dar continuidade ao plano americano, ela se vê obrigada a casar com um antigo conhecido alemão, mas se apaixona pelo seu contato no governo americano. Em 1946, Alfred Hitchcock já tinha dirigido quase 40 longa metragens, no entanto, ainda estava se estabelecendo como mestre do suspense. “Interlúdio” mostra claramente essa tendência e, mais importante, um nítido talento. Os elementos marcantes em suas obras estão todos aí. Desde características mais fundamentais como o uso de planos detalhes ou close em olhares como instrumento narrativo, a trilha sonora envolvente e sombria e um trabalho de montagem milimétrico assumindo muitas vezes um caráter construtivista até particularidades típicas de Hitchcock que viraram um constante como suas aparições escondidas (aqui ele é um dos homens bebendo champanhe na festa), protagonistas loiras frias e reprimidas e o uso sutil do humor (vide cena final). Apesar de não configurar entre as obras primas do diretor Interlúdio é um celeiro de ideias do suspense e merece ser lembrado e revisto.
O Destino de Uma Nação
3.7 723 Assista Agora1940, Inglaterra, em plena invasão alemã na França durante o período mais duro da Segunda Guerra Mundial. Esse é o cenário em que o até então parlamentar Winston Churchill (Oldman) irá assumir o cargo de primeiro ministro britânico. É impossível não pensar na linda sessão dupla que “O Destino de Uma Nação” faz com Dunkirk (Nolan, 2017), mas mostrando pontos de vista completamente diferentes sobre um mesmo momento histórico. Outra característica compartilhada pelos dois filmes e, sem dúvida, onde “O Destino de Uma Nação” consegue mostrar a sua grandiosidade, é o cuidado e a beleza de sua composição visual e, principalmente, mise en scène. A delicadeza de certos planos do filme é encantadora, assim como recorrentes rimas visuais como as cenas que mostram a rotina da população inglesa em frente ao parlamento, mas em diferentes momentos (tempos de paz e de guerra). Ainda destacando essas duas essas cenas, é muito interessante notar a função narrativa que o contraste da fotografia desempenha, nos mostrando a diferença do ânimo das pessoas com a evolução da guerra, assim como vários enquadramentos do protagonista, sempre em planos fechados, claustrofóbicos, indicando o isolamento e a pressão sofrida por ele. Porém, se podemos exaltar a Forma e sua funcionalidade, a recíproca não é verdadeira se falando de Conteúdo, já que, ao final do filme, nos falta a sensação de termos conhecido Churchill como uma pessoa completa e não apenas um personagem histórico. Pontuado por diversas passagens que, mesmo inverossímeis (cena do metrô), ajudam a compor a persona, “O Destino de Uma Nação” reside em um meio termo entre filme ficcional e biográfico,tendo mais acertos no primeiro.
The Room
2.3 492É um grande momento na vida de Johnny (Wiseau). Ele tem um ótimo trabalho em um banco de São Francisco, uma namorada que o ama (Danielle no papel de Lisa) e o melhor amigo que poderia escolher (Sestero no papel de Mark). Tudo vai bem, até a véspera de seu casamento. Quando Lisa e Mark começam a se enxergar de uma forma diferente. Particularmente, tenho uma grande estima por alguns péssimos filmes que já vi, não somente pela memória afetiva, mas pelo aprendizado que alguns deles me proporcionaram. Filmes ruins muitas vezes nos abrem os olhos de uma maneira única. Dito isso, consigo classificar The Room como o pior filme que já vi. Logo pude provar esta minha premissa mais uma vez. Seja pela montagem completamente descontínua e confusa ou por atuações que sempre nos deixam constrangidos e incrédulos, o filme nos apresenta uma série de problemas, facilmente identificados e muitas vezes de aparente simples correção. Mas então porque ele se transformou em um filme ícone? Além, claro, de incitar o deboche, como uma irônica ode ao lixo, The Room causa fascínio ao nos provocar com a pergunta: Porque alguém fez esse filme? A resposta definitiva eu não sei, mas penso que ele pode facilmente ser considerado o Plano 9 (Ed Wood, 1959) dessa geração e assim como seu irmão cinquentista, eles compartilham algo que é inspirador. Esses filmes foram feitos pelo amor sincero e visceral de seus realizadores (em ambos casos os diretores) pelo cinema. E isso é nítido em cada sequência irregular, em cada diálogo canastrão, atuação improvisada ou nítida falta de recurso dos cenários ou figurinos. Esse amor funcionou como um motor que mesmo inconsequente, não deixa de ser uma declaração desnudada e comovente.
Amores Canibais
2.4 393 Assista AgoraNão sabemos a data precisa, não sabemos o motivo, mas o mundo vai mal. O clima desértico domina as paisagens, clãs lutam entre si disputando território, violência e selvageria estabelecem a lei vigente. E é exatamente para esse caldeirão armagedônico que chega nossa protagonista Arlen (Waterhouse), para completar, não imaginamos o motivo do seu exílio forçado nesse Texas desolado. Já logo de início, o filme nos propõe um exercício que iremos repetir durante todos a sua duração. Somos apresentados a alguns conceitos diegéticos que regem aquele universo, nos surpreendemos, buscamos entender como se relacionam os personagens com ele e seus efeitos na narrativa. Assim vamos montando um quebra cabeças complexo e muitas vezes indefinido, porque várias informações nos falta, vamos sendo inseridos naquele ambiente não de uma maneira onisciente como é comum ao expectador, mas de uma forma passiva, amedrontada. Assim entendo Amores Canibais como um filme de atmosfera, com sua coleção de clichês apocalípticos (tribos canibais, escassez de recursos, seitas radicais, comunidades insanas) ele nos propõe a acompanhar uma simples história de amor, ou quase amor, porém em uma situação grotesca. O que não deixa de ser um espectro atual e corrompido de nossas vivências.
Ícaro
4.0 125 Assista AgoraInicialmente o plano do cineasta e ciclista amador Bryan Fogel era registrar um experimento sobre doping esportivo e os mecanismos para mascará-lo. Dessa forma Fogel se propôs a aplicar, nele próprio, um extenso programa de treino e medicações ilegais, assim como monitorar os resultados em suas provas de ciclismo e, ao fim, tentar driblar um exame anti-doping. Essas seriam as bases do seu documentário. Porém, para esse tentame funcionar, era crucial o suporte de algum profissional com a expertise necessária para ministrar o delicado e perigoso coquetel de anabolizantes e hormônios. Assim surge à tela Grigory Rodchenkov, o chefe do laboratório antidoping russo. Ele não só iria viabilizar todo o plano do documentário como também mudar completamente os seus rumos, se transformando em um extenso e audacioso trabalho investigativo que envolveu não só a comissão olímpica russa, como também instituições e laboratórios dos EUA. É muito interessante notar a coragem, quase ingênua, que serviu de motor para que tudo fosse documentado. Digo ingênua, porque era impossível prever a proporção que o filme iria tomar ao final de quase dois anos de filmagens. E aí reside a força de Ícaro. Algo como uma obrigação imparável com a verdade, próximo a uma perseverança quase religiosa com a câmera documental e também com os seus espectadores. Ícaro se afirma como um filme denúncia obrigatório e necessário.
Eu, Tonya
4.1 1,4K Assista AgoraTonya Harding (Robbie em sua melhor atuação) começou a treinar patinação no gelo ainda criança, incentivada por sua mãe LaVona (Janney). Tempos depois ela se consagra como uma das melhores patinadoras do mundo ao se tornar a primeira mulher americana a completar o Axel Triplo em uma grande competição. Essa pequena sinopse, como todas as outras, não nos conta tudo do filme. Por outro lado, esse resumo, essa meia verdade já nos adianta um interessante fato sobre a natureza de “Eu, Tonya”. Logo no início do filme escutamos Tonya protestar: “E os haters sempre dizem: "Tonya, diga a verdade!" Não existe tal coisa como a verdade. Todos têm sua própria verdade”. A cinebiografia de Tonya Harding investiga os extremos entre a verdade dos fatos e a verdade de cada um. Estabelecendo que sempre existe mais de uma versão para um mesmo acontecimento. Roterísticamente falando, há uma frase do diretor Martin Scorsese que ficou martelando em minha mente, logo após o término da sessão. “Cinema é a importância do que está dentro do quadro e o que está fora.“ O filme é um ótimo exemplo dessa afirmativa, mesmo não sendo da maneira original em que ela foi pensada. Seus meandros narrativos brincam a todo tempo com o espectador, chegando inclusive a nos mostrar algo enquanto conta exatamente o contrário. Ainda nesse campo, é interessante notar o contraste entre o caráter documental e seus clássicos enquadramentos de entrevistas (principalmente os envolvendo a própria Tonya, sua mãe e seu marido), criando um aspecto quase televisivo, e a linha narrativa ficcional, explorando até mesmo, na fantástica cena do tiro de espingarda, a quebra da quarta parede, funcionando mesmo tempo uma ruptura da expectativa e um alívio cômico.
Jim & Andy: The Great Beyond
4.2 162 Assista AgoraDurante as filmagens do filme “O Mundo de Andy” (Miloš Forman, 1999), muitas horas de gravação dos bastidores foram feitas por Lynne Margulies e Bob Zmuda (namorada e amigo de Andy Kaufman respectivamente). O material girava principalmente em torno da caracterização de Jim Carrey do comediante Andy Kaufman e do cotidiano dos outros atores e da produção. Esse conteúdo seria a base de um documentário, mas temendo processos trabalhistas (e por lobby), os estúdios Universal vetaram a exibição e distribuição das filmagens. Jim & Andy é uma compilação inédita, um documentário secreto, do processo que trouxe Andy e também Tony Clifton de voltas às telas.
É gratificante ver de perto a rotina de trabalho de grandes profissionais da indústria cinematográfica como Forman e De Vito, ainda mais considerando o trato que eles tiveram que desenvolver para com Carrey. Perdão. Kaufman, durante as filmagens.
Funcionando tanto como análise do processo criativo de um ator como um documentário biográfico, o filme nos expõem a fragilidade de Carrey ao optar por se colocar em “stand by” para incorporar Kaufman e Clifton, não se limitando simplesmente a imitar tom de voz e posturas mas sim, assimilar com exatidão a personalidade e sentimentos da dupla. Além de proporcionar momentos sublimes como o encontro de Carrey/Kaufman com sua filha Maria Colonna. Nascida de um relacionamento adolescente, Colonna não chegou a conhecer o pai em vida.
Por fim, e não poderia ser diferente, há a exaltação da atmosfera de deboche criada pelos comediantes, assim como o clima de desconfiança gerado no espectador. Esse último só quebrado durante uma última cena pós-créditos.
A Enviada do Mal
3.0 284 Assista AgoraEm um orfanato no início do gélido inverno canadense, duas alunas, Kat (Shipka) e Rose (Boynton), deixam de ir para casa durante o feriado, ficando no internato apenas com duas cuidadoras. Em paralelo, a narrativa nos apresenta Joan (Roberts) que acaba de fugir de alguma instituição médica. Logo notamos algo de estranho em Kat, que sempre busca a solidão e parece conversar com uma sinistra silhueta negra que a acompanha. Assim como em outros filmes recentemente lançados do gênero como “A Bruxa”, “Babadook” e “Corra!”. “A Enviada do Mal” possui um claro subtexto que funciona tanto como alegoria, como mote principal. Isso não é novidade ao Terror, mas esse novo pulso de lançamentos deve ser celebrado, pois resgata a origem do horror no cinema: A razão dos nossos medos. Aqui temos três meninas que serão de maneiras distintas tocadas pelo Mal. Por serem “problemáticas, desajustadas, tentadoras”. Exatamente como a sociedade atual. Privando, castrando e podando as mulheres. A fotografia escura, suja e fria tem a função de nos situar fisicamente naquele universo. E é interessante, ao mesmo tempo que doentio, notar o contraste causado pelo aparecimentos de elementos de cores quentes nas cenas que envolvem a sala da caldeira. Como se apenas naquele recinto houvesse calor e aconchego. Destaque para a cena final que ao mesmo tempo encerra a narrativa e a deixa em aberto, nos forçando a pensar e problematizar aquele ciclo demoníaco.
As Vozes
3.2 340O primeiro longa de Marjane Satrapi fora do território Francês é sem nenhuma dúvida um filme exótico. Completamente diferente de seus últimos filmes, de forte caráter autobiográfico, como Persépolis e Frango Com Ameixas, onde também trabalhou como roteirista, As Vozes conta a história de Jerry (Reynolds), exemplar funcionário em uma fábrica de banheiras, mas que tem crises de angustia, principalmente quando resolve chamar sua colega de trabalho Fiona (Arterton) para sair. Em constante acompanhamento psiquiátrico, Jerry tem como fuga de suas crises, longas conversas com seu cachorro Bosco (Reynolds) e seu gato Mr. Whiskers (Reynolds), o problema surge quando eles começam a responder. O ponto alto narrativo do filme é saber medir precisamente os momentos cômicos (personificado no cão Bosco) e os trágico violentos (revelados por Mr. Whiskers, que tem nítidas inclinações homicidas) e nesse dual equilíbrio há uma análise profunda da natureza humana, principalmente voltada para nossos inexoráveis momentos de desesperos e ansiedade. Note como a brusca diferença na fotografia e até no design de produção sempre nos situam subjetivamente quando Jerry está ou não tomando seus remédios corretamente. Assumindo um claro tom surreal em seu terço final, As Vozes se mostra um filme que mesmo despretensioso e informal consegue ter conteúdo e apresentar uma nova ótica a um tema tão recorrente no cinema.
Peles
3.4 590 Assista AgoraO primeiro longa do diretor espanhol Eduardo Casanova foi baseado em seu mais conhecido curta "Eat my Shit" de 2015. O filme acompanha a história de 3 mulheres: Laura, uma menina que nasceu sem os olhos, Samantha, que que possui o ânus no lugar da boca e Ana, que tem uma parte de seu rosto com uma severa deformação. Todas buscando se auto afirmar e encontrar o seu lugar em uma sociedade cada vez mais aficionada pela normatização de tudo. É difícil passar ileso a essa obra, talvez até de sua sinopse. Se por um lado Peles é esteticamente funcional e metalinguístico (não atoa a cor dominante observada é um frio tom de rosa claro, cor de pele), por outro é dotado de um roteiro complexo e provocador, evocando temas relacionados ao amor próprio e a aceitação, como também "tabus sexuais" desde prostituição e pedofilia até uma gama de fetiches que chamaria a atenção até mesmo de Calígula. Impossível ignorar o caráter episódico do filme, que gera uma sensação de algo fragmentado e descontinuo, mas assim como a imagem que estampa o seu cartaz, Peles costura organicamente a trajetória de seus protagonistas expondo que ao final somos todos feitos de pele, medo e pele.
Vessel
4.5 18 Assista AgoraVessel, documentário de Diana Whitten, registra a história do inicio do projeto Women on Waves, organização pró-aborto criada pela Dra. Rebecca Gomperts. A missão da ONG é atender e dar suporte a mulheres que desejam realizar um aborto seguro em países onde a prática é ilegal. Para conseguir funcionar, a clinica do WoW é instalada em uma embarcação (Vessel) e pode operar apenas em águas internacionais.
O documentário impressiona já em sua primeira sequencia pela coragem e determinação dessas mulheres. Como é de se esperar, elas não são bem recebidas pela turba conservadora em diversos países aonde chegam. Então a motivação de trabalho de toda equipa é sempre o silencio escondido na gritaria. Silencio de milhares de mulheres com medo, obrigadas a sentir culpa, forçadas a sofrer por parâmetros puramente sócio culturais.
O trabalho investigativo jornalístico da diretora é visível na passagem dos anos. À medida que cabelos se tornam brancos, as próprias formas de agir da ONG vão mudando, o leque de ação se torna mais amplo e a embarcação, ainda presente, se torna um símbolo de resistência e sororidade.
Um filme necessário e urgente, principalmente para retirar homens, como eu, de sua privilegiada zona de conforto.
Terra de Minas
4.2 260 Assista AgoraNo final da Segunda Guerra mundial um grupo de jovens alemães, prisioneiros do derrotado exercito nazista, são obrigados a desenterrar 2 milhões de minas terrestres com as próprias mãos em mais 6 mil quilômetros de linha costeira na Dinamarca.
Terra de Minas, indicado a Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2017, é um filme de muitos pontos de vista. Há um arco narrativo muito interessante do filme que é o processo de humanização de seus personagens. Incialmente focado no Sargento Carl (Møller) que não esconde a raiva e escárnio que sente por seus prisioneiros devido ao que eles fizeram ao seu país durante a guerra. Note o quão amedrontador é o seu olhar na cena inicial do filme, ao descobrir uma bandeira na mão de um dos soldados presos. Porém, assim que nos é apresentada a equipe de “especialistas” que irá compor a comitiva do Sargento, temos um primeiro baque. Não estamos mais vendo soldados nazistas, estamos lidando com seres humanos, jovens (máximo de 17 anos), machucados ou doentes, assustados e a milhares de quilômetros de casa. E aí reside a beleza do filme, não explorar dinâmicas de exércitos ou estratégias bélicas, mas sim a rotina de escravos de guerra, crianças tão vitimas quanto às que fazem parte da nação vitoriosa.
Vida, Animada
3.9 59Cinema, antes de tudo, é linguagem. Muitas vezes nos esquecemos disso dado o seu caráter de entretenimento. Afinal, uma das bases da Sétima Arte é a comunicação. Life, Animated (Indicado a melhor documentário no Oscar 2017) conta a história de Owen Suskind desde a sua infância e o diagnostico de autismo até o final da adolescência com a sua saída de casa para ir morar sozinho. Mas o cerne do filme se concentra em como animações da Disney foram cruciais para Owen conseguir se expressar e conviver em comunidade. Além de ter um papel importante em educar e informar sobre o Autismo, Life, Animated traz um dos metalinguismos mais belos e poderosos que já vi em documentários. O cinema (narrativa) não somente como uma ferramenta de dialogo, mas como um meio vital de intercomunicação. Impossível não se maravilhar com a cena em que o pai de Owen (Ron Suskind, escritor do livro Life, Animated: A Story of Sidekicks, Heroes, and Autism) conta como, com a ajuda do Iago de Aladdin, teve a sua primeira conversa com filho pós o desenvolvimento do autismo. Infelizmente, no terço final, o filme perde um pouco do foco narrativo ao gastar muito tempo de tela com algumas atividades rotineiras de Owen, mas que mesmo assim cumpre uma função ao mostrar o quão independente ele se tornou ao longo dos anos
Tanna
3.3 73Wawa é apaixonada por Dain, neto do líder dos Yakel, porém, contra a sua vontade, ela é oferecida em casamento para selar um acordo de paz com uma tribo inimiga. Eles vão ter que escolher entre seguir juntos ou honrar a tradição secular da ilha de Tanna. O concorrente australiano a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro na edição 2017 do Oscar é um filme, que de tão único, se torna difícil de ser analisado. A escolha de ser rodado inteiramente no idioma nauvhal, em locações de Vanuatu e somente com atores nativos traz uma honestidade à tela que ofusca facilmente todos os pequenos deslizes do longa, como o roteiro simplório e as atuações iniciantes do elenco. A fotografia aproveita intensamente da iluminação natural, criando um ar documental impossível de não ser sentido. Com seus planos belíssimos explorando as paisagens naturais: como a imersiva floresta tropical que rodeia a aldeia e a imponente e hostil planície do vulcão Yasur. Voltando ao roteiro, é interessante notar que embora rudimentar e trivial, se trata de um relato histórico da tribo e seu acontecimento mudou drasticamente os costumes patriarcais vigentes. Destaque para a alegoria explícita com a família real inglesa, onde se nota que noções de “sociedade civilizada” devem ser sempre questionadas e revistas.
Noé
3.0 2,6K Assista AgoraQuando fui ver A paixão de Cristo de Mel Gibson, lembro-me de sair do cinema e um amigo me dizer que não gostou. Perguntei por que e ele disse que não gostou da história. Sorri. A não ser que façam uma completa releitura de filmes bíblicos (como existem vários) quase todo o mundo ocidental (para não me arriscar muito) sabe quem são os personagens principais, o esqueleto da história e o que irá acontecer. Eu, como muitos, de família católica sabia um pouco mais, já conhecia a agressividade e sede de vingança do deus do Antigo Testamento. Cedi-me à Noé de Aronofsky, justamente por trazer o divino ao seio do ser humano. Há muita bondade no filme, mas ela nasce nas pessoas e não por medo de deus, mas por compaixão aos seus semelhantes. Nóe é claramente um homem bom e justo e o filme nos mostra detalhadamente sua corrupção, causada por um fardo inimaginável. Aqui não existem heróis. Entrando nos aspectos técnicos, notei todos os pontos fortes de outros filmes do diretor. A fotografia fantástica, mas mesmo assim realista de Arvore da Vida, o dilema e medo do protagonista, assim como Pi e O Lutador e a total desconstrução e queda de uma célula familiar por suas próprias escolhas como em Réquiem para um Sonho e Cisne Negro. Claro que o filme não se limita a ser revisionista, mas me mostrou um cinema autoral, seja em estética ou em conteúdo.
Clube de Compras Dallas
4.3 2,8K Assista AgoraExistem bons filmes de biografias pífias e péssimos sobre pessoas lendárias. Clube de Compras Dallas é um filme fabuloso e tocante sobre um babaca. Posso tomar um soco por classificar Ron Woodroof dessa forma, mas para mim foi isso o que mais me envolveu e emocionou. O caminho que o protagonista toma é algo como uma saga divina, onde há a selvageria, o sofrimento, o conhecimento e a compaixão. Dessa forma sempre entendemos as atitudes dos personagens, mesmo quando não concordamos, elas são sinceras e autenticas à essência da trama. Não há como não relacionar isso as atuações espetaculares de Leto e Mcconaughey, notar o carinho que surge entre os dois e as quebras de paradigmas que isso envolve são a liga necessária para fazer do filme um dos melhores lançamentos do ano. Destaque impossível de não citar para a cena em que Ron chora no carro. Mesmo em um plano fechado, conseguimos sentir a dor e solidão dele neste momento, um homem em uma estrada com um só caminho a seguir, sem encruzilhadas ou desvios.