Ali por 2006, tive a chance de ver esse filme que mudou a forma como eu via cinema até então. Viria começar a frequentar cineclubes coisa de dois anos depois, mas ali por junho de onze anos - quando o SBT ainda tinha uma progrmação razoável de filmes aos sábado à noite, tive a chance de ver esse filme que pelo trailer me fez pensar em diversas coisas legais que na época eu estava lendo. A principal delas: Franz Kafka, a quem fui apresentado praticamente na mesma época por uma professora do ensino médio e provocava em mim um contato completamente diferente com a literatura, que até então tinha sido algo bem convencional para mim. O filme de Cameron Crowe, assim como "A Metamorfose", me mostrou outra forma de trabalhar personagens, temporalidade e o universo onírico que nos compõe e nos determina. Minha cinefilia e meu verdadeiro amor pela literatura nasceram ali, enquanto eu estava com tuberculose em um ano entendiante e longo. As frases, a trilha sonora, a fotografia de beleza raríssima, a artificialidade da existência como algo abordado tanto no plano do realismo quanto no da ficção científica me fizeram entender muito do que estava ao meu lado. E penso que a personagem Sofia foi a primeira a causar em mim algo similar ao amor que, posso dizer, até persigo por essas pequenas coisas da vida, como brincadeiras infantis e falta de floreamentos na hora das coisas poéticas da existência. Quando o filme terminou naquele dia, eu fiquei deprimido, pois queria mais. Sentia que se ele tivesse umas dez horas de duração, eu seguiria ali assistindo, sem cansar, sem reclamar. Mas no final, com o olhar de David Aames despertando, sinto que ganhei um dos melhores presentes dados pela arte a mim. E hoje, revendo esse filme tanto tempo depois, sinto que a poesia do mesmo segue igual a mim. É preciso escolher entre uma existência vivida em inautenticidade ou algo verdadeiro a todo instante. Muitas vezes, por mais que o sonho vire pesadelo, seguimos ali por medo da mudança ou por costume a velhas dores. O drama de Aames em "Vanilla Sky" é o drama diário de todos nós que muitas vezes nos afundamos em uma existência a qual julgamos como escolhida por nós, mas na verdade foi imposta pelo temor diante da angústia. Em uma realidade controlada pela tecnologia que visa a facilitar tudo, a mente parece se rebelar sem que percebamos isso e o conflito entre realidade e onirismo gera o pesadelo. Nesse sentido, "Vanilla Sky' assume uma realidade similar à de "Solaris", com a vontade de sonhar sendo obliterada e com o indivíduo passando a viver uma realidade criada que se assume verdadeira. E angústia, mesmo quando tentada ser anulada, mostra seus sinais. Há a necessidade de uma situação-limite para despertar o ser para uma escolha de libertação. Muitos acabam se afundando na inautenticidade justamente pela falta de tal situação e assim, aos poucos, a infelicidade toma conta das pessoas, que julgam-se donas de vidas livres de qualquer forma de opressão social ou pessoal. "Vanilla Sky" é um libelo em prol da liberdade humana, o qual assim como os livros de Kafka me fazem pensar em todas as opressões que não percebemos sofrer e reduzem a individualidade a nada, a subjetividade a um vazio sem sentido.
"Fracture", que saiu no Brasil com o título de "Um Crime de Mestre", me fez pensar em uma HQ bem legal que li há vários anos chamada "A Piada Mortal" e que cria um contraponto entre Batman e Coringa, em argumento feito por Alan Moore no qual aparentemente o ponto principal de diferença entre um herói e um vilão é o superego. No longa de Gregory Holbit ocorre esse contraponto entre duas mentes em pólos morais opostos, ambas marcadas por uma inteligência monstruosa. Ao mesmo tempo, há o contraponto entre duas gerações de atores que possuem um estilo a meu ver bastante similar. Tanto Anthony Hopkins quanto Tyan Gosling são artistas cujo maior charme está em um expressionismo pouco verbal e, paradoxalmente, pouco expressivo. O ar blasé de Ryan e a frieza de Anthony caem muito bem nos diálogos e enredo intricados que envolvem um praticante de feminicídio que brinca com a justiça, criando um verdadeiro quebra-cabeça insolúvel para ser desmantelado, e um advogado ambicioso que põe em risco uma carreira promissora pelo simples prazer de resolver um crime. Em ambas as figuras, vemos a genialidade que se deleita com os jogos intricados da existência, duas consciências em conflito num jogo de gato e rato, com perseguições, idas e vindas que parecem não ter fim, resolvidas com base em um detalhe simples que passa despercebido por todas as forças de segurança. "Fracture" é um filme de desenrolar fluido e belo, com uma trilha simples e que conjuga bem com o clima do filme como um todo. O título inglês recupera bem esse espírito de cisão existente e já tornado clichê dentro do cinema do conflito envolvendo dois seres que ao mesmo tempo que são divergentes, possuem muito de comum - Al Pacino e Robert de Niro fizeram bem demais isso em "Fogo contra Fogo" também, mas em ritmo mais frenético e menos dialógico. A graça de filmes como o protagonizado por Ryan Gosling - um de meus atores favoritos - e Anthonu Hopkins, uma lenda viva, é mostrar que mesmo os formatos que já parecem engessados podem ser renovados para criar boas histórias para falar da profundeza da dimensão existencial humana.
"A Noite" é mais um dos filmes da Trilogia da Incomunicabilidade de Antonioni e nele o uso dos enquadramentos, algo que caracteriza a obra do diretor italiano, atinge o máximo de destreza. Cada quadro serve para contar histórias paralelas que se passam ao mesmo tempo da história central, criando a sensação interessante de contraponto entre hermetismo e amplitude, uma imersão no universo psicológico das personagens enquanto o mundo lá fora segue com suas vicissitudes. A imagem nos filmes de Antonioni tem mais poder que a palavra e cada cena possui um requinte metalinguístico, como se quisesse reclamar para o cinema o estatuto de mídia independente da literatura, mesmo em filmes como "Blow Up", que são adaptações de obras literárias. A linguagem imagética amplia o isolamento da personagens, transformando-as em seres fechados em si mesmos, estúpidos diante do mundo, sem compreensão mútua alguma. Os olhares e os momentos de carícia têm algo de louco e descontrolado, perturbador, e a câmera assume uma espécie de onipresença seletiva em relação ao que é digno de ser visto. O final da história parece ilustrar bem isso: o casal apaixonado em uma cena de amor que mais parece uma luta é aos poucos ignorados por um travelling que mais parece um olhar resignado, melancólico, descontente com a realidade de joguetes que analisamos por duas horas diante de nós. Assim como em "A Aventura", cujo foco central é um sumiço sem motivo claro, esse filme mostra um diretor altamente preocupado com a opacidade da consciência humana, que mesmo no ser-para-outro parece ser incapaz de se definir precisamente e de entender o outro como subjetividade plena. Nunca o princípio filosófico da consciência em busca da destruição do outro ganhou tanto sentido para mim quanto nesta película.
"O Invasor", de Beto Brant, é um dos grandes filmes nacionais de todos os tempos por fugir da velha máxima da violência espetacularizada, mesmo o filme em si sendo um belo espetáculo no tocante à psicologia dos personagens envolvidos. O enredo é muito bem construído e deixa brechas propositais, como a moça que se envolve com o assassino do próprio pai, o casamento que acaba sem ser mostrado, bem como o clima de violência psicológica que mostra sem mostrar a violência física que permeia a relação de três sócios que se envolvem em uma rede crimes em busca de crescimento econômico. Nesse sentido, todo um contexto típico dos filmes e da sociedade brasileira é exibido de forma mais sutil, evidenciando aqui não uma problemática social já batida e para a qual o cinema não tem solução - pois como obra de arte não pode fazer nada exceto exibir e provocar. O contexto psicológico aqui, que remete um pouco ao famoso romance russo "Crime e Castigo" e faz pensar numa versão mais macabra de "Crimes e Pecados" de Woody Allen é o mais importante e junto com uma fotografia sufocante e abafada - similar à de "Estorvo" de Rui Guerra - mostra o quanto o ser humano atormentado pela culpa e pelo medo da ruína pessoa se afunda em seus próprios dramas existenciais e aos poucos adentra loucura. Destaques de atuação para Paulo Miklos, que ficou muito bem no papel do assassino sem pose viril Anísio, e para Mariana Ximenes, provocativamente linda no papel da alienada Marina, que mesmo diante da morte do pai só quer saber de curtir a vida e ter um barato.
"Umberto D", de Victorio de Sica, é um filme sobre desespero, sobre injustiça social visceral e sobre lealdade. A todo momento no filme vemos presente a pergunta filosófica acerca do suicídio, em voga na época da feitura do filme. Aqui, porém, ela não se soma a um desespero humano abstrato e sim a uma situação concreta de abandono. Umberto é um idoso cujo único laço afetivo é o pequeno cão Flike. É o animal quem serve de elo final de Umberto com uma existência que desde os primeiros momentos do filme mostra uma crueldade imensa, em especial para os mais velhos.
A fragilidade da figura do idoso é colocada ao lado da fragilidade da mulher grávida em condições insalubres - figura comum do capitalismo mais selvagem e que pode se tornar moda em nosso país em breve - e da espécie animal, que capturada só pode ser resgatada e cuidada mediante o pagamento de uma taxa de soltura. A luta de classes se mostra com uma burguesia que cuidando de uma pocilga passa o tempo todo a expressar discursos de ódio para os mais pobres, mesmo deles dependendo para ter sua riqueza produzida.
"Umberto D" é um filme de ar existencial e de crítica social. Mostra como o sistema capitalista, com seu discurso de liberdade econômica, é na verdade uma máquina de assassinato dessa mesma liberdade. Os vestuários militares vistos de relance ao longo do filme mostram a sobrevivência do fascismo após a segunda grande guerra e a música do filme, aliada ao belo uso de focos de câmera, faz com que o longa de uma tristeza que transcende a geralmente percebida nos filmes que falam da relação entre homem e cães.
A tristeza aqui não é pela morte ou possível morte de um labrador ou outra espécie de ar elegante. A tristeza é de saber que a fragilidade de dois seres é que garante que ambos não pereçam diante de um sistema cruel e cinzento como a própria cidade que parece querer engolir a ambos, com seus dilemas próprios, a cada instante.
T2 Trainspotting é sobre o terror de o tempo passar e a impressão de que nada mudou. E provavelmente não vai mudar. O passado não é rememorado, mas vivido ainda - como algumas que parecem servir de deja vú do primeiro filme indicam -, pois as mesmas manifestações de ser de outrora seguem a ocorrer. Mark Renton fizera das drogas, vinte anos antes, uma tentativa de viver em êxtase e de superar a simples cotidianidade do mundo consumista de artificialidade padronizada. A corrida na esteira com ar épico de superação, abruptamente cortada com uma queda patética, mostra que o caminho da glória não leva a lugar algum no sentido de um porto seguro onde a sublimação existiria. A existência se repete em ciclos sem sentido e sobreviver parece ser o maior desafio para homens não mais jovens perdidos nas possibilidades limitadas do mundo materialista. O fracasso deixa de ser uma condição existencial - no sentido de impossibilidade de plenitude de ser - para assumir uma essência coagulada, opaca, onipresente. Desesperançada.
Tudo é belo no bom "Drive", de Nicolas Winding Refn. As cenas dentro do carro mostram a fusão entre o motorista interpretado por Ryan Gasling e o veículo da forma mais plena possível. Raramente vemos os carros em perseguição numa perspectiva distante, mas sim o motorista com seu olhar focado sendo captado com maestria enquanto manobra a máquina, parte de seu corpo e ser. O ar silencioso do piloto cai muito com o par romântico Irene, representado pela adorável Carey Mulligan. Entre os dois quase não há diálogos, apenas trocas de olhares, iluminação intensa a passar o calor do amor e uma trilha que casa bem demais com a relação dos dois interrompida pelo ressurgimento do marido de Irene, recém saído da prisão. O filme se revela bastante existencialista como os bons filmes sobre o universo criminoso, mas sem se aprofundar demais nos bastidores desse contexto. O silêncio do piloto revela uma vontade de se trancar em si mesmo e os quadros frontais parecem capturar, nos seus menores traços expressivos, a essência de cada manifestação de seu ser torturado. Por seu amor por Irene, na tentativa de salvar a relação desta com o marido, o piloto se coloca em perigo e abandona a sua indiferença costumeira para se engajar em algo. Aqui percebemos como as cenas de violência de ar realista podem conter extrema beleza estética com a riqueza de detalhes da câmera mais uma vez servindo de abertura da existência para a visão sem pudor da mesma. Nesse sentido, mais do que um filme de gangster tradicional, "Drive" é algo sobre a imensidão da vida humana, algo indicado logo no plano inicial focado na cidade e seus diversos destinos cruzados. A filmagem do longa é repleta de sensibilidade ao falar da violência e parece querer dar conta do que é o ser em sua sinfonia de gestos, ações e atitudes, mesmo dentro de um contexto nada convidativo à poesia, no qual a morte está a cada momento com seu peso a deixar sua presença.
A epopeia de Terry Doyle em Sindicato de Ladrões. A primeira cena e a abertura de Sindicato de Ladrões me fizeram pensar que estava diante de um bom e velho filme de gângster, explorando as entranhas de organizações criminosas, algo que rendeu e segue rendendo ainda bons produtos na forma de filme para nosso deleite. Mas logo de cara fica claro que mesmo a premissa consagrada e um enredo relativamente são pano de fundo para uma série de questões sociais e até mesmo filosóficas a serem abordadas dentro do longa dirigido Elia Kazan. Terry é o típico jovem perdido na vida que vê no crime uma chance de não morrer de fome. Usado pela gangue de Johnny Friendly para atrair para a morte um suposto delator dos crimes desse grupo, que controla as docas de Nova York com a fachada de um sindicato dos portuários dali, Terry começa a questionar o código de honra usado pelos criminosos sem, contudo, demonstrar disposição em deles se afastar. Mas ao entrar em contato com a irmã de Joye Doley, o rapaz morto pelo grupo na primeira cena do filme, Terry passa por uma profunda mudança existencial e começa a querer ter autonomia de sua existência. Até então, ele vivera sob a tutela do irmão, Charley, que trabalha para Johnny. Por causa desse controle, teve de inclusive abrir mão de sua carreira de boxeador anos antes e agora vive como uma espécie de garoto de recados do sindicato que de forma corrupta subordina quem deveria proteger a condições miseráveis de trabalho. Mas no momento em que se aproxima de Edie, Terry é forçado a sair de sua zona de conforto e começa a ver a necessidade de encarar o que vivera até então como uma grande farsa maquiada pelo jeito agressivo e valentão, muito bem interpretado pelo grande Marlon Brando. Nesse sentido, o amor surge dentro de uma obra sobre a máfia como um elemento de sensibilidade. Não cai, porém, no romantismo tolo de obras que visam a colocar o sentimento de união entre duas pessoas como algo sagrado e perseguido a todo custo. O filme de Kazan mostra o acaso como uma ligação entre duas pessoas que se ligam a partir do diálogo e do conhecimento mútuo. Edie, com sua postura doce e delicada, mostra-se cheia de força, disposta a enfrentar o grupo criminoso, enquanto Terry, com sua postura de homem dono de si, é em verdade um ser fraco e acovardado. Outra figura bem interessante no filme é o padre Barry. Após o primeiro assassinato ligado à procura do silêncio das vítimas de Johnny, este começa a se reunir com trabalhadores no intuito de desvendar e expor os crimes cometidos. Diante de nós, surge uma figura dona de um discurso materialista dialético a cobrar dos trabalhadores uma união e uma consciência coletiva para que estes comecem a enfrentar os maus tratos pelos quais passam. Barry é um ser que une o discurso cristão a uma prática de enfrentamento das desigualdades sociais, algo bem óbvio se analisarmos de forma objetiva o que foi proferido por Cristo nas sagradas escrituras cristãs. Ao contrário de muitos pegadores de então e de hoje, o foco de Barry não é a prosperidade e sim a justiça social, o equilíbrio entre as pessoas e a valorização do bem comum. As palavras do padre passam a fazer sentido na vida de Terry no momento em que seu envolvimento com Edie, a qual ele deveria a priori vigiar para o grupo de Johnny, se torna mais profundo. É o momento em que o discurso político de um ser começa a ganhar sentido aos ouvidos do outro, quando uma tragédia particular se mostra como o fator de compreensão necessário para uma mudança de atitude perante a existência. Terry, como Sartre preso nos campos nazistas, representa o despertar de uma pessoa que se choca diante de uma realidade que até então não o afetara de algum modo. É o momento em que este jovem descobre como suas ações são vis, mesmo que indiretamente, e como ele mesmo pode ser o alvo de um assassinato por silenciamento ou por não estar mais nos planos um dia. Após ter a coragem de denunciar os crimes e ver o irmão morto por sua rebeldia, Terry deve lidar com a indiferença dos colegas de classe que passam a ignorá-lo por medo de represálias da gangue de Johnny. Ainda assim, Terry se decide a enfrentar a vergonha pública e mesmo partir para a violência contra Johnny, o que quase lhe causa uma morte por espancamento coletivo. O final do filme representa uma espécie de alegoria da caverna platônica em nossos tempos modernos, mostrando como as pessoas se negam a enxergar a opressão que sofrem, mesmo quando têm diante de si alguém empenhado em expô-la. É preciso que Terry, ensanguentado, dirija-se até o portão do local de embarque das mercadorias para que a massa se motive a também a trabalhar sem mais o controle do sindicato. Tal encerramento possui muito de épico e é construído de modo muito interessante, evidenciando a dimensão de arte do filme por conta do exagero e da música. Ainda assim, é comovente por expressar a necessidade de luta e de resistência da opressão que deve estar em nossos passos a cada momento. A caminhada cambaleante do Terry ensanguentado não é uma solução final para os dramas sociais presenciados naquele pequeno espaço de Nova York, mas serve como a narrativa de Cadeira, de Saramago, conto que mostra como mesmo que de forma lenta e gradual a luta deve ser constante para mostrarmos ao outro como a opressão sofrida por um grupo não é algo natural e tem dimensões históricas. O filme como um todo é um convite à reflexão aos códigos de honra seguidos por nós. É mais importante ser visto como delator por um grupo com medo de morrer ou ser capaz de vencer esse medo em alguma escala para que as coisas mudem de alguma forma? Kazan conseguiu dirigir um grande filme que começa seguindo o bom clichê do filme de gângster e depois usa o clichê do amor como transformação e salvação, mas, de forma hábil, o diretor e sua equipe transformam todo o conjunto da obra num imenso painel humano e existencial o qual denuncia como devemos nos levantar diante de crimes cometidos contra nós, os quais tentam se vender como a própria natureza das coisas neste mundo.
"Diários de Motocicleta" é mais do que uma cinebiografia e mais do que um roadmovie, mesmo que seja a mistura dos dois. É um duplo encontro com a América Latina arrasada pela dominação europeia que hoje, com o medo dos conflitos oriundos de identidades desesperadas, mostra-se marcada por uma beleza ampla, diversa e selvagem. Por mais que o foco seja Ernesto Guevara, o filme encanta pelo choque de ir de uma região quente para uma região fria, de uma região repleta de riqueza para locais miseráveis. O então médico em formação começa a descobrir a injustiça do homem pelo homem, algo que até então a sua vida burguesa lhe ocultara. E aos poucos o espírito revolucionário começa a surgir na mente de um jovem amante das letras. Por mais que se questione os métodos da revolução cubana, fica bem claro que diante de tanta coisa podre discutir racionalmente ou colocar flores nas baionetas é algo meio inviável. A beleza do filme atinge justamente o seu auge quando vemos no olhar de Gael, que encarna Guevara, o olhar de impotência e de fúria diante das desigualdades sociais e da pobreza. Anos depois, ele pegaria em armas, mas ali era apenas um jovem chocado demais por se deparar com aquilo que não esperava na América que lera em seus livros. O filme todo é muito bom, tendo bons elementos também de filme de formação. A fotografia, as atuações, os diálogos, o uso de cartas pessoais do futuro revolucionário, os momentos de monólogo, a trilha sonora colaboram para nos depararmos com um retrato profundo do que é a América Latina. O uso de atores reais, mostrando bem a disparidade étnica entre dois jovens burgueses a andar de motocicleta e a pé pelo continente americano é outro fator importante a ser destacado, pois parece que o tempo todo esse belíssimo longa - que tanto demorei a ver - nos faz o convite a ver o cinema como deleite e reflexão ao mesmo tempo.
Vi "Amor em Fuga" sem saber que ele é o quinto de uma série de filmes que começa com "Os Incompreendidos", mas Truffaut se mostra tão genial que em lances de flashback por meio do discurso direto das personagens e cenas dos filmes anteriores acabamos sabendo os pontos centrais de cada filme e como eles culminaram no que estamos vendo agora.
Antoine é claramente um alter ego de Truffaut e o filme explora bem questões psicanalíticas sem se tornar verborrágico. Os diálogos são bem ricos e há uma veia cômica no filme que pelos meus estudos recentes sobre a carnavalização literária muito me tem chamado a atenção. É interessante ver como o amor se mostra um tema ligado às raízes existenciais e familiares mais precoces de um ser humano e como conflitos em períodos iniciais de nossa vida nos levam a procurar formas de compensar o vazio causado então.
O filme mostra bem que são a arte e o amor as formas que encontramos nesse mundo de nos tornamos plenos, mas como o amor é feito também de momentos de conflitos e momentos sem brilho, muitas vezes é a arte quem assume as rédeas de nossa vida, por dar-nos uma imagem de plenitude a qual não temos como ter em nossa existência.
O legal desse filme é que se parte de uma premissa simples - um cara que rouba por questões financeiras e por gosto pela adrenalina - para abordar algumas questões existenciais interessantes e dar vazão a um romantismo bem heterodoxo. Ademais, "O Batedor de Carteiras", de Robert Bresson, cita "Crime e Castigo" de Dostoiévski, algo que seria feito novamente por seres como Woody Allen, mostrando todo o poder que essa obra literária tem em suas reflexões acerca dos crimes das almas que se consideram grandes demais. O ponto do filme de Bresson, além da bela fotografia e da narrativa elíptica, são os jogos de câmera, os quais em recortes bem rápidos sempre focam nas mãos, criando como que um balé das mesmas nas cenas bem elaboradas de furtos. O filme também se utiliza demais do poder de inferência do espectador, mostrando personagens aparentemente fora de contexto andando em cenas a esmo, mas as quais foram mostradas antes ou provavelmente serão mostradas depois, tornando-se então peças importantes para o enredo. Ousaria dizer que filmes como esse certamente influenciaram os criadores de séries como Breaking Bad no uso da câmera como elemento narrativo primordial.
Viver a Vida é uma série de pequenas digressões narrativas e agressivas acerca do que é o cinema. São músicas cortadas no momento em que começamos a nos empolgar com elas. São momentos de diálogo em que a câmera nos mostra apenas as reações da protagonista, ignorando o interlocutor que fala, fazendo-nos entrar profundamente no universo de uma pessoa afundada em seus pensamentos. Pensamentos estes que se mostram sem se mostrar plenamente, numa opacidade que me faz pensar num romance existencialista que dialoga com o teatro sem ser teatral. São os momentos de clímax colocados em momentos pouco convencionais e o final abrupto a lembrar o bom livro de Clarice Lispector "O Lustre". Por sinal, assim como a autora brasileira que adorava quebrar paradigmas e discutir acerca dos limites da internet, Goddard abre espaço para uma bela reflexão em forma de diálogo sobre o poder que a linguagem tem de nos mostrar o absurdo da vida. A história é narrada de forma entrecortada, sempre levando o espectador a preencher lacunas com as suas inferências e poder de conclusão e atentos vemos a evolução de uma personagem que descobre no submundo da prostituição o seu poder de sedução. Se resistimos ao estranhamento causado e pensamos na forma abrupta como a história é construída, percebemos com se criou um clima de opacidade existencial bem interessante, a mostrar como aspectos existenciais em momentos de desespero afundam o mundo ao redor. Creio ter achado mais uma inspiração para Chico Buarque e seu bom narrador-câmera na fantástica novela "Benjamin", que merece também ser lida por quem não tem medo de atrevimentos.
É de admirar o propósito pessoal de Woody Allen em produzir praticamente um filme por ano há mais de quarenta anos. Mas se esse propósito impressiona pelo vigor de alguém a produzir com idade avançada, ele decepciona pela quantidade de fracassos ou feitos medianos presentes dentro da obra de Woody. "Escorpião de Jade" é um exemplo de fracasso. Forçado, com um enredo muito clichê e apelativo, com as piadas absurdas de sempre apelando para um machismo desnecessário, fica difícil crer que este filme foi produzido pelo mesmo cara que fez "Annie Hall" e "Manhatan". Não há uma atuação digna de nota ou mesmo uma cena que possa ser analisada de forma mais carinhosa. Se alguém se meter a conhecer Woody Allen por este filme, vai pensar que o mito do cinema é um sujeito medíocre e super valorizado.
Acho que a expressão "soco no estômago" define bem "Deus e o Diabo na Terra do Sol". O uso de moradores do povoado onde gravaram-se as cenas combinado aos monólogos teatrais, com uma fotografia em preto e branco que parece tornar ainda mais tórrida a paisagem do nordeste brasileiro permitem o bom uso de temas pertinentes ao processo cultural daquela região: o banditismo social e o messianismo, com fortes referências a Canudos, são elementos de crítica social muito forte que, numa tentativa de fuga da censura da ditadura militar, se volta contra uma "república" abstrata, sem citar este ou aquele mandatário. Outro ponto incrível são as cenas documentais presentes em diversos pontos da narrativa, expondo de maneira rica e bela o cotidiano religioso do povo pobre das regiões do semi-árido. Mais uma prova da qualidade do cinema nacional.
"A Pele que Habito" é um filme atrevido. Em duas horas de duração, aborda sem medo uma série de fatos curiosos e absurdos, como perversões sexuais, crimes de estupro, a loucura e dramas familiares. Tudo isso com uma boa pitada de drama tipicamente espanhol, diálogos bem ricos e fluídos e uma fotografia incrível, detalhista, que por algum motivo me deu saudades de Breaking Bad. Bom incentivo para conhecer mais da obra de Almodóvar.
Esse filme é uma verdadeira sinfonia em homenagem à cidade em que se passa. Lembra os bons quadrinhos de Will Eisner mostrando que mesmo dentro de uma selva de pedra há amor e há poesia. Usa a música e a fotografia de forma primorosa além de ter diálogos muito bem feitos em diversas partes. E a cena do casal de velhinhos reacende a esperança em um amor para a vida toda, que mesmo sem o erotismo de outrora mantém o companheirismo e o bem querer. Lindo demais.
A grande temática de "Tudo Pode Dar Certo" é a questão do acaso: ele é quem rege, segundo a ótica de Woody Allen a qual se mostra na figura do personagem Boris, protagonista da trama. As questões amorosas ganham um relevo interessante no filme e ganham até mesmo uma conotação crítica em relação à moral cristã mais conservadora: temos um casal cristão, John e Marietta, que após um casamento infeliz se separam e assume outras formas de relacionamentos, ela um triângulo, ele um casamento igualitário, tornando-se desse jeito mais felizes e plenos. O filme, como os mais recentes de Woody Allen, não tem a grandeza dos mais clássicos, mas ainda assim possui uma interessante técnica narrativa com o uso do que chamamos de "mockumentary", com a personagem falando diretamente com a plateia acerca do que está sendo mostrado no filme. (Algo usado em séries como Malcolm in the Middle e Modern Family.) Woody mistura esse recurso com o monólogos típicos dos shows de comédia americana, usados com maestria na série Seinfeld, cujo produtor é Larry David, ator que interpreta Boris. Larry por sinal é o ponto alto do longa-metragem, que se mostra bem mediano. Claramente vemos nele uma tentativa bem sucedida de reproduzir o Allen de filmes como Annie Hall. Creio que a imitação ficou boa por Larry ser desse meio humorístico mais dialógico e existencial, como fica claro na produção de Seinfeld. Ademais, com essa temática do acaso e dos amores conturbados, Allen consegue um humor agridoce similar ao de Milan Kundera em alguns bons momentos de seus bons livros. Se a vida é regida pelo acaso e encontramos um ser especial, devemos fazer de tudo para aproveitar esse bom momento enquanto ele dura, pois podemos um belo dia acordar sem a chance de aproveitá-lo. O acaso está cheio de pequenos encontros e arranjos complexos e isso deve nos fazer ter otimismo perante a vida. Quem sabe conseguimos aproveitá-la melhor se deixamos de colocar nas mãos de um ser superior a responsabilidade pelo que ocorre conosco. (Ao menos, tenho feito isso.) Se há um momento em que Allen possui uma mensagem bela coroada com um final feliz doce em sua fimografia é nesse longa-metragem que vale a pena ser visto mesmo sem o brilho de outrora.
A construção do enredo de "As Horas", de Stephen Daldry é bem interessante, entrecruzando três histórias em tempos diferentes ligadas pelo mesmo problema: a depressão somada à infelicidade conjugal. Vemos nas grandes atuações do trio Moore, Kidman e Streep o modo como a depressão se soma a questionamentos existenciais profundos e transforma a existência de todos ao redor um grande inferno. Além disso, vemos a arte e a realidade mantendo um belo diálogo em diversos momentos, com recorrências bem interessantes, como o pássaro morto no qual Virginia se depara em seu futuro ou com os ovos estalados em um contexto de tensão a ser disfarçado pela festa que ocorrerá na sequência. Isso faz com que a obra seja mais uma das muitas a mostrar como a arte está sempre, mesmo não querendo, em diálogo com a realidade, não procurando das respostas, mas sempre provocar. É um filme que pode ser analisado por diversos aspectos, mas sem dúvida alguma o psicológico é o que mais se sobressai nesse belo filme.
Apesar de ficar cansativo na última hora e vinte minutos, o filme é muito em seu dinamismo. Algo legal em Tarantino é a preocupação em criar personagens que marcam pelos trejeitos, pelo discurso e pelas atitudes. Django marca pelo olhar furioso de um homem que se descobriu homem no momento em que foi liberto por um caçador de recompensas com espírito nobre e inimigo da escravidão, o qual por sua vez marca pela sua intrepidez elegante e ligeira no gatilho. Muito legal a amizade surgida entre os dois após Django ajudar o caçador, que por sua vez decide ajudá-lo a recuperar o seu amor perdido.
O retrato do racismo é bastante cru e selvagem. Mas Tarantino parece pouco se importar em dar uma solução a ele. Vemos aqui mais um elemento de metalinguagem do diretor, como dizendo que a arte não tem obrigação alguma de dar respostas prontas. Ela provoca e nos faz pensar em quantos de nós, se pudessem, resolveriam todos os seus problemas pelas suas próprias mãos e em quantos de nós ignoram causas sociais, como a escravidão e o racismo, para pensarmos apenas em romantismo. Nesse sentido, Django consegue ser uma história que faz uma interesse crítica social e existencial do comportamento racista, em especial na figura do personagem de Di Caprio, mas ao mesmo se mostra em uma homenagem aos filmes de western e aos dramas românticos.
O exagero no filme, assim como ocorre em Kill Bill, é uma forma de mostrar a todos que aquilo é cinema, local em que todo exagero é permitido. Tarantino parece querer que nunca esqueçamos do fato óbvio de que a arte em si não tem obrigação de ser verdadeira e nos faz sempre lembrar de estarmos diante de uma realidade sonho e de absurdo, o que nos causa poesia. Uma pena que o filme não consegue manter o mesmo fôlego de outras produções dele, talvez pelo excesso de tempo, o qual gera cansaço em certos momentos. Ainda assim, é um filme para se ver e cultivar um pouco mais de amor pela técnica cinematográfica.
Não há muito o que dizer de um filme que cita logo de cara Henry Miller e faz clara alusão aos romances de Kafka, em especial "O Processo" e "O Castelo", além de uma fotografia que faz a cidade, com toda a sua suntuosa selva de pedra, mostrar-se como algo esmagador, exceto que ele é genial. A sensação de perdição e de absurdo também é muito convincente e a histeria de cada personagem é algo que certamente cada um de nós já viu em algum rosto em algum momento. Mais um bom filme de Scorsese a estabelecer um belo diálogo com a literatura.
PS: mais alguém viu um quê de Woody Allen nos gestos do protagonista? Quase um Alvy Singer menos loquaz aquele jovem.
Inevitável deixar as lágrimas virem à tona na cena final. É um enredo bem narrado, mas que serve de pano de fundo para um elogio à nobreza e uma bela crítica à vida movida por aparências de uma cidade grande. Somente um grande marxista como Chaplin para fazer algo do gênero.
Impossível ver esse filme e não lembrar de Kerouac. No fundo, por mais que saibamos que não temos como viver longe das amarras do convívio social cheio de falsidades, acharíamos interessante fazer uma viagem de conhecimento pessoal como a empreendida no filme. Promove uma série de reflexões interessantes como os valores de nossa sociedade e o modo como a chamada família tradicional falha no sentido de ser fonte de felicidade ao ser humano, funcionando mais como um teatro do absurdo do que realmente um seio de amor.
David Fincher e Trent Reznor é um combo que funciona bem demais. Bons diálogos, boa atuação, uma bela análise da milenar misoginia nossa de cada dia e um filme que mesmo longo não se torna em nenhum momento cansativo.
Vanilla Sky
3.8 2,0K Assista AgoraAli por 2006, tive a chance de ver esse filme que mudou a forma como eu via cinema até então. Viria começar a frequentar cineclubes coisa de dois anos depois, mas ali por junho de onze anos - quando o SBT ainda tinha uma progrmação razoável de filmes aos sábado à noite, tive a chance de ver esse filme que pelo trailer me fez pensar em diversas coisas legais que na época eu estava lendo.
A principal delas: Franz Kafka, a quem fui apresentado praticamente na mesma época por uma professora do ensino médio e provocava em mim um contato completamente diferente com a literatura, que até então tinha sido algo bem convencional para mim. O filme de Cameron Crowe, assim como "A Metamorfose", me mostrou outra forma de trabalhar personagens, temporalidade e o universo onírico que nos compõe e nos determina. Minha cinefilia e meu verdadeiro amor pela literatura nasceram ali, enquanto eu estava com tuberculose em um ano entendiante e longo.
As frases, a trilha sonora, a fotografia de beleza raríssima, a artificialidade da existência como algo abordado tanto no plano do realismo quanto no da ficção científica me fizeram entender muito do que estava ao meu lado. E penso que a personagem Sofia foi a primeira a causar em mim algo similar ao amor que, posso dizer, até persigo por essas pequenas coisas da vida, como brincadeiras infantis e falta de floreamentos na hora das coisas poéticas da existência.
Quando o filme terminou naquele dia, eu fiquei deprimido, pois queria mais. Sentia que se ele tivesse umas dez horas de duração, eu seguiria ali assistindo, sem cansar, sem reclamar. Mas no final, com o olhar de David Aames despertando, sinto que ganhei um dos melhores presentes dados pela arte a mim. E hoje, revendo esse filme tanto tempo depois, sinto que a poesia do mesmo segue igual a mim.
É preciso escolher entre uma existência vivida em inautenticidade ou algo verdadeiro a todo instante. Muitas vezes, por mais que o sonho vire pesadelo, seguimos ali por medo da mudança ou por costume a velhas dores. O drama de Aames em "Vanilla Sky" é o drama diário de todos nós que muitas vezes nos afundamos em uma existência a qual julgamos como escolhida por nós, mas na verdade foi imposta pelo temor diante da angústia.
Em uma realidade controlada pela tecnologia que visa a facilitar tudo, a mente parece se rebelar sem que percebamos isso e o conflito entre realidade e onirismo gera o pesadelo. Nesse sentido, "Vanilla Sky' assume uma realidade similar à de "Solaris", com a vontade de sonhar sendo obliterada e com o indivíduo passando a viver uma realidade criada que se assume verdadeira. E angústia, mesmo quando tentada ser anulada, mostra seus sinais.
Há a necessidade de uma situação-limite para despertar o ser para uma escolha de libertação. Muitos acabam se afundando na inautenticidade justamente pela falta de tal situação e assim, aos poucos, a infelicidade toma conta das pessoas, que julgam-se donas de vidas livres de qualquer forma de opressão social ou pessoal.
"Vanilla Sky" é um libelo em prol da liberdade humana, o qual assim como os livros de Kafka me fazem pensar em todas as opressões que não percebemos sofrer e reduzem a individualidade a nada, a subjetividade a um vazio sem sentido.
Um Crime de Mestre
3.8 729"Fracture", que saiu no Brasil com o título de "Um Crime de Mestre", me fez pensar em uma HQ bem legal que li há vários anos chamada "A Piada Mortal" e que cria um contraponto entre Batman e Coringa, em argumento feito por Alan Moore no qual aparentemente o ponto principal de diferença entre um herói e um vilão é o superego. No longa de Gregory Holbit ocorre esse contraponto entre duas mentes em pólos morais opostos, ambas marcadas por uma inteligência monstruosa.
Ao mesmo tempo, há o contraponto entre duas gerações de atores que possuem um estilo a meu ver bastante similar. Tanto Anthony Hopkins quanto Tyan Gosling são artistas cujo maior charme está em um expressionismo pouco verbal e, paradoxalmente, pouco expressivo. O ar blasé de Ryan e a frieza de Anthony caem muito bem nos diálogos e enredo intricados que envolvem um praticante de feminicídio que brinca com a justiça, criando um verdadeiro quebra-cabeça insolúvel para ser desmantelado, e um advogado ambicioso que põe em risco uma carreira promissora pelo simples prazer de resolver um crime.
Em ambas as figuras, vemos a genialidade que se deleita com os jogos intricados da existência, duas consciências em conflito num jogo de gato e rato, com perseguições, idas e vindas que parecem não ter fim, resolvidas com base em um detalhe simples que passa despercebido por todas as forças de segurança.
"Fracture" é um filme de desenrolar fluido e belo, com uma trilha simples e que conjuga bem com o clima do filme como um todo. O título inglês recupera bem esse espírito de cisão existente e já tornado clichê dentro do cinema do conflito envolvendo dois seres que ao mesmo tempo que são divergentes, possuem muito de comum - Al Pacino e Robert de Niro fizeram bem demais isso em "Fogo contra Fogo" também, mas em ritmo mais frenético e menos dialógico.
A graça de filmes como o protagonizado por Ryan Gosling - um de meus atores favoritos - e Anthonu Hopkins, uma lenda viva, é mostrar que mesmo os formatos que já parecem engessados podem ser renovados para criar boas histórias para falar da profundeza da dimensão existencial humana.
A Noite
4.2 102"A Noite" é mais um dos filmes da Trilogia da Incomunicabilidade de Antonioni e nele o uso dos enquadramentos, algo que caracteriza a obra do diretor italiano, atinge o máximo de destreza. Cada quadro serve para contar histórias paralelas que se passam ao mesmo tempo da história central, criando a sensação interessante de contraponto entre hermetismo e amplitude, uma imersão no universo psicológico das personagens enquanto o mundo lá fora segue com suas vicissitudes.
A imagem nos filmes de Antonioni tem mais poder que a palavra e cada cena possui um requinte metalinguístico, como se quisesse reclamar para o cinema o estatuto de mídia independente da literatura, mesmo em filmes como "Blow Up", que são adaptações de obras literárias.
A linguagem imagética amplia o isolamento da personagens, transformando-as em seres fechados em si mesmos, estúpidos diante do mundo, sem compreensão mútua alguma. Os olhares e os momentos de carícia têm algo de louco e descontrolado, perturbador, e a câmera assume uma espécie de onipresença seletiva em relação ao que é digno de ser visto.
O final da história parece ilustrar bem isso: o casal apaixonado em uma cena de amor que mais parece uma luta é aos poucos ignorados por um travelling que mais parece um olhar resignado, melancólico, descontente com a realidade de joguetes que analisamos por duas horas diante de nós.
Assim como em "A Aventura", cujo foco central é um sumiço sem motivo claro, esse filme mostra um diretor altamente preocupado com a opacidade da consciência humana, que mesmo no ser-para-outro parece ser incapaz de se definir precisamente e de entender o outro como subjetividade plena. Nunca o princípio filosófico da consciência em busca da destruição do outro ganhou tanto sentido para mim quanto nesta película.
O Invasor
3.6 171"O Invasor", de Beto Brant, é um dos grandes filmes nacionais de todos os tempos por fugir da velha máxima da violência espetacularizada, mesmo o filme em si sendo um belo espetáculo no tocante à psicologia dos personagens envolvidos. O enredo é muito bem construído e deixa brechas propositais, como a moça que se envolve com o assassino do próprio pai, o casamento que acaba sem ser mostrado, bem como o clima de violência psicológica que mostra sem mostrar a violência física que permeia a relação de três sócios que se envolvem em uma rede crimes em busca de crescimento econômico.
Nesse sentido, todo um contexto típico dos filmes e da sociedade brasileira é exibido de forma mais sutil, evidenciando aqui não uma problemática social já batida e para a qual o cinema não tem solução - pois como obra de arte não pode fazer nada exceto exibir e provocar. O contexto psicológico aqui, que remete um pouco ao famoso romance russo "Crime e Castigo" e faz pensar numa versão mais macabra de "Crimes e Pecados" de Woody Allen é o mais importante e junto com uma fotografia sufocante e abafada - similar à de "Estorvo" de Rui Guerra - mostra o quanto o ser humano atormentado pela culpa e pelo medo da ruína pessoa se afunda em seus próprios dramas existenciais e aos poucos adentra loucura.
Destaques de atuação para Paulo Miklos, que ficou muito bem no papel do assassino sem pose viril Anísio, e para Mariana Ximenes, provocativamente linda no papel da alienada Marina, que mesmo diante da morte do pai só quer saber de curtir a vida e ter um barato.
Umberto D.
4.4 124 Assista Agora"Umberto D", de Victorio de Sica, é um filme sobre desespero, sobre injustiça social visceral e sobre lealdade. A todo momento no filme vemos presente a pergunta filosófica acerca do suicídio, em voga na época da feitura do filme. Aqui, porém, ela não se soma a um desespero humano abstrato e sim a uma situação concreta de abandono. Umberto é um idoso cujo único laço afetivo é o pequeno cão Flike. É o animal quem serve de elo final de Umberto com uma existência que desde os primeiros momentos do filme mostra uma crueldade imensa, em especial para os mais velhos.
A fragilidade da figura do idoso é colocada ao lado da fragilidade da mulher grávida em condições insalubres - figura comum do capitalismo mais selvagem e que pode se tornar moda em nosso país em breve - e da espécie animal, que capturada só pode ser resgatada e cuidada mediante o pagamento de uma taxa de soltura. A luta de classes se mostra com uma burguesia que cuidando de uma pocilga passa o tempo todo a expressar discursos de ódio para os mais pobres, mesmo deles dependendo para ter sua riqueza produzida.
"Umberto D" é um filme de ar existencial e de crítica social. Mostra como o sistema capitalista, com seu discurso de liberdade econômica, é na verdade uma máquina de assassinato dessa mesma liberdade. Os vestuários militares vistos de relance ao longo do filme mostram a sobrevivência do fascismo após a segunda grande guerra e a música do filme, aliada ao belo uso de focos de câmera, faz com que o longa de uma tristeza que transcende a geralmente percebida nos filmes que falam da relação entre homem e cães.
A tristeza aqui não é pela morte ou possível morte de um labrador ou outra espécie de ar elegante. A tristeza é de saber que a fragilidade de dois seres é que garante que ambos não pereçam diante de um sistema cruel e cinzento como a própria cidade que parece querer engolir a ambos, com seus dilemas próprios, a cada instante.
T2: Trainspotting
4.0 695 Assista AgoraT2 Trainspotting é sobre o terror de o tempo passar e a impressão de que nada mudou. E provavelmente não vai mudar. O passado não é rememorado, mas vivido ainda - como algumas que parecem servir de deja vú do primeiro filme indicam -, pois as mesmas manifestações de ser de outrora seguem a ocorrer. Mark Renton fizera das drogas, vinte anos antes, uma tentativa de viver em êxtase e de superar a simples cotidianidade do mundo consumista de artificialidade padronizada. A corrida na esteira com ar épico de superação, abruptamente cortada com uma queda patética, mostra que o caminho da glória não leva a lugar algum no sentido de um porto seguro onde a sublimação existiria. A existência se repete em ciclos sem sentido e sobreviver parece ser o maior desafio para homens não mais jovens perdidos nas possibilidades limitadas do mundo materialista. O fracasso deixa de ser uma condição existencial - no sentido de impossibilidade de plenitude de ser - para assumir uma essência coagulada, opaca, onipresente. Desesperançada.
Drive
3.9 3,5K Assista AgoraTudo é belo no bom "Drive", de Nicolas Winding Refn. As cenas dentro do carro mostram a fusão entre o motorista interpretado por Ryan Gasling e o veículo da forma mais plena possível. Raramente vemos os carros em perseguição numa perspectiva distante, mas sim o motorista com seu olhar focado sendo captado com maestria enquanto manobra a máquina, parte de seu corpo e ser. O ar silencioso do piloto cai muito com o par romântico Irene, representado pela adorável Carey Mulligan. Entre os dois quase não há diálogos, apenas trocas de olhares, iluminação intensa a passar o calor do amor e uma trilha que casa bem demais com a relação dos dois interrompida pelo ressurgimento do marido de Irene, recém saído da prisão.
O filme se revela bastante existencialista como os bons filmes sobre o universo criminoso, mas sem se aprofundar demais nos bastidores desse contexto. O silêncio do piloto revela uma vontade de se trancar em si mesmo e os quadros frontais parecem capturar, nos seus menores traços expressivos, a essência de cada manifestação de seu ser torturado.
Por seu amor por Irene, na tentativa de salvar a relação desta com o marido, o piloto se coloca em perigo e abandona a sua indiferença costumeira para se engajar em algo. Aqui percebemos como as cenas de violência de ar realista podem conter extrema beleza estética com a riqueza de detalhes da câmera mais uma vez servindo de abertura da existência para a visão sem pudor da mesma.
Nesse sentido, mais do que um filme de gangster tradicional, "Drive" é algo sobre a imensidão da vida humana, algo indicado logo no plano inicial focado na cidade e seus diversos destinos cruzados. A filmagem do longa é repleta de sensibilidade ao falar da violência e parece querer dar conta do que é o ser em sua sinfonia de gestos, ações e atitudes, mesmo dentro de um contexto nada convidativo à poesia, no qual a morte está a cada momento com seu peso a deixar sua presença.
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Sindicato de Ladrões
4.2 295 Assista AgoraA epopeia de Terry Doyle em Sindicato de Ladrões.
A primeira cena e a abertura de Sindicato de Ladrões me fizeram pensar que estava diante de um bom e velho filme de gângster, explorando as entranhas de organizações criminosas, algo que rendeu e segue rendendo ainda bons produtos na forma de filme para nosso deleite. Mas logo de cara fica claro que mesmo a premissa consagrada e um enredo relativamente são pano de fundo para uma série de questões sociais e até mesmo filosóficas a serem abordadas dentro do longa dirigido Elia Kazan.
Terry é o típico jovem perdido na vida que vê no crime uma chance de não morrer de fome. Usado pela gangue de Johnny Friendly para atrair para a morte um suposto delator dos crimes desse grupo, que controla as docas de Nova York com a fachada de um sindicato dos portuários dali, Terry começa a questionar o código de honra usado pelos criminosos sem, contudo, demonstrar disposição em deles se afastar. Mas ao entrar em contato com a irmã de Joye Doley, o rapaz morto pelo grupo na primeira cena do filme, Terry passa por uma profunda mudança existencial e começa a querer ter autonomia de sua existência.
Até então, ele vivera sob a tutela do irmão, Charley, que trabalha para Johnny. Por causa desse controle, teve de inclusive abrir mão de sua carreira de boxeador anos antes e agora vive como uma espécie de garoto de recados do sindicato que de forma corrupta subordina quem deveria proteger a condições miseráveis de trabalho. Mas no momento em que se aproxima de Edie, Terry é forçado a sair de sua zona de conforto e começa a ver a necessidade de encarar o que vivera até então como uma grande farsa maquiada pelo jeito agressivo e valentão, muito bem interpretado pelo grande Marlon Brando.
Nesse sentido, o amor surge dentro de uma obra sobre a máfia como um elemento de sensibilidade. Não cai, porém, no romantismo tolo de obras que visam a colocar o sentimento de união entre duas pessoas como algo sagrado e perseguido a todo custo. O filme de Kazan mostra o acaso como uma ligação entre duas pessoas que se ligam a partir do diálogo e do conhecimento mútuo. Edie, com sua postura doce e delicada, mostra-se cheia de força, disposta a enfrentar o grupo criminoso, enquanto Terry, com sua postura de homem dono de si, é em verdade um ser fraco e acovardado.
Outra figura bem interessante no filme é o padre Barry. Após o primeiro assassinato ligado à procura do silêncio das vítimas de Johnny, este começa a se reunir com trabalhadores no intuito de desvendar e expor os crimes cometidos. Diante de nós, surge uma figura dona de um discurso materialista dialético a cobrar dos trabalhadores uma união e uma consciência coletiva para que estes comecem a enfrentar os maus tratos pelos quais passam. Barry é um ser que une o discurso cristão a uma prática de enfrentamento das desigualdades sociais, algo bem óbvio se analisarmos de forma objetiva o que foi proferido por Cristo nas sagradas escrituras cristãs. Ao contrário de muitos pegadores de então e de hoje, o foco de Barry não é a prosperidade e sim a justiça social, o equilíbrio entre as pessoas e a valorização do bem comum.
As palavras do padre passam a fazer sentido na vida de Terry no momento em que seu envolvimento com Edie, a qual ele deveria a priori vigiar para o grupo de Johnny, se torna mais profundo. É o momento em que o discurso político de um ser começa a ganhar sentido aos ouvidos do outro, quando uma tragédia particular se mostra como o fator de compreensão necessário para uma mudança de atitude perante a existência. Terry, como Sartre preso nos campos nazistas, representa o despertar de uma pessoa que se choca diante de uma realidade que até então não o afetara de algum modo. É o momento em que este jovem descobre como suas ações são vis, mesmo que indiretamente, e como ele mesmo pode ser o alvo de um assassinato por silenciamento ou por não estar mais nos planos um dia.
Após ter a coragem de denunciar os crimes e ver o irmão morto por sua rebeldia, Terry deve lidar com a indiferença dos colegas de classe que passam a ignorá-lo por medo de represálias da gangue de Johnny. Ainda assim, Terry se decide a enfrentar a vergonha pública e mesmo partir para a violência contra Johnny, o que quase lhe causa uma morte por espancamento coletivo. O final do filme representa uma espécie de alegoria da caverna platônica em nossos tempos modernos, mostrando como as pessoas se negam a enxergar a opressão que sofrem, mesmo quando têm diante de si alguém empenhado em expô-la. É preciso que Terry, ensanguentado, dirija-se até o portão do local de embarque das mercadorias para que a massa se motive a também a trabalhar sem mais o controle do sindicato.
Tal encerramento possui muito de épico e é construído de modo muito interessante, evidenciando a dimensão de arte do filme por conta do exagero e da música. Ainda assim, é comovente por expressar a necessidade de luta e de resistência da opressão que deve estar em nossos passos a cada momento. A caminhada cambaleante do Terry ensanguentado não é uma solução final para os dramas sociais presenciados naquele pequeno espaço de Nova York, mas serve como a narrativa de Cadeira, de Saramago, conto que mostra como mesmo que de forma lenta e gradual a luta deve ser constante para mostrarmos ao outro como a opressão sofrida por um grupo não é algo natural e tem dimensões históricas.
O filme como um todo é um convite à reflexão aos códigos de honra seguidos por nós. É mais importante ser visto como delator por um grupo com medo de morrer ou ser capaz de vencer esse medo em alguma escala para que as coisas mudem de alguma forma? Kazan conseguiu dirigir um grande filme que começa seguindo o bom clichê do filme de gângster e depois usa o clichê do amor como transformação e salvação, mas, de forma hábil, o diretor e sua equipe transformam todo o conjunto da obra num imenso painel humano e existencial o qual denuncia como devemos nos levantar diante de crimes cometidos contra nós, os quais tentam se vender como a própria natureza das coisas neste mundo.
Composto em: 12/08/16
14:01
Diários de Motocicleta
3.9 827"Diários de Motocicleta" é mais do que uma cinebiografia e mais do que um roadmovie, mesmo que seja a mistura dos dois. É um duplo encontro com a América Latina arrasada pela dominação europeia que hoje, com o medo dos conflitos oriundos de identidades desesperadas, mostra-se marcada por uma beleza ampla, diversa e selvagem.
Por mais que o foco seja Ernesto Guevara, o filme encanta pelo choque de ir de uma região quente para uma região fria, de uma região repleta de riqueza para locais miseráveis. O então médico em formação começa a descobrir a injustiça do homem pelo homem, algo que até então a sua vida burguesa lhe ocultara. E aos poucos o espírito revolucionário começa a surgir na mente de um jovem amante das letras.
Por mais que se questione os métodos da revolução cubana, fica bem claro que diante de tanta coisa podre discutir racionalmente ou colocar flores nas baionetas é algo meio inviável. A beleza do filme atinge justamente o seu auge quando vemos no olhar de Gael, que encarna Guevara, o olhar de impotência e de fúria diante das desigualdades sociais e da pobreza. Anos depois, ele pegaria em armas, mas ali era apenas um jovem chocado demais por se deparar com aquilo que não esperava na América que lera em seus livros.
O filme todo é muito bom, tendo bons elementos também de filme de formação. A fotografia, as atuações, os diálogos, o uso de cartas pessoais do futuro revolucionário, os momentos de monólogo, a trilha sonora colaboram para nos depararmos com um retrato profundo do que é a América Latina. O uso de atores reais, mostrando bem a disparidade étnica entre dois jovens burgueses a andar de motocicleta e a pé pelo continente americano é outro fator importante a ser destacado, pois parece que o tempo todo esse belíssimo longa - que tanto demorei a ver - nos faz o convite a ver o cinema como deleite e reflexão ao mesmo tempo.
O Amor em Fuga
4.1 92 Assista AgoraVi "Amor em Fuga" sem saber que ele é o quinto de uma série de filmes que começa com "Os Incompreendidos", mas Truffaut se mostra tão genial que em lances de flashback por meio do discurso direto das personagens e cenas dos filmes anteriores acabamos sabendo os pontos centrais de cada filme e como eles culminaram no que estamos vendo agora.
Antoine é claramente um alter ego de Truffaut e o filme explora bem questões psicanalíticas sem se tornar verborrágico. Os diálogos são bem ricos e há uma veia cômica no filme que pelos meus estudos recentes sobre a carnavalização literária muito me tem chamado a atenção. É interessante ver como o amor se mostra um tema ligado às raízes existenciais e familiares mais precoces de um ser humano e como conflitos em períodos iniciais de nossa vida nos levam a procurar formas de compensar o vazio causado então.
O filme mostra bem que são a arte e o amor as formas que encontramos nesse mundo de nos tornamos plenos, mas como o amor é feito também de momentos de conflitos e momentos sem brilho, muitas vezes é a arte quem assume as rédeas de nossa vida, por dar-nos uma imagem de plenitude a qual não temos como ter em nossa existência.
O Batedor de Carteiras
3.9 117O legal desse filme é que se parte de uma premissa simples - um cara que rouba por questões financeiras e por gosto pela adrenalina - para abordar algumas questões existenciais interessantes e dar vazão a um romantismo bem heterodoxo. Ademais, "O Batedor de Carteiras", de Robert Bresson, cita "Crime e Castigo" de Dostoiévski, algo que seria feito novamente por seres como Woody Allen, mostrando todo o poder que essa obra literária tem em suas reflexões acerca dos crimes das almas que se consideram grandes demais. O ponto do filme de Bresson, além da bela fotografia e da narrativa elíptica, são os jogos de câmera, os quais em recortes bem rápidos sempre focam nas mãos, criando como que um balé das mesmas nas cenas bem elaboradas de furtos. O filme também se utiliza demais do poder de inferência do espectador, mostrando personagens aparentemente fora de contexto andando em cenas a esmo, mas as quais foram mostradas antes ou provavelmente serão mostradas depois, tornando-se então peças importantes para o enredo. Ousaria dizer que filmes como esse certamente influenciaram os criadores de séries como Breaking Bad no uso da câmera como elemento narrativo primordial.
Viver a Vida
4.2 391Viver a Vida é uma série de pequenas digressões narrativas e agressivas acerca do que é o cinema. São músicas cortadas no momento em que começamos a nos empolgar com elas. São momentos de diálogo em que a câmera nos mostra apenas as reações da protagonista, ignorando o interlocutor que fala, fazendo-nos entrar profundamente no universo de uma pessoa afundada em seus pensamentos. Pensamentos estes que se mostram sem se mostrar plenamente, numa opacidade que me faz pensar num romance existencialista que dialoga com o teatro sem ser teatral. São os momentos de clímax colocados em momentos pouco convencionais e o final abrupto a lembrar o bom livro de Clarice Lispector "O Lustre". Por sinal, assim como a autora brasileira que adorava quebrar paradigmas e discutir acerca dos limites da internet, Goddard abre espaço para uma bela reflexão em forma de diálogo sobre o poder que a linguagem tem de nos mostrar o absurdo da vida. A história é narrada de forma entrecortada, sempre levando o espectador a preencher lacunas com as suas inferências e poder de conclusão e atentos vemos a evolução de uma personagem que descobre no submundo da prostituição o seu poder de sedução. Se resistimos ao estranhamento causado e pensamos na forma abrupta como a história é construída, percebemos com se criou um clima de opacidade existencial bem interessante, a mostrar como aspectos existenciais em momentos de desespero afundam o mundo ao redor. Creio ter achado mais uma inspiração para Chico Buarque e seu bom narrador-câmera na fantástica novela "Benjamin", que merece também ser lida por quem não tem medo de atrevimentos.
O Escorpião de Jade
3.4 115 Assista AgoraÉ de admirar o propósito pessoal de Woody Allen em produzir praticamente um filme por ano há mais de quarenta anos. Mas se esse propósito impressiona pelo vigor de alguém a produzir com idade avançada, ele decepciona pela quantidade de fracassos ou feitos medianos presentes dentro da obra de Woody. "Escorpião de Jade" é um exemplo de fracasso. Forçado, com um enredo muito clichê e apelativo, com as piadas absurdas de sempre apelando para um machismo desnecessário, fica difícil crer que este filme foi produzido pelo mesmo cara que fez "Annie Hall" e "Manhatan". Não há uma atuação digna de nota ou mesmo uma cena que possa ser analisada de forma mais carinhosa. Se alguém se meter a conhecer Woody Allen por este filme, vai pensar que o mito do cinema é um sujeito medíocre e super valorizado.
Deus e o Diabo na Terra do Sol
4.1 426 Assista AgoraAcho que a expressão "soco no estômago" define bem "Deus e o Diabo na Terra do Sol". O uso de moradores do povoado onde gravaram-se as cenas combinado aos monólogos teatrais, com uma fotografia em preto e branco que parece tornar ainda mais tórrida a paisagem do nordeste brasileiro permitem o bom uso de temas pertinentes ao processo cultural daquela região: o banditismo social e o messianismo, com fortes referências a Canudos, são elementos de crítica social muito forte que, numa tentativa de fuga da censura da ditadura militar, se volta contra uma "república" abstrata, sem citar este ou aquele mandatário. Outro ponto incrível são as cenas documentais presentes em diversos pontos da narrativa, expondo de maneira rica e bela o cotidiano religioso do povo pobre das regiões do semi-árido. Mais uma prova da qualidade do cinema nacional.
A Pele que Habito
4.2 5,1K Assista Agora"A Pele que Habito" é um filme atrevido. Em duas horas de duração, aborda sem medo uma série de fatos curiosos e absurdos, como perversões sexuais, crimes de estupro, a loucura e dramas familiares. Tudo isso com uma boa pitada de drama tipicamente espanhol, diálogos bem ricos e fluídos e uma fotografia incrível, detalhista, que por algum motivo me deu saudades de Breaking Bad. Bom incentivo para conhecer mais da obra de Almodóvar.
Nova York, Eu Te Amo
3.2 607 Assista AgoraEsse filme é uma verdadeira sinfonia em homenagem à cidade em que se passa. Lembra os bons quadrinhos de Will Eisner mostrando que mesmo dentro de uma selva de pedra há amor e há poesia. Usa a música e a fotografia de forma primorosa além de ter diálogos muito bem feitos em diversas partes. E a cena do casal de velhinhos reacende a esperança em um amor para a vida toda, que mesmo sem o erotismo de outrora mantém o companheirismo e o bem querer. Lindo demais.
Tudo Pode Dar Certo
4.0 1,1KA grande temática de "Tudo Pode Dar Certo" é a questão do acaso: ele é quem rege, segundo a ótica de Woody Allen a qual se mostra na figura do personagem Boris, protagonista da trama. As questões amorosas ganham um relevo interessante no filme e ganham até mesmo uma conotação crítica em relação à moral cristã mais conservadora: temos um casal cristão, John e Marietta, que após um casamento infeliz se separam e assume outras formas de relacionamentos, ela um triângulo, ele um casamento igualitário, tornando-se desse jeito mais felizes e plenos.
O filme, como os mais recentes de Woody Allen, não tem a grandeza dos mais clássicos, mas ainda assim possui uma interessante técnica narrativa com o uso do que chamamos de "mockumentary", com a personagem falando diretamente com a plateia acerca do que está sendo mostrado no filme. (Algo usado em séries como Malcolm in the Middle e Modern Family.) Woody mistura esse recurso com o monólogos típicos dos shows de comédia americana, usados com maestria na série Seinfeld, cujo produtor é Larry David, ator que interpreta Boris.
Larry por sinal é o ponto alto do longa-metragem, que se mostra bem mediano. Claramente vemos nele uma tentativa bem sucedida de reproduzir o Allen de filmes como Annie Hall. Creio que a imitação ficou boa por Larry ser desse meio humorístico mais dialógico e existencial, como fica claro na produção de Seinfeld.
Ademais, com essa temática do acaso e dos amores conturbados, Allen consegue um humor agridoce similar ao de Milan Kundera em alguns bons momentos de seus bons livros. Se a vida é regida pelo acaso e encontramos um ser especial, devemos fazer de tudo para aproveitar esse bom momento enquanto ele dura, pois podemos um belo dia acordar sem a chance de aproveitá-lo. O acaso está cheio de pequenos encontros e arranjos complexos e isso deve nos fazer ter otimismo perante a vida.
Quem sabe conseguimos aproveitá-la melhor se deixamos de colocar nas mãos de um ser superior a responsabilidade pelo que ocorre conosco. (Ao menos, tenho feito isso.) Se há um momento em que Allen possui uma mensagem bela coroada com um final feliz doce em sua fimografia é nesse longa-metragem que vale a pena ser visto mesmo sem o brilho de outrora.
As Horas
4.2 1,4KA construção do enredo de "As Horas", de Stephen Daldry é bem interessante, entrecruzando três histórias em tempos diferentes ligadas pelo mesmo problema: a depressão somada à infelicidade conjugal. Vemos nas grandes atuações do trio Moore, Kidman e Streep o modo como a depressão se soma a questionamentos existenciais profundos e transforma a existência de todos ao redor um grande inferno.
Além disso, vemos a arte e a realidade mantendo um belo diálogo em diversos momentos, com recorrências bem interessantes, como o pássaro morto no qual Virginia se depara em seu futuro ou com os ovos estalados em um contexto de tensão a ser disfarçado pela festa que ocorrerá na sequência. Isso faz com que a obra seja mais uma das muitas a mostrar como a arte está sempre, mesmo não querendo, em diálogo com a realidade, não procurando das respostas, mas sempre provocar.
É um filme que pode ser analisado por diversos aspectos, mas sem dúvida alguma o psicológico é o que mais se sobressai nesse belo filme.
Django Livre
4.4 5,8K Assista AgoraApesar de ficar cansativo na última hora e vinte minutos, o filme é muito em seu dinamismo. Algo legal em Tarantino é a preocupação em criar personagens que marcam pelos trejeitos, pelo discurso e pelas atitudes. Django marca pelo olhar furioso de um homem que se descobriu homem no momento em que foi liberto por um caçador de recompensas com espírito nobre e inimigo da escravidão, o qual por sua vez marca pela sua intrepidez elegante e ligeira no gatilho. Muito legal a amizade surgida entre os dois após Django ajudar o caçador, que por sua vez decide ajudá-lo a recuperar o seu amor perdido.
O retrato do racismo é bastante cru e selvagem. Mas Tarantino parece pouco se importar em dar uma solução a ele. Vemos aqui mais um elemento de metalinguagem do diretor, como dizendo que a arte não tem obrigação alguma de dar respostas prontas. Ela provoca e nos faz pensar em quantos de nós, se pudessem, resolveriam todos os seus problemas pelas suas próprias mãos e em quantos de nós ignoram causas sociais, como a escravidão e o racismo, para pensarmos apenas em romantismo. Nesse sentido, Django consegue ser uma história que faz uma interesse crítica social e existencial do comportamento racista, em especial na figura do personagem de Di Caprio, mas ao mesmo se mostra em uma homenagem aos filmes de western e aos dramas românticos.
O exagero no filme, assim como ocorre em Kill Bill, é uma forma de mostrar a todos que aquilo é cinema, local em que todo exagero é permitido. Tarantino parece querer que nunca esqueçamos do fato óbvio de que a arte em si não tem obrigação de ser verdadeira e nos faz sempre lembrar de estarmos diante de uma realidade sonho e de absurdo, o que nos causa poesia. Uma pena que o filme não consegue manter o mesmo fôlego de outras produções dele, talvez pelo excesso de tempo, o qual gera cansaço em certos momentos. Ainda assim, é um filme para se ver e cultivar um pouco mais de amor pela técnica cinematográfica.
Depois de Horas
4.0 452 Assista AgoraNão há muito o que dizer de um filme que cita logo de cara Henry Miller e faz clara alusão aos romances de Kafka, em especial "O Processo" e "O Castelo", além de uma fotografia que faz a cidade, com toda a sua suntuosa selva de pedra, mostrar-se como algo esmagador, exceto que ele é genial. A sensação de perdição e de absurdo também é muito convincente e a histeria de cada personagem é algo que certamente cada um de nós já viu em algum rosto em algum momento. Mais um bom filme de Scorsese a estabelecer um belo diálogo com a literatura.
PS: mais alguém viu um quê de Woody Allen nos gestos do protagonista? Quase um Alvy Singer menos loquaz aquele jovem.
Quando Duas Mulheres Pecam
4.4 1,1K Assista AgoraDepois de ver esse filme, finalmente entendi o porquê de não procurarmos conhecer nada da vida de nosso terapeuta.
Luzes da Cidade
4.6 622 Assista AgoraInevitável deixar as lágrimas virem à tona na cena final. É um enredo bem narrado, mas que serve de pano de fundo para um elogio à nobreza e uma bela crítica à vida movida por aparências de uma cidade grande. Somente um grande marxista como Chaplin para fazer algo do gênero.
Na Natureza Selvagem
4.3 4,5K Assista AgoraImpossível ver esse filme e não lembrar de Kerouac. No fundo, por mais que saibamos que não temos como viver longe das amarras do convívio social cheio de falsidades, acharíamos interessante fazer uma viagem de conhecimento pessoal como a empreendida no filme. Promove uma série de reflexões interessantes como os valores de nossa sociedade e o modo como a chamada família tradicional falha no sentido de ser fonte de felicidade ao ser humano, funcionando mais como um teatro do absurdo do que realmente um seio de amor.
Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres
4.2 3,1K Assista AgoraDavid Fincher e Trent Reznor é um combo que funciona bem demais. Bons diálogos, boa atuação, uma bela análise da milenar misoginia nossa de cada dia e um filme que mesmo longo não se torna em nenhum momento cansativo.