Desconstruindo o anjo pornográfico (O beijo no asfalto: precursor do Brasil contemporâneo) 16/12/2018
É um filme? É uma peça? É uma leitura dramatizada? É uma crônica policial? É uma provocação deslumbrante? É tudo isso e mais um pouco ao mesmo tempo? Sim, Nelson Rodrigues é tudo isso e mais um pouco, durante toda sua vida e sua obra. E poder apreciar uma releitura de seu trabalho no final de um ano em que se fez de tudo para que o país não desse certo, é com certeza uma dádiva. Não entenderam? Explicar-me-ei.
É quarta-feira e vou ao cinema dentro do Imperator para assistir à adaptação de O beijo no asfalto feita pelo ator (e agora diretor) Murilo Benício. Para minha tristeza, poucos assentos estão ocupados. O que só reforça minha incerteza sobre os rumos que o nosso cinema vem tomando, perdendo espaço para filmes de super-heróis que não dizem a que se destinam além de entupir nossos cérebros de efeitos especiais e séries televisivas de cunho duvidoso (leiam-se: zumbi, seres sobrenaturais, etc) que nada mais são do que o pastiche dessa nossa sociedade caótica e cada dia mais perdida.
A peça original é de conhecimento geral dos fãs de Nelson: Arandir (vivido na tela por Lázaro Ramos) vê um homem ser atropelado em plena Praça da Bandeira e o acidentado, antes de morrer, pede a ele como último desejo um beijo. Beijo esse que Arandir lhe concede como um ato de piedade. Contudo, mal sabia ele que aquele singelo gesto seria justamente o que levaria a sua vida dali em diante a um passeio pelo inferno.
Arandir é cercado pela indústria do preconceito que rege esse país desde priscas eras (sim, meus caros leitores! Não é de hoje que vivemos num país tão cheio de manias e repressões). Seja por parte de Amado Ribeiro (Otávio Muller, fantástico!), o jornalista cafajeste do jornal A última hora, que adora mandar os outros calarem a boca, adepto do sensacionalismo a qualquer preço e das (hoje mais que famosas) fake news; seja por parte de seu sogro, Aprígio (Stênio Garcia), extremo conservador que alimenta a duras penas um segredo que envolve tanto Arandir quanto sua esposa, Selminha (Débora Falabella); seja por parte do delegado Cunha (Augusto Madeira), expoente máximo da hipocrisia policial e social, que usa até mesmo a imagem da filha irretocável, acima de qualquer suspeita, para vender uma faceta de "homem distinto, de moral ilibada" para os demais.
Sem ter para onde correr, acuado, Arandir se depara com uma dupla e cruel acusação contra ele: a primeira, direta, de ser um homossexual que engana a própria família, uma aberração aos olhos da sociedade íntegra; a segunda, esta indireta, a de ser negro, portanto um indivíduo menor, dentro de uma sociedade que não esconde - nunca escondeu - o seu racismo. Vencido nesta batalha inglória, se vê abandonado por todos e ainda é acusado de ter perpetrado o crime contra o atropelado. Mais trágico (e rodriguiano) impossível!
Como pano de fundo, a genialidade e ousadia de Murilo Benício que escolhe um caminho diferenciado para contar esta história mais que consagrada em nossos palcos. Intercala leituras dramatizadas entre o elenco do filme e cenas gravadas dentro do teatro. Um recurso, aliás, que eu vi recentemente no filme Ricardo III: um ensaio, dirigido pelo também ator Al Pacino (não sei se Murilo assistiu ao longa, mas em muitos aspectos os dois filmes dialogam entre si).
Ao final da sessão ouço aplausos entusiasmados dos poucos espectadores que compraram a briga de ir assistir o longa. Sim, digo briga porque o filme é um grande ato político, de resistência, em meio a um país que nos últimos anos só fez flertar com o retrocesso e a opressão de uma minoria recalcada e que não admite perder - seja espaço ou renda - por nada neste mundo.
Nelson Rodrigues prova mais uma vez porque é o maior de nossos dramaturgos com uma peça que não só flerta com o romance policial como antevê muitas das distorções vistas hoje na sociedade contemporânea: a discussão acerca do homossexualismo (comprada ferrenhamente pelos grupos que integram o LGBT), a indústria das matérias jornalísticas falaciosas, fabricadas muitas vezes com a intenção de confundir ou incriminar grupos de interesse específicos e a velha moral da chamada "família tradicional", muitas vezes eclipsada por uma ética dúbia.
E com enorme deleite me deparo com o anjo pornográfico (singelo "apelido" que o autor ganhou de um crítico) desconstruído de forma criativa e, por que não dizer?, inovadora. Nossa sétima arte anda precisando de mais boas ideias como esta!
P.S: enquanto os créditos de filmagem passam diante de nossos olhos, o bate-papo final entre os atores - e de extrema ligação com o Brasil dos últimos anos - já vale pelo filme todo. Vejam o longametragem até o final, por favor!
A magia ainda não acabou (O Retorno de Mary Poppins e a Disney ainda sabe mexer com a cabeça dos fãs)
Não entendi a parcela da crítica de cinema dos jornais que disse que o filme O Retorno de Mary Poppins, continuação do clássico da Disney de 1964, apesar de divertido e visualmente apaixonante, é a prova viva de que a magia do gênero se perdeu. Discordo em gênero, número e grau.
Na verdade o que vem acontecendo nos últimos anos em hollywood é um festival de remakes e spin-offs desnecessários e feitos para se tornar caça-níqueis num período absurdo de tempo. Contudo, é louvável o esforço de diretores como Rob Marshall em interpretar grandes clássicos desse mesmo cinema.
Nos últimos anos a Walt Disney Pictures vem reapresentando ao público suas animações clássicas em forma de longametragens live action bem como trazendo projetos do passado em versões, digamos, mais sofisticadas, para atender não somente aos saudosos da época em que o estúdio era a única referência no setor, bem como novas plateias. Prova disso são as versões atualizadas de Mogli, A bela e a fera, Malévola (que traz a bruxa má como protagonista), Christopher Robin (que traz a história do Ursinho Pooh sob o viés de Cristóvão numa versão adulta) e tantos outros.
Porém, a priori, com O Retorno de Mary Poppins, a tarefa parecia mais complicada, tendo em vista a difícil tarefa de substituir a dupla Julie Andrews (atriz que marcou minha infância de forma ímpar) e Dick Van Dyke. Pois bem: Rob Marshall - que já enveredara pelo musical com Chicago, vencedor de 6 Oscars - traz Emily Blunt para assumir a árdua tarefa de interpretar a protagonista e decide seguir a cartilha clássica do gênero, sem abusar de invencionices estéticas (algo que nos últimos anos vem estragando muitos projetos até então alardeados como boas promessas).
Os filhos de Gordon Banks, Michael (Ben Wishaw) e Jane (Emily Mortimer) cresceram e ele, mais do que isso, casou-se e teve três filhos, Anabel, John e George. Com o falecimento da esposa e o acúmulo de divídas junto ao banco onde trabalha a família se vê na iminência de perder a casa onde construíram todas as suas lembranças. E é nesse momento que a babá mais famosa da Disney aparece para ajudar a consertar as coisas.
Mais uma vez, assim como no original, a mistura entre animação e personagens reais é muito bem utilizada, e dessa vez aprimorada (tendo em vista que, após mais de 50 anos, a tecnologia de produção melhorou muito!). E o resultado é mesmerizante, multicolorido, esteticamente impecável e repleto de um humor ingênuo que, cá entre nós, anda em falta no cinema americano dos últimos anos.
Há presenças ilustres como Colin Forth na pele do banqueiro Wilkins, Meryl Streep, a queridinha do cinema hollywoodiano, vivendo a prima de Mary Poppins, Topsy e Julie Walters (mais conhecida aqui no país por seus personagens nos dois Mamma Mia) como a empregada Ellen, mas nada que ofusque a graciosidade proposta pelas três crianças, que aqui parecem ter mais apelo do que no filme original. Pelo menos, eu tive esse sensação!
O grande acerto de Emily Blunt é não tentar imitar Julie Andrews. Ela encontra sua própria voz numa personagem cujo carisma é mais do que indispensável. E se é verdade que, por um lado, ela carece de um parceiro de aventuras à altura, pois o Jack de Lin-Manuel Miranda, está à anos-luz de distância do Bert de Dick Van Dyke (que, aliás, fez participação especial no longa), também é verdade que ela dá conta do recado numa história que precisa ser alegre a maior parte do tempo para conquistar as novas gerações de filmes.
Entretanto, há temas um pouco baixo-astral nas entrelinhas da trama. Como, por exemplo, a tia Jane, solteirona, que herdou um pouco da personalidade da mãe, então sufragista, e prefere lutar pelos direitos dos menos favorecidos em passeatas e manifestos do que encontrar sua alma gêmea e o banqueiro inescrupuloso, que tentará de tudo para pôr as mãos na casa da família Banks. Mas nada que afete o brilho e o sentimento de nostalgia do filme.
Voltando aos críticos xiitas e reclamões, que disseram ter a história perdido a sua magia. Recomendo-lhes que dêem uma nova chance ao filme. O Retorno de Mary Poppins mostra mais uma vez porque a Disney continua encantando gerações ao redor do mundo e seus concorrentes continuam com, pelo menos, um pé atrás no quesito conquistar plateias.
Longa vida à casa do Mickey Mouse. E que venham Dumbo e Alladin (já em fase de produção)!
Heróis não são tão simples assim... (Vidro, Shyamalan e o super-herói rediscutido)
Tenho um certo incômodo com o cinema de M. Night Shyamalan e isso não é necessariamente um mau sinal. Desde que vi, em 1999, seu primeiro filme a ser lançado por aqui, o sobrenatural O sexto sentido, fiquei com um certo gosto amargo na boca, perdido entre a descoberta do final óbvio e a sensação de que sobrenaturalidade para o diretor não era necessariamente sinônimo de sustos e medos aparentes.
Com seu segundo longa no ano seguinte, Corpo fechado, fiquei mais contente. Principalmente porque ele, Shyamalan, se propôs a rediscutir o universo dos super-heróis. E até hoje o considero o seu filme que mais me tocou. Pois bem: três anos atrás o diretor se propôs a continuar esta história com Fragmentado e trouxe à tona um homem doente, perdido, complexo, capaz de virar uma besta humana e destruir tudo ao redor. E ele acabou por se tornar o elo de ligação entre os dois protagonistas do filme de 2000. E não satisfeito ainda o desdobrou mais uma vez numa trilogia um tanto diferenciada, fora do padrão habitual no gênero. Agora, com Vidro, ele chega à apoteose do seu raciocínio e defesa de opinião. E que se cuidem os leitores de comic books!
Em Vidro, vemos seus personagens de quase 20 anos atrás, David Dunn (Bruce Willis) e Elijah Price (Samuel L. Jackson, ainda mais alucinado do que no original) presos num instituto psiquiátrico ao lado do homem das múltiplas personalidades (vivido pelo ótimo James McAvoy), responsável pelo sequestro e morte de várias jovens. Contudo, desdobremos os fatos:
Dunn vivia dias de vingador, perambulando pelas ruas à procura da besta (uma das facetas desse homem dividido entre vários alter-egos), sempre ajudado pelo seu filho e ainda sentindo a falta da esposa, agora morta. É durante um combate com a criatura no meio da rua que ambos são pegos e levados em reclusão.
Já Elijah Price, que havia sido levado para o instituto no filme de 2000 vive à base de remédios, e parece completamente aéreo ao que vem acontecendo no mundo nos últimos anos. Eu disse parece...
No instituto precisam enfrentar a cética Dr, Elie Staple (a sempre ótima Srah Paulson) que representa, nada mais nada menos, do que a versão psicanalítica do estado, sempre castrando a sociedade e combatendo a possibilidade de que dissidências e heróis surjam, mantendo a ordem sob seu controle. Ela é a que tenta provar a qualquer custo que os "superpoderes" desses três homens não passam de delírios de grandeza. Seu ceticismo é a força-motriz que move uma nação que adora controlar o pensamento das pessoas e o tipo de informação que elas devem ler.
Elijah, que aqui neste terceiro episódio da trilogia assume uma postura mais distante, é o criador, o Stan Lee ou Steve Ditko do mundo real, provocando acidentes ao redor do mundo na convicção de que seus heróis surjam em meio à tragédia. Mais: ele se orgulha das maldades praticadas e trata as vítimas dessas tragédias como danos colaterais ao seu desejo insano de dar vida ao inimaginável, ao extraordinário.
Como pano de fundo (ou personagens, digamos, coadjuvantes) vemos não somente o filho de Dunn, como também a mãe de Elijah Price e também a jovem Casey Cooke, única sobrevivente do último sequestro promovido pelo atormentado Kevin (e também Patrícia, Jade, Barry, Heinrich e outras várias personalidades as quais ele assume e muda com uma enorme facilidade) que exercem funções pontuais na trama.
Contudo, o mais importante em Vidro é o seu discurso anti-Marvel ou DC. O que Shyamalan pretende com seu longa é mostrar que heróis não tem uma vida não fácil assim. São, na verdade, pessoas de personalidade complexa, que lutam contra seus instintos enquanto tentam sobreviver a uma sociedade aterradora como essa nossa. Enquanto vemos em filmes como Thor, Pantera Negra, Aquaman, Batman e tantos outros, a saga visceral de homens e mulheres em busca de manter a paz no universo, o que presenciamos aqui são três homens que certamente prefeririam ser deixados em paz com suas vidas específicas a ser cobrados ou perseguidos diariamente por isso.
Shyamalan desconstrói o fenômeno mais pop dos últimos anos apresentando homens de mentes perturbadas, confusas, lutando consigo mesmos para se autodescobrirem, enquanto o século XXI mostra-se esfacelado e perdido em meio a falsos referenciais e ídolos. Seu roteiro aponta um dedo acusador à sociedade em cima do muro, que prefere viver de pose a assumir uma postura ou compromisso.
Se nas revistas em quadrinhos Batman é chamado de Cavaleiro das trevas, à trilogia de Shyamalan e mais especificamente esta terceira parte bem caberia o rótulo de teatro do horrores pós-moderno. A diferença é que no teatro muitas vezes o horror é visível, aqui inventamos heróis como desculpas para nos proteger ao invés de assumirmos nossa própria parcela de culpa.
E os heróis, coitados, não são tão fáceis assim de serem entendidos, traduzidos ou classificados. Pelo menos não do jeito que as editoras de HQs tanto vendem. Que me perdoem os nerds leitores de quadrinhos e que esperavam ansiosamente o próximo filme dos Vingadores, mas aqui a ilusão de grandeza deu lugar a uma verdade cinza, dúbia e confusa. E isso é o que o fim dessa "trilogia" tem de melhor!
O preconceito está nos pequenos detalhes (Green Book e a América que não muda nunca)
Era uma amizade que tinha tudo para não dar certo...
De um lado, Tony Lip (Viggo Mortensen), um iltalianão do Bronx, brucutu até a alma, que não acredita que com diálogo conseguimos enfrentar as barreiras do mundo e por isso usa, quando o necessário, os punhos. Que o diga quando está trabalhando como segurança na boate Copacabana. Seu único porto seguro: a esposa Dolores (Linda Cardellini), os filhos e a família, sempre unida nos bons e maus momentos.
Do outro, o Dr, Don Shirley (Mahershala Ali, fantástico!), um homem negro, bem apessoado, estudado, de formação clássica, exímio pianista, mas divorciado e afastado dos poucos parentes ainda vivos por decisão próprio. Para muitos, um ermitão que prefere viver sozinho, ajudado por seu auxiliar; mas para que os conseguem ler as entrelinhas, um homem que luta com seus próprios demônios e escolhas infelizes, para chegar ao dia seguinte. E enfrentar uma nova batalha.
A vida de ambos se encontra quando Doc Shirley precisa fazer uma turnê pelo sul dos Estados Unidos (em plena época de racismo exacerbado no país) e precisa de um motorista. A princípio, Tony não se encaixa no perfil que ele procura, mas há algo em sua personalidade que cativa o pianista e ele decide contratá-lo mesmo assim (chegando a "pedir autorização" à esposa dele).
O resultado? Um road movie completamente inusitado, fora do óbvio, e marcado por um detalhe desagradável que persegue a jornada de ambos por toda a estrada: o preconceito.
Green Book: o guia, do diretor Peter Farrelly (mais conhecido pelo público brasileiro por suas comédias Debi e Lóide e Quem vai ficar com Mary?) é o apogeu de um cineasta que eu acreditava estar fadado à sorrisos e gargalhadas fúteis e fáceis. Estava enganado, para minha surpresa. O filme não somente é magnífico como também é um dos grandes cotados a faturar o Oscar de melhor filme desse ano (e, cá entre nós, com reais chances de vitória).
Durante toda a viagem de Tony e Doc Shirley (que dura oito semanas) o que mais chamou a atenção deste crítico de fim de semana que vos fala não foram as apresentações sublimes do pianista ou mesmo a trilha sonora impecável, com direito a Little Richard e até mesmo a rainha do soul, Aretha Franklin. Não, meus caros amigos e leitores! O que mais me fez refletir foi a sensação de incômodo causada pelo fato de que não é fácil ser negro nos EUA (no mundo em geral, mas na terra do Tio Sam em particular é um tapa na cara!).
A todo momento somos invadidos por uma blasfêmia ou um desrespeito ou uma ofensa disfarçada de piadinha barata. E Doc Shirley precisa andar cautelosamente em meio a esse gelo fino se quiser concluir sua agenda atribulada. Da parte de Tony, que também é malvisto em alguns setores da sociedade por ser imigrante, isso é suavizado em alguns momentos por pertencer à etnia certa. Mas nem ele está livre de rótulos e estereótipos. E até mesmo ele, antes da viagem, não era a pessoa ideal para se debater sobre preconceito racial.
Um homem negro sentado no banco de trás do carro enquanto um homem branco dirige? (Muitos sentirão vontade de ver no longa uma espécie de Conduzindo Miss Daisy às avessas). Encher auditórios com plateias entusiasmadas e, no entanto, não poder usar o mesmo banheiro da plateia ou mesmo ter direito a um vestiário adequado? Mais: sequer poder almoçar no mesmo restaurante que eles? Sim, Green Book é um soco na cara (e no ego) dos demagogos que acham que racismo "é coisa da sua cabeça, meu amigo! Há muito de exagero nisso tudo".
Terminada a turnê e chegado o natal (e ai de Tony que não chegasse em casa para a ceia de natal com a família!), fico perdido entre a desilusão de vermos que passados tantos anos nada mudou tanto assim e orgãos supremacistas como a Ku Klux Khan, por exemplo, estão ganhando força novamente e o direito a banir "os seres inferiores" e o orgulho de ver um tema desses ser mostrado de forma meticulosa e inteligente, sem exageros (algo que seria impensável no cinema hollywoodiano de cinco, seis décadas atrás).
Green Book pode até não ganhar o Oscar desse ano, mas que ele certamente já fez mais pela história dos EUA dos últimos anos do que muito político falastrão ou medida provisória para combater a desigualdade social, decreto, lei, etc, ah! disso não tenho a menor dúvida.
Por quê? Porque não é todo dia que prestamos atenção aos pequenos detalhes. E eles são fundamentais. Pelo menos, se você almeja se tornar um ser humano melhor.
(escrito antes dele vencer o Oscar de melhor filme)
A arte é sempre perigosa (Velvet Buzzsaw e o mercado inescrupuloso das artes plásticas)
Arte e mercado, assim como água e óleo, não deveriam se misturar sob hipótese alguma. Infelizmente, graças a nossa malfadada e gananciosa humanidade esta é uma máxima que se recusa a ser seguida. E por conta disso, volta e meia nos deparamos com deslizes e abusos frequentes cometidos neste setor. O que é uma pena, tanto para fãs de artes plásticas (caso específico deste filme que mexeu profundamente com a minha cabeça), quanto para os artistas, que deveriam pensar mais em produzir um legado cultural significativo.
Com Velvet Buzzsaw o diretor Dan Gilroy se propõe a realizar uma sátira sobre o mundo das artes plásticas e seus caminhos perniciosos. Na verdade, o diretor gosta de mostrar o lado B de segmentos conturbados de nossa sociedade. Ele já havia feito o mesmo quando denunciou os abusos praticados pela imprensa sensacionalista em O Abutre. Porém aqui ele reduz o tom, insere um senso de humor um tanto negro nas entrelinhas do roteiro (que somente os espectadores mais inteligentes e refinados de fato perceberão!) e não aponta seu dedo acusador para uma pessoa em especial.
Aqui, todos têm a sua parcela de culpa no que tange a transformar a arte numa reles mercadoria milionária. Seja o crítico de arte - figura que nos últimos anos ganhou uma conotação exagerada de astro pop - Morf Vanderwalt (Jake Gyllenhaal), sejam os pintores "de vanguarda" Piers (John Malkovich) e Damrish (Daveed Diggs), seja a galerista e cafajeste de carteirinha Rhodora Haze (Rene Russo), dentre tantos outros oportunistas.
Neste mundo cinza e cruel, ávido por dinheiro, todos traem todos, todos vão para cama com todos, todos fazem de tudo para arrancar até o último centavo uns dos outros. E isso é encarado com a maior naturalidade. Sob certo prisma esta atitude é até louvável. Tolo é quem trabalha honestamente nesse meio e visto como "alguém que nunca irá de fato subir na vida". E essa é a única prerrogativa válida dentro do jogo de gato e rato a que se propõem os personagens.
O surgimento de uma vasta obra visionária e perturbadora, produzida por um pintor desconhecido que acaba de aparecer morto no prédio onde mora é o mote necessário para que esses abutres (sim, eles também estão por aqui e não somente produzindo notícias falaciosas) disputem a dedo suas telas. Porém, esse reles resumo não é suficiente para explicar a sanha por poder desses homens e mulheres que se vendem como descobridores de talentos.
Talvez os crimes de cunho sobrenatural que pairam sobre todos aqueles que tentaram transformar a obra vanguardista achada em mero produto ofusquem à primeira vista a intenção dos espectadores de procurarem uma razão para tanto oportunismo e tantos seres humanos obcecados por fama e poder. Contudo, veja a questão da sobrenaturalidade aqui proposta como um grande disfarce ou cortina de fumaça para que não vejamos as reais intenções da película (e do discurso ácido de seu diretor).
Assim como vi em Mera Coincidência, de Barry Levinson, a guerra ser transformada numa grande fábula para atender às necessidades de uma classe política cínica e de moral deturpada, vejo em Velvet Buzzsaw uma forma de seu realizador mostrar que a arte como a conhecemos até então (e tornada magnífica por nomes como Van Gogh, Picasso, Cézanne, Da Vinci, etc) está com os dias contados porque perdeu espaço para um discurso midiático que torna tudo reles, banal, efêmero. E o resultado disso é que a arte pura, fidedigna, voltada ao engrandecimento cultural, dá lugar a uma mentira, a um "Era uma vez.." sem sentido, a um desejo de chocar, aplaudir ou detestar (como se esses fossem os únicos sentimentos possíveis a qualquer pessoa que se deparasse com uma tela).
Entre disputas sexistas, o rancor e a inveja produzidos por artistas que não estão mais no auge de sua capacidade criativa e não admitem serem superados por uma nova voz ou talento e a eterna correria por audiência, exclusividade e originalidade (algo que, honestamente, eu não tenho mais presenciado tanto assim nos últimos anos) há a velha máxima de que o poder não deve ser questionado de forma alguma. A própria galerista Rhodora avisa a seu rival, o crítico, que "a arte sempre foi perigosa" e tal aviso é fundamental para que possamos entender este universo sórdido, baseado única e exclusivamente em números.
Em outras palavras: o que vale é chamar a atenção e produzir cifras exorbitantes. Talento é coisa do passado, de quando a arte estava servida de bons artistas, homens de real visão, dispostos a dedicarem uma vida a seus trabalhos.
As últimas cenas do longametragem parecem deixam claro ao espectador a ideia de que o lugar da arte não é, necessariamente, nas galerias e nas mãos de marchands e críticos inescrupulosos. Pelo contrário... A verdadeira arte acontece em pequenos gestos, está sendo vendida nas ruas a preço de banana e talvez nunca cheguemos a dimensionar o seu real valor monetário. Até porque não acredito no artista quando seu trabalho está relacionado à expressão "eu quero ficar rico e famoso". E provavelmente este é o grande legado proposto por Dan Gilroy com seu filme.
P.S: e teve gente na internet chamando esta película de brega. Ah Esses espectadores de meia tigela que só aplaudem e acham sensacional blockbusters de heróis, zumbis e criaturas fantásticas! Nunca fugirão de suas zonas de conforto, de seus gostos repetitivos e de sua cultura deficitária.
América debilitada (Spike Lee escancara os meandros da "grande nação")
O problema dos impérios (e daqueles que os idolatram) é um só: a falsa crença de que são imbatíveis, infalíveis, acima de qualquer suspeita. A eles nada acontece, pois ditam os rumos da vida moderna. Lêdo engano, meus caros! O império romano que o diga. Durou cinco séculos e mesmo assim não se encontra mais entre nós. E diga-se de passagem: já foi tarde.
Nosso império atual, o tão superestimado (opinião minha) Estados Unidos, também rezou nessa cartilha durante anos. E fez de tudo - desde usar a chegada do homem à lua até o mal explicado 11 de setembro - para manter-se no auge dessa nossa "pós-modernidade" (as aspas são intencionais). Deu no que deu.
A terra de Tio Sam - hoje de Donald Trump - vive seus piores momentos há algum tempo e não consegue entender que o mundo, maior do que uma única nação, precisa evoluir, crescer, andar com as próprias pernas. Resultado: uma crise de valores, social e econômica, sem precedentes. Contudo, ainda há homens de fibra capazes de expor as mazelas dessa nação contraditória. Mais: expor o problema desde suas raízes. Um deles, com certeza, é o cineasta Spike Lee. E faz isso em sua cinematografia desde que me entendo por gente (vejam Faça a coisa certa, Clockers e Malcolm X e tirem suas próprias conclusões!).
Pois bem: com Infiltrado na Klan, Spike faz seu maior ato político em forma de cinema das últimas duas décadas e isso fez muito bem a ele. O diretor precisa colocar para fora seu discurso raivoso e não menos verídico para explicar as raízes do que vem acontecendo com a América nos últimos anos. Vocês não acompanham os jornais? Pois deveriam. Funcionários públicos sem receber salário há meses, marchas envolvendo supremacistas brancos, o retorno da Ku Klux Klan ao cenário político e um presidente impopular que faz com que o país não consiga mais dialogar com a Europa como antes. E isso só para começar.
Spike Lee não conta somente a extraordinária história de Ron Stallworth (John David Washington), policial negro do Colorado que consegue fazer contato com uma das sedes da Ku Klux Klan e infiltrar um agente (mais complicado ainda: um policial judeu) dentro da organização. Como seria simples se fosse apenas isso! Nao. O diretor mais polêmico e controverso de hollywood conta, isso sim, a história de anos de preconceito e racismo desta grande nação, que sempre se vendeu às demais como "a terra das oportunidades".
Na sua colcha de referências múltiplas, citações a obras-primas do cinema como E o vento levou e O nascimento de uma nação, figuras proeminentes e revolucionárias da Blaxploitation e personas e organizações políticas como Angela Davis e os Panteras Negras. Tudo misturado num caldeirão capaz de deixar muitos cidadãos de pele branca incomodados com seu discurso e empáfia (na própria sessão que eu assisti, fui capaz de perceber alguns narizes torcidos em alguns momentos).
"Mas qual o objetivo de tanta raiva e desabafo?", dirão alguns demagogos de carteirinha (e eles estão, hoje em dia, mais presentes do que nunca). É simples de explicar, mas não de - para alguns, pelo menos - entender: a necessidade de continuar forçando a fechadura e a sensação de que se as comunidades negras pararem de falar, tudo será esquecido no dia seguinte com a maior naturalidade. Portanto, trata-se de um batalha para todo o sempre.
Somos um mundo racista que se recusa a admitir seu racismo. Chama-o de brincadeira, de piada, de mau entendido etc. Dentro deste mundo racista há um capítulo especial chamado Estados Unidos. Uma pátria que adora se vender como "a maior nação que este mundo já viu" e, no entanto, não consegue reconhecer nem mesmo seus próprios semelhantes, simplesmente pelo fato de pertencerem a uma outra etnia. Mais: acusam os negros de não serem os reais fundadores dessa pátria. Triste, mas real. Logo, não há outro jeito senão encarar a guerra de frente e fazer seus descendentes entenderem que eles terão de continuar o processo depois que os pais falecerem e assim por diante. Não há espaço para tréguas ou acordos. Não aqui. Não hoje, nem amanhã, nem no dia seguinte.
Spike Lee encerra seu "filme" (eu sei... é difícil ver o longa apenas como uma obra de entretenimento) com imagens duras, mas poderosas. Dá voz às vítimas recentes de manifestações ocorridas nos EUA, expõe com frieza a covardia dos que se dizem "raça superior". E, no final das contas, exibe uma América debilitada, fruto de anos e anos de exibicionismo e intolerância.
Como último frame, libelo derradeiro deste momento ímpar e árduo que o país atravessa, uma bandeira nacional de ponta a cabeça (que na linguagem codificada pode significar tanto um pedido de socorro como um sinal de terrível sofrimento em situações de perigo). Em outras palavras: a América pede ajuda. O problema: como ajudar a quem sempre ajudou apenas por interesse?
P.S: Spike Lee e seu filme foram indicados ao Oscar desse ano. E depois do que eu vi na tela naqueles 135 claustrofóbicos minutos, digo sem reservas: foi a maior ousadia do prêmio esse ano, mesmo não faturando a estatueta de melhor filme!
O inferno são os outros (Nós, Jordan Peele e a xenofobia social na grande nação)
Quando escrevi recentemente na minha crítica cinematográfica sobre o filme Infiltrado na Klan, do diretor Spike Lee, que a América (leia-se: Estados Unidos) está debilitada eu sabia do que falava e ratifico aqui minha posição. Nunca se viu na história da humanidade um país idolatrar tanto o ódio ao seu semelhante - ainda mais se ele for estrangeiro - como hoje em dia na terra de Donald Trump. Aquela velha moral que eu sempre achei arcaica nos discursos americanos de "somos a maior nação", "somos imbatíveis" ganhou contornos do maquiavelismo mais puro. Em outras palavras: odiar virou um grande esporte na terra do Tio Sam.
Mais uma prova viva disso? Saio do cinema após assistir ao longa Nós, do diretor Jordan Peele, extasiado. Mais ainda: perplexo. E penso: "estamos diante da veneração à barbárie".
Jordan Peele é um cineasta curioso. Começou sua carreira atuando em séries de comédia e acabou por escolher o terror como viés para sua faceta diretor. Até aí, nada demais. Até porque hollywood possui um grande mercado nesse gênero. Porém, o terror de Peele é ácido, negro, de um amargor profundo porque reflete as mazelas de sua tão querida nação. E pior: ele é negro. E ser negro nos Estados Unidos... Já viu!
Em seu longa de estreia atrás das câmeras, Corra!, ele utiliza-se do discurso do racismo nas entrelinhas de uma história aterradora, das coisas mais atemorizantes que eu assisti nos últimos anos. Digo mais: foi a primeira vez, desde os clássicos Wes Craven e Dario Argento, que um cineasta mexeu de fato com meus brios. Resultado: ele faturou o Oscar de melhor roteiro original e decidiu partir numa nova empreitada, cheia de novos temores.
Agora, em Nós, ele conta a história de Adelaide Wilson (Lupita Nyong'o, simplesmente fantástica!) e sua familia. No passado, quando criança, ele sofreu um trauma envolvendo um passeio num parque de diversões que mexeu profundamente com sua cabeça. Já adulta, viaja com o marido e os dois filhos para passar as férias de verão numa cidade à beira-mar e se depara com versões maléficas de si e seus familiares, trajados de vermelho e portando tesouras. Com apenas esta informação você pode pensar: "é mais um daqueles filmes slasher, na linha Jason, Freddy ou Michael Meyers. Não, meu caro amigo cinéfilo! Você não conhece Jordan Peele.
A história verdadeiramente por trás da trama começou quando a versão do mal de Adelaide diz: "eu sou americana". Neste exato momento eu me lembro do que representa ser americano no século XXI, pós-11 de setembro. E imediatamente um letreiro se abre diante de mim com a palavra em neón, piscando: XENOFOBIA.
Acompanhem os jornais e tablóides assim que possível e vejam como nossos amigos norte-americanos tratam os imigrantes, os refugiados, os não-nativos. Sim, porque desde que me entendo por gente eu percebo que ser americano de fato é ser nascido no país, filho de país também nascidos no país. Não há espaço para mestiços, latinos e cidadãos emprestados. Não há meio-termo. Sorry!
Portanto, a saga de Adelaide, seu marido e filhos é a luta por uma cidadania construída a fórceps, um direito que não deve ser maculado, distorcido ou transformado de forma alguma. Os outros, os estrangeiros, não passam de bárbaros, de invasores, que adentraram nossas terras para tomar tudo o que temos. A eles, que fiquem atrás de muros, que vão cometer seus atos terroristas bem longe, que entendam que aqui quem manda somos nós, descendentes dos fundadores dessa grande nação.
Eu sei, eu sei... Vocês vão dizer que trata-se de uma família negra, logo não aceita por certas instituições conservadoras e hipócritas. Contudo, mesmo eles se vêem como legítimos quando diante dos fantasiados assassinos. E a jogada proposta pelo diretor com a campanha dos anos 80 pedindo que todos dêem suas mãos e peçam paz no mundo mostra de forma clara, ao invés de conscientizar cidadãos distintos da necessidade de aceitarmos nossas diferenças, o hiato que existe nesta "grande nação".
Tudo em Nós é perturbador: desde a voz das versões do mal da família Wilson até a trilha sonora incômoda (houve, aliás, um momento em que eu fiquei pensando se não teria sido mais eficaz para o diretor trabalhar com o silêncio, como fez o ator John Krasinski no seu ótimo Um lugar silencioso. Eu fiquei muito perturbado com todo aquele ruído!). E isso tem uma razão de ser: o longa exprime o sentimento de repulsa de um país que simplesmente perdeu relevância mundial nos últimos anos, tentando recuperar o tempo perdido na marra, às custas de outras nações.
A consequência disso: um ódio gratuito e uma busca desesperada por protagonismo no mundo, em detrimento de escolhas e vontades alheias. Bem a cara do país que dilacerou o México no passado e agora os acusa de serem canalhas, bandidos, usurpadores.
Chego em casa após a sessão ruminando tudo o que vi, num sentimento quase claustrofóbico, e pensando comigo qual será a próxima artimanha dele. Dizem que seu próximo projeto será uma releitura da clássica série de ficção-científica Além da imaginação. E meu coração já começa a palpitar!!!
Para aqueles que acreditam que o terror é gênero morto, estão enganados. Vejam esta pequena jóia (e com direito a pitadas de humor negro, é bom que se diga!). E para aqueles que ainda acreditam no discurso neoliberal da grande nação, a terra dos homens livres... Na boa. fiquem com Jordan Peele. Pois não custa nada duvidar da classe dominante. Nem que seja só um pouquinho.
O filme proibido (Boy erased e a moral de que "tudo é perversão" hoje em dia)
Que bom seria se o ser humano deixasse seu semelhante em paz com suas convicções políticas, econômicas e religiosas! Infelizmente, às vezes tenho a triste percepção de que a humanidade só existe para desmitificar o mundo e, no final das contas, acaba por se transformar ela mesma numa eterna mitologia sem sentido.
Profundo, não é mesmo? A sétima arte de vez em quando me deixa assim, reflexivo.
Pois bem: esta semana enfim consegui assistir o tão famigerado Boy erased - uma verdade anulada, do ator e diretor Joel Edgerton, que foi boicotado em nossos cinemas por "ofender" a determinados segmentos religiosos que apoiam o atual governo federal vigente. Digo de antemão: uma infeliz decisão, pois o longa reflete - e muito! - uma triste realidade que anda em voga no Brasil e no mundo afora.
Boy erased conta a história do jovem Jared Eamons (Lucas Hedges) que descobre, no auge da adolescência, seu interesse por homens. O problema é que ele é filho de um pastor evangélico de visão não somente conservadora, como por vezes extremista (aliás, um interessante trabalho de interpretação do ator Russell Crowe) e ele acredita piamente que seu filho sofre, isso sim, de uma perversão e ela pode ser curada, eliminada de sua personalidade.
Resultado: ele decide inscrever o filho numa terapia de conversão e é justamente nesse momento que começa o grande martírio do rapaz. Não bastassem os olhares tortos da população e dos colegas de faculdade na rua ele ainda tem de enfrentar o discurso intolerante e repressivo do "orientador" do programa, um homem - diga-se de passagem - sem a menor formação profissional necessária para conduzir tal tratamento..
O filme de Edgerton - que vêm se provando bom diretor, com longas como O presente -, mais do que traçar uma linha tênue entre certo e errado (vi alguns sites de cinema rotulando o filme de maniqueísta e, honestamente, não sei se concordo com esta interpretação!), mostra o quanto pioramos como sociedade.
Vivemos uma era de extremismos, pautada por um discurso religioso ferrenho, que acredita que a solução para todos os problemas da face da terra está exclusivamente na crença em Jesus Cristo, e não nos demos conta do quanto estamos perdendo no quesito diversidade. Ter uma opinião própria, decidir sua própria opção sexual ou mesmo escolher sua própria formação cultural viraram quase motivo de guerra, gerando bunkers ideológicos prontos para serem atacados a qualquer momento por qualquer um que se acredite acima do bem e do mal simplesmente por conhecer os preceitos da Bíblia.
Mesmo o momento-chave, em que pai e filho põem as cartas na mesa e tentam uma prestação de contas entre eles, é ocultado - ou bloqueado - por uma espécie de muro existencial (muito parecido com o muro, esse sim físico, que o presidente Donald Trump quer impôr aos mexicanos de qualquer jeito). É difícil para este pai velha guarda, que tornou suas escolhas no passado uma blindagem para lidar com os problemas da atual sociedade, confusa, perdida, tentando encontrar o seu próprio caminho, entender o próprio filho. Pior: parece tarefa impossível para ele, como cristão, permitir que sua prole faça suas próprias escolhas.
Ao final da película a sensação que fica no espectador - pelo menos, foi a que tive - é a de um gosto amargo, de um livro incompleto, em que você deseja ler o desfecho, mas ele não pode ser escrito, por imposição de pessoas que querem regrar o mundo, recontar a história, excluir os diferentes, evitar o futuro porque ele (visão dos conservadores) denigre o passado glorioso, porém manipulado em seus fatos e acontecimentos.
Fica aqui, da minha parte, um recado para os segmentos religiosos que boicotaram o filme: vocês deram não somente um tiro no próprio pé, como incentivaram uma geração de cinéfilos e curiosos a, isso, sim, correr atrás do filme nos serviços de streaming, google, etc... Digo isso, porque se existe algo de que o brasileiro médio não gosta é de polêmicas e proibições. Fizeram o mesmo com Je vous salue Marie, de Godard e O último tango em Paris, de Bertolucci no passado e eles se tornaram cults.
Ou seja: moral da história - quer ser visto? Basta dizer "não pode", "não acrescentará nada à sua vida".
Veneramos monstros (Vox lux: o preço da fama e o que transformamos em celebridades)
Volta e meia eu me pergunto se os artistas musicais de quem eu gosto são realmente flor que se cheire, se são aquilo que vendem para o público. E em muitos casos me desaponto com a resposta ou fico aterrorizado. E vocês, meus caros leitores, que acompanham meus devaneios e desabafos narrativos. fazem isso também? Pois deveriam. Urgentemente.
Vivemos uma era difícil em termos musicais. A todo momento são ofertadas ao público fraudes musicais aterradoras, artistas que não merecem sequer o rótulo de artistas, pois o que realizam é difícil de catalogar como arte. E mais assustador ainda: são aplaudidos, ovacionados por isso. Eu sei que vai ter muita gente que ficará puta com este parágrafo, mas não dá para fingir. Pioramos - e muito! - neste segmento. Aliás, em muitos outros também.
Mês passado me deparei com um filme que me deixou ainda mais estarrecido sobre o tema. Tanto que levei este tempo para expôr minhas impressões sobre o projeto. Trata-se de Vox lux: o preço da fama, de Brady Corbet. E só para constar um fato curioso: desde Precisamos falar sobre o Kevin, de Lynne Ramsay, não me deparava com algo tão macabro (e profundamente verdadeiro) sobre a sociedade contemporânea.
Vox lux conta a história de Celeste que, ainda adolescente, sobreviveu a um atentado no colégio onde estudava (observação: ela namorava o responsável pela tragédia). Durante o funeral em homenagem às vítimas, incentivada pela irmã mais velha que achava sua voz bonita, canta uma música inspiradora, repleta de fé e esperança por um futuro melhor. Pronto. Estava criado o terreno para que a inescrupulosa indústria fonográfica transformasse a jovem num ícone pop.
A artista que Celeste (vivida em duas fases pela jovem Raffy Cassidy e pela ótima Natalie Portman) se torna não difere em nada de invenções musicais na linha de uma Britney Spears, Rihanna, Sia e outras "divas". Ela não é a compositora de suas próprias canções, não canta ao vivo, e fomenta - e enriquece - ao seu redor uma entourage de abutres, capitaneados por seu empresário arrogante e impulsivo (vivido pelo ator Jude Law). E importante que se diga: exibe a arrogância e o desdém típicos de quem costuma fazer sucesso sem realmente ter mérito algum.
A trama ganha uma retomada insólita quando, após gravar um novo videoclipe, quatro jovens usando a mesma máscara que ela utilizara no vídeo, fazem uma chacina numa praia, tirando a vida de milhares de pessoas, e Celeste é indagada sobre sua responsabilidade na tragédia e os limites de fazer uma arte vazia, voltada ao lucro e ao hedonismo.
É nesse momento que meu cérebro me transporta da tela do cinema para o mundo real e me pego refletindo acerca dessa nova geração musical vigente. Lembro-me de ter visto tempos atrás uma entrevista com o escritor Paulo Coelho em que ele defendia a questão do gosto musical como uma "escolha que variava de geração para geração". Muitos, dizia ele, não veriam nada nos Beatles nos dias de hoje pelo simples fato de que não viveram o auge da beatlemania. Portanto, se sentiriam deslocados ao falar sobre a banda ou mesmo idolatrá-la. Faz sentido até certo ponto.
É bem verdade que não posso exigir das novas gerações a mesma percepção que eu tenho até hoje sobre a banda Queen ou Renato Russo. Não seria sequer justo. Entretanto, acredito que essa adolescência atual precisa rever seus conceitos. Principalmente o papel dos seus ídolos dentro do mundo em que estamos (sobre)vivendo dia a dia.
É visível a cultura blasé e afrontosa reinante no mundo pop de hoje. E em alguns aspectos até criminosa. Fico pensando com meus botões toda vez que assisto um clipe de artistas como 50 cent, Kanye West, Justin Bieber, Tupac Shakur, entre outros, que tipo de gente dá status de celebridade a esse povo arrogante, às vezes oriundo de um cenário marginal, que nada acrescenta ao planeta terra bem como aos seus respectivos países.
Fico possesso quando penso nisso.
A billboard, é triste afirmar isto, está repleta de Celestes. Pessoas vazias que chegaram ao sucesso por um caminho, digamos, tendencioso. E nós, fãs acéfalos, estamos venerando monstros ideológicos da pior espécie. E orgulhosos de nossas criações. Dizer "até quando?" já não responde mais a esta questão incômoda. É preciso acordar, antes que sejamos engolidos por nossas próprias más escolhas.
P.S: o único revés neste artigo e que, infelizmente, produções como Vox lux não são exibidas num circuito maior. Elas ficam fadadas à pequenos nichos, públicos segmentados. E isso é proposital, pois o importante é alienar as massas com filmes de super-heróis e franquias babacas. Isso também precisa mudar! Nem sempre o espectador quer só pão e circo.
O hércules do rock (Rocketman, Elton John e a música nunca mais foi a mesma)
"Certas pessoas vieram ao mundo para brilhar", li certa vez num livro sobre cultura pop de autoria de um famoso pesquisador do gênero. Eram os anos 90 e muitas pessoas da antiga me diziam que o que era bom já havia passado há anos e eu não tivera a oportunidade de apreciar. Não concordei com o argumento (até hoje não concordo), mas mesmo assim o ouvi por uma questão de educação e respeito aos mais velhos (embora nem sempre eles estejam certos!).
O tempo passou, meus cabelos infelizmente se foram (por minha culpa, confesso) e continuei lendo e absorvendo a cultura pop como um lunático, um delirante, um apaixonado pelo tema. E dentre as inúmeras pessoas que povoaram - e povoam até hoje - a minha cabeça há um capítulo especial reservado à Reginald Dwight. "Eu não sei quem é", você está doido para dizer. Mentira. Você sempre soube quem era, só não conhecia o seu nome de batismo. Falo de Sir Elton John, o mago do piano ou, como gosto de chamar toda vez que o ouço no you tube, capitão fantástico (nome de um de seus álbuns mais foda!).
Pois bem: há anos quero ler uma biografia dele, mas nossas editoras não me ofereceram esta oportunidade até agora (parecem mais preocupadas e interessadas em auto-ajuda, livros místicos, de colorir, entre outras bobagens editoriais que povoam nosso mercado atualmente). Quem sabe agora, após a realização da cinebiografia Rocketman, do diretor Dexter Fletcher, também responsável por consertar muitas das asneiras contadas no longa Bohemian Rhapsody que concorreu ao Oscar esse ano, eles - os editores - enfim tomem coragem.
Mais do que uma mera cinebiografia, Rocketman é um grande musical (algo que eu vinha sentindo falta há algum tempo, pois hollywood anda confundindo o gênero com tolices na linha La la land). Trata-se, no caso da história do cantor, de uma grande viagem do céu ao inferno com toques de fábula e surrealismo, e mostrando o quanto o tão alardeado e idolatrado show business pode ser maléfico e destrutivo.
Fui ao cinema com um ponto de interrogação na minha cabeça, pois já sabia que o ator Taron Egerton (que interpreta Elton John) cantava todas as canções no longa e eu queria ouvir a voz do próprio Elton. Podem me chamar de chato ou antipático, mas às vezes críticos são cheios de pequenas manias incômodas. Acreditava eu que o filme poderia ser estregado por qualquer um cantando. Ledo engano! Taron se mostra sublime com uma voz precisa, que me surpreendeu. E não somente isso: fiquem de olho no rapaz, pois acredito que sua carreira deslanchará de vez a partir de agora.
Desfeita a primeira má impressão, é com olhos marejados de lágrimas que vejo o diretor passear por nuances do artista, sem a preocupação de seguir uma cronologia exata ou metódica. O que importa aqui é a jornada pela qual o jovem Reginald teve que passar para se transformar em Elton John e chegar ao estrelato. Elton é fruto de uma família disfuncial, cheia de problemas, um pai omisso, uma mãe preocupada única e exclusivamente com a própria vida. E tudo o que ele viveu pós-relacionamento familiar foi meio que uma extensão desses problemas.
A parceira com Bernie Taupin (vivido por Jamie Bell, não mais o garoto de Billy Elliot), o romance escandaloso com o opressor John Reid, a luta para se impor como homossexual (algo que, no início da carreira, impossibilitou sua jornada), a incerteza sobre o futuro, já que acreditava que seu talento só era possível por conta do envolvimento com o álcool e as drogas... Ser Elton John nunca foi fácil. Na verdade, uma tarefa para um verdadeiro Hércules (sobrenome que ele próprio assume no filme).
Alguns espectadores enjoados reclamarão da abordagem do filme (a história é contada do ponto de vista do artista numa clínica de reabilitação, procurando refazer sua vida após tantas más escolhas). Eu, confesso, gostei da postura de Fletcher porque durante anos li matérias sobre Elton John em que ele se dizia "lutando contra demônios pessoais" para se manter de pé dia a dia. E, além disso, somente alienados e fanáticos sem conteúdo esperam realmente que a trajetória de um artista desse gabarito seja feita só de alegria e satisfações.
Em outras palavras: nunca acreditei na vida artística sem deslizes ou tropeços. E quando me deparo com a terrível tentativa de me convencerem disso, fico achando que o mundo ou a sociedade está tentando me lobotomizar, isso sim. E isso, meus amigos, é perda de tempo.
Sempre vai ter algo ou alguém faltando na história de um ídolo para que os fãs mais xiitas possam dizer: "está vendo? ele escondeu...". Dêem tempo ao tempo e os detratores do filme aparecerão. Eles sempre aparecem.
Para os demais espectadores, os não interessados na polêmica (grupo do qual faço parte), recomendo Rocketman com euforia. Se em Bohemian Rhapsody reclamaram da falta de coragem em abordar certos aspectos da vida de Freddie Mercury, aqui o que vejo é uma produção cheia de ousadia, com números musicais esplendorosos e preocupada em retratar as aflições de um dos maiores artistas do século passado (e deste também). Que o diga as cenas de sexo cuja exibição foi proibida em alguns países. Que babacas! Querem transformar Elton John em algo que ele não é. E ainda se dizem democráticos.
Ao final da sessão, leio que o cantor está sóbrio há 28 anos, casado e com dois filhos adotivos. Ou seja: venceu a batalha, decidiu seguir em frente, contra tudo e contra todos. Bem fez ele. Somente um Hércules do rock n' roll para vencer uma batalha dessas!
A semente da dúvida (Todos já sabem: um teatro de máscaras pós-moderno)
Vivemos neste século XXI uma cultura da indiferença atroz, nunca antes vista desta forma. "Aquilo que atinge aos outros não me interessa", dizem a todo momento os homens e mulheres que se dizem cidadãos de bem nesta civilização globalizada. Contudo, trata-se de uma indiferença cretina se levarmos em consideração que quando o atingido é o indiferente ele cria uma série de distorções e situações confusas, sempre tentando colocar os outros em xeque. Como se ele nunca fosse de fato o culpado e sim a vítima.
Esta semana assisti em dvd um longametragem que me mostrou de forma clara e objetiva um pouco desta cultura confusa e torpe que vêm ganhando mais e mais adeptos dia-a-dia. Trata-se de Todos já sabem, do diretor iraniano Asghar Farhadi, vencedor de dois Oscars de melhor filme estrangeiro. E desde já adianto: moralistas de carteirinha ficarão indignados com o desfecho.
Todos já sabem conta a história de Laura (Penélope Cruz), que chega à sua cidade natal - que não visita há anos - para assistir o casamento de sua irmã. Com ela, vem seus dois filhos. E a princípio tudo leva a crer que se tratará de uma festa alegre, do reencontro com familiares e amigos. Entretanto, é perceptível no clima da festa antigas cicatrizes à mostra, como por exemplo, a da atual esposa de Paco (Javier Bardem), com quem Laura namorou no passado. Naquela época, Paco era apenas um reles empregado da vinícola de seu pai. Já hoje, um empresário bem sucedido, sua presença incomoda a muitos membros da mesma família.
Durante a cerimônia sua filha mais velha, Irene, desaparece e todos começam a procurá-la desesperadamente. Minutos depois, Laura recebe uma mensagem pelo celular. Trata-se de um sequestro e seus perpetradores avisam que caso ela avise à polícia sua filha será assassinada. E neste exato momento nasce uma semente de dúvida que irá pairar por todo o seio familiar.
As trocas de acusações entre parentes são as mais diversas. E com a chegada do marido de Laura, Alejandro (Ricardo Darín), um homem falido com histórico de alcoolismo que quase tirou sua própria vida, o clima acirra ainda mais por conta da descoberta da real paternidade da moça sequestrada.
Farhadi, que é mestre em transpôr para o cinema dilemas morais (vide o que ele fez nos longas A separação e O apartamento) realiza aqui sua trama mais intrincada, cheia de reveses os mais distintos. Desde a mulher que está se separando do marido e cria sozinha a filha até a figura do pai, um homem destruído pelo tempo, e que vive aprisionado ao passado de glórias, quando seu patrimônio era muito maior do que é hoje, o que se vê na tela é uma grande ciranda de estereótipos os mais preconceituosos possível. E por conta disso é fácil entender o porquê de todos acusarem todos a todo momento.
Trata-se de uma família que passou boa parte da vida vivendo de privilégios conquistados por anos e anos de trabalho duro. A partir do momento em que o padrão de vida geral cai (algo que não é problema exclusivo da América Latina e sim do mundo contemporâneo como um todo), fica notório e visível o ressentimento daqueles que não querem ficar por baixo ou admitir suas dificuldades financeiras e sempre acusam os outros de seus próprios problemas ou frustrações. Na verdade, o que a película parece dizer em suas entrelinhas muito bem justapostas é que o que todos parecem saber de fato é que os dias de glória já se foram, o mundo já não é mais o mesmo e é preciso encarar a realidade dos fatos. O problema é: como?
Estamos falando de burguesia e burguesia nunca gosta de dar um passo atrás e vislumbrar novos horizontes.
É fácil entender por que um longa desses foi tão mal distribuído em nosso circuito exibidor. Lembro que quando foi lançado em nossas cinemas eu desisti imediatamente de ir assistí-lo, por conta dos horários e salas de projeção extremamente inacessíveis. Nada mais comum hoje em dia em se tratando de um circuito mais afeito à produções fantásticas e sobrenaturais. Porém, mesmo assim, é preciso desabafar aqui: as redes de cinema perderam uma grande chance de exibir um filme que é a cara dos tempos atuais, marcados por discursos idiotas e por vezes inverossímeis por se esconderem atrás de velha e arcaica moral monetária.
Como para nossa felicidade (e aqui me refiro aos cinéfilos de fato e não aos meros espectadores de fim de semana) também possuímos a facilidade de adentrar o mundo da internet, com seus Googles, You tubes, fóruns de cinema e outras interfaces que volta e meia disponibilizam material para download, convido os leitores deste artigo a procurarem o longa na rede e o quanto antes.
Mais do que um mísero drama, Todos já sabem é um exemplo pós-moderno de ótima qualidade do clássico e ainda atuante teatro de máscaras que rege nossa vil sociedade até hoje. E aos que ainda acreditam no mundo real, estão esperando o quê para ir atrás dessa pequena jóia que passou despercebida no nosso circuito comercial?
Obsessivo (No portal da eternidade, Van Gogh e a relação entre arte e loucura)
Comecei a ler com mais frequência sobre a história da arte e seus grandes expoentes de uns dois anos para cá muito motivado pela anarquia e a loucura presente no tema. Não, é isso mesmo que você leu! A história da arte me fascina pelo que ela tem de louco, de visionário, de anárquico, principalmente no desejo de certos artistas de romperem barreiras. A cada nova informação que consigo a respeito de Goya, Picasso, Miró, Salvador Dalí, Monet, Toulouse Lautrec e tantos outros, me dou conta de que a loucura e o inconformismo regem a arte com unhas e dentes (e isso não é um aspecto negativo nessa discussão, pelo contrário...). O mundo certamente seria bem pior não fosse a intolerância e o desespero desses mestres.
Dentre os que mais chamaram a minha atenção até hoje há um capítulo especial todo dedicado a Vincent Van Gogh. Seja pela traumática história pessoal ou pela trajetória subversiva com que conduziu sua obra, ele sempre foi um homem à frente do seu tempo. Homem? Que bom seria se fosse fácil assim traduzir o pintor. Van Gogh foi um sobrevivente de uma época turbulenta, mas ao mesmo tempo febril em termos de nuances e debates políticos. E quando assisti ao filme Sonhos, do diretor Akira Kurosawa, que possui um módulo todo dedicado ao pintor (interpretado no longa pelo cineasta Martin Scorsese), fiquei com um sentimento preso na garganta de que sua história ainda seria contada com todo o garbo que merecia.
Pois bem: esse filme é No portal da eternidade, do diretor Julian Schnabel (que é mestre em retratar figuras polêmicas do mundo artístico; são dele os longametragens Basquiat - traços de uma vida, Antes do anoitecer - cinebiografia sobre o escritor Reinaldo Arenas - e O escafandro e a borboleta).
No portal da eternidade não é uma cinebiografia no sentido clássico do gênero. Ela pega, na verdade, um fragmento da vida deste magnífico artista e se debruça sobre ele, para fazer com que nós, espectadores, entendamos o que se passava em sua cabeça e como construía seu processo criativo.
Van Gogh é vivido aqui nesta versão pelo ator Willem Dafoe (de quem sou fã desde os tempos de Mississippi em chamas), que mostra um domínio total de seu personagem, conseguindo fazer o o público entender de forma simples e direta os conflitos internos que assombravam esse artista fabuloso. À parte as telas que o consagraram mundo afora e a relação tumultuada com o irmão Theo (que o bancou durante muitos anos), o que está em jogo realmente aqui é a mentalidade tempestuosa de Van Gogh. O pintor não era um homem de gênio fácil. Pelo contrário... Era capaz de perder a paciência com a maior facilidade e não gostava de ser minimamente interrompido, sob pena de agredir àqueles que destruíram sua concentração. Foi malvisto por muitos políticos e habitantes de cidades por onde passou à procura de ideias para suas telas mais memoráveis.
Entretanto, quando paro para analisar sua gênese com mais calma, acredito que isto também faça parte de seu legado artístico. Homens de moral simples e pacata não criam, sob hipótese alguma, uma obra tão vasta e apta a tantos debates. Se existe uma coisa que eu aprendi lendo sobre arte e entretenimento nesses anos todos, é que o criador de fato - seja musical, cinematográfico, literário, etc - nunca será um ser ordinário, desses que você encontra passeando pelas ruas a todo instante. Faz parte da alma artística um pouco de incredulidade e, porque não dizer, irracionalidade perante o mundo (principalmente esse mundo louco em que vivemos atualmente).
E Van Gogh tinha isso, essa insatisfação plena, transpirando pelos poros.
Willem Dafoe certamente merecia o Oscar de melhor ator deste ano bem mais do que Rami Malek interpretando o astro do rock Freddie Mercury. Que me perdoem os fãs do Queen e das cinebiografias musicais - que andam em voga atualmente em hollywood -, mas isso é um fato facilmente identificável. Infelizmente a academia parou de reconhecer grandes nomes da história há alguns anos e preferiu cometer mais essa bola fora.
Contudo, se por um lado não há mais tanto espaço para artes visuais do passado e grandes nomes da pintura clássica, por outro é ótimo poder assistir um filme sobre Van Gogh com o nível de tecnologia proposto pela sétima arte de hoje. Se eu já era curioso acerca da vida desse gênio, agora vou sair correndo pelos sebos e livrarias atrás de mais informações sobre sua vida e intelecto. "O cara era foda. Ponto", foi a primeira frase que veio à minha mente ao sair do cinema ao final da sessão.
E quem perdeu com isso? Os nerds e alienados da contemporaneidade. De novo. Mas isso, vocês que acompanham meus textos há tempos, já sabem de cor e salteado.
Cicatrizes não têm prazo de validade (Dor e glória, a autoficção almodovariana e a vida como resultado de sofrimentos e más escolhas)
Há mais ou menos umas duas décadas e meia (eu estava recém saindo do então segundo grau) fui à uma exposição no centro da cidade sobre escritores malditos que mexeu de forma definitiva com a minha cabeça e a minha relação com a literatura. Na entrada de um dos setores da mostra, havia um mural com os seguintes dizeres: "a humanidade, nada mais é, do que uma eterna criança que acumulou cicatrizes ao longo da vida". Como era bastante novo na época, a princípio não ficou bem claro para mim se eu havia entendido o contexto proposto pelo curador da exposição.
Eis que passado tanto tempo me deparo com o mais novo filme do diretor Pedro Almodóvar, Dor e glória, e enfim consigo contextualizar o que a minha versão adolescente não conseguiu.
Dor e glória é a volta do mestre do cinema espanhol a uma temática que ele conhece como poucos: o sofrimento. E confesso que estava ansioso pela estreia do longa, pois minha última sessão de um filme dele, o irregular Os amantes passageiros, me deu a impressão de que o diretor encontrava-se cansado, carente de boas ideias.
E é exatamente essa sensação de cansaço que abre o filme quando seu protagonista, o também cineasta Salvador Mallo (Antonio Banderas, vencedor da Palma de Cannes de melhor ator este ano), submerso na piscina, cheio de cicatrizes, exaurido pelo tempo, começa a relembrar de sua infância.
Salvador carece de boas ideias para dar continuidade à sua carreira. Seu maior sucesso, o longa Sabor, foi remontado pela filmoteca e será exibido. A filmoteca o convida para um debate após a reexibição do longa e ele quer que seu protagonista, o ator Alberto Crespo (Asier Etxeandia), com quem cortou relações após as filmagens, o acompanhe no evento. Rusgas vêm à tona novamente e após um pedido de desculpas, Alberto encontra um monólogo teatral inédito escrito pelo diretor e pede para encená-lo. Contudo, Salvador é reticente, vive refém de suas dores pelo corpo todo e das memórias da mãe Jacinta (Penélope Cruz), uma época em que era mais feliz apesar da pobreza e da educação rígida, imposta por um colégio de padres.
Não bastasse tudo isso há ainda a possibilidade de um diagnóstico de câncer que pode mudar completamente o seu futuro e as escolhas inusitadas que faz a essa altura da sua vida (por exemplo: ele descobre a heroína como anestésico para seu sofrimento físico).
Muitos críticos de cinema vêm chamando a obra de uma autoficção, mas ela é bem mais do que isso: é uma grande colcha de retalhos sobre a vida, as más escolhas que fazemos e a dificuldade de seguir em frente após uma certa idade, principalmente num mundo contemporâneo apegado em excesso ao ritmo veloz e as relações líquidas, efêmeras.
Banderas entrega de forma brilhante um expoente desse homem do século XXI, perdido em meio a uma sociedade que muda de caráter como quem muda de roupa e onde ninguém se importa mais de fato com ninguém. Para muitos, o tom do filme - que poderia ser niilista - acaba surpreendendo ao mostrar um Almodóvar que soube fazer uma pausa na carreira na hora certa, visando encontrar dentro de si um outro artista, mais maduro e consciente desta nova realidade em que vivemos.
Se por um lado muitos espectadores mais ranzinzas dirão que Dor e glória passa longe de seus trabalhos mais notáveis (como O matador, Tudo sobre minha mãe e Fale com ela), por outro ele entrega seu melhor trabalho nesta última década, e deixa um aviso para seus fãs mais alucinados: até o melodrama às vezes precisa ser revisto em nome do amadurecimento pessoal.
E em um ano cheio de filmes meia-boca e promessas não concretizadas, é louvável ver um cineasta ter a coragem de falar de si de forma tão humana e direta.
Pronto. já fiquei ansioso pelo próximo trabalho dele...
Vendendo a alma (Suspiria: uma desconstrução sobrenatural do mercado corporativo)
Imagine uma empresa bem sucedida, de renome (uma Coca-cola, Rede Globo, Apple, IBM, McDonald's, etc), com uma folha de pagamento majestosa, funcionários felizes, realizados, certificados de responsabilidade ambiental, ações na bolsa de valores, o melhor dos mundos. Agora pense a respeito do que você NÃO CONHECE acerca dessas mesmas empresas, suas negociatas sujas, aquilo que não fornece de informação para a mídia, os escândalos e processos abafados na surdina... Imaginou a cena?
Pois bem: por incrível que pareça o filme nos últimos anos que melhor delineou essa realidade ambígua do corporativismo empresarial foi um longametragem de cunho sobrenatural. Estou falando do remake de Suspiria, do diretor italiano Luca Guadagnino.
O cenário do longa - a escola de dança Markos - nada mais é do que uma metáfora para muitas dessas corporações que se escondem atrás da fama de seus nomes e seus falsos engajamentos sociais. Não vejo diferença alguma entre a professora Madame Blanc (Tilda Swinton) e muitos dos executivos casca-grossa do chamado Vale do Silício, epicentro da tecnologia mundial hoje. E mesmo a jovem Susie (Dakota Johnson) não é o exemplo de profissional promissora que muitas empresas desejam ter em seus quadros, mas sim o gatilho catalisador de todas as desavenças que costumam ocorrer em qualquer organização administra.
Contudo, há todo um clima surrealista, soturno, diabólico na maneira como Gaudagnino constrói sua narrativa. E isso é proposital. Ele força a mão em muitos momentos, pois quer mostrar o quanto esse animal (que chamamos corriqueiramente de ser humano) é tão complexo e autodestrutivo.
O objetivo (ou meta, como costuma chamar o mercado corporativo) é montar o espetáculo Volk. Entretanto, trata-se de uma jornada árdua que custou o abandono de muitas dançarinas, exauridas tanto pelo processo de ensaiar, quanto pela rigidez da responsável por montar o espetáculo. Entretanto, a pergunta que me fica é: até que ponto abandonamos de fato uma empresa dessa envergadura?
Conheci tempos atrás dentro do metrô uma moça, ex-funcionária da Infoglobo, uma das subsidiárias das organizações Globo, que me disse nunca ter conseguido virar a página após sua demissão. E mais: teve dificuldade de voltar ao mercado de trabalho e mesmo de conseguir uma carta de referência da empresa.
Assim na vida, assim na ficção. As dançarinas começam a desaparecer e o diretor entrelaça seus sumiços com o jogo de corpos aprendendo a coreografia do espetáculo, que mais parecem engrenagens trabalhando em série como no Tempos modernos, de Charles Chaplin. E essa correlação não é acidental. Todas ali são peças descartáveis num mercado que descarta seres humanos com uma facilidade cada vez mais impressionante.
Porém, como nem tudo na vida é sempre preto no branco, o diretor precisa inserir obstáculos e subtramas obscuras para confundir o espectador, deixá-lo à primeira vista perdido. Daí toda a crítica feita ao estado como mantenedor da ordem (o pano de fundo envolvendo o sequestro perpetrado pelo grupo terrorista Baader-Meinhoff é, no mínimo, um tanto melindroso), à sexualidade como via de escape para lidar com os problemas usuais da sociedade e mesmo à fé, artigo cada vez mais polêmico na atual conjuntura social vigente.
E esmiuçada toda esta trama sórdida, o espectador se depara com uma grande desconstrução sobrenatural (dark mesmo) do que costumamos chamar de mercado de trabalho. Na verdade, estamos virando mecanismos de um esquema torpe que transforma homens em reles objetos de curta duração, logo substituíveis por outros mais jovens.
Alguns mais afeitos à idolatria ao sistema chamarão isso de "a vida como ela é". Já outros, que preferem encarar de frente a dureza dos fatos e não perdem tempo acreditando em sorte, destino ou determinismos biológicos, sairão da sessão um tanto amargurados e ainda mais descrentes com a realidade cotidiana.
Mesmo assim, recomendo Suspiria com orgulho. Quando soube do lançamento deste projeto a princípio fiquei temoroso pelo resultado, pois adoro o longa original de Dario Argento (de 1977) que foca mais no aspecto horror. Mas acabei admirando a nova versão por sua ousadia. Tanto que me propus a repensar o projeto à luz dos tempos atuais.
E se por acaso não entendi nada da proposta atual e não passo de um louco que enxerguei demais onde não devia, mesmo como loucura minha reflexão me deixou um tanto satisfeito.
E tudo isso através de um filme de terror... Quem diria!
Quem detém o conhecimento? (O gênio, o louco, a criação do dicionário Oxford e a velha cultura opressiva dos engravatados)
Nunca vou entender essa cultura vigente no nosso país de que o conhecimento está sempre nas mãos dos acadêmicos, dos bem nascidos, dos perpetradores do beletrismo, dos privilegiados. Somos uma nação que, infelizmente, não acredita em autodidatismo e sempre que pode os rotula de "falsos intelectuais".
O gênio e o louco, de Farhad Safinia, é mais um daqueles filmes que foi lançado nos cinemas tarde demais (digamos: um década pelo menos). Faz parte de um imaginário que se perdeu no circuito exibidor de cinema: o de filmes inteligentes, para aqueles espectadores que desejavam sair da sala de projeção transformados de alguma forma. Hoje em dia isso caiu em desuso por conta do sucesso de empresas como a Marvel, a DC, a Lucas Film, que visam como primeiro objetivo o lucro e a quebra de recordes de bilheteria.
Todavia, como não pertenço a esta geração que vê a sétima arte como mero entretenimento e sempre gostei do desafio de pensar (algo que anda em extinção na atual sociedade), foi com grata surpresa que me deparei com um longa que respeita os cinéfilos amantes da língua, da literatura como um todo e também de uma história bem construída.
O filme de Safinia conta a história da criação do dicionário Oxford. E tão difícil missão passa pelas mãos de dois homens cujas formações incomodam à sempre pedante intelligentsia britânica. O primeiro é James Murray (Mel Gibson), um autodidata escocês, tudo que as cabeças mais brilhantes de Oxford detestam, por considerá-lo um homem indigno (por não possui diploma de nível superior) para tal missão. E o segundo, ainda mais grave, é o médico William Chester Minor (Sean Penn, fantástico!), condenado a viver num manicômio após ter cometido um crime leviano.
Porém, o que entendem esses homens de terno-e-gravata, portadores de PHD, sobre estar realmente habilitado para realizar uma missão dessa magnitude?
Nunca imaginei que criar um dicionário pudesse dar tanto trabalho e gerar tanta política. O longa aborda toda a luta de Murray para construir um compêndio que pudesse representar toda a nação inglesa, e não somente a elite que considerava certas expressões e palavras populares desnecessárias. Houve, inclusive, um momento em que cheguei a correlacionar a saga de Murray à criação da Bíblia de Gutenberg, tamanho os interesses que estavam em jogo naquele momento.
A eterna mania opressiva e radical dos engravatados acadêmicos de exibiram seus diplomas como solução para o mundo resvala na inteligência nítida de Minor, um homem atormentado por sua própria loucura, o que o leva a um comportamento por vezes quase animalesco, mas sob certo prisma coerente com a sociedade maquiavélica na qual vive. E é esse homem o único que realmente entende o sonho - para muitos, um delírio - de Murray. Somente esta dupla e não um bacharel, mestre ou doutor conseguirá entender a grande provação que é criar uma obra literária deste nível.
Pena que os espectadores de hoje - os mesmos que acharam a adaptação de O código da Vinci, de Dan Brown, uma sucessão inesgotável de blá blá blás (pois é: conhecimento hoje em dia entrou para a categoria de desnecessário, vide o sucesso de certos "ignorantes" na indústria fonográfica e literária) - não tenham a paciência necessária para comprar o roteiro lúcido de John Boorman (criador de filmes memoráveis como Excalibur, Amargo pesadelo e Esperança e glória).
Mais uma vez (como já disse em outros artigos cinematográficos meus): quem perdeu foram eles mesmos!
O gênio e o louco não é franquia, remake, spin off ou sequel de nenhuma outra mercadoria gratuita que vem sendo feita nos últimos anos em hollywood. Pelo contrário: é filme para corajosos e sobreviventes dessa eterna mania do mundo globalizado de querer "esvaziar a cabeça das pessoas". Honestamente: não sou bexiga para comprar essa torpe realidade.
Dito isso, recomendo o longa para aqueles que não aguentam mais sair de casa para ver os mesmos filmes ou a continuação dos mesmos. E, sim, ainda há vida inteligente na sétima arte. A diferença é que agora é você mesmo quem tem de procurá-la.
Cada um no seu quintal (Cats: uma sátira divertida sobre o regime de castas que existe em todos os lugares).
Por mais que certos exemplares da sociedade tentem negar, vivemos num regime de castas. Isso nunca mudou e, honestamente, depois de ter visto praticamente de tudo em pouco mais de quatro décadas de existência, não acredito que isso mudará algum dia. Faz parte do chamado "viver em sociedade" pertencer à certas dinastias e grupos de interesse (e o fator monetário sempre tem um peso extraordinário em nossas escolhas).
Esta semana fui rapidamente ao Méier (bairro onde morei por mais de 20 anos) à procura de um controle remoto novo para o meu dvd player e parei por uma meia hora - na verdade, nem isso! - num sebo famoso que há no bairro, perto da Rua Silva Rabelo. E qual não foi a minha surpresa ao me deparar com um exemplar intacto do dvd do musical Cats, um dos maiores fenômenos musicais da Broadway de todos os tempos, que eu sempre quis assistir mas nunca tive a devida oportunidade?
Mal chego em casa, vou logo pondo o disco para reproduzir e me deparo com um espetáculo audiovisual dos mais extraordinários e também com uma sátira a este regime de castas ao qual me referi no primeiro parágrafo.
Baseado em Old possum's book of practical cats, de T. S. Eliot, o espetáculo - aqui numa versão produzida pelo mestre dos musicais Andrew Lloyd Weber e dirigido por David Mallet - narra a saga dos gatos Jellicles, que se reúnem uma vez ao ano para realizar uma grande festa, uma grande celebração felina, que dará a um deles a possibilidade de renascer.
Porém, mais do que isso, o que fica claro na narrativa do musical é seu interesse em mostrar ao público espectador que mesmo no reino dos gatos é preciso saber pertencer a certos grupos sociais e respeitar certas hierarquias. Aqui, a palavra de sabedoria a qual todos seguem sem divergir, é a do velho Deuteronomy (Ken Page), uma espécie de profeta entre os Jellicles. É ele que será o mediador entre o gato escolhido o seu renascimento.
Definida a liderança do grupo, o que se vê logo a seguir é a velha e mais do que conhecida hierarquização social (algo que nós, seres humanos, conhecemos muito bem). A começar pelos gatos mais ilustres como, por exemplo, Jennyanydots (Susie Mckenna), referência em termos de elegância e comportamento e Bustopher James (James Barron), chefão da Rua Saint James, sabe de tudo o que acontece com todo mundo, o fiscal da região, até a chamada rabeira da sociedade. E nesse quesito há amostras um tanto interessantes e curiosas: Rum Tum Tagger (John Partridge, para mim a melhor voz de todo o elenco), o gato que não se submete ao sistema, não obedece regras, sejam elas quais forem, e só faz aquilo que quer; Macavity (Bryn Walters), o fora-da-lei, o criminoso, cuja simples pronúncia de seu nome já deixa os demais seres de sua espécie apavorados; Skimbleshanks (Geoffrey Garret), o gato vadio, que vive nos trilhos do trem, sempre à procura de levar vantagem em algum sentido.
Entretanto, há também espaço no espetáculo para figuras intermediárias e um tanto distintas, como Grizabella (Elaine Paige), a outrora gata fina, de madame, que perdeu tudo, e hoje vive da lembrança dos dias de glória passados e dos olhares acusadores dos demais gatos; Gus (John Mills), antigo ator de teatro - e dos bons - cujo único legado que lhe sobrou foram a velhice e as memórias do tempo em que era famoso, notado na rua; Rumpus (Frank Thompson), o gato-herói, responsável por dar fim à uma guerra entre pequineses e policiais; e finalmente, Mister Mistoffelees (Jacob Brent), o mágico, rei dos truques, não fosse ele o velho Deuteronomy continuaria nas mãos de Macavity (que, no fundo, deseja sua liderança e prestígio).
E desde que cada um respeite sua posição social dentro dessa hierarquia (em outras palavras: que cada um permaneça no seu quintal), maiores problemas não ocorrerão, como todo "bom exemplo" de sociedade que se preze.
Falar da parte técnica é chover no molhado. Um espetáculo de exuberância, repleto de luzes, boas canções, fogos de artifício, até truque de ilusionismo... Não é à toa que a peça ganhou ao longo dos anos a fama que possui.
Em tempos de super-heróis e adaptações de sucessos de bilheteria hollywoodianas invadindo a Broadway diariamente, vale a pena dar uma conferida em Cats e perceber que o básico ainda chama - e muito! - a atenção dos espectadores, principalmente os mais nostálgicos.
Procurem. É daquelas experiencias que nunca envelhecem.
Clássico revisitado (Terry Gilliam e o projeto de uma vida, Dom Quixote e os fantasmas que assombram um artista)
De tempos em tempos a sétima arte mundial nos apresenta projetos que são um tour de force na vida de seus realizadores. Histórias que parecem simples em sua execução na teoria, mas na prática são capazes de levar seus diretores ao pronto-socorro ou à falência. Martin Scorsese que o diga! levou quase três décadas para realizar seu megaprojeto Gangues de Nova York, produzido pelo hoje execrado pela indústria, Harvey Weinstein, e já contou em entrevistas o sufoco que passou para tirar a ideia do papel. Há casos mais extremos como, por exemplo, a tentativa do cineasta chileno Alejandro Jodorowsky de realizar o remake de Duna (que havia sido realizado nos EUA pelo diretor David Lynch, sem atrair grande bilheteria). Resultado: o longa nunca saiu do papel e ainda rendeu um documentário sobre a saga ocorrida. E como esquecer do hoje cult O portal do paraíso, de Michael Cimino, que quase levou a Paramount Pictures à ruína?
Nas últimas décadas o melhor exemplo de revés nesse sentido foi o do diretor Terry Gilliam. Há 25 anos ele almeja tirar do papel o projeto de O homem que matou Dom Quixote e, entre tentativas e frustrações sucessivas, de lá para cá já realizou outros seis longas (entre eles, pequenas jóias como 12 macacos, Medo e delírio em Las Vegas - baseado em livro homônimo do escritor Hunther Thompson - e o inusitado O circo imaginário do Doutor Parnassus) até que finalmente conseguisse colocar um ponto final na sua versão da saga de Miguel de Cervantes.
Contudo, o problema não foi totalmente extinguido com o final das filmagens. Houve problemas com a pós-produção, discussões com produtores (chegaram a quase tomar o filme das mãos dele!) e Gilliam chegou a enfartar durante o período. Isso mesmo! Um processo hercúleo comparável à Paradise Now, de Francis Ford Coppola, que também teve um processo de criação conturbado.
E eis que o sufoco finalmente chega ao seu momento de graça com o lançamento de O homem que matou Dom Quixote nos cinemas (cá entre nós: merecia uma distribução bem melhor por parte dos cinemas, que antigamente aguardavam projetos como esse com êxtase).
E não é que o diretor Terry Gilliam revisita o clássico de Cervantes de forma curiosa e inventiva?
A história se passa na Espanha durante as filmagens de uma adaptação de Dom Quixote realizada pelo jovem cineasta Toby (Adam Driver, que interpreta na verdade um alter-ego do próprio Gilliam). Em meio à decepções com o rumo do projeto, o diretor realiza uma pausa à procura de novas ideias que incrementem a narrativa do filme e se depara, durante um almoço, com uma cópia em dvd de uma versão da mesma história que realizou ainda nos tempos de faculdade. E redescobre o ator Javier (Jonathan Pryce, ótimo!) que havia feito Dom Quixote na ocasião. O problema é que Javier acredita ser de fato o verdadeiro Dom Quixote de la mancha e arrasta o diretor para uma jornada repleta de missões impossíveis.
Porém, a grande sacada proposta por Gilliam aqui é a maneira como ele insere questões que vêm atormentando a geopolítica do mundo nos últimos anos e a maneira como transforma o fiel escudeiro de Dom Quixote, o bonachão Sancho Panza, de mero coadjuvante à figura central da trama. É possível perceber as alfinetadas de Gilliam no roteiro (escrito a quatro mãos com Tony Grisoni) quando menciona a questão dos imigrantes ilegais e dos terroristas, além da forma debochada como lembra do atual presidente dos EUA dentro da trama. Sátira maior do que essa, impossível!
O homem que matou Dom Quixote fala dos fantasmas que assombram artistas de todo o mundo de tempos em tempos. E no caso de Terry Gilliam percebe-se que esse "projeto de uma vida" o perturbou muito mais do que ele próprio deixou transparecer ao longo dos anos. Ele pode até debochar, ironizar, desconversar, mas no fundo, no fundo, é perceptível o quanto que as idas e vindas envolvendo este longametragem mexeram com o seu racional e, também, com a paixão que ele nutre pela história. E nesse sentido a loucura de Dom Quixote cai como uma luva para suas pretensões criativas (embora ele se enxergue mais como um Sancho Panza dentro desta realidade).
Em outras palavras: o filme é uma belíssima catarse literária, narrada com todas as maquinações sórdidas que tornaram o diretor tão famoso e respeitado mundo afora. Convivendo entre artistas megalomaníacos, musas ninfomaníacas e patrocinadores excêntricos, seu Toby se autodesconstrói frame e frame buscando uma verdade que, no final das contas, nunca conseguirá ser mais do que aquilo que sua obra já mostra: um ponto de vista. Se ele deseja fazer do filme sua identidade ou DNA está comungando na fé errada, pois a arte é múltipla e, por vezes, traiçoeira ao nos apontar caminhos. E esse é o melhor legado que Gilliam poderia nos proporcionar a esta altura da vida e da carreira.
Não sei se este será o último longa de Terry Gilliam (espero que não, embora seu recente problema de saúde e a rotina de um cineasta que costuma produzir filmes grandiosos não costumem combinar), mas caso seja fica aqui meu respeito e gratidão por um artista que a meu ver nunca vacilou ou decepcionou em suas intenções. Podem me chamar de bajulador, mas é por causa de pessoas como Gilliam que me tornei cinéfilo, por conta de sua coragem, sua ousadia artística, e por nunca tratar seu público como idiota. Seus filmes são magníficos tanto do ponto de vista estético, como também pela forma como defende suas concepções narrativas. Já trouxe à tela o grupo Monty Python, os contos de fadas dos irmãos Grimm e até mesmo o Barão de Munchausen, sempre de maneira singular, sem rodeios ou invencionices. E com O homem que matou Dom Quixote nos entrega seu delírio mais pessoal, para deleite dos fãs mais apaixonados por sua filmografia.
E como eu poderia terminar esta humilde crítica sem manifestar o meu "longa vida ao mestre"? Desse jeito.
Uma viagem ao túnel do tempo (Era uma vez em... Hollywood, Tarantino apronta de novo e o cinema não é mais o mesmo)
Não é de hoje que digo em meus artigos sobre cinema que a sétima arte não é mais a mesma. Pena que os cinéfilos de hoje em dia não percebam isso, pois estão lobotomizados pela cultura super-herói vigente no mercado audiovisual contemporâneo. acreditem, meus amigos cinemaníacos mais novos: era fácil fazer cinema antigamente e não havia necessidade de tanto CGI, tanto efeito especial estourando na tela. Era preciso, isso sim, de boas ideias, a serem transformadas em bons roteiros. Contudo, é louvável também admitir que certos cineastas não se submeteram a essa vertente "espetáculo grandioso antes de tudo" do atual cinema (principalmente o hollywoodiano). E um desses expoentes máximos é, sem dúvida, Quentin Jerome Tarantino.
Quentin Tarantino não é só um cineasta. É um reinventor de clássicos do cinema mundial. E sua obra nunca se negou a mostrar esse lado (embora alguns críticos cismem em vê-lo como um reles "plagiador"). Prova viva de seu talento para recontar histórias são as batalhas de espada em Kill Bill, com direito a muito sangue esguichado nas paredes (como bem gostavam de fazer os cineastas responsáveis por clássicos do cinema de arte marcial) e as mortes brutais por atropelamento em À prova de morte, onde reconstrói estereótipos do chamado cinema underground dos anos 70. Isso sem contar suas duas primeiras obras-primas, Cães de aluguel - feito com um orçamento enxutíssimo e com recursos mínimos - e o extraordinário Pulp fiction - tempo de violência, palma de ouro no Festival de Cannes de 1994.
Com o passar dos anos Quentin tomou gosto pelo faroeste (seu gênero predileto) e se distanciou de outras temáticas, para tristeza de fãs mais nostálgicos e outsiders, como eu. Até agora. Realizando Era uma vez em...Hollywood o cineasta americano mais fetichizado desse século volta às boas com seu público mais antigo e entrega um de seus filmes mais pessoais, aquele que me fez lembrar do jovem que, no passado, era um mero gerente de videolocadora viciado em filmes e que sonhava em realizar o seu próprio longametragem.
É difícil explicar o nono longa de Quentin Tarantino pela ótica do "é uma história de...". Na verdade, até mesmo precisar o protagonista de seu novo filme é uma saga por si mesmo. Vejo Era uma vez em...Hollywood como uma bem construída crônica de costumes sobre uma época em que o cinema americano anda ditava o ritmo do audiovisual mundo afora e acabou por se perder em meio a uma cultura de tragédias, escândalos, guerras e crimes bárbaros.
Através das histórias entrelaçadas de Rick Dalton (Leonardo Dicaprio), um ator decadente de séries televisivas que vê num convite para participar de um western spaghetti italiano a chance de sua redenção diante das telas; Cliff Booth (Brad Pitt), um dublê em fim de carreira que não consegue mais trabalho nos estúdios por conta de seu temperamento explosivo e a jovem atriz Sharon Tate (Margot Robbie), casada na época com o cineasta Roman Polanski, responsável por clássicos do cinema como Chinatown e O bebê de Rosemary, Tarantino destila todo seu conhecimento sobre a sétima arte passada e nos apresenta uma grande viagem ao túnel do tempo, com direito a músicas inesquecíveis e montagens sensacionais onde o ontem e o hoje dividem a cena com um brilhantismo ímpar.
Embalados pela magia de Deep Purple, Neil Diamond, Maurice Jarre e clássicos eternos como "Mrs. Robinson" (da dupla Paul Simon & Art Garfunkel) e "California dreamin'", o diretor nos transporta para uma fenda no tempo, onde os sonhos mais sórdidos, eróticos e brilhantes já promovidos pela sétima arte são remasterizados para atender às expectativas da nova geração. Isso sem perder as velhas manias e gostos do diretor: o fetiche por pés e a matança brutal estão presentes para delírio dos fãs mais ansiosos pela sua catarse febril e sanguinária.
E a conclusão a que chego após as mais de 2 horas e 40 minutos de projeção (que não me deixaram entediado um minuto sequer) é a de que o grande gênio do cinema dos últimos anos está dando um baita puxão de orelha nessa geração Marvel/DC e perguntando: "vocês têm realmente noção do que estão perdendo quando preferem entrar numa sala de cinema, enfiar na cara seus óculos 3D e se limitar a aceitar um festival de imagens criadas por computador, sem o menor interesse que não seja o de criar um vínculo comercial duradouro ao invés de apreciar um produto realmente único?". Mas eu sei, eu sei... Eu estou malhando em ferro frio e esses "nerds" da atualidade são um caso perdido. Quer saber? Quem perderam foram eles mesmo!
Se Era uma vez em... Hollywood será o filme do ano, eu não sei. Mas de uma coisa eu tenho certeza: o público de cinema do século XXI está perdendo uma grande chance de apreciar um bom espetáculo. E parodiando o próprio contexto dos contos de fada, aqui nessa história o seu término não será "e viveram felizes para sempre", mas sim "e perderam a oportunidade de ser felizes".
Valeu, Tarantino, por essa aula de cinema. Essa galera de hoje bem que anda precisando!
Quem manda aqui sou eu (Bacurau é o Brasil que os holofotes não querem mostrar)
Gosto do diretor Kleber Mendonça Filho. Gosto mesmo. Desde que vi seu polêmico curta-metragem de 2009, Recife frio, percebi que ele era um dos raros exemplares da atual geração do cinema nacional que anda na contramão do circuito. Ou seja: sua primeira preocupação artística não é com bilheterias exorbitantes ou quebra de recordes de público. Pelo contrário. Ele almeja fazer com que seu público pense, reflita sobre os rumos do nosso país. E nos últimos anos ficou clara sua posição antigovernista (vide a repercussão que gerou seu longa anterior, Aquarius, visto como película non grata por muitos brasileiros).
Falar de um país como o Brasil no cinema sempre será uma tarefa difícil, ainda mais quando o regime vigente no momento está mais interessado em demagogias religiosas e o interesse de nosso principal governante está centrado no poderio militar de outras nações. Contudo, Kleber (desta vez acompanhado do co-diretor Juliano Dornelles) passa por cima de tudo isso - inclusive da possibilidade da Ancine, órgão principal a subsidiar nossas produções cinematográficas, deixar de existir num futuro próximo porque o atual governo quer "moralizar" a produção - e nos apresenta o extraordinário Bacurau, vencedor do prêmio do júri na última edição do Festival de Cannes.
Fica muito claro para o espectador mais atento aos detalhes e entrelinhas que Bacurau é um filme político (e com muito orgulho de assim ser). A cidade retratada, a oeste de pernambuco, é um retrato da miséria de nossa nação. Uma miséria que os tabloides e nossos dirigentes fazem questão de esconder, preferindo entupir nossas cabeças vazias com partidas de futebol, desfiles de escolas de samba, reality shows e programas evangélicos tendenciosos e efêmeros. Porém, mais do que isso, o longa de Kleber e Juliano é um grito de guerra, um ato de resistência direcionado àqueles que adoram tratar a nossa pátria segundo a ótica do determinismo biológico ("você nasceu pobre, tem que morrer pobre"), só que nos últimos anos acrescida da mentalidade "porque Deus assim quis".
O nordeste, região do país que se confunde com a própria definição de revolução (procurem os livros de história e vocês entenderão do que falo), está mais do que bem representado pelo longa, seja do ponto de vista cultural como também do reacionário. A roda de capoeira divide o espaço com a matança com uma naturalidade assustadora. Afinal de contas, trata-se de uma região que no passado nos trouxe o cangaço, canudos e tantos outros "rebeldes". Portanto, não há receio quanto a morte (isso fica claro na quantidade gigantesca de caixões que aparecem durante todo o filme), mas sim quanto à pessoas que querem mandar nas suas vidas e tomadas de decisões.
Acrescentem a isso a velha máxima dos currais políticos que nada fazem por essas localidades a não ser coletar votos, o interesse estrangeiro em se apoderar de nossas riquezas e deletar nossa cultura, o gigantismo da internet no que tange à idolatrar a indústria da violência e perpetuar o descrédito junto a uma população com histórico lendário de alienação e ignorância, e pronto: está criado um cenário de horror e guerra sem precedentes.
Quanto aos personagens aqui retratados são uma aula de cinema à parte. Destaco a ranzinza, mas não menos fenomenal Domingas (Sônia Braga, realizando um feito que eu jamais imaginei que a dama do lotação do cinema novo seria capaz de produzir), o truculento, mas não menos verídico e necessário Lunga (Silvério Pereira), retrato amargo e viril do homem do agreste cansado de acreditar no sistema corrupto e que decide arregaçar as mangas e tomar a rédea da situação e o "americano por empréstimo" Michael (Udo Kier), simbiose da ganância estrangeira com o eterno discurso do capitalismo como única salvação verdadeira para o futuro do planeta. E quando ele diz que "o mundo está de cabeça para baixo" está sempre se referindo aos outros como errados, nunca ele próprio.
Bullying racial, desrespeito à cultura, descaso com a educação, a política de castração voltada para todos aqueles que questionam a vontade do Estado como mantenedor da ordem, crítica ao sistema de saúde... Todas essas temáticas se entrelaçam fazendo de Bacurau um faroeste que nada tem de pós-moderno, pois essa região do país nunca recebeu qualquer tipo de tratamento que soasse sequer inovador, que dirá moderno. Trata-se de um microcosmo do país que precisa viver eternamente no passado para que os poderosos continuem se locupletando de sua desgraça social.
Apesar de ser (até o presente momento, pelo menos) o filme nacional do ano, é visível que ele não atende à grande parte da população nacional. E digo isso porque o Brasil passa por um período de extremo retrocesso, em que cidadãos pedantes e egoístas defendem a ideia de que o passado era infinitamente melhor e nossa história precisa ser recontada à imagem e semelhança deles. Para estes, Bacurau será doloroso, cruel, mentiroso e sujeito à perseguição. E a questão que me paira a cabeça quando penso nisso é: como é que um longa capaz de ganhar prêmio num dos maiores festivais de cinema do mundo e ser reconhecido na Europa pode ser a visão errada dos fatos e uma parcela da sociedade completamente desinformada e por vezes fascista ser a certa? Honestamente... Somos uma sociedade estranha e contraditória!
Termino a sessão no cinema ciente da triste constatação de que vivemos num país quebrado, dividido por interesses escusos. Aquela velha moral que eu ouvia nos tempos de escola "o problema do Brasil é que tem muito cacique para pouco índio" ganhou sofisticação e um sorriso de deboche no rosto. Fica claro pelo desfecho do longa que seus realizadores defendem que o pior ainda está por vir. Também, pudera! Quando se vive dentro de um Estado onde a moral determinante é a do que "quem manda aqui sou eu" fica complicado acreditar que dias melhores virão (pior: por um momento, chegamos a acreditar que a frase por si só não passa de um clichê vago).
E isso faz de Bacurau um filme menos poderoso, indigno de nossa presença nas salas de projeção? Pelo contrário. Vá enquanto é tempo. É de mais obras cinematográficas como essa que nossa indústria cultural anda precisando nos últimos tempos.
O que não podemos mais é acreditar que tudo vai se resolver com o tempo...
O passado sempre retorna (It: a coisa, uma alegoria sobre o medo)
Não acredito em pessoas que defendem a ideia de que "é melhor deixar o passado no passado, pois é menos doloroso". Aquela frase hipócrita, então, "o que aconteceu em Las Vegas fica em Las Vegas" nem se fala! Contudo, a humanidade é complexa demais para entender que o passado, muitas vezes, é uma grande catarse para entendermos o nosso próprio amadurecimento, lidar com velhas feridas, rediscutir amizades ou relacionamentos amorosos que terminaram mal.
Esses, por sinal, são temas que volta e meia aparecem nos romances do ficcionista norte-americano Stephen King - autor de sucessos de público como O iluminado, A hora da zona morta, Christine, Carrie - a estranha, entre tantos outros - e também em roteiros célebres filmados em hollywood. Pois bem: esta semana estreou nos cinemas It: capítulo dois, continuação do longametragem It: a coisa (filmado em 2017), ambos dirigidos por Andy Muschietti, e que é justamente uma mescla desses dois mundos.
A história do clube dos perdedores, formado por Beverly Marsh, Bill Denbrough, Richie Tozier, Mike Hanlon, Ben Hanscom, Eddie Kaspbrak e Stanley Uris, que se deparam com o terrível palhaço Pennywise (trabalho de atuação irretocável do ator Bill Skarsgard) a atormentar suas vidas e fazem um juramento de regressar à sua cidade natal caso ele apareça de novo para destruir novas vidas é muito mais, a meu ver, do que mero terror na linha Jogos Mortais e filmes na linha slasher (Halloween, A hora do pesadelo, Sexta-feira 13, etc).
O que se vê nas mais de mil páginas do romance visceral e nas duas partes da saga transposta para os cinemas é uma grande alegoria sobre o medo e as consequências das escolhas que nós, seres humanos, fizemos no passado. Aliás, nada é mais verdadeiro quando o assunto é evolução humana do que a máxima "o passado sempre volta para assombrar-nos, nem que seja um pouco". O problema é que, na maioria das vezes, entendemos essa máxima ao pé da letra e levamos sempre a discussão para o âmbito do místico, do sobrenatural (motivo pelo qual estou sempre abandonando certos debates ou conversas em grupo por considerá-los vagos, muitas vezes sem a menor lógica).
O tempo passou para o grupo e deixou marcas indeléveis, fruto de más escolhas feitas numa época em que ainda não temos a maturidade necessária para tomar decisões tão taxativas. E muito por conta disso é facilmente entendível o porquê de Beverly (na idade adulta, vivida pela belíssima Jessica Chastain) ter se tornado refém de um relacionamento amoroso abusivo, Sua relação fragmentada com o pai contribuiu - e muito! - para isso. Outro bom exemplo é Richie (em sua versão mais velha, interpretado pelo ator Bill Hader) que passou de garoto descolado, o mais debochado da turma, a comediante de stand-up frustrado e viciado em bebida. Some a isso o desejo de Ben (Jay Ryan) por sair da figura de gordinho para construir um físico invejável e uma carreira bem sucedida e a carreira de escritor em crise de Bill (James McAvoy) e teremos um grupo que mais parece uma família disfuncional. Talvez o único que tenha conseguido, em parte, preservar um pouco de sua lucidez seja Mike (Isaiah Mustafa), o único que permaneceu na cidade após mais de duas décadas. Porém, não se iluda totalmente. Isto também pode ser uma máscara.
O retorno de Pennywise aflora nas mentes e no corpo do grupo, que sente a presença maligna dele até mesmo em seus inconscientes. A figura do palhaço serial killer é quase freudiana, mexe com os sentimentos mais obscuros trancados a sete chaves por cada um deles. E à medida que o combate final se aproxima a forma como cada um deles lida com o medo é significativa no que tange a relação de suas próprias vidas com o passado que não lhes trouxe boas recordações (e, por isso, eles preferem manter eternamente lacrado) e o presente, que precisa ser revisitado para que eles não passem o resto de suas vidas se lamentando sobre aquilo que não aconteceu.
Em outras palavras: o palhaço nada mais é do que um instrumento de purificação de suas existências. Por mais mal que ele lhes cometa, é preciso que o grupo veja o outro lado da situação e encare o arqui-inimigo como uma bússola, pois só assim eles construirão um novo caminho para suas vidas.
Fico feliz de ver que o gênero terror, nos últimos tempos, tem se proposto a rediscutir dilemas sociais, dramas humanos, o próprio conceito de mercado corporativo, etc. Prova viva disso nos últimos anos são os filmes Nós, de Jordan Peele e Suspiria, de Luca Guadagnino, dois exemplares raros no segmento que fogem da receita "vamos assustar o público enchendo a nossa história das mortes mais bizarras". Ouvi falar num site sobre cinema que alguns críticos vêm chamando essa abordagem de Neo horror. Cá entre nós, gosto muito dessa postura.
E mais: na época em que assisti It: a obra-prima do medo, minissérie realizada pela Warner Bros em 1990 sobre o mesmo livro e dirigida por Tommy Lee Wallace não consegui absorver com a mesma precisão 10% do que destrinchei aqui neste artigo. Ou seja, a obra em questão evoluiu bastante com o passar dos anos e não é à toa que Stephen King se tornou o fenômeno pop que se tornou (um dos escritores mais adaptados para a sétima arte de sua geração).
Termina a sessão e ouço aplausos ao fim do filme, algo raro em se tratando de filmes de terror. Alguns críticos do youtube reclamaram dos excessivos flashbacks e do tamanho exagerado do longa (são quase três horas de duração). Não tive essa percepção e não me senti cansado em nenhum momento. O que vi, na verdade, foi uma história bem contada sobre um livro imenso (o que é sempre difícil de transpor para outros formatos). E voltei para casa, dentro do ônibus, pensando: por que hollywood continua perdendo tempo com tantas bobagens sanguinolentas e não investe mais em projetos como esse? Quero tanto ver A dança da morte numa versão cinematográfica!
Quem sabe agora eles não tomam vergonha na cara e investem mais nesse ramo...
Não era apenas um garoto de Seattle (Kurt Cobain: fenômeno ou invenção?)
O mundo do rock é famoso por ícones desajustados, fora da zona de conforto, e por fãs que muitas vezes enxergam além dos fatos e da própria fama, criando em alguns casos "monstros ideológicos" que por mais que você, leitor, seja fã, não consegue entender o porquê de tanto fanatismo por trás de certas figuras midiáticas. Kurt Cobain, vocalista da banda Nirvana, morto em 1994 aos 27 anos, é a meu ver um dos melhores exemplos dessa paranoia sensacionalista que rege o mundo do show business.
Termino de assistir Cobain: montage of heck, documentário de Brett Morgan realizado em 2015 e que traz um mosaico de referências e entrevistas com parentes e amigos do cantor, visando entendermos a mente complexa por trás do rockstar responsável por hits como "smells like teen spirit" e "come as you are". Quando exibido nos cinemas por aqui não consegui assistí-lo, muito por conta do exagero em termos de paixão provocado pelos fãs da banda, que praticamente compraram todos os ingressos disponíveis na época. Contudo, para minha sorte, deparo-me com um dvd do filme esquecido numa das prateleiras das Lojas Americanas (sim, às vezes cinéfilos também precisam ter sorte!).
Cobain: montage of heck é o retrato vivo e turbulento de uma da mentes mais criativas - segundo os depoimentos dados no doc - da década de 1990, e visto por muitos como "o último gênio da história do rock n' roll". Honestamente? Não acho para tanto. Nunca considerei Kurt Cobain um dos maiores da história no gênero e digo mais: após sua morte e todas as leituras que fiz sobre ele, considero-o mais um subversivo do que um artista. Vai ter gente me chamando de maluco por aqui, mas sorry! estou sendo profundamente honesto.
Kurt foi um garoto de Seattle extremamente hiperativo (palavra dos próprios familiares) e estava sempre procurando uma forma de canalizar sua energia para algo construtivo. Acabou por escolher o rock que, cá entre nós, responde bem a seu temperamento por vezes nonsense, por vezes anárquico. Contudo, segundo suas próprias declarações no filme, não se via como uma figura ícone de uma década e não gostava da ideia de ser porta-voz de uma geração adolescente descrente com os rumos da América (tanto que por várias vezes questionou o governo Reagan não para usar sua fama num contexto político ou para angariar elogios, mas simplesmente porque discordava do caminho político proposto por ele).
Em meio a vídeos de seriados antigos e desenhos bizarros da lavra do próprio artista (aliás: Cobain era fascinado por tudo aquilo que flertava com o mórbido e o sobrenatural, e deixava isso claro até na maneira como cantava: sua voz era praticamente um grito, um grunido) vemos um roqueiro fascinado pelo conceito de distorção. Ouçam, quando puderem, o álbum Nevermind e entenderão o que estou dizendo. Ele está repleto de sons guturais e berros ensandecidos, que viraram meio que a marca registrada do vocalista do Nirvana.
Por sinal, o próprio nome da banda reflete muito da personalidade do cantor. A palavra, que dentre muitos outros significados, representa "estado de libertação", dialoga como poucas para entendermos o estado irrequieto de Kurt, que todas as vezes que eu via se apresentar em clipes na MTV me passava uma ideia de eterno descontente com a vida e com aquilo que chamamos rotineiramente de rotina.
Em outras palavras: Kurt Cobain era um dínamo que não conseguia ficar parado mesmo que quisesse. Havia sempre algo o movendo para frente, numa quase velocidade da luz.
A partir do momento em que seu relacionamento conturbado com Courtney Love exerce protagonismo na película vemos a mudança de comportamento do cantor mudar. É o começo de sua derrocada, do físico debilitado, de seus exageros no palco. Não é à toa que muitos fãs até hoje a considerem a verdadeira responsável pela morte do artista (e só para se ter uma ideia do clima: há sites e teorias na internet que explicam com riqueza de detalhes sua participação no "crime").
Polêmicas à parte, uma coisa é certa: os fãs irão se deliciar ao som das apresentações catárticas e das imagens de arquivo guardadas pela família, mostrando momentos da carreira que os fãs normalmente não teriam acesso. Nesse sentido, o longa é um colírio para os olhos.
Se por um lado continuo não colocando Kurt Cobain e o Nirvana no meu hall da fama do rock n' roll por considerá-los excêntricos em demasia para o meu gosto, por outro entendo todo o delírio e a alienação criados pela indústria cultural para transformá-lo num quase gênero musical. E mesmo sua presença naquela famigerada lista - praticamente uma lenda urbana - dos astros mortos aos 27 anos (juntos com Janis Joplin, Amy Winehouse, Jimi Hendrix, entre outros) é apenas uma mera cereja no bolo. Cobain vende como imagem até hoje e a indústria fonográfica agradece, é claro!
Lembram quando eu disse no quarto parágrafo que "Kurt foi um garoto de Seattle..."? Talvez para as pessoas normais e aqueles que não são fãs de rock essa definição baste. Mas na prática ele não foi somente isso. Kurt Cobain é uma figura do showbiz que ainda não foi totalmente decifrada. E talvez nunca venha a ser. E essa, por incrível que pareça, é sua melhor característica. Tanto que os fãs continuam falando dele até hoje.
Fenômeno. Invenção midiática. Gênio. Nunca saberemos até onde ele poderia ter chegado (se teria chegado). E não adianta chorar sobre o leite derramado. Já foi. Só nos resta, no final das contas, acompanhar o que sobrou: seu legado musical.
E torcer para que um dia essa dúvida possa ser respondida.
O transgressor (O anjo: um estudo de caso sobre o que chamamos de criminosos)
"Há um quê de charme e de ousadia em muitos criminosos que entraram para a história da humanidade. E muito por causa disso é até compreensível que alguns deles sejam vistos, pelo menos por determinados setores da sociedade, como celebridades instantâneas". Recorro à esta citação, encontrada num dos meus cadernos de anotações da época da faculdade, cheios de informações subtraídas de palestras, cursos e seminários do qual participei, para elucidar aos meus leitores a minha relação com o que costumamos chamar de banditismo.
Quanto mais idade vou adquirindo, mais entendo o quanto criminosos são figuras complexas, que vivem a sua própria moral, não se submetendo de forma alguma ao sistema como o conhecemos. Eles são transgressores por natureza e, no final das contas, não passa de perda de tempo da parte moralista da sociedade querer adequá-los a algum tipo de comportamento, digamos, ético.
Esta semana deparei-me com uma joia do cinema argentino contemporâneo que trata justamente de questões como essas abordadas nos parágrafos anteriores. Trata-se de O anjo, de Luis Ortega (que tem produção de, entre outros, o extraordinário Pedro Almodóvar). E assim que os primeiros créditos começam a surgir na tela após o final da sessão, pego-me pensando: "por que o cinema hollywoodiano não consegue, na maioria das vezes, esmiuçar o mesmo assunto com tamanha maestria, sem deixar de lado os tiroteios, os efeitos especiais e o sensacionalismo?
O anjo conta a história de Carlos Brown (vivido pelo excelente ator Lorenzo Ferro em seu primeiro trabalho para o cinema). Por trás de seus olhos sedutores e pueris e o corpo de um adolescente em formação há um marginal especialista no que os americanos costumam chamar de breaking and entering (ou, como conhecemos em nossa língua natal: invasão de domicílio). E ele exerce sua "arte" - pelo menos, ele trata seu ofício como se fosse uma - com uma naturalidade gigantesca.
Contudo, sua vida esbarra com a do também jovem Ramón Peralta (Chino Darín) e sua família criminosa. E é a partir desse convívio e do seu afastamento cada vez mais recorrente de casa que ele começa a se desdobrar num pilantra profissional. Desde o simples ato de aprender a atirar até a facilidade com que consegue invadir lojas de armas, joalherias e residências particulares, Carlos vai mostrando com extrema minúcia para os espectadores a reconstrução de seu caráter (já ambíguo), sofisticando-o com práticas mais e mais subversivas.
Elucidando os fatos de outra maneira: Carlos é o modelo típico de transgressor, daquele que não se submete a nenhum tipo de ordem social e faz de sua própria personalidade um desafio a ser decifrado pelos demais. Sempre com um sorrisinho sardônico no rosto e opiniões que incomodam aos mais conservadores, ele segue importunando a sociedade com seu temperamento fora do tom. E deixando todos - inclusive seus próprios pais - perplexos.
Adorei a ideia da trilha sonora rock n' roll aparecendo em momentos pontuais do longa, em que os personagens se deparam com as decisões mais difíceis e agressivas de suas vidas. E também achei extremamente inteligente da parte do diretor o uso dos closes nos lábios do protagonista toda vez em que ele se defrontava com imagens e pessoas capazes de provocar a sua libido (e nesse momento, é fácil de entender porque Almodóvar aceitou produzir o projeto).
Há um forte apelo em Carlos que me fez lembrar de Louis Bloom, personagem do ator Jake Gyllenhaal em O abutre, filme do diretor Dan Gilroy. A diferença é que lá o personagem utilizava-se da indústria midiática e sua eterna relação de devoção com a tragédia e o mórbido para produzir suas artimanhas. Já aqui, a motivação do protagonista é mais pessoal e não voltada para algum tipo de projeção social ou ostentacionismo.
No passado pessoas como Carlos seriam rotuladas facilmente como rebeldes sem causa. Pelo contrário. Ele é um rebelde COM causa. O problema é que sua causa é justamente a de não pertencer ou ser subserviente a um sistema de ideias, mas sim subvertê-las e isso sempre irá incomodar a parte mais conservadora da sociedade (portanto, ela nunca conseguirá entendê-lo completamente).
Termino de ver a película num misto de alegria e apreensão. Alegria pelo fato de estar diante de uma das melhores realizações cinematográficas com que me deparei neste ano e apreensão por sentir que daqui para frente a sofisticação entre o mundo criminoso vem crescendo tanto que daqui para frente teremos enorme dificuldade de distinguir cidadãos de bem de bandidos (tamanho o charme que envolve os membros da segunda categoria). E isso é muito grave.
E refém de minha dúvida entre aplaudir e ficar temeroso sobre o futuro da humanidade, chego à conclusão óbvia: mais uma vez a sétima arte fez um gol de placa, pois ela também transgrediu a ordem natural dos fatos de forma tremendamente elegante.
Enlouquecemos de vez (Clímax, de Gaspar Noé, é um retrato alucinógeno deste desesperador - e ainda iniciante - século XXI)
Outro dia desses me peguei conversando sozinho no meio da sala de casa (e eu tenho feito muito isso nos últimos anos!) e cheguei a uma conclusão óbvia, mas incômoda: é nítido, pelo menos para mim, que a sociedade contemporânea se comporta neste primeiro quinto do século XXI como se o mundo fosse uma grande festa que nunca termina. Podem me chamar de maluco se quiserem, mas isso é um fato: nunca antes na história da humanidade tratamos a vida como uma grande celebração sem hora para acabar como fazemos hoje em dia.
Por onde quer que se olhe vemos raves em praias da zona sul carioca repletas de adolescentes viciados em ecstasy e dançando, quase em catarse, ao som de músicas eletrônicas que mais parecem lobotomizar as mentes desses frequentadores (tenho um colega que defende a ideia de que o Ministério Público deveria investigar de perto essas "festas" e, honestamente, não discordo dele). Em outros países proliferam festivais de música, regados a adrenalina, tumultos e, de vez em quando, até terroristas atirando contra a plateia. Nos chamados reality shows os dias de maior audiência do público são aqueles em que as festas acontecem noite adentro, com muito bebida, dj tocando música alta e sabe-se lá Deus mais o quê. E isso para ficar apenas no óbvio, porque o contexto é bem mais amplo do que isso.
Não se trata apenas de modismo ou diversão. Não, meus caros amigos e leitores! É um estilo de vida. Um modus operandi para que segmentos da sociedade não se comprometam com aquilo que nós, seres normais, costumávamos chamar de vida real. Você sabe: trabalhar, pagar a contas, etc. Em entrevista antiga para o programa Sem Censura o cantor Guilherme Arantes falou sobre isso e ficou meio estarrecido ao perceber o nível de alienação e desinteresse da humanidade por qualquer coisa que tenha a mínima relevância para o mundo. Caro, Guilherme! Você não é o único...
Esta semana enfim consegui assistir Clímax, do provocador e diretor de cinema argentino Gaspar Noé (de filmes polêmicos como Irreversível e Enter the void) e fiquei pensando mais uma vez no quanto estamos caminhando para uma sodoma e gomorra de proporções surreais. Em algum momento, por mais triste que seja dizer isto, a sociedade descarrilou do tempo e espaço e hoje encontra-se perdida, sem referenciais ou jornadas a serem seguidas. Pior: ainda por cima se orgulha disso e vende tal atitude como a mais acertada para sobreviver ao dia ao dia.
O longa conta a história de um grupo de dançarinos que se reúnem num prédio para festejar. O quê, exatamente, não fica bem claro (e esta não é a questão que move o roteiro da história). O que importa mesmo é a pista de dança. E lá que eles são os reis da noite, liberam suas endorfinas, podem ser livres como em nenhum outro lugar. Antes de suas apresentações, eles confessam em entrevistas o que a dança representa para eles. E, em alguns casos, há quem diga que até se mataria se ela não fizesse parte da sua vida.
O grupo - é bom que se diga em sua defesa - é talentoso e sabe fazer aquilo à que se pretende. Porém, entre uma dança e outra, conversam, expõem suas mazelas, seus preconceitos, seu sexismo, sua vontade de serem melhores do que realmente são. Em outras palavras: expurgam o niilismo de uma geração que não tem de fato para onde ir, daí a necessidade da dança como mecanismo de defesa para enfrentar o mundo selvagem lá fora.
O problema: a acusação de que a bebida da festa teria sido batizada com LSD promove uma retomada nas intenções do grupo naquele lugar. E a partir do momento em que os primeiros dançarinos começam a demonstrar sintomas de que algo não está bem, o que vemos a seguir é uma grande metonímia para entendermos o que está acontecendo com a humanidade neste século.
Brigas sem sentido, rivalidades amorosas, discussões entre familiares, a excitação tomando um viés incontrolável, uma mãe que tranca seu próprio filho pequeno numa sala onde ficam os disjuntores do prédio (aliás, quem realiza uma festa deste porte enquanto toma conta do filho de, o quê, 8, 9 anos? e foi quando me dei conta deste aspecto que comecei a entender no que se transformaria este cenário, até então, divertido), correria, em suma, gente enlouquecendo da maneira mais gratuita e bárbara.
Clímax guarda em si uma estrutura narrativa que me lembrou dos longametragens Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles e Mãe!, de Darren Aronofsky. A diferença é que, enquanto no primeiro os personagens estão cegos por uma circunstância misteriosa - chamada de treva branca -, e no segundo o que motiva a barbárie e o desespero humano é a falta de religiosidade, aqui o que vemos é um escolha de vida que visa unicamente parâmetros estéticos. E me pego refletindo: que mundo é este em que a derrota e a miséria humana têm o semblante do entretenimento?
Por fim, o que vemos é um mundo de ponta a cabeça (e isso é mostrado de forma inteligente pelo diretor) com "sobreviventes" que mais parecem animais estilizados, reagindo instintualmente ao invés de pensar de forma lógica.
A grande mensagem que Gaspar Noé deixa para este que vos escreve é: espero que a sociedade como a conhecemos acorde. O quanto antes. Estamos nos transformando numa espécie de idiocracia movida a prazeres efêmeros e alucinógenos, onde o conceito de lucidez deu lugar a um apetite voraz por tudo aquilo que é polêmico, proibido e carnal. E a continuarmos por esta trilha nonsense só nos restará reconhecer que enlouquecemos de vez e desistir do lugar onde vivemos, pois não haverá mais nada pelo que as próximas gerações possam lutar.
P.S: desde já adianto: eu não quero estar aqui para ver isto. Não mesmo.
O Abominável Dr. Phibes é terror como, infelizmente, não se faz mais hoje em dia (que dirá nos Estados Unidos). Simples em sua história e com um protagonista econômico em diálogos, o filme de Robert Fuest é um colírio para os olhos dos fãs mais nostálgicos do gênero. E tive uma legítima impressão em alguns momentos de que o diretor Brian de Palma bebeu nesta fonte para realizar o seu O fantasma do paraíso, três anos depois.
O Beijo no Asfalto
4.1 95Desconstruindo o anjo pornográfico
(O beijo no asfalto: precursor do Brasil contemporâneo)
16/12/2018
É um filme? É uma peça? É uma leitura dramatizada? É uma crônica policial? É uma provocação deslumbrante? É tudo isso e mais um pouco ao mesmo tempo? Sim, Nelson Rodrigues é tudo isso e mais um pouco, durante toda sua vida e sua obra. E poder apreciar uma releitura de seu trabalho no final de um ano em que se fez de tudo para que o país não desse certo, é com certeza uma dádiva. Não entenderam? Explicar-me-ei.
É quarta-feira e vou ao cinema dentro do Imperator para assistir à adaptação de O beijo no asfalto feita pelo ator (e agora diretor) Murilo Benício. Para minha tristeza, poucos assentos estão ocupados. O que só reforça minha incerteza sobre os rumos que o nosso cinema vem tomando, perdendo espaço para filmes de super-heróis que não dizem a que se destinam além de entupir nossos cérebros de efeitos especiais e séries televisivas de cunho duvidoso (leiam-se: zumbi, seres sobrenaturais, etc) que nada mais são do que o pastiche dessa nossa sociedade caótica e cada dia mais perdida.
A peça original é de conhecimento geral dos fãs de Nelson: Arandir (vivido na tela por Lázaro Ramos) vê um homem ser atropelado em plena Praça da Bandeira e o acidentado, antes de morrer, pede a ele como último desejo um beijo. Beijo esse que Arandir lhe concede como um ato de piedade. Contudo, mal sabia ele que aquele singelo gesto seria justamente o que levaria a sua vida dali em diante a um passeio pelo inferno.
Arandir é cercado pela indústria do preconceito que rege esse país desde priscas eras (sim, meus caros leitores! Não é de hoje que vivemos num país tão cheio de manias e repressões). Seja por parte de Amado Ribeiro (Otávio Muller, fantástico!), o jornalista cafajeste do jornal A última hora, que adora mandar os outros calarem a boca, adepto do sensacionalismo a qualquer preço e das (hoje mais que famosas) fake news; seja por parte de seu sogro, Aprígio (Stênio Garcia), extremo conservador que alimenta a duras penas um segredo que envolve tanto Arandir quanto sua esposa, Selminha (Débora Falabella); seja por parte do delegado Cunha (Augusto Madeira), expoente máximo da hipocrisia policial e social, que usa até mesmo a imagem da filha irretocável, acima de qualquer suspeita, para vender uma faceta de "homem distinto, de moral ilibada" para os demais.
Sem ter para onde correr, acuado, Arandir se depara com uma dupla e cruel acusação contra ele: a primeira, direta, de ser um homossexual que engana a própria família, uma aberração aos olhos da sociedade íntegra; a segunda, esta indireta, a de ser negro, portanto um indivíduo menor, dentro de uma sociedade que não esconde - nunca escondeu - o seu racismo. Vencido nesta batalha inglória, se vê abandonado por todos e ainda é acusado de ter perpetrado o crime contra o atropelado. Mais trágico (e rodriguiano) impossível!
Como pano de fundo, a genialidade e ousadia de Murilo Benício que escolhe um caminho diferenciado para contar esta história mais que consagrada em nossos palcos. Intercala leituras dramatizadas entre o elenco do filme e cenas gravadas dentro do teatro. Um recurso, aliás, que eu vi recentemente no filme Ricardo III: um ensaio, dirigido pelo também ator Al Pacino (não sei se Murilo assistiu ao longa, mas em muitos aspectos os dois filmes dialogam entre si).
Ao final da sessão ouço aplausos entusiasmados dos poucos espectadores que compraram a briga de ir assistir o longa. Sim, digo briga porque o filme é um grande ato político, de resistência, em meio a um país que nos últimos anos só fez flertar com o retrocesso e a opressão de uma minoria recalcada e que não admite perder - seja espaço ou renda - por nada neste mundo.
Nelson Rodrigues prova mais uma vez porque é o maior de nossos dramaturgos com uma peça que não só flerta com o romance policial como antevê muitas das distorções vistas hoje na sociedade contemporânea: a discussão acerca do homossexualismo (comprada ferrenhamente pelos grupos que integram o LGBT), a indústria das matérias jornalísticas falaciosas, fabricadas muitas vezes com a intenção de confundir ou incriminar grupos de interesse específicos e a velha moral da chamada "família tradicional", muitas vezes eclipsada por uma ética dúbia.
E com enorme deleite me deparo com o anjo pornográfico (singelo "apelido" que o autor ganhou de um crítico) desconstruído de forma criativa e, por que não dizer?, inovadora. Nossa sétima arte anda precisando de mais boas ideias como esta!
P.S: enquanto os créditos de filmagem passam diante de nossos olhos, o bate-papo final entre os atores - e de extrema ligação com o Brasil dos últimos anos - já vale pelo filme todo. Vejam o longametragem até o final, por favor!
O Retorno de Mary Poppins
3.5 343 Assista AgoraA magia ainda não acabou
(O Retorno de Mary Poppins e a Disney ainda sabe mexer com a cabeça dos fãs)
Não entendi a parcela da crítica de cinema dos jornais que disse que o filme O Retorno de Mary Poppins, continuação do clássico da Disney de 1964, apesar de divertido e visualmente apaixonante, é a prova viva de que a magia do gênero se perdeu. Discordo em gênero, número e grau.
Na verdade o que vem acontecendo nos últimos anos em hollywood é um festival de remakes e spin-offs desnecessários e feitos para se tornar caça-níqueis num período absurdo de tempo. Contudo, é louvável o esforço de diretores como Rob Marshall em interpretar grandes clássicos desse mesmo cinema.
Nos últimos anos a Walt Disney Pictures vem reapresentando ao público suas animações clássicas em forma de longametragens live action bem como trazendo projetos do passado em versões, digamos, mais sofisticadas, para atender não somente aos saudosos da época em que o estúdio era a única referência no setor, bem como novas plateias. Prova disso são as versões atualizadas de Mogli, A bela e a fera, Malévola (que traz a bruxa má como protagonista), Christopher Robin (que traz a história do Ursinho Pooh sob o viés de Cristóvão numa versão adulta) e tantos outros.
Porém, a priori, com O Retorno de Mary Poppins, a tarefa parecia mais complicada, tendo em vista a difícil tarefa de substituir a dupla Julie Andrews (atriz que marcou minha infância de forma ímpar) e Dick Van Dyke. Pois bem: Rob Marshall - que já enveredara pelo musical com Chicago, vencedor de 6 Oscars - traz Emily Blunt para assumir a árdua tarefa de interpretar a protagonista e decide seguir a cartilha clássica do gênero, sem abusar de invencionices estéticas (algo que nos últimos anos vem estragando muitos projetos até então alardeados como boas promessas).
Os filhos de Gordon Banks, Michael (Ben Wishaw) e Jane (Emily Mortimer) cresceram e ele, mais do que isso, casou-se e teve três filhos, Anabel, John e George. Com o falecimento da esposa e o acúmulo de divídas junto ao banco onde trabalha a família se vê na iminência de perder a casa onde construíram todas as suas lembranças. E é nesse momento que a babá mais famosa da Disney aparece para ajudar a consertar as coisas.
Mais uma vez, assim como no original, a mistura entre animação e personagens reais é muito bem utilizada, e dessa vez aprimorada (tendo em vista que, após mais de 50 anos, a tecnologia de produção melhorou muito!). E o resultado é mesmerizante, multicolorido, esteticamente impecável e repleto de um humor ingênuo que, cá entre nós, anda em falta no cinema americano dos últimos anos.
Há presenças ilustres como Colin Forth na pele do banqueiro Wilkins, Meryl Streep, a queridinha do cinema hollywoodiano, vivendo a prima de Mary Poppins, Topsy e Julie Walters (mais conhecida aqui no país por seus personagens nos dois Mamma Mia) como a empregada Ellen, mas nada que ofusque a graciosidade proposta pelas três crianças, que aqui parecem ter mais apelo do que no filme original. Pelo menos, eu tive esse sensação!
O grande acerto de Emily Blunt é não tentar imitar Julie Andrews. Ela encontra sua própria voz numa personagem cujo carisma é mais do que indispensável. E se é verdade que, por um lado, ela carece de um parceiro de aventuras à altura, pois o Jack de Lin-Manuel Miranda, está à anos-luz de distância do Bert de Dick Van Dyke (que, aliás, fez participação especial no longa), também é verdade que ela dá conta do recado numa história que precisa ser alegre a maior parte do tempo para conquistar as novas gerações de filmes.
Entretanto, há temas um pouco baixo-astral nas entrelinhas da trama. Como, por exemplo, a tia Jane, solteirona, que herdou um pouco da personalidade da mãe, então sufragista, e prefere lutar pelos direitos dos menos favorecidos em passeatas e manifestos do que encontrar sua alma gêmea e o banqueiro inescrupuloso, que tentará de tudo para pôr as mãos na casa da família Banks. Mas nada que afete o brilho e o sentimento de nostalgia do filme.
Voltando aos críticos xiitas e reclamões, que disseram ter a história perdido a sua magia. Recomendo-lhes que dêem uma nova chance ao filme. O Retorno de Mary Poppins mostra mais uma vez porque a Disney continua encantando gerações ao redor do mundo e seus concorrentes continuam com, pelo menos, um pé atrás no quesito conquistar plateias.
Longa vida à casa do Mickey Mouse. E que venham Dumbo e Alladin (já em fase de produção)!
Vidro
3.5 1,3K Assista AgoraHeróis não são tão simples assim...
(Vidro, Shyamalan e o super-herói rediscutido)
Tenho um certo incômodo com o cinema de M. Night Shyamalan e isso não é necessariamente um mau sinal. Desde que vi, em 1999, seu primeiro filme a ser lançado por aqui, o sobrenatural O sexto sentido, fiquei com um certo gosto amargo na boca, perdido entre a descoberta do final óbvio e a sensação de que sobrenaturalidade para o diretor não era necessariamente sinônimo de sustos e medos aparentes.
Com seu segundo longa no ano seguinte, Corpo fechado, fiquei mais contente. Principalmente porque ele, Shyamalan, se propôs a rediscutir o universo dos super-heróis. E até hoje o considero o seu filme que mais me tocou. Pois bem: três anos atrás o diretor se propôs a continuar esta história com Fragmentado e trouxe à tona um homem doente, perdido, complexo, capaz de virar uma besta humana e destruir tudo ao redor. E ele acabou por se tornar o elo de ligação entre os dois protagonistas do filme de 2000. E não satisfeito ainda o desdobrou mais uma vez numa trilogia um tanto diferenciada, fora do padrão habitual no gênero. Agora, com Vidro, ele chega à apoteose do seu raciocínio e defesa de opinião. E que se cuidem os leitores de comic books!
Em Vidro, vemos seus personagens de quase 20 anos atrás, David Dunn (Bruce Willis) e Elijah Price (Samuel L. Jackson, ainda mais alucinado do que no original) presos num instituto psiquiátrico ao lado do homem das múltiplas personalidades (vivido pelo ótimo James McAvoy), responsável pelo sequestro e morte de várias jovens. Contudo, desdobremos os fatos:
Dunn vivia dias de vingador, perambulando pelas ruas à procura da besta (uma das facetas desse homem dividido entre vários alter-egos), sempre ajudado pelo seu filho e ainda sentindo a falta da esposa, agora morta. É durante um combate com a criatura no meio da rua que ambos são pegos e levados em reclusão.
Já Elijah Price, que havia sido levado para o instituto no filme de 2000 vive à base de remédios, e parece completamente aéreo ao que vem acontecendo no mundo nos últimos anos. Eu disse parece...
No instituto precisam enfrentar a cética Dr, Elie Staple (a sempre ótima Srah Paulson) que representa, nada mais nada menos, do que a versão psicanalítica do estado, sempre castrando a sociedade e combatendo a possibilidade de que dissidências e heróis surjam, mantendo a ordem sob seu controle. Ela é a que tenta provar a qualquer custo que os "superpoderes" desses três homens não passam de delírios de grandeza. Seu ceticismo é a força-motriz que move uma nação que adora controlar o pensamento das pessoas e o tipo de informação que elas devem ler.
Elijah, que aqui neste terceiro episódio da trilogia assume uma postura mais distante, é o criador, o Stan Lee ou Steve Ditko do mundo real, provocando acidentes ao redor do mundo na convicção de que seus heróis surjam em meio à tragédia. Mais: ele se orgulha das maldades praticadas e trata as vítimas dessas tragédias como danos colaterais ao seu desejo insano de dar vida ao inimaginável, ao extraordinário.
Como pano de fundo (ou personagens, digamos, coadjuvantes) vemos não somente o filho de Dunn, como também a mãe de Elijah Price e também a jovem Casey Cooke, única sobrevivente do último sequestro promovido pelo atormentado Kevin (e também Patrícia, Jade, Barry, Heinrich e outras várias personalidades as quais ele assume e muda com uma enorme facilidade) que exercem funções pontuais na trama.
Contudo, o mais importante em Vidro é o seu discurso anti-Marvel ou DC. O que Shyamalan pretende com seu longa é mostrar que heróis não tem uma vida não fácil assim. São, na verdade, pessoas de personalidade complexa, que lutam contra seus instintos enquanto tentam sobreviver a uma sociedade aterradora como essa nossa. Enquanto vemos em filmes como Thor, Pantera Negra, Aquaman, Batman e tantos outros, a saga visceral de homens e mulheres em busca de manter a paz no universo, o que presenciamos aqui são três homens que certamente prefeririam ser deixados em paz com suas vidas específicas a ser cobrados ou perseguidos diariamente por isso.
Shyamalan desconstrói o fenômeno mais pop dos últimos anos apresentando homens de mentes perturbadas, confusas, lutando consigo mesmos para se autodescobrirem, enquanto o século XXI mostra-se esfacelado e perdido em meio a falsos referenciais e ídolos. Seu roteiro aponta um dedo acusador à sociedade em cima do muro, que prefere viver de pose a assumir uma postura ou compromisso.
Se nas revistas em quadrinhos Batman é chamado de Cavaleiro das trevas, à trilogia de Shyamalan e mais especificamente esta terceira parte bem caberia o rótulo de teatro do horrores pós-moderno. A diferença é que no teatro muitas vezes o horror é visível, aqui inventamos heróis como desculpas para nos proteger ao invés de assumirmos nossa própria parcela de culpa.
E os heróis, coitados, não são tão fáceis assim de serem entendidos, traduzidos ou classificados. Pelo menos não do jeito que as editoras de HQs tanto vendem. Que me perdoem os nerds leitores de quadrinhos e que esperavam ansiosamente o próximo filme dos Vingadores, mas aqui a ilusão de grandeza deu lugar a uma verdade cinza, dúbia e confusa. E isso é o que o fim dessa "trilogia" tem de melhor!
Green Book: O Guia
4.1 1,5K Assista AgoraO preconceito está nos pequenos detalhes
(Green Book e a América que não muda nunca)
Era uma amizade que tinha tudo para não dar certo...
De um lado, Tony Lip (Viggo Mortensen), um iltalianão do Bronx, brucutu até a alma, que não acredita que com diálogo conseguimos enfrentar as barreiras do mundo e por isso usa, quando o necessário, os punhos. Que o diga quando está trabalhando como segurança na boate Copacabana. Seu único porto seguro: a esposa Dolores (Linda Cardellini), os filhos e a família, sempre unida nos bons e maus momentos.
Do outro, o Dr, Don Shirley (Mahershala Ali, fantástico!), um homem negro, bem apessoado, estudado, de formação clássica, exímio pianista, mas divorciado e afastado dos poucos parentes ainda vivos por decisão próprio. Para muitos, um ermitão que prefere viver sozinho, ajudado por seu auxiliar; mas para que os conseguem ler as entrelinhas, um homem que luta com seus próprios demônios e escolhas infelizes, para chegar ao dia seguinte. E enfrentar uma nova batalha.
A vida de ambos se encontra quando Doc Shirley precisa fazer uma turnê pelo sul dos Estados Unidos (em plena época de racismo exacerbado no país) e precisa de um motorista. A princípio, Tony não se encaixa no perfil que ele procura, mas há algo em sua personalidade que cativa o pianista e ele decide contratá-lo mesmo assim (chegando a "pedir autorização" à esposa dele).
O resultado? Um road movie completamente inusitado, fora do óbvio, e marcado por um detalhe desagradável que persegue a jornada de ambos por toda a estrada: o preconceito.
Green Book: o guia, do diretor Peter Farrelly (mais conhecido pelo público brasileiro por suas comédias Debi e Lóide e Quem vai ficar com Mary?) é o apogeu de um cineasta que eu acreditava estar fadado à sorrisos e gargalhadas fúteis e fáceis. Estava enganado, para minha surpresa. O filme não somente é magnífico como também é um dos grandes cotados a faturar o Oscar de melhor filme desse ano (e, cá entre nós, com reais chances de vitória).
Durante toda a viagem de Tony e Doc Shirley (que dura oito semanas) o que mais chamou a atenção deste crítico de fim de semana que vos fala não foram as apresentações sublimes do pianista ou mesmo a trilha sonora impecável, com direito a Little Richard e até mesmo a rainha do soul, Aretha Franklin. Não, meus caros amigos e leitores! O que mais me fez refletir foi a sensação de incômodo causada pelo fato de que não é fácil ser negro nos EUA (no mundo em geral, mas na terra do Tio Sam em particular é um tapa na cara!).
A todo momento somos invadidos por uma blasfêmia ou um desrespeito ou uma ofensa disfarçada de piadinha barata. E Doc Shirley precisa andar cautelosamente em meio a esse gelo fino se quiser concluir sua agenda atribulada. Da parte de Tony, que também é malvisto em alguns setores da sociedade por ser imigrante, isso é suavizado em alguns momentos por pertencer à etnia certa. Mas nem ele está livre de rótulos e estereótipos. E até mesmo ele, antes da viagem, não era a pessoa ideal para se debater sobre preconceito racial.
Um homem negro sentado no banco de trás do carro enquanto um homem branco dirige? (Muitos sentirão vontade de ver no longa uma espécie de Conduzindo Miss Daisy às avessas). Encher auditórios com plateias entusiasmadas e, no entanto, não poder usar o mesmo banheiro da plateia ou mesmo ter direito a um vestiário adequado? Mais: sequer poder almoçar no mesmo restaurante que eles? Sim, Green Book é um soco na cara (e no ego) dos demagogos que acham que racismo "é coisa da sua cabeça, meu amigo! Há muito de exagero nisso tudo".
Terminada a turnê e chegado o natal (e ai de Tony que não chegasse em casa para a ceia de natal com a família!), fico perdido entre a desilusão de vermos que passados tantos anos nada mudou tanto assim e orgãos supremacistas como a Ku Klux Khan, por exemplo, estão ganhando força novamente e o direito a banir "os seres inferiores" e o orgulho de ver um tema desses ser mostrado de forma meticulosa e inteligente, sem exageros (algo que seria impensável no cinema hollywoodiano de cinco, seis décadas atrás).
Green Book pode até não ganhar o Oscar desse ano, mas que ele certamente já fez mais pela história dos EUA dos últimos anos do que muito político falastrão ou medida provisória para combater a desigualdade social, decreto, lei, etc, ah! disso não tenho a menor dúvida.
Por quê? Porque não é todo dia que prestamos atenção aos pequenos detalhes. E eles são fundamentais. Pelo menos, se você almeja se tornar um ser humano melhor.
(escrito antes dele vencer o Oscar de melhor filme)
Toda Arte é Perigosa
2.6 496 Assista AgoraA arte é sempre perigosa
(Velvet Buzzsaw e o mercado inescrupuloso das artes plásticas)
Arte e mercado, assim como água e óleo, não deveriam se misturar sob hipótese alguma. Infelizmente, graças a nossa malfadada e gananciosa humanidade esta é uma máxima que se recusa a ser seguida. E por conta disso, volta e meia nos deparamos com deslizes e abusos frequentes cometidos neste setor. O que é uma pena, tanto para fãs de artes plásticas (caso específico deste filme que mexeu profundamente com a minha cabeça), quanto para os artistas, que deveriam pensar mais em produzir um legado cultural significativo.
Com Velvet Buzzsaw o diretor Dan Gilroy se propõe a realizar uma sátira sobre o mundo das artes plásticas e seus caminhos perniciosos. Na verdade, o diretor gosta de mostrar o lado B de segmentos conturbados de nossa sociedade. Ele já havia feito o mesmo quando denunciou os abusos praticados pela imprensa sensacionalista em O Abutre. Porém aqui ele reduz o tom, insere um senso de humor um tanto negro nas entrelinhas do roteiro (que somente os espectadores mais inteligentes e refinados de fato perceberão!) e não aponta seu dedo acusador para uma pessoa em especial.
Aqui, todos têm a sua parcela de culpa no que tange a transformar a arte numa reles mercadoria milionária. Seja o crítico de arte - figura que nos últimos anos ganhou uma conotação exagerada de astro pop - Morf Vanderwalt (Jake Gyllenhaal), sejam os pintores "de vanguarda" Piers (John Malkovich) e Damrish (Daveed Diggs), seja a galerista e cafajeste de carteirinha Rhodora Haze (Rene Russo), dentre tantos outros oportunistas.
Neste mundo cinza e cruel, ávido por dinheiro, todos traem todos, todos vão para cama com todos, todos fazem de tudo para arrancar até o último centavo uns dos outros. E isso é encarado com a maior naturalidade. Sob certo prisma esta atitude é até louvável. Tolo é quem trabalha honestamente nesse meio e visto como "alguém que nunca irá de fato subir na vida". E essa é a única prerrogativa válida dentro do jogo de gato e rato a que se propõem os personagens.
O surgimento de uma vasta obra visionária e perturbadora, produzida por um pintor desconhecido que acaba de aparecer morto no prédio onde mora é o mote necessário para que esses abutres (sim, eles também estão por aqui e não somente produzindo notícias falaciosas) disputem a dedo suas telas. Porém, esse reles resumo não é suficiente para explicar a sanha por poder desses homens e mulheres que se vendem como descobridores de talentos.
Talvez os crimes de cunho sobrenatural que pairam sobre todos aqueles que tentaram transformar a obra vanguardista achada em mero produto ofusquem à primeira vista a intenção dos espectadores de procurarem uma razão para tanto oportunismo e tantos seres humanos obcecados por fama e poder. Contudo, veja a questão da sobrenaturalidade aqui proposta como um grande disfarce ou cortina de fumaça para que não vejamos as reais intenções da película (e do discurso ácido de seu diretor).
Assim como vi em Mera Coincidência, de Barry Levinson, a guerra ser transformada numa grande fábula para atender às necessidades de uma classe política cínica e de moral deturpada, vejo em Velvet Buzzsaw uma forma de seu realizador mostrar que a arte como a conhecemos até então (e tornada magnífica por nomes como Van Gogh, Picasso, Cézanne, Da Vinci, etc) está com os dias contados porque perdeu espaço para um discurso midiático que torna tudo reles, banal, efêmero. E o resultado disso é que a arte pura, fidedigna, voltada ao engrandecimento cultural, dá lugar a uma mentira, a um "Era uma vez.." sem sentido, a um desejo de chocar, aplaudir ou detestar (como se esses fossem os únicos sentimentos possíveis a qualquer pessoa que se deparasse com uma tela).
Entre disputas sexistas, o rancor e a inveja produzidos por artistas que não estão mais no auge de sua capacidade criativa e não admitem serem superados por uma nova voz ou talento e a eterna correria por audiência, exclusividade e originalidade (algo que, honestamente, eu não tenho mais presenciado tanto assim nos últimos anos) há a velha máxima de que o poder não deve ser questionado de forma alguma. A própria galerista Rhodora avisa a seu rival, o crítico, que "a arte sempre foi perigosa" e tal aviso é fundamental para que possamos entender este universo sórdido, baseado única e exclusivamente em números.
Em outras palavras: o que vale é chamar a atenção e produzir cifras exorbitantes. Talento é coisa do passado, de quando a arte estava servida de bons artistas, homens de real visão, dispostos a dedicarem uma vida a seus trabalhos.
As últimas cenas do longametragem parecem deixam claro ao espectador a ideia de que o lugar da arte não é, necessariamente, nas galerias e nas mãos de marchands e críticos inescrupulosos. Pelo contrário... A verdadeira arte acontece em pequenos gestos, está sendo vendida nas ruas a preço de banana e talvez nunca cheguemos a dimensionar o seu real valor monetário. Até porque não acredito no artista quando seu trabalho está relacionado à expressão "eu quero ficar rico e famoso". E provavelmente este é o grande legado proposto por Dan Gilroy com seu filme.
P.S: e teve gente na internet chamando esta película de brega. Ah Esses espectadores de meia tigela que só aplaudem e acham sensacional blockbusters de heróis, zumbis e criaturas fantásticas! Nunca fugirão de suas zonas de conforto, de seus gostos repetitivos e de sua cultura deficitária.
Infiltrado na Klan
4.3 1,9K Assista AgoraAmérica debilitada
(Spike Lee escancara os meandros da "grande nação")
O problema dos impérios (e daqueles que os idolatram) é um só: a falsa crença de que são imbatíveis, infalíveis, acima de qualquer suspeita. A eles nada acontece, pois ditam os rumos da vida moderna. Lêdo engano, meus caros! O império romano que o diga. Durou cinco séculos e mesmo assim não se encontra mais entre nós. E diga-se de passagem: já foi tarde.
Nosso império atual, o tão superestimado (opinião minha) Estados Unidos, também rezou nessa cartilha durante anos. E fez de tudo - desde usar a chegada do homem à lua até o mal explicado 11 de setembro - para manter-se no auge dessa nossa "pós-modernidade" (as aspas são intencionais). Deu no que deu.
A terra de Tio Sam - hoje de Donald Trump - vive seus piores momentos há algum tempo e não consegue entender que o mundo, maior do que uma única nação, precisa evoluir, crescer, andar com as próprias pernas. Resultado: uma crise de valores, social e econômica, sem precedentes. Contudo, ainda há homens de fibra capazes de expor as mazelas dessa nação contraditória. Mais: expor o problema desde suas raízes. Um deles, com certeza, é o cineasta Spike Lee. E faz isso em sua cinematografia desde que me entendo por gente (vejam Faça a coisa certa, Clockers e Malcolm X e tirem suas próprias conclusões!).
Pois bem: com Infiltrado na Klan, Spike faz seu maior ato político em forma de cinema das últimas duas décadas e isso fez muito bem a ele. O diretor precisa colocar para fora seu discurso raivoso e não menos verídico para explicar as raízes do que vem acontecendo com a América nos últimos anos. Vocês não acompanham os jornais? Pois deveriam. Funcionários públicos sem receber salário há meses, marchas envolvendo supremacistas brancos, o retorno da Ku Klux Klan ao cenário político e um presidente impopular que faz com que o país não consiga mais dialogar com a Europa como antes. E isso só para começar.
Spike Lee não conta somente a extraordinária história de Ron Stallworth (John David Washington), policial negro do Colorado que consegue fazer contato com uma das sedes da Ku Klux Klan e infiltrar um agente (mais complicado ainda: um policial judeu) dentro da organização. Como seria simples se fosse apenas isso! Nao. O diretor mais polêmico e controverso de hollywood conta, isso sim, a história de anos de preconceito e racismo desta grande nação, que sempre se vendeu às demais como "a terra das oportunidades".
Na sua colcha de referências múltiplas, citações a obras-primas do cinema como E o vento levou e O nascimento de uma nação, figuras proeminentes e revolucionárias da Blaxploitation e personas e organizações políticas como Angela Davis e os Panteras Negras. Tudo misturado num caldeirão capaz de deixar muitos cidadãos de pele branca incomodados com seu discurso e empáfia (na própria sessão que eu assisti, fui capaz de perceber alguns narizes torcidos em alguns momentos).
"Mas qual o objetivo de tanta raiva e desabafo?", dirão alguns demagogos de carteirinha (e eles estão, hoje em dia, mais presentes do que nunca). É simples de explicar, mas não de - para alguns, pelo menos - entender: a necessidade de continuar forçando a fechadura e a sensação de que se as comunidades negras pararem de falar, tudo será esquecido no dia seguinte com a maior naturalidade. Portanto, trata-se de um batalha para todo o sempre.
Somos um mundo racista que se recusa a admitir seu racismo. Chama-o de brincadeira, de piada, de mau entendido etc. Dentro deste mundo racista há um capítulo especial chamado Estados Unidos. Uma pátria que adora se vender como "a maior nação que este mundo já viu" e, no entanto, não consegue reconhecer nem mesmo seus próprios semelhantes, simplesmente pelo fato de pertencerem a uma outra etnia. Mais: acusam os negros de não serem os reais fundadores dessa pátria. Triste, mas real. Logo, não há outro jeito senão encarar a guerra de frente e fazer seus descendentes entenderem que eles terão de continuar o processo depois que os pais falecerem e assim por diante. Não há espaço para tréguas ou acordos. Não aqui. Não hoje, nem amanhã, nem no dia seguinte.
Spike Lee encerra seu "filme" (eu sei... é difícil ver o longa apenas como uma obra de entretenimento) com imagens duras, mas poderosas. Dá voz às vítimas recentes de manifestações ocorridas nos EUA, expõe com frieza a covardia dos que se dizem "raça superior". E, no final das contas, exibe uma América debilitada, fruto de anos e anos de exibicionismo e intolerância.
Como último frame, libelo derradeiro deste momento ímpar e árduo que o país atravessa, uma bandeira nacional de ponta a cabeça (que na linguagem codificada pode significar tanto um pedido de socorro como um sinal de terrível sofrimento em situações de perigo). Em outras palavras: a América pede ajuda. O problema: como ajudar a quem sempre ajudou apenas por interesse?
P.S: Spike Lee e seu filme foram indicados ao Oscar desse ano. E depois do que eu vi na tela naqueles 135 claustrofóbicos minutos, digo sem reservas: foi a maior ousadia do prêmio esse ano, mesmo não faturando a estatueta de melhor filme!
Nós
3.8 2,3K Assista AgoraO inferno são os outros
(Nós, Jordan Peele e a xenofobia social na grande nação)
Quando escrevi recentemente na minha crítica cinematográfica sobre o filme Infiltrado na Klan, do diretor Spike Lee, que a América (leia-se: Estados Unidos) está debilitada eu sabia do que falava e ratifico aqui minha posição. Nunca se viu na história da humanidade um país idolatrar tanto o ódio ao seu semelhante - ainda mais se ele for estrangeiro - como hoje em dia na terra de Donald Trump. Aquela velha moral que eu sempre achei arcaica nos discursos americanos de "somos a maior nação", "somos imbatíveis" ganhou contornos do maquiavelismo mais puro. Em outras palavras: odiar virou um grande esporte na terra do Tio Sam.
Mais uma prova viva disso? Saio do cinema após assistir ao longa Nós, do diretor Jordan Peele, extasiado. Mais ainda: perplexo. E penso: "estamos diante da veneração à barbárie".
Jordan Peele é um cineasta curioso. Começou sua carreira atuando em séries de comédia e acabou por escolher o terror como viés para sua faceta diretor. Até aí, nada demais. Até porque hollywood possui um grande mercado nesse gênero. Porém, o terror de Peele é ácido, negro, de um amargor profundo porque reflete as mazelas de sua tão querida nação. E pior: ele é negro. E ser negro nos Estados Unidos... Já viu!
Em seu longa de estreia atrás das câmeras, Corra!, ele utiliza-se do discurso do racismo nas entrelinhas de uma história aterradora, das coisas mais atemorizantes que eu assisti nos últimos anos. Digo mais: foi a primeira vez, desde os clássicos Wes Craven e Dario Argento, que um cineasta mexeu de fato com meus brios. Resultado: ele faturou o Oscar de melhor roteiro original e decidiu partir numa nova empreitada, cheia de novos temores.
Agora, em Nós, ele conta a história de Adelaide Wilson (Lupita Nyong'o, simplesmente fantástica!) e sua familia. No passado, quando criança, ele sofreu um trauma envolvendo um passeio num parque de diversões que mexeu profundamente com sua cabeça. Já adulta, viaja com o marido e os dois filhos para passar as férias de verão numa cidade à beira-mar e se depara com versões maléficas de si e seus familiares, trajados de vermelho e portando tesouras. Com apenas esta informação você pode pensar: "é mais um daqueles filmes slasher, na linha Jason, Freddy ou Michael Meyers. Não, meu caro amigo cinéfilo! Você não conhece Jordan Peele.
A história verdadeiramente por trás da trama começou quando a versão do mal de Adelaide diz: "eu sou americana". Neste exato momento eu me lembro do que representa ser americano no século XXI, pós-11 de setembro. E imediatamente um letreiro se abre diante de mim com a palavra em neón, piscando: XENOFOBIA.
Acompanhem os jornais e tablóides assim que possível e vejam como nossos amigos norte-americanos tratam os imigrantes, os refugiados, os não-nativos. Sim, porque desde que me entendo por gente eu percebo que ser americano de fato é ser nascido no país, filho de país também nascidos no país. Não há espaço para mestiços, latinos e cidadãos emprestados. Não há meio-termo. Sorry!
Portanto, a saga de Adelaide, seu marido e filhos é a luta por uma cidadania construída a fórceps, um direito que não deve ser maculado, distorcido ou transformado de forma alguma. Os outros, os estrangeiros, não passam de bárbaros, de invasores, que adentraram nossas terras para tomar tudo o que temos. A eles, que fiquem atrás de muros, que vão cometer seus atos terroristas bem longe, que entendam que aqui quem manda somos nós, descendentes dos fundadores dessa grande nação.
Eu sei, eu sei... Vocês vão dizer que trata-se de uma família negra, logo não aceita por certas instituições conservadoras e hipócritas. Contudo, mesmo eles se vêem como legítimos quando diante dos fantasiados assassinos. E a jogada proposta pelo diretor com a campanha dos anos 80 pedindo que todos dêem suas mãos e peçam paz no mundo mostra de forma clara, ao invés de conscientizar cidadãos distintos da necessidade de aceitarmos nossas diferenças, o hiato que existe nesta "grande nação".
Tudo em Nós é perturbador: desde a voz das versões do mal da família Wilson até a trilha sonora incômoda (houve, aliás, um momento em que eu fiquei pensando se não teria sido mais eficaz para o diretor trabalhar com o silêncio, como fez o ator John Krasinski no seu ótimo Um lugar silencioso. Eu fiquei muito perturbado com todo aquele ruído!). E isso tem uma razão de ser: o longa exprime o sentimento de repulsa de um país que simplesmente perdeu relevância mundial nos últimos anos, tentando recuperar o tempo perdido na marra, às custas de outras nações.
A consequência disso: um ódio gratuito e uma busca desesperada por protagonismo no mundo, em detrimento de escolhas e vontades alheias. Bem a cara do país que dilacerou o México no passado e agora os acusa de serem canalhas, bandidos, usurpadores.
Chego em casa após a sessão ruminando tudo o que vi, num sentimento quase claustrofóbico, e pensando comigo qual será a próxima artimanha dele. Dizem que seu próximo projeto será uma releitura da clássica série de ficção-científica Além da imaginação. E meu coração já começa a palpitar!!!
Para aqueles que acreditam que o terror é gênero morto, estão enganados. Vejam esta pequena jóia (e com direito a pitadas de humor negro, é bom que se diga!). E para aqueles que ainda acreditam no discurso neoliberal da grande nação, a terra dos homens livres... Na boa. fiquem com Jordan Peele. Pois não custa nada duvidar da classe dominante. Nem que seja só um pouquinho.
Boy Erased: Uma Verdade Anulada
3.6 402 Assista AgoraO filme proibido
(Boy erased e a moral de que "tudo é perversão" hoje em dia)
Que bom seria se o ser humano deixasse seu semelhante em paz com suas convicções políticas, econômicas e religiosas! Infelizmente, às vezes tenho a triste percepção de que a humanidade só existe para desmitificar o mundo e, no final das contas, acaba por se transformar ela mesma numa eterna mitologia sem sentido.
Profundo, não é mesmo? A sétima arte de vez em quando me deixa assim, reflexivo.
Pois bem: esta semana enfim consegui assistir o tão famigerado Boy erased - uma verdade anulada, do ator e diretor Joel Edgerton, que foi boicotado em nossos cinemas por "ofender" a determinados segmentos religiosos que apoiam o atual governo federal vigente. Digo de antemão: uma infeliz decisão, pois o longa reflete - e muito! - uma triste realidade que anda em voga no Brasil e no mundo afora.
Boy erased conta a história do jovem Jared Eamons (Lucas Hedges) que descobre, no auge da adolescência, seu interesse por homens. O problema é que ele é filho de um pastor evangélico de visão não somente conservadora, como por vezes extremista (aliás, um interessante trabalho de interpretação do ator Russell Crowe) e ele acredita piamente que seu filho sofre, isso sim, de uma perversão e ela pode ser curada, eliminada de sua personalidade.
Resultado: ele decide inscrever o filho numa terapia de conversão e é justamente nesse momento que começa o grande martírio do rapaz. Não bastassem os olhares tortos da população e dos colegas de faculdade na rua ele ainda tem de enfrentar o discurso intolerante e repressivo do "orientador" do programa, um homem - diga-se de passagem - sem a menor formação profissional necessária para conduzir tal tratamento..
O filme de Edgerton - que vêm se provando bom diretor, com longas como O presente -, mais do que traçar uma linha tênue entre certo e errado (vi alguns sites de cinema rotulando o filme de maniqueísta e, honestamente, não sei se concordo com esta interpretação!), mostra o quanto pioramos como sociedade.
Vivemos uma era de extremismos, pautada por um discurso religioso ferrenho, que acredita que a solução para todos os problemas da face da terra está exclusivamente na crença em Jesus Cristo, e não nos demos conta do quanto estamos perdendo no quesito diversidade. Ter uma opinião própria, decidir sua própria opção sexual ou mesmo escolher sua própria formação cultural viraram quase motivo de guerra, gerando bunkers ideológicos prontos para serem atacados a qualquer momento por qualquer um que se acredite acima do bem e do mal simplesmente por conhecer os preceitos da Bíblia.
Mesmo o momento-chave, em que pai e filho põem as cartas na mesa e tentam uma prestação de contas entre eles, é ocultado - ou bloqueado - por uma espécie de muro existencial (muito parecido com o muro, esse sim físico, que o presidente Donald Trump quer impôr aos mexicanos de qualquer jeito). É difícil para este pai velha guarda, que tornou suas escolhas no passado uma blindagem para lidar com os problemas da atual sociedade, confusa, perdida, tentando encontrar o seu próprio caminho, entender o próprio filho. Pior: parece tarefa impossível para ele, como cristão, permitir que sua prole faça suas próprias escolhas.
Ao final da película a sensação que fica no espectador - pelo menos, foi a que tive - é a de um gosto amargo, de um livro incompleto, em que você deseja ler o desfecho, mas ele não pode ser escrito, por imposição de pessoas que querem regrar o mundo, recontar a história, excluir os diferentes, evitar o futuro porque ele (visão dos conservadores) denigre o passado glorioso, porém manipulado em seus fatos e acontecimentos.
Fica aqui, da minha parte, um recado para os segmentos religiosos que boicotaram o filme: vocês deram não somente um tiro no próprio pé, como incentivaram uma geração de cinéfilos e curiosos a, isso, sim, correr atrás do filme nos serviços de streaming, google, etc... Digo isso, porque se existe algo de que o brasileiro médio não gosta é de polêmicas e proibições. Fizeram o mesmo com Je vous salue Marie, de Godard e O último tango em Paris, de Bertolucci no passado e eles se tornaram cults.
Ou seja: moral da história - quer ser visto? Basta dizer "não pode", "não acrescentará nada à sua vida".
Vox Lux - O Preço da Fama
2.9 223Veneramos monstros
(Vox lux: o preço da fama e o que transformamos em celebridades)
Volta e meia eu me pergunto se os artistas musicais de quem eu gosto são realmente flor que se cheire, se são aquilo que vendem para o público. E em muitos casos me desaponto com a resposta ou fico aterrorizado. E vocês, meus caros leitores, que acompanham meus devaneios e desabafos narrativos. fazem isso também? Pois deveriam. Urgentemente.
Vivemos uma era difícil em termos musicais. A todo momento são ofertadas ao público fraudes musicais aterradoras, artistas que não merecem sequer o rótulo de artistas, pois o que realizam é difícil de catalogar como arte. E mais assustador ainda: são aplaudidos, ovacionados por isso. Eu sei que vai ter muita gente que ficará puta com este parágrafo, mas não dá para fingir. Pioramos - e muito! - neste segmento. Aliás, em muitos outros também.
Mês passado me deparei com um filme que me deixou ainda mais estarrecido sobre o tema. Tanto que levei este tempo para expôr minhas impressões sobre o projeto. Trata-se de Vox lux: o preço da fama, de Brady Corbet. E só para constar um fato curioso: desde Precisamos falar sobre o Kevin, de Lynne Ramsay, não me deparava com algo tão macabro (e profundamente verdadeiro) sobre a sociedade contemporânea.
Vox lux conta a história de Celeste que, ainda adolescente, sobreviveu a um atentado no colégio onde estudava (observação: ela namorava o responsável pela tragédia). Durante o funeral em homenagem às vítimas, incentivada pela irmã mais velha que achava sua voz bonita, canta uma música inspiradora, repleta de fé e esperança por um futuro melhor. Pronto. Estava criado o terreno para que a inescrupulosa indústria fonográfica transformasse a jovem num ícone pop.
A artista que Celeste (vivida em duas fases pela jovem Raffy Cassidy e pela ótima Natalie Portman) se torna não difere em nada de invenções musicais na linha de uma Britney Spears, Rihanna, Sia e outras "divas". Ela não é a compositora de suas próprias canções, não canta ao vivo, e fomenta - e enriquece - ao seu redor uma entourage de abutres, capitaneados por seu empresário arrogante e impulsivo (vivido pelo ator Jude Law). E importante que se diga: exibe a arrogância e o desdém típicos de quem costuma fazer sucesso sem realmente ter mérito algum.
A trama ganha uma retomada insólita quando, após gravar um novo videoclipe, quatro jovens usando a mesma máscara que ela utilizara no vídeo, fazem uma chacina numa praia, tirando a vida de milhares de pessoas, e Celeste é indagada sobre sua responsabilidade na tragédia e os limites de fazer uma arte vazia, voltada ao lucro e ao hedonismo.
É nesse momento que meu cérebro me transporta da tela do cinema para o mundo real e me pego refletindo acerca dessa nova geração musical vigente. Lembro-me de ter visto tempos atrás uma entrevista com o escritor Paulo Coelho em que ele defendia a questão do gosto musical como uma "escolha que variava de geração para geração". Muitos, dizia ele, não veriam nada nos Beatles nos dias de hoje pelo simples fato de que não viveram o auge da beatlemania. Portanto, se sentiriam deslocados ao falar sobre a banda ou mesmo idolatrá-la. Faz sentido até certo ponto.
É bem verdade que não posso exigir das novas gerações a mesma percepção que eu tenho até hoje sobre a banda Queen ou Renato Russo. Não seria sequer justo. Entretanto, acredito que essa adolescência atual precisa rever seus conceitos. Principalmente o papel dos seus ídolos dentro do mundo em que estamos (sobre)vivendo dia a dia.
É visível a cultura blasé e afrontosa reinante no mundo pop de hoje. E em alguns aspectos até criminosa. Fico pensando com meus botões toda vez que assisto um clipe de artistas como 50 cent, Kanye West, Justin Bieber, Tupac Shakur, entre outros, que tipo de gente dá status de celebridade a esse povo arrogante, às vezes oriundo de um cenário marginal, que nada acrescenta ao planeta terra bem como aos seus respectivos países.
Fico possesso quando penso nisso.
A billboard, é triste afirmar isto, está repleta de Celestes. Pessoas vazias que chegaram ao sucesso por um caminho, digamos, tendencioso. E nós, fãs acéfalos, estamos venerando monstros ideológicos da pior espécie. E orgulhosos de nossas criações. Dizer "até quando?" já não responde mais a esta questão incômoda. É preciso acordar, antes que sejamos engolidos por nossas próprias más escolhas.
P.S: o único revés neste artigo e que, infelizmente, produções como Vox lux não são exibidas num circuito maior. Elas ficam fadadas à pequenos nichos, públicos segmentados. E isso é proposital, pois o importante é alienar as massas com filmes de super-heróis e franquias babacas. Isso também precisa mudar! Nem sempre o espectador quer só pão e circo.
Rocketman
4.0 921 Assista AgoraO hércules do rock
(Rocketman, Elton John e a música nunca mais foi a mesma)
"Certas pessoas vieram ao mundo para brilhar", li certa vez num livro sobre cultura pop de autoria de um famoso pesquisador do gênero. Eram os anos 90 e muitas pessoas da antiga me diziam que o que era bom já havia passado há anos e eu não tivera a oportunidade de apreciar. Não concordei com o argumento (até hoje não concordo), mas mesmo assim o ouvi por uma questão de educação e respeito aos mais velhos (embora nem sempre eles estejam certos!).
O tempo passou, meus cabelos infelizmente se foram (por minha culpa, confesso) e continuei lendo e absorvendo a cultura pop como um lunático, um delirante, um apaixonado pelo tema. E dentre as inúmeras pessoas que povoaram - e povoam até hoje - a minha cabeça há um capítulo especial reservado à Reginald Dwight. "Eu não sei quem é", você está doido para dizer. Mentira. Você sempre soube quem era, só não conhecia o seu nome de batismo. Falo de Sir Elton John, o mago do piano ou, como gosto de chamar toda vez que o ouço no you tube, capitão fantástico (nome de um de seus álbuns mais foda!).
Pois bem: há anos quero ler uma biografia dele, mas nossas editoras não me ofereceram esta oportunidade até agora (parecem mais preocupadas e interessadas em auto-ajuda, livros místicos, de colorir, entre outras bobagens editoriais que povoam nosso mercado atualmente). Quem sabe agora, após a realização da cinebiografia Rocketman, do diretor Dexter Fletcher, também responsável por consertar muitas das asneiras contadas no longa Bohemian Rhapsody que concorreu ao Oscar esse ano, eles - os editores - enfim tomem coragem.
Mais do que uma mera cinebiografia, Rocketman é um grande musical (algo que eu vinha sentindo falta há algum tempo, pois hollywood anda confundindo o gênero com tolices na linha La la land). Trata-se, no caso da história do cantor, de uma grande viagem do céu ao inferno com toques de fábula e surrealismo, e mostrando o quanto o tão alardeado e idolatrado show business pode ser maléfico e destrutivo.
Fui ao cinema com um ponto de interrogação na minha cabeça, pois já sabia que o ator Taron Egerton (que interpreta Elton John) cantava todas as canções no longa e eu queria ouvir a voz do próprio Elton. Podem me chamar de chato ou antipático, mas às vezes críticos são cheios de pequenas manias incômodas. Acreditava eu que o filme poderia ser estregado por qualquer um cantando. Ledo engano! Taron se mostra sublime com uma voz precisa, que me surpreendeu. E não somente isso: fiquem de olho no rapaz, pois acredito que sua carreira deslanchará de vez a partir de agora.
Desfeita a primeira má impressão, é com olhos marejados de lágrimas que vejo o diretor passear por nuances do artista, sem a preocupação de seguir uma cronologia exata ou metódica. O que importa aqui é a jornada pela qual o jovem Reginald teve que passar para se transformar em Elton John e chegar ao estrelato. Elton é fruto de uma família disfuncial, cheia de problemas, um pai omisso, uma mãe preocupada única e exclusivamente com a própria vida. E tudo o que ele viveu pós-relacionamento familiar foi meio que uma extensão desses problemas.
A parceira com Bernie Taupin (vivido por Jamie Bell, não mais o garoto de Billy Elliot), o romance escandaloso com o opressor John Reid, a luta para se impor como homossexual (algo que, no início da carreira, impossibilitou sua jornada), a incerteza sobre o futuro, já que acreditava que seu talento só era possível por conta do envolvimento com o álcool e as drogas... Ser Elton John nunca foi fácil. Na verdade, uma tarefa para um verdadeiro Hércules (sobrenome que ele próprio assume no filme).
Alguns espectadores enjoados reclamarão da abordagem do filme (a história é contada do ponto de vista do artista numa clínica de reabilitação, procurando refazer sua vida após tantas más escolhas). Eu, confesso, gostei da postura de Fletcher porque durante anos li matérias sobre Elton John em que ele se dizia "lutando contra demônios pessoais" para se manter de pé dia a dia. E, além disso, somente alienados e fanáticos sem conteúdo esperam realmente que a trajetória de um artista desse gabarito seja feita só de alegria e satisfações.
Em outras palavras: nunca acreditei na vida artística sem deslizes ou tropeços. E quando me deparo com a terrível tentativa de me convencerem disso, fico achando que o mundo ou a sociedade está tentando me lobotomizar, isso sim. E isso, meus amigos, é perda de tempo.
Sempre vai ter algo ou alguém faltando na história de um ídolo para que os fãs mais xiitas possam dizer: "está vendo? ele escondeu...". Dêem tempo ao tempo e os detratores do filme aparecerão. Eles sempre aparecem.
Para os demais espectadores, os não interessados na polêmica (grupo do qual faço parte), recomendo Rocketman com euforia. Se em Bohemian Rhapsody reclamaram da falta de coragem em abordar certos aspectos da vida de Freddie Mercury, aqui o que vejo é uma produção cheia de ousadia, com números musicais esplendorosos e preocupada em retratar as aflições de um dos maiores artistas do século passado (e deste também). Que o diga as cenas de sexo cuja exibição foi proibida em alguns países. Que babacas! Querem transformar Elton John em algo que ele não é. E ainda se dizem democráticos.
Ao final da sessão, leio que o cantor está sóbrio há 28 anos, casado e com dois filhos adotivos. Ou seja: venceu a batalha, decidiu seguir em frente, contra tudo e contra todos. Bem fez ele. Somente um Hércules do rock n' roll para vencer uma batalha dessas!
Longa vida a ele.
Todos Já Sabem
3.4 216 Assista AgoraA semente da dúvida
(Todos já sabem: um teatro de máscaras pós-moderno)
Vivemos neste século XXI uma cultura da indiferença atroz, nunca antes vista desta forma. "Aquilo que atinge aos outros não me interessa", dizem a todo momento os homens e mulheres que se dizem cidadãos de bem nesta civilização globalizada. Contudo, trata-se de uma indiferença cretina se levarmos em consideração que quando o atingido é o indiferente ele cria uma série de distorções e situações confusas, sempre tentando colocar os outros em xeque. Como se ele nunca fosse de fato o culpado e sim a vítima.
Esta semana assisti em dvd um longametragem que me mostrou de forma clara e objetiva um pouco desta cultura confusa e torpe que vêm ganhando mais e mais adeptos dia-a-dia. Trata-se de Todos já sabem, do diretor iraniano Asghar Farhadi, vencedor de dois Oscars de melhor filme estrangeiro. E desde já adianto: moralistas de carteirinha ficarão indignados com o desfecho.
Todos já sabem conta a história de Laura (Penélope Cruz), que chega à sua cidade natal - que não visita há anos - para assistir o casamento de sua irmã. Com ela, vem seus dois filhos. E a princípio tudo leva a crer que se tratará de uma festa alegre, do reencontro com familiares e amigos. Entretanto, é perceptível no clima da festa antigas cicatrizes à mostra, como por exemplo, a da atual esposa de Paco (Javier Bardem), com quem Laura namorou no passado. Naquela época, Paco era apenas um reles empregado da vinícola de seu pai. Já hoje, um empresário bem sucedido, sua presença incomoda a muitos membros da mesma família.
Durante a cerimônia sua filha mais velha, Irene, desaparece e todos começam a procurá-la desesperadamente. Minutos depois, Laura recebe uma mensagem pelo celular. Trata-se de um sequestro e seus perpetradores avisam que caso ela avise à polícia sua filha será assassinada. E neste exato momento nasce uma semente de dúvida que irá pairar por todo o seio familiar.
As trocas de acusações entre parentes são as mais diversas. E com a chegada do marido de Laura, Alejandro (Ricardo Darín), um homem falido com histórico de alcoolismo que quase tirou sua própria vida, o clima acirra ainda mais por conta da descoberta da real paternidade da moça sequestrada.
Farhadi, que é mestre em transpôr para o cinema dilemas morais (vide o que ele fez nos longas A separação e O apartamento) realiza aqui sua trama mais intrincada, cheia de reveses os mais distintos. Desde a mulher que está se separando do marido e cria sozinha a filha até a figura do pai, um homem destruído pelo tempo, e que vive aprisionado ao passado de glórias, quando seu patrimônio era muito maior do que é hoje, o que se vê na tela é uma grande ciranda de estereótipos os mais preconceituosos possível. E por conta disso é fácil entender o porquê de todos acusarem todos a todo momento.
Trata-se de uma família que passou boa parte da vida vivendo de privilégios conquistados por anos e anos de trabalho duro. A partir do momento em que o padrão de vida geral cai (algo que não é problema exclusivo da América Latina e sim do mundo contemporâneo como um todo), fica notório e visível o ressentimento daqueles que não querem ficar por baixo ou admitir suas dificuldades financeiras e sempre acusam os outros de seus próprios problemas ou frustrações. Na verdade, o que a película parece dizer em suas entrelinhas muito bem justapostas é que o que todos parecem saber de fato é que os dias de glória já se foram, o mundo já não é mais o mesmo e é preciso encarar a realidade dos fatos. O problema é: como?
Estamos falando de burguesia e burguesia nunca gosta de dar um passo atrás e vislumbrar novos horizontes.
É fácil entender por que um longa desses foi tão mal distribuído em nosso circuito exibidor. Lembro que quando foi lançado em nossas cinemas eu desisti imediatamente de ir assistí-lo, por conta dos horários e salas de projeção extremamente inacessíveis. Nada mais comum hoje em dia em se tratando de um circuito mais afeito à produções fantásticas e sobrenaturais. Porém, mesmo assim, é preciso desabafar aqui: as redes de cinema perderam uma grande chance de exibir um filme que é a cara dos tempos atuais, marcados por discursos idiotas e por vezes inverossímeis por se esconderem atrás de velha e arcaica moral monetária.
Como para nossa felicidade (e aqui me refiro aos cinéfilos de fato e não aos meros espectadores de fim de semana) também possuímos a facilidade de adentrar o mundo da internet, com seus Googles, You tubes, fóruns de cinema e outras interfaces que volta e meia disponibilizam material para download, convido os leitores deste artigo a procurarem o longa na rede e o quanto antes.
Mais do que um mísero drama, Todos já sabem é um exemplo pós-moderno de ótima qualidade do clássico e ainda atuante teatro de máscaras que rege nossa vil sociedade até hoje. E aos que ainda acreditam no mundo real, estão esperando o quê para ir atrás dessa pequena jóia que passou despercebida no nosso circuito comercial?
No Portal da Eternidade
3.8 349 Assista AgoraObsessivo
(No portal da eternidade, Van Gogh e a relação entre arte e loucura)
Comecei a ler com mais frequência sobre a história da arte e seus grandes expoentes de uns dois anos para cá muito motivado pela anarquia e a loucura presente no tema. Não, é isso mesmo que você leu! A história da arte me fascina pelo que ela tem de louco, de visionário, de anárquico, principalmente no desejo de certos artistas de romperem barreiras. A cada nova informação que consigo a respeito de Goya, Picasso, Miró, Salvador Dalí, Monet, Toulouse Lautrec e tantos outros, me dou conta de que a loucura e o inconformismo regem a arte com unhas e dentes (e isso não é um aspecto negativo nessa discussão, pelo contrário...). O mundo certamente seria bem pior não fosse a intolerância e o desespero desses mestres.
Dentre os que mais chamaram a minha atenção até hoje há um capítulo especial todo dedicado a Vincent Van Gogh. Seja pela traumática história pessoal ou pela trajetória subversiva com que conduziu sua obra, ele sempre foi um homem à frente do seu tempo. Homem? Que bom seria se fosse fácil assim traduzir o pintor. Van Gogh foi um sobrevivente de uma época turbulenta, mas ao mesmo tempo febril em termos de nuances e debates políticos. E quando assisti ao filme Sonhos, do diretor Akira Kurosawa, que possui um módulo todo dedicado ao pintor (interpretado no longa pelo cineasta Martin Scorsese), fiquei com um sentimento preso na garganta de que sua história ainda seria contada com todo o garbo que merecia.
Pois bem: esse filme é No portal da eternidade, do diretor Julian Schnabel (que é mestre em retratar figuras polêmicas do mundo artístico; são dele os longametragens Basquiat - traços de uma vida, Antes do anoitecer - cinebiografia sobre o escritor Reinaldo Arenas - e O escafandro e a borboleta).
No portal da eternidade não é uma cinebiografia no sentido clássico do gênero. Ela pega, na verdade, um fragmento da vida deste magnífico artista e se debruça sobre ele, para fazer com que nós, espectadores, entendamos o que se passava em sua cabeça e como construía seu processo criativo.
Van Gogh é vivido aqui nesta versão pelo ator Willem Dafoe (de quem sou fã desde os tempos de Mississippi em chamas), que mostra um domínio total de seu personagem, conseguindo fazer o o público entender de forma simples e direta os conflitos internos que assombravam esse artista fabuloso. À parte as telas que o consagraram mundo afora e a relação tumultuada com o irmão Theo (que o bancou durante muitos anos), o que está em jogo realmente aqui é a mentalidade tempestuosa de Van Gogh. O pintor não era um homem de gênio fácil. Pelo contrário... Era capaz de perder a paciência com a maior facilidade e não gostava de ser minimamente interrompido, sob pena de agredir àqueles que destruíram sua concentração. Foi malvisto por muitos políticos e habitantes de cidades por onde passou à procura de ideias para suas telas mais memoráveis.
Entretanto, quando paro para analisar sua gênese com mais calma, acredito que isto também faça parte de seu legado artístico. Homens de moral simples e pacata não criam, sob hipótese alguma, uma obra tão vasta e apta a tantos debates. Se existe uma coisa que eu aprendi lendo sobre arte e entretenimento nesses anos todos, é que o criador de fato - seja musical, cinematográfico, literário, etc - nunca será um ser ordinário, desses que você encontra passeando pelas ruas a todo instante. Faz parte da alma artística um pouco de incredulidade e, porque não dizer, irracionalidade perante o mundo (principalmente esse mundo louco em que vivemos atualmente).
E Van Gogh tinha isso, essa insatisfação plena, transpirando pelos poros.
Willem Dafoe certamente merecia o Oscar de melhor ator deste ano bem mais do que Rami Malek interpretando o astro do rock Freddie Mercury. Que me perdoem os fãs do Queen e das cinebiografias musicais - que andam em voga atualmente em hollywood -, mas isso é um fato facilmente identificável. Infelizmente a academia parou de reconhecer grandes nomes da história há alguns anos e preferiu cometer mais essa bola fora.
Contudo, se por um lado não há mais tanto espaço para artes visuais do passado e grandes nomes da pintura clássica, por outro é ótimo poder assistir um filme sobre Van Gogh com o nível de tecnologia proposto pela sétima arte de hoje. Se eu já era curioso acerca da vida desse gênio, agora vou sair correndo pelos sebos e livrarias atrás de mais informações sobre sua vida e intelecto. "O cara era foda. Ponto", foi a primeira frase que veio à minha mente ao sair do cinema ao final da sessão.
E quem perdeu com isso? Os nerds e alienados da contemporaneidade. De novo. Mas isso, vocês que acompanham meus textos há tempos, já sabem de cor e salteado.
Dor e Glória
4.2 619 Assista AgoraCicatrizes não têm prazo de validade
(Dor e glória, a autoficção almodovariana e a vida como resultado de sofrimentos e más escolhas)
Há mais ou menos umas duas décadas e meia (eu estava recém saindo do então segundo grau) fui à uma exposição no centro da cidade sobre escritores malditos que mexeu de forma definitiva com a minha cabeça e a minha relação com a literatura. Na entrada de um dos setores da mostra, havia um mural com os seguintes dizeres: "a humanidade, nada mais é, do que uma eterna criança que acumulou cicatrizes ao longo da vida". Como era bastante novo na época, a princípio não ficou bem claro para mim se eu havia entendido o contexto proposto pelo curador da exposição.
Eis que passado tanto tempo me deparo com o mais novo filme do diretor Pedro Almodóvar, Dor e glória, e enfim consigo contextualizar o que a minha versão adolescente não conseguiu.
Dor e glória é a volta do mestre do cinema espanhol a uma temática que ele conhece como poucos: o sofrimento. E confesso que estava ansioso pela estreia do longa, pois minha última sessão de um filme dele, o irregular Os amantes passageiros, me deu a impressão de que o diretor encontrava-se cansado, carente de boas ideias.
E é exatamente essa sensação de cansaço que abre o filme quando seu protagonista, o também cineasta Salvador Mallo (Antonio Banderas, vencedor da Palma de Cannes de melhor ator este ano), submerso na piscina, cheio de cicatrizes, exaurido pelo tempo, começa a relembrar de sua infância.
Salvador carece de boas ideias para dar continuidade à sua carreira. Seu maior sucesso, o longa Sabor, foi remontado pela filmoteca e será exibido. A filmoteca o convida para um debate após a reexibição do longa e ele quer que seu protagonista, o ator Alberto Crespo (Asier Etxeandia), com quem cortou relações após as filmagens, o acompanhe no evento. Rusgas vêm à tona novamente e após um pedido de desculpas, Alberto encontra um monólogo teatral inédito escrito pelo diretor e pede para encená-lo. Contudo, Salvador é reticente, vive refém de suas dores pelo corpo todo e das memórias da mãe Jacinta (Penélope Cruz), uma época em que era mais feliz apesar da pobreza e da educação rígida, imposta por um colégio de padres.
Não bastasse tudo isso há ainda a possibilidade de um diagnóstico de câncer que pode mudar completamente o seu futuro e as escolhas inusitadas que faz a essa altura da sua vida (por exemplo: ele descobre a heroína como anestésico para seu sofrimento físico).
Muitos críticos de cinema vêm chamando a obra de uma autoficção, mas ela é bem mais do que isso: é uma grande colcha de retalhos sobre a vida, as más escolhas que fazemos e a dificuldade de seguir em frente após uma certa idade, principalmente num mundo contemporâneo apegado em excesso ao ritmo veloz e as relações líquidas, efêmeras.
Banderas entrega de forma brilhante um expoente desse homem do século XXI, perdido em meio a uma sociedade que muda de caráter como quem muda de roupa e onde ninguém se importa mais de fato com ninguém. Para muitos, o tom do filme - que poderia ser niilista - acaba surpreendendo ao mostrar um Almodóvar que soube fazer uma pausa na carreira na hora certa, visando encontrar dentro de si um outro artista, mais maduro e consciente desta nova realidade em que vivemos.
Se por um lado muitos espectadores mais ranzinzas dirão que Dor e glória passa longe de seus trabalhos mais notáveis (como O matador, Tudo sobre minha mãe e Fale com ela), por outro ele entrega seu melhor trabalho nesta última década, e deixa um aviso para seus fãs mais alucinados: até o melodrama às vezes precisa ser revisto em nome do amadurecimento pessoal.
E em um ano cheio de filmes meia-boca e promessas não concretizadas, é louvável ver um cineasta ter a coragem de falar de si de forma tão humana e direta.
Pronto. já fiquei ansioso pelo próximo trabalho dele...
Suspíria: A Dança do Medo
3.7 1,2K Assista AgoraVendendo a alma
(Suspiria: uma desconstrução sobrenatural do mercado corporativo)
Imagine uma empresa bem sucedida, de renome (uma Coca-cola, Rede Globo, Apple, IBM, McDonald's, etc), com uma folha de pagamento majestosa, funcionários felizes, realizados, certificados de responsabilidade ambiental, ações na bolsa de valores, o melhor dos mundos. Agora pense a respeito do que você NÃO CONHECE acerca dessas mesmas empresas, suas negociatas sujas, aquilo que não fornece de informação para a mídia, os escândalos e processos abafados na surdina... Imaginou a cena?
Pois bem: por incrível que pareça o filme nos últimos anos que melhor delineou essa realidade ambígua do corporativismo empresarial foi um longametragem de cunho sobrenatural. Estou falando do remake de Suspiria, do diretor italiano Luca Guadagnino.
O cenário do longa - a escola de dança Markos - nada mais é do que uma metáfora para muitas dessas corporações que se escondem atrás da fama de seus nomes e seus falsos engajamentos sociais. Não vejo diferença alguma entre a professora Madame Blanc (Tilda Swinton) e muitos dos executivos casca-grossa do chamado Vale do Silício, epicentro da tecnologia mundial hoje. E mesmo a jovem Susie (Dakota Johnson) não é o exemplo de profissional promissora que muitas empresas desejam ter em seus quadros, mas sim o gatilho catalisador de todas as desavenças que costumam ocorrer em qualquer organização administra.
Contudo, há todo um clima surrealista, soturno, diabólico na maneira como Gaudagnino constrói sua narrativa. E isso é proposital. Ele força a mão em muitos momentos, pois quer mostrar o quanto esse animal (que chamamos corriqueiramente de ser humano) é tão complexo e autodestrutivo.
O objetivo (ou meta, como costuma chamar o mercado corporativo) é montar o espetáculo Volk. Entretanto, trata-se de uma jornada árdua que custou o abandono de muitas dançarinas, exauridas tanto pelo processo de ensaiar, quanto pela rigidez da responsável por montar o espetáculo. Entretanto, a pergunta que me fica é: até que ponto abandonamos de fato uma empresa dessa envergadura?
Conheci tempos atrás dentro do metrô uma moça, ex-funcionária da Infoglobo, uma das subsidiárias das organizações Globo, que me disse nunca ter conseguido virar a página após sua demissão. E mais: teve dificuldade de voltar ao mercado de trabalho e mesmo de conseguir uma carta de referência da empresa.
Assim na vida, assim na ficção. As dançarinas começam a desaparecer e o diretor entrelaça seus sumiços com o jogo de corpos aprendendo a coreografia do espetáculo, que mais parecem engrenagens trabalhando em série como no Tempos modernos, de Charles Chaplin. E essa correlação não é acidental. Todas ali são peças descartáveis num mercado que descarta seres humanos com uma facilidade cada vez mais impressionante.
Porém, como nem tudo na vida é sempre preto no branco, o diretor precisa inserir obstáculos e subtramas obscuras para confundir o espectador, deixá-lo à primeira vista perdido. Daí toda a crítica feita ao estado como mantenedor da ordem (o pano de fundo envolvendo o sequestro perpetrado pelo grupo terrorista Baader-Meinhoff é, no mínimo, um tanto melindroso), à sexualidade como via de escape para lidar com os problemas usuais da sociedade e mesmo à fé, artigo cada vez mais polêmico na atual conjuntura social vigente.
E esmiuçada toda esta trama sórdida, o espectador se depara com uma grande desconstrução sobrenatural (dark mesmo) do que costumamos chamar de mercado de trabalho. Na verdade, estamos virando mecanismos de um esquema torpe que transforma homens em reles objetos de curta duração, logo substituíveis por outros mais jovens.
Alguns mais afeitos à idolatria ao sistema chamarão isso de "a vida como ela é". Já outros, que preferem encarar de frente a dureza dos fatos e não perdem tempo acreditando em sorte, destino ou determinismos biológicos, sairão da sessão um tanto amargurados e ainda mais descrentes com a realidade cotidiana.
Mesmo assim, recomendo Suspiria com orgulho. Quando soube do lançamento deste projeto a princípio fiquei temoroso pelo resultado, pois adoro o longa original de Dario Argento (de 1977) que foca mais no aspecto horror. Mas acabei admirando a nova versão por sua ousadia. Tanto que me propus a repensar o projeto à luz dos tempos atuais.
E se por acaso não entendi nada da proposta atual e não passo de um louco que enxerguei demais onde não devia, mesmo como loucura minha reflexão me deixou um tanto satisfeito.
E tudo isso através de um filme de terror... Quem diria!
O Gênio e o Louco
3.8 101 Assista AgoraQuem detém o conhecimento?
(O gênio, o louco, a criação do dicionário Oxford e a velha cultura opressiva dos engravatados)
Nunca vou entender essa cultura vigente no nosso país de que o conhecimento está sempre nas mãos dos acadêmicos, dos bem nascidos, dos perpetradores do beletrismo, dos privilegiados. Somos uma nação que, infelizmente, não acredita em autodidatismo e sempre que pode os rotula de "falsos intelectuais".
O gênio e o louco, de Farhad Safinia, é mais um daqueles filmes que foi lançado nos cinemas tarde demais (digamos: um década pelo menos). Faz parte de um imaginário que se perdeu no circuito exibidor de cinema: o de filmes inteligentes, para aqueles espectadores que desejavam sair da sala de projeção transformados de alguma forma. Hoje em dia isso caiu em desuso por conta do sucesso de empresas como a Marvel, a DC, a Lucas Film, que visam como primeiro objetivo o lucro e a quebra de recordes de bilheteria.
Todavia, como não pertenço a esta geração que vê a sétima arte como mero entretenimento e sempre gostei do desafio de pensar (algo que anda em extinção na atual sociedade), foi com grata surpresa que me deparei com um longa que respeita os cinéfilos amantes da língua, da literatura como um todo e também de uma história bem construída.
O filme de Safinia conta a história da criação do dicionário Oxford. E tão difícil missão passa pelas mãos de dois homens cujas formações incomodam à sempre pedante intelligentsia britânica. O primeiro é James Murray (Mel Gibson), um autodidata escocês, tudo que as cabeças mais brilhantes de Oxford detestam, por considerá-lo um homem indigno (por não possui diploma de nível superior) para tal missão. E o segundo, ainda mais grave, é o médico William Chester Minor (Sean Penn, fantástico!), condenado a viver num manicômio após ter cometido um crime leviano.
Porém, o que entendem esses homens de terno-e-gravata, portadores de PHD, sobre estar realmente habilitado para realizar uma missão dessa magnitude?
Nunca imaginei que criar um dicionário pudesse dar tanto trabalho e gerar tanta política. O longa aborda toda a luta de Murray para construir um compêndio que pudesse representar toda a nação inglesa, e não somente a elite que considerava certas expressões e palavras populares desnecessárias. Houve, inclusive, um momento em que cheguei a correlacionar a saga de Murray à criação da Bíblia de Gutenberg, tamanho os interesses que estavam em jogo naquele momento.
A eterna mania opressiva e radical dos engravatados acadêmicos de exibiram seus diplomas como solução para o mundo resvala na inteligência nítida de Minor, um homem atormentado por sua própria loucura, o que o leva a um comportamento por vezes quase animalesco, mas sob certo prisma coerente com a sociedade maquiavélica na qual vive. E é esse homem o único que realmente entende o sonho - para muitos, um delírio - de Murray. Somente esta dupla e não um bacharel, mestre ou doutor conseguirá entender a grande provação que é criar uma obra literária deste nível.
Pena que os espectadores de hoje - os mesmos que acharam a adaptação de O código da Vinci, de Dan Brown, uma sucessão inesgotável de blá blá blás (pois é: conhecimento hoje em dia entrou para a categoria de desnecessário, vide o sucesso de certos "ignorantes" na indústria fonográfica e literária) - não tenham a paciência necessária para comprar o roteiro lúcido de John Boorman (criador de filmes memoráveis como Excalibur, Amargo pesadelo e Esperança e glória).
Mais uma vez (como já disse em outros artigos cinematográficos meus): quem perdeu foram eles mesmos!
O gênio e o louco não é franquia, remake, spin off ou sequel de nenhuma outra mercadoria gratuita que vem sendo feita nos últimos anos em hollywood. Pelo contrário: é filme para corajosos e sobreviventes dessa eterna mania do mundo globalizado de querer "esvaziar a cabeça das pessoas". Honestamente: não sou bexiga para comprar essa torpe realidade.
Dito isso, recomendo o longa para aqueles que não aguentam mais sair de casa para ver os mesmos filmes ou a continuação dos mesmos. E, sim, ainda há vida inteligente na sétima arte. A diferença é que agora é você mesmo quem tem de procurá-la.
Cats
3.9 45Cada um no seu quintal
(Cats: uma sátira divertida sobre o regime de castas que existe em todos os lugares).
Por mais que certos exemplares da sociedade tentem negar, vivemos num regime de castas. Isso nunca mudou e, honestamente, depois de ter visto praticamente de tudo em pouco mais de quatro décadas de existência, não acredito que isso mudará algum dia. Faz parte do chamado "viver em sociedade" pertencer à certas dinastias e grupos de interesse (e o fator monetário sempre tem um peso extraordinário em nossas escolhas).
Esta semana fui rapidamente ao Méier (bairro onde morei por mais de 20 anos) à procura de um controle remoto novo para o meu dvd player e parei por uma meia hora - na verdade, nem isso! - num sebo famoso que há no bairro, perto da Rua Silva Rabelo. E qual não foi a minha surpresa ao me deparar com um exemplar intacto do dvd do musical Cats, um dos maiores fenômenos musicais da Broadway de todos os tempos, que eu sempre quis assistir mas nunca tive a devida oportunidade?
Mal chego em casa, vou logo pondo o disco para reproduzir e me deparo com um espetáculo audiovisual dos mais extraordinários e também com uma sátira a este regime de castas ao qual me referi no primeiro parágrafo.
Baseado em Old possum's book of practical cats, de T. S. Eliot, o espetáculo - aqui numa versão produzida pelo mestre dos musicais Andrew Lloyd Weber e dirigido por David Mallet - narra a saga dos gatos Jellicles, que se reúnem uma vez ao ano para realizar uma grande festa, uma grande celebração felina, que dará a um deles a possibilidade de renascer.
Porém, mais do que isso, o que fica claro na narrativa do musical é seu interesse em mostrar ao público espectador que mesmo no reino dos gatos é preciso saber pertencer a certos grupos sociais e respeitar certas hierarquias. Aqui, a palavra de sabedoria a qual todos seguem sem divergir, é a do velho Deuteronomy (Ken Page), uma espécie de profeta entre os Jellicles. É ele que será o mediador entre o gato escolhido o seu renascimento.
Definida a liderança do grupo, o que se vê logo a seguir é a velha e mais do que conhecida hierarquização social (algo que nós, seres humanos, conhecemos muito bem). A começar pelos gatos mais ilustres como, por exemplo, Jennyanydots (Susie Mckenna), referência em termos de elegância e comportamento e Bustopher James (James Barron), chefão da Rua Saint James, sabe de tudo o que acontece com todo mundo, o fiscal da região, até a chamada rabeira da sociedade. E nesse quesito há amostras um tanto interessantes e curiosas: Rum Tum Tagger (John Partridge, para mim a melhor voz de todo o elenco), o gato que não se submete ao sistema, não obedece regras, sejam elas quais forem, e só faz aquilo que quer; Macavity (Bryn Walters), o fora-da-lei, o criminoso, cuja simples pronúncia de seu nome já deixa os demais seres de sua espécie apavorados; Skimbleshanks (Geoffrey Garret), o gato vadio, que vive nos trilhos do trem, sempre à procura de levar vantagem em algum sentido.
Entretanto, há também espaço no espetáculo para figuras intermediárias e um tanto distintas, como Grizabella (Elaine Paige), a outrora gata fina, de madame, que perdeu tudo, e hoje vive da lembrança dos dias de glória passados e dos olhares acusadores dos demais gatos; Gus (John Mills), antigo ator de teatro - e dos bons - cujo único legado que lhe sobrou foram a velhice e as memórias do tempo em que era famoso, notado na rua; Rumpus (Frank Thompson), o gato-herói, responsável por dar fim à uma guerra entre pequineses e policiais; e finalmente, Mister Mistoffelees (Jacob Brent), o mágico, rei dos truques, não fosse ele o velho Deuteronomy continuaria nas mãos de Macavity (que, no fundo, deseja sua liderança e prestígio).
E desde que cada um respeite sua posição social dentro dessa hierarquia (em outras palavras: que cada um permaneça no seu quintal), maiores problemas não ocorrerão, como todo "bom exemplo" de sociedade que se preze.
Falar da parte técnica é chover no molhado. Um espetáculo de exuberância, repleto de luzes, boas canções, fogos de artifício, até truque de ilusionismo... Não é à toa que a peça ganhou ao longo dos anos a fama que possui.
Em tempos de super-heróis e adaptações de sucessos de bilheteria hollywoodianas invadindo a Broadway diariamente, vale a pena dar uma conferida em Cats e perceber que o básico ainda chama - e muito! - a atenção dos espectadores, principalmente os mais nostálgicos.
Procurem. É daquelas experiencias que nunca envelhecem.
O Homem Que Matou Dom Quixote
3.2 86 Assista AgoraClássico revisitado
(Terry Gilliam e o projeto de uma vida, Dom Quixote e os fantasmas que assombram um artista)
De tempos em tempos a sétima arte mundial nos apresenta projetos que são um tour de force na vida de seus realizadores. Histórias que parecem simples em sua execução na teoria, mas na prática são capazes de levar seus diretores ao pronto-socorro ou à falência. Martin Scorsese que o diga! levou quase três décadas para realizar seu megaprojeto Gangues de Nova York, produzido pelo hoje execrado pela indústria, Harvey Weinstein, e já contou em entrevistas o sufoco que passou para tirar a ideia do papel. Há casos mais extremos como, por exemplo, a tentativa do cineasta chileno Alejandro Jodorowsky de realizar o remake de Duna (que havia sido realizado nos EUA pelo diretor David Lynch, sem atrair grande bilheteria). Resultado: o longa nunca saiu do papel e ainda rendeu um documentário sobre a saga ocorrida. E como esquecer do hoje cult O portal do paraíso, de Michael Cimino, que quase levou a Paramount Pictures à ruína?
Nas últimas décadas o melhor exemplo de revés nesse sentido foi o do diretor Terry Gilliam. Há 25 anos ele almeja tirar do papel o projeto de O homem que matou Dom Quixote e, entre tentativas e frustrações sucessivas, de lá para cá já realizou outros seis longas (entre eles, pequenas jóias como 12 macacos, Medo e delírio em Las Vegas - baseado em livro homônimo do escritor Hunther Thompson - e o inusitado O circo imaginário do Doutor Parnassus) até que finalmente conseguisse colocar um ponto final na sua versão da saga de Miguel de Cervantes.
Contudo, o problema não foi totalmente extinguido com o final das filmagens. Houve problemas com a pós-produção, discussões com produtores (chegaram a quase tomar o filme das mãos dele!) e Gilliam chegou a enfartar durante o período. Isso mesmo! Um processo hercúleo comparável à Paradise Now, de Francis Ford Coppola, que também teve um processo de criação conturbado.
E eis que o sufoco finalmente chega ao seu momento de graça com o lançamento de O homem que matou Dom Quixote nos cinemas (cá entre nós: merecia uma distribução bem melhor por parte dos cinemas, que antigamente aguardavam projetos como esse com êxtase).
E não é que o diretor Terry Gilliam revisita o clássico de Cervantes de forma curiosa e inventiva?
A história se passa na Espanha durante as filmagens de uma adaptação de Dom Quixote realizada pelo jovem cineasta Toby (Adam Driver, que interpreta na verdade um alter-ego do próprio Gilliam). Em meio à decepções com o rumo do projeto, o diretor realiza uma pausa à procura de novas ideias que incrementem a narrativa do filme e se depara, durante um almoço, com uma cópia em dvd de uma versão da mesma história que realizou ainda nos tempos de faculdade. E redescobre o ator Javier (Jonathan Pryce, ótimo!) que havia feito Dom Quixote na ocasião. O problema é que Javier acredita ser de fato o verdadeiro Dom Quixote de la mancha e arrasta o diretor para uma jornada repleta de missões impossíveis.
Porém, a grande sacada proposta por Gilliam aqui é a maneira como ele insere questões que vêm atormentando a geopolítica do mundo nos últimos anos e a maneira como transforma o fiel escudeiro de Dom Quixote, o bonachão Sancho Panza, de mero coadjuvante à figura central da trama. É possível perceber as alfinetadas de Gilliam no roteiro (escrito a quatro mãos com Tony Grisoni) quando menciona a questão dos imigrantes ilegais e dos terroristas, além da forma debochada como lembra do atual presidente dos EUA dentro da trama. Sátira maior do que essa, impossível!
O homem que matou Dom Quixote fala dos fantasmas que assombram artistas de todo o mundo de tempos em tempos. E no caso de Terry Gilliam percebe-se que esse "projeto de uma vida" o perturbou muito mais do que ele próprio deixou transparecer ao longo dos anos. Ele pode até debochar, ironizar, desconversar, mas no fundo, no fundo, é perceptível o quanto que as idas e vindas envolvendo este longametragem mexeram com o seu racional e, também, com a paixão que ele nutre pela história. E nesse sentido a loucura de Dom Quixote cai como uma luva para suas pretensões criativas (embora ele se enxergue mais como um Sancho Panza dentro desta realidade).
Em outras palavras: o filme é uma belíssima catarse literária, narrada com todas as maquinações sórdidas que tornaram o diretor tão famoso e respeitado mundo afora. Convivendo entre artistas megalomaníacos, musas ninfomaníacas e patrocinadores excêntricos, seu Toby se autodesconstrói frame e frame buscando uma verdade que, no final das contas, nunca conseguirá ser mais do que aquilo que sua obra já mostra: um ponto de vista. Se ele deseja fazer do filme sua identidade ou DNA está comungando na fé errada, pois a arte é múltipla e, por vezes, traiçoeira ao nos apontar caminhos. E esse é o melhor legado que Gilliam poderia nos proporcionar a esta altura da vida e da carreira.
Não sei se este será o último longa de Terry Gilliam (espero que não, embora seu recente problema de saúde e a rotina de um cineasta que costuma produzir filmes grandiosos não costumem combinar), mas caso seja fica aqui meu respeito e gratidão por um artista que a meu ver nunca vacilou ou decepcionou em suas intenções. Podem me chamar de bajulador, mas é por causa de pessoas como Gilliam que me tornei cinéfilo, por conta de sua coragem, sua ousadia artística, e por nunca tratar seu público como idiota. Seus filmes são magníficos tanto do ponto de vista estético, como também pela forma como defende suas concepções narrativas. Já trouxe à tela o grupo Monty Python, os contos de fadas dos irmãos Grimm e até mesmo o Barão de Munchausen, sempre de maneira singular, sem rodeios ou invencionices. E com O homem que matou Dom Quixote nos entrega seu delírio mais pessoal, para deleite dos fãs mais apaixonados por sua filmografia.
E como eu poderia terminar esta humilde crítica sem manifestar o meu "longa vida ao mestre"? Desse jeito.
Meu muito obrigado, hoje e sempre.
Era Uma Vez em... Hollywood
3.8 2,3K Assista AgoraUma viagem ao túnel do tempo
(Era uma vez em... Hollywood, Tarantino apronta de novo e o cinema não é mais o mesmo)
Não é de hoje que digo em meus artigos sobre cinema que a sétima arte não é mais a mesma. Pena que os cinéfilos de hoje em dia não percebam isso, pois estão lobotomizados pela cultura super-herói vigente no mercado audiovisual contemporâneo. acreditem, meus amigos cinemaníacos mais novos: era fácil fazer cinema antigamente e não havia necessidade de tanto CGI, tanto efeito especial estourando na tela. Era preciso, isso sim, de boas ideias, a serem transformadas em bons roteiros. Contudo, é louvável também admitir que certos cineastas não se submeteram a essa vertente "espetáculo grandioso antes de tudo" do atual cinema (principalmente o hollywoodiano). E um desses expoentes máximos é, sem dúvida, Quentin Jerome Tarantino.
Quentin Tarantino não é só um cineasta. É um reinventor de clássicos do cinema mundial. E sua obra nunca se negou a mostrar esse lado (embora alguns críticos cismem em vê-lo como um reles "plagiador"). Prova viva de seu talento para recontar histórias são as batalhas de espada em Kill Bill, com direito a muito sangue esguichado nas paredes (como bem gostavam de fazer os cineastas responsáveis por clássicos do cinema de arte marcial) e as mortes brutais por atropelamento em À prova de morte, onde reconstrói estereótipos do chamado cinema underground dos anos 70. Isso sem contar suas duas primeiras obras-primas, Cães de aluguel - feito com um orçamento enxutíssimo e com recursos mínimos - e o extraordinário Pulp fiction - tempo de violência, palma de ouro no Festival de Cannes de 1994.
Com o passar dos anos Quentin tomou gosto pelo faroeste (seu gênero predileto) e se distanciou de outras temáticas, para tristeza de fãs mais nostálgicos e outsiders, como eu. Até agora. Realizando Era uma vez em...Hollywood o cineasta americano mais fetichizado desse século volta às boas com seu público mais antigo e entrega um de seus filmes mais pessoais, aquele que me fez lembrar do jovem que, no passado, era um mero gerente de videolocadora viciado em filmes e que sonhava em realizar o seu próprio longametragem.
É difícil explicar o nono longa de Quentin Tarantino pela ótica do "é uma história de...". Na verdade, até mesmo precisar o protagonista de seu novo filme é uma saga por si mesmo. Vejo Era uma vez em...Hollywood como uma bem construída crônica de costumes sobre uma época em que o cinema americano anda ditava o ritmo do audiovisual mundo afora e acabou por se perder em meio a uma cultura de tragédias, escândalos, guerras e crimes bárbaros.
Através das histórias entrelaçadas de Rick Dalton (Leonardo Dicaprio), um ator decadente de séries televisivas que vê num convite para participar de um western spaghetti italiano a chance de sua redenção diante das telas; Cliff Booth (Brad Pitt), um dublê em fim de carreira que não consegue mais trabalho nos estúdios por conta de seu temperamento explosivo e a jovem atriz Sharon Tate (Margot Robbie), casada na época com o cineasta Roman Polanski, responsável por clássicos do cinema como Chinatown e O bebê de Rosemary, Tarantino destila todo seu conhecimento sobre a sétima arte passada e nos apresenta uma grande viagem ao túnel do tempo, com direito a músicas inesquecíveis e montagens sensacionais onde o ontem e o hoje dividem a cena com um brilhantismo ímpar.
Embalados pela magia de Deep Purple, Neil Diamond, Maurice Jarre e clássicos eternos como "Mrs. Robinson" (da dupla Paul Simon & Art Garfunkel) e "California dreamin'", o diretor nos transporta para uma fenda no tempo, onde os sonhos mais sórdidos, eróticos e brilhantes já promovidos pela sétima arte são remasterizados para atender às expectativas da nova geração. Isso sem perder as velhas manias e gostos do diretor: o fetiche por pés e a matança brutal estão presentes para delírio dos fãs mais ansiosos pela sua catarse febril e sanguinária.
E a conclusão a que chego após as mais de 2 horas e 40 minutos de projeção (que não me deixaram entediado um minuto sequer) é a de que o grande gênio do cinema dos últimos anos está dando um baita puxão de orelha nessa geração Marvel/DC e perguntando: "vocês têm realmente noção do que estão perdendo quando preferem entrar numa sala de cinema, enfiar na cara seus óculos 3D e se limitar a aceitar um festival de imagens criadas por computador, sem o menor interesse que não seja o de criar um vínculo comercial duradouro ao invés de apreciar um produto realmente único?". Mas eu sei, eu sei... Eu estou malhando em ferro frio e esses "nerds" da atualidade são um caso perdido. Quer saber? Quem perderam foram eles mesmo!
Se Era uma vez em... Hollywood será o filme do ano, eu não sei. Mas de uma coisa eu tenho certeza: o público de cinema do século XXI está perdendo uma grande chance de apreciar um bom espetáculo. E parodiando o próprio contexto dos contos de fada, aqui nessa história o seu término não será "e viveram felizes para sempre", mas sim "e perderam a oportunidade de ser felizes".
Valeu, Tarantino, por essa aula de cinema. Essa galera de hoje bem que anda precisando!
Bacurau
4.3 2,8K Assista AgoraQuem manda aqui sou eu
(Bacurau é o Brasil que os holofotes não querem mostrar)
Gosto do diretor Kleber Mendonça Filho. Gosto mesmo. Desde que vi seu polêmico curta-metragem de 2009, Recife frio, percebi que ele era um dos raros exemplares da atual geração do cinema nacional que anda na contramão do circuito. Ou seja: sua primeira preocupação artística não é com bilheterias exorbitantes ou quebra de recordes de público. Pelo contrário. Ele almeja fazer com que seu público pense, reflita sobre os rumos do nosso país. E nos últimos anos ficou clara sua posição antigovernista (vide a repercussão que gerou seu longa anterior, Aquarius, visto como película non grata por muitos brasileiros).
Falar de um país como o Brasil no cinema sempre será uma tarefa difícil, ainda mais quando o regime vigente no momento está mais interessado em demagogias religiosas e o interesse de nosso principal governante está centrado no poderio militar de outras nações. Contudo, Kleber (desta vez acompanhado do co-diretor Juliano Dornelles) passa por cima de tudo isso - inclusive da possibilidade da Ancine, órgão principal a subsidiar nossas produções cinematográficas, deixar de existir num futuro próximo porque o atual governo quer "moralizar" a produção - e nos apresenta o extraordinário Bacurau, vencedor do prêmio do júri na última edição do Festival de Cannes.
Fica muito claro para o espectador mais atento aos detalhes e entrelinhas que Bacurau é um filme político (e com muito orgulho de assim ser). A cidade retratada, a oeste de pernambuco, é um retrato da miséria de nossa nação. Uma miséria que os tabloides e nossos dirigentes fazem questão de esconder, preferindo entupir nossas cabeças vazias com partidas de futebol, desfiles de escolas de samba, reality shows e programas evangélicos tendenciosos e efêmeros. Porém, mais do que isso, o longa de Kleber e Juliano é um grito de guerra, um ato de resistência direcionado àqueles que adoram tratar a nossa pátria segundo a ótica do determinismo biológico ("você nasceu pobre, tem que morrer pobre"), só que nos últimos anos acrescida da mentalidade "porque Deus assim quis".
O nordeste, região do país que se confunde com a própria definição de revolução (procurem os livros de história e vocês entenderão do que falo), está mais do que bem representado pelo longa, seja do ponto de vista cultural como também do reacionário. A roda de capoeira divide o espaço com a matança com uma naturalidade assustadora. Afinal de contas, trata-se de uma região que no passado nos trouxe o cangaço, canudos e tantos outros "rebeldes". Portanto, não há receio quanto a morte (isso fica claro na quantidade gigantesca de caixões que aparecem durante todo o filme), mas sim quanto à pessoas que querem mandar nas suas vidas e tomadas de decisões.
Acrescentem a isso a velha máxima dos currais políticos que nada fazem por essas localidades a não ser coletar votos, o interesse estrangeiro em se apoderar de nossas riquezas e deletar nossa cultura, o gigantismo da internet no que tange à idolatrar a indústria da violência e perpetuar o descrédito junto a uma população com histórico lendário de alienação e ignorância, e pronto: está criado um cenário de horror e guerra sem precedentes.
Quanto aos personagens aqui retratados são uma aula de cinema à parte. Destaco a ranzinza, mas não menos fenomenal Domingas (Sônia Braga, realizando um feito que eu jamais imaginei que a dama do lotação do cinema novo seria capaz de produzir), o truculento, mas não menos verídico e necessário Lunga (Silvério Pereira), retrato amargo e viril do homem do agreste cansado de acreditar no sistema corrupto e que decide arregaçar as mangas e tomar a rédea da situação e o "americano por empréstimo" Michael (Udo Kier), simbiose da ganância estrangeira com o eterno discurso do capitalismo como única salvação verdadeira para o futuro do planeta. E quando ele diz que "o mundo está de cabeça para baixo" está sempre se referindo aos outros como errados, nunca ele próprio.
Bullying racial, desrespeito à cultura, descaso com a educação, a política de castração voltada para todos aqueles que questionam a vontade do Estado como mantenedor da ordem, crítica ao sistema de saúde... Todas essas temáticas se entrelaçam fazendo de Bacurau um faroeste que nada tem de pós-moderno, pois essa região do país nunca recebeu qualquer tipo de tratamento que soasse sequer inovador, que dirá moderno. Trata-se de um microcosmo do país que precisa viver eternamente no passado para que os poderosos continuem se locupletando de sua desgraça social.
Apesar de ser (até o presente momento, pelo menos) o filme nacional do ano, é visível que ele não atende à grande parte da população nacional. E digo isso porque o Brasil passa por um período de extremo retrocesso, em que cidadãos pedantes e egoístas defendem a ideia de que o passado era infinitamente melhor e nossa história precisa ser recontada à imagem e semelhança deles. Para estes, Bacurau será doloroso, cruel, mentiroso e sujeito à perseguição. E a questão que me paira a cabeça quando penso nisso é: como é que um longa capaz de ganhar prêmio num dos maiores festivais de cinema do mundo e ser reconhecido na Europa pode ser a visão errada dos fatos e uma parcela da sociedade completamente desinformada e por vezes fascista ser a certa? Honestamente... Somos uma sociedade estranha e contraditória!
Termino a sessão no cinema ciente da triste constatação de que vivemos num país quebrado, dividido por interesses escusos. Aquela velha moral que eu ouvia nos tempos de escola "o problema do Brasil é que tem muito cacique para pouco índio" ganhou sofisticação e um sorriso de deboche no rosto. Fica claro pelo desfecho do longa que seus realizadores defendem que o pior ainda está por vir. Também, pudera! Quando se vive dentro de um Estado onde a moral determinante é a do que "quem manda aqui sou eu" fica complicado acreditar que dias melhores virão (pior: por um momento, chegamos a acreditar que a frase por si só não passa de um clichê vago).
E isso faz de Bacurau um filme menos poderoso, indigno de nossa presença nas salas de projeção? Pelo contrário. Vá enquanto é tempo. É de mais obras cinematográficas como essa que nossa indústria cultural anda precisando nos últimos tempos.
O que não podemos mais é acreditar que tudo vai se resolver com o tempo...
It: A Coisa
3.9 3,0K Assista AgoraO passado sempre retorna
(It: a coisa, uma alegoria sobre o medo)
Não acredito em pessoas que defendem a ideia de que "é melhor deixar o passado no passado, pois é menos doloroso". Aquela frase hipócrita, então, "o que aconteceu em Las Vegas fica em Las Vegas" nem se fala! Contudo, a humanidade é complexa demais para entender que o passado, muitas vezes, é uma grande catarse para entendermos o nosso próprio amadurecimento, lidar com velhas feridas, rediscutir amizades ou relacionamentos amorosos que terminaram mal.
Esses, por sinal, são temas que volta e meia aparecem nos romances do ficcionista norte-americano Stephen King - autor de sucessos de público como O iluminado, A hora da zona morta, Christine, Carrie - a estranha, entre tantos outros - e também em roteiros célebres filmados em hollywood. Pois bem: esta semana estreou nos cinemas It: capítulo dois, continuação do longametragem It: a coisa (filmado em 2017), ambos dirigidos por Andy Muschietti, e que é justamente uma mescla desses dois mundos.
A história do clube dos perdedores, formado por Beverly Marsh, Bill Denbrough, Richie Tozier, Mike Hanlon, Ben Hanscom, Eddie Kaspbrak e Stanley Uris, que se deparam com o terrível palhaço Pennywise (trabalho de atuação irretocável do ator Bill Skarsgard) a atormentar suas vidas e fazem um juramento de regressar à sua cidade natal caso ele apareça de novo para destruir novas vidas é muito mais, a meu ver, do que mero terror na linha Jogos Mortais e filmes na linha slasher (Halloween, A hora do pesadelo, Sexta-feira 13, etc).
O que se vê nas mais de mil páginas do romance visceral e nas duas partes da saga transposta para os cinemas é uma grande alegoria sobre o medo e as consequências das escolhas que nós, seres humanos, fizemos no passado. Aliás, nada é mais verdadeiro quando o assunto é evolução humana do que a máxima "o passado sempre volta para assombrar-nos, nem que seja um pouco". O problema é que, na maioria das vezes, entendemos essa máxima ao pé da letra e levamos sempre a discussão para o âmbito do místico, do sobrenatural (motivo pelo qual estou sempre abandonando certos debates ou conversas em grupo por considerá-los vagos, muitas vezes sem a menor lógica).
O tempo passou para o grupo e deixou marcas indeléveis, fruto de más escolhas feitas numa época em que ainda não temos a maturidade necessária para tomar decisões tão taxativas. E muito por conta disso é facilmente entendível o porquê de Beverly (na idade adulta, vivida pela belíssima Jessica Chastain) ter se tornado refém de um relacionamento amoroso abusivo, Sua relação fragmentada com o pai contribuiu - e muito! - para isso. Outro bom exemplo é Richie (em sua versão mais velha, interpretado pelo ator Bill Hader) que passou de garoto descolado, o mais debochado da turma, a comediante de stand-up frustrado e viciado em bebida. Some a isso o desejo de Ben (Jay Ryan) por sair da figura de gordinho para construir um físico invejável e uma carreira bem sucedida e a carreira de escritor em crise de Bill (James McAvoy) e teremos um grupo que mais parece uma família disfuncional. Talvez o único que tenha conseguido, em parte, preservar um pouco de sua lucidez seja Mike (Isaiah Mustafa), o único que permaneceu na cidade após mais de duas décadas. Porém, não se iluda totalmente. Isto também pode ser uma máscara.
O retorno de Pennywise aflora nas mentes e no corpo do grupo, que sente a presença maligna dele até mesmo em seus inconscientes. A figura do palhaço serial killer é quase freudiana, mexe com os sentimentos mais obscuros trancados a sete chaves por cada um deles. E à medida que o combate final se aproxima a forma como cada um deles lida com o medo é significativa no que tange a relação de suas próprias vidas com o passado que não lhes trouxe boas recordações (e, por isso, eles preferem manter eternamente lacrado) e o presente, que precisa ser revisitado para que eles não passem o resto de suas vidas se lamentando sobre aquilo que não aconteceu.
Em outras palavras: o palhaço nada mais é do que um instrumento de purificação de suas existências. Por mais mal que ele lhes cometa, é preciso que o grupo veja o outro lado da situação e encare o arqui-inimigo como uma bússola, pois só assim eles construirão um novo caminho para suas vidas.
Fico feliz de ver que o gênero terror, nos últimos tempos, tem se proposto a rediscutir dilemas sociais, dramas humanos, o próprio conceito de mercado corporativo, etc. Prova viva disso nos últimos anos são os filmes Nós, de Jordan Peele e Suspiria, de Luca Guadagnino, dois exemplares raros no segmento que fogem da receita "vamos assustar o público enchendo a nossa história das mortes mais bizarras". Ouvi falar num site sobre cinema que alguns críticos vêm chamando essa abordagem de Neo horror. Cá entre nós, gosto muito dessa postura.
E mais: na época em que assisti It: a obra-prima do medo, minissérie realizada pela Warner Bros em 1990 sobre o mesmo livro e dirigida por Tommy Lee Wallace não consegui absorver com a mesma precisão 10% do que destrinchei aqui neste artigo. Ou seja, a obra em questão evoluiu bastante com o passar dos anos e não é à toa que Stephen King se tornou o fenômeno pop que se tornou (um dos escritores mais adaptados para a sétima arte de sua geração).
Termina a sessão e ouço aplausos ao fim do filme, algo raro em se tratando de filmes de terror. Alguns críticos do youtube reclamaram dos excessivos flashbacks e do tamanho exagerado do longa (são quase três horas de duração). Não tive essa percepção e não me senti cansado em nenhum momento. O que vi, na verdade, foi uma história bem contada sobre um livro imenso (o que é sempre difícil de transpor para outros formatos). E voltei para casa, dentro do ônibus, pensando: por que hollywood continua perdendo tempo com tantas bobagens sanguinolentas e não investe mais em projetos como esse? Quero tanto ver A dança da morte numa versão cinematográfica!
Quem sabe agora eles não tomam vergonha na cara e investem mais nesse ramo...
Cobain: Montage of Heck
4.2 344 Assista AgoraNão era apenas um garoto de Seattle
(Kurt Cobain: fenômeno ou invenção?)
O mundo do rock é famoso por ícones desajustados, fora da zona de conforto, e por fãs que muitas vezes enxergam além dos fatos e da própria fama, criando em alguns casos "monstros ideológicos" que por mais que você, leitor, seja fã, não consegue entender o porquê de tanto fanatismo por trás de certas figuras midiáticas. Kurt Cobain, vocalista da banda Nirvana, morto em 1994 aos 27 anos, é a meu ver um dos melhores exemplos dessa paranoia sensacionalista que rege o mundo do show business.
Termino de assistir Cobain: montage of heck, documentário de Brett Morgan realizado em 2015 e que traz um mosaico de referências e entrevistas com parentes e amigos do cantor, visando entendermos a mente complexa por trás do rockstar responsável por hits como "smells like teen spirit" e "come as you are". Quando exibido nos cinemas por aqui não consegui assistí-lo, muito por conta do exagero em termos de paixão provocado pelos fãs da banda, que praticamente compraram todos os ingressos disponíveis na época. Contudo, para minha sorte, deparo-me com um dvd do filme esquecido numa das prateleiras das Lojas Americanas (sim, às vezes cinéfilos também precisam ter sorte!).
Cobain: montage of heck é o retrato vivo e turbulento de uma da mentes mais criativas - segundo os depoimentos dados no doc - da década de 1990, e visto por muitos como "o último gênio da história do rock n' roll". Honestamente? Não acho para tanto. Nunca considerei Kurt Cobain um dos maiores da história no gênero e digo mais: após sua morte e todas as leituras que fiz sobre ele, considero-o mais um subversivo do que um artista. Vai ter gente me chamando de maluco por aqui, mas sorry! estou sendo profundamente honesto.
Kurt foi um garoto de Seattle extremamente hiperativo (palavra dos próprios familiares) e estava sempre procurando uma forma de canalizar sua energia para algo construtivo. Acabou por escolher o rock que, cá entre nós, responde bem a seu temperamento por vezes nonsense, por vezes anárquico. Contudo, segundo suas próprias declarações no filme, não se via como uma figura ícone de uma década e não gostava da ideia de ser porta-voz de uma geração adolescente descrente com os rumos da América (tanto que por várias vezes questionou o governo Reagan não para usar sua fama num contexto político ou para angariar elogios, mas simplesmente porque discordava do caminho político proposto por ele).
Em meio a vídeos de seriados antigos e desenhos bizarros da lavra do próprio artista (aliás: Cobain era fascinado por tudo aquilo que flertava com o mórbido e o sobrenatural, e deixava isso claro até na maneira como cantava: sua voz era praticamente um grito, um grunido) vemos um roqueiro fascinado pelo conceito de distorção. Ouçam, quando puderem, o álbum Nevermind e entenderão o que estou dizendo. Ele está repleto de sons guturais e berros ensandecidos, que viraram meio que a marca registrada do vocalista do Nirvana.
Por sinal, o próprio nome da banda reflete muito da personalidade do cantor. A palavra, que dentre muitos outros significados, representa "estado de libertação", dialoga como poucas para entendermos o estado irrequieto de Kurt, que todas as vezes que eu via se apresentar em clipes na MTV me passava uma ideia de eterno descontente com a vida e com aquilo que chamamos rotineiramente de rotina.
Em outras palavras: Kurt Cobain era um dínamo que não conseguia ficar parado mesmo que quisesse. Havia sempre algo o movendo para frente, numa quase velocidade da luz.
A partir do momento em que seu relacionamento conturbado com Courtney Love exerce protagonismo na película vemos a mudança de comportamento do cantor mudar. É o começo de sua derrocada, do físico debilitado, de seus exageros no palco. Não é à toa que muitos fãs até hoje a considerem a verdadeira responsável pela morte do artista (e só para se ter uma ideia do clima: há sites e teorias na internet que explicam com riqueza de detalhes sua participação no "crime").
Polêmicas à parte, uma coisa é certa: os fãs irão se deliciar ao som das apresentações catárticas e das imagens de arquivo guardadas pela família, mostrando momentos da carreira que os fãs normalmente não teriam acesso. Nesse sentido, o longa é um colírio para os olhos.
Se por um lado continuo não colocando Kurt Cobain e o Nirvana no meu hall da fama do rock n' roll por considerá-los excêntricos em demasia para o meu gosto, por outro entendo todo o delírio e a alienação criados pela indústria cultural para transformá-lo num quase gênero musical. E mesmo sua presença naquela famigerada lista - praticamente uma lenda urbana - dos astros mortos aos 27 anos (juntos com Janis Joplin, Amy Winehouse, Jimi Hendrix, entre outros) é apenas uma mera cereja no bolo. Cobain vende como imagem até hoje e a indústria fonográfica agradece, é claro!
Lembram quando eu disse no quarto parágrafo que "Kurt foi um garoto de Seattle..."? Talvez para as pessoas normais e aqueles que não são fãs de rock essa definição baste. Mas na prática ele não foi somente isso. Kurt Cobain é uma figura do showbiz que ainda não foi totalmente decifrada. E talvez nunca venha a ser. E essa, por incrível que pareça, é sua melhor característica. Tanto que os fãs continuam falando dele até hoje.
Fenômeno. Invenção midiática. Gênio. Nunca saberemos até onde ele poderia ter chegado (se teria chegado). E não adianta chorar sobre o leite derramado. Já foi. Só nos resta, no final das contas, acompanhar o que sobrou: seu legado musical.
E torcer para que um dia essa dúvida possa ser respondida.
O Anjo
3.6 191O transgressor
(O anjo: um estudo de caso sobre o que chamamos de criminosos)
"Há um quê de charme e de ousadia em muitos criminosos que entraram para a história da humanidade. E muito por causa disso é até compreensível que alguns deles sejam vistos, pelo menos por determinados setores da sociedade, como celebridades instantâneas". Recorro à esta citação, encontrada num dos meus cadernos de anotações da época da faculdade, cheios de informações subtraídas de palestras, cursos e seminários do qual participei, para elucidar aos meus leitores a minha relação com o que costumamos chamar de banditismo.
Quanto mais idade vou adquirindo, mais entendo o quanto criminosos são figuras complexas, que vivem a sua própria moral, não se submetendo de forma alguma ao sistema como o conhecemos. Eles são transgressores por natureza e, no final das contas, não passa de perda de tempo da parte moralista da sociedade querer adequá-los a algum tipo de comportamento, digamos, ético.
Esta semana deparei-me com uma joia do cinema argentino contemporâneo que trata justamente de questões como essas abordadas nos parágrafos anteriores. Trata-se de O anjo, de Luis Ortega (que tem produção de, entre outros, o extraordinário Pedro Almodóvar). E assim que os primeiros créditos começam a surgir na tela após o final da sessão, pego-me pensando: "por que o cinema hollywoodiano não consegue, na maioria das vezes, esmiuçar o mesmo assunto com tamanha maestria, sem deixar de lado os tiroteios, os efeitos especiais e o sensacionalismo?
O anjo conta a história de Carlos Brown (vivido pelo excelente ator Lorenzo Ferro em seu primeiro trabalho para o cinema). Por trás de seus olhos sedutores e pueris e o corpo de um adolescente em formação há um marginal especialista no que os americanos costumam chamar de breaking and entering (ou, como conhecemos em nossa língua natal: invasão de domicílio). E ele exerce sua "arte" - pelo menos, ele trata seu ofício como se fosse uma - com uma naturalidade gigantesca.
Contudo, sua vida esbarra com a do também jovem Ramón Peralta (Chino Darín) e sua família criminosa. E é a partir desse convívio e do seu afastamento cada vez mais recorrente de casa que ele começa a se desdobrar num pilantra profissional. Desde o simples ato de aprender a atirar até a facilidade com que consegue invadir lojas de armas, joalherias e residências particulares, Carlos vai mostrando com extrema minúcia para os espectadores a reconstrução de seu caráter (já ambíguo), sofisticando-o com práticas mais e mais subversivas.
Elucidando os fatos de outra maneira: Carlos é o modelo típico de transgressor, daquele que não se submete a nenhum tipo de ordem social e faz de sua própria personalidade um desafio a ser decifrado pelos demais. Sempre com um sorrisinho sardônico no rosto e opiniões que incomodam aos mais conservadores, ele segue importunando a sociedade com seu temperamento fora do tom. E deixando todos - inclusive seus próprios pais - perplexos.
Adorei a ideia da trilha sonora rock n' roll aparecendo em momentos pontuais do longa, em que os personagens se deparam com as decisões mais difíceis e agressivas de suas vidas. E também achei extremamente inteligente da parte do diretor o uso dos closes nos lábios do protagonista toda vez em que ele se defrontava com imagens e pessoas capazes de provocar a sua libido (e nesse momento, é fácil de entender porque Almodóvar aceitou produzir o projeto).
Há um forte apelo em Carlos que me fez lembrar de Louis Bloom, personagem do ator Jake Gyllenhaal em O abutre, filme do diretor Dan Gilroy. A diferença é que lá o personagem utilizava-se da indústria midiática e sua eterna relação de devoção com a tragédia e o mórbido para produzir suas artimanhas. Já aqui, a motivação do protagonista é mais pessoal e não voltada para algum tipo de projeção social ou ostentacionismo.
No passado pessoas como Carlos seriam rotuladas facilmente como rebeldes sem causa. Pelo contrário. Ele é um rebelde COM causa. O problema é que sua causa é justamente a de não pertencer ou ser subserviente a um sistema de ideias, mas sim subvertê-las e isso sempre irá incomodar a parte mais conservadora da sociedade (portanto, ela nunca conseguirá entendê-lo completamente).
Termino de ver a película num misto de alegria e apreensão. Alegria pelo fato de estar diante de uma das melhores realizações cinematográficas com que me deparei neste ano e apreensão por sentir que daqui para frente a sofisticação entre o mundo criminoso vem crescendo tanto que daqui para frente teremos enorme dificuldade de distinguir cidadãos de bem de bandidos (tamanho o charme que envolve os membros da segunda categoria). E isso é muito grave.
E refém de minha dúvida entre aplaudir e ficar temeroso sobre o futuro da humanidade, chego à conclusão óbvia: mais uma vez a sétima arte fez um gol de placa, pois ela também transgrediu a ordem natural dos fatos de forma tremendamente elegante.
Logo, uma salva de palmas para ela!
Clímax
3.6 1,1K Assista AgoraEnlouquecemos de vez
(Clímax, de Gaspar Noé, é um retrato alucinógeno deste desesperador - e ainda iniciante - século XXI)
Outro dia desses me peguei conversando sozinho no meio da sala de casa (e eu tenho feito muito isso nos últimos anos!) e cheguei a uma conclusão óbvia, mas incômoda: é nítido, pelo menos para mim, que a sociedade contemporânea se comporta neste primeiro quinto do século XXI como se o mundo fosse uma grande festa que nunca termina. Podem me chamar de maluco se quiserem, mas isso é um fato: nunca antes na história da humanidade tratamos a vida como uma grande celebração sem hora para acabar como fazemos hoje em dia.
Por onde quer que se olhe vemos raves em praias da zona sul carioca repletas de adolescentes viciados em ecstasy e dançando, quase em catarse, ao som de músicas eletrônicas que mais parecem lobotomizar as mentes desses frequentadores (tenho um colega que defende a ideia de que o Ministério Público deveria investigar de perto essas "festas" e, honestamente, não discordo dele). Em outros países proliferam festivais de música, regados a adrenalina, tumultos e, de vez em quando, até terroristas atirando contra a plateia. Nos chamados reality shows os dias de maior audiência do público são aqueles em que as festas acontecem noite adentro, com muito bebida, dj tocando música alta e sabe-se lá Deus mais o quê. E isso para ficar apenas no óbvio, porque o contexto é bem mais amplo do que isso.
Não se trata apenas de modismo ou diversão. Não, meus caros amigos e leitores! É um estilo de vida. Um modus operandi para que segmentos da sociedade não se comprometam com aquilo que nós, seres normais, costumávamos chamar de vida real. Você sabe: trabalhar, pagar a contas, etc. Em entrevista antiga para o programa Sem Censura o cantor Guilherme Arantes falou sobre isso e ficou meio estarrecido ao perceber o nível de alienação e desinteresse da humanidade por qualquer coisa que tenha a mínima relevância para o mundo. Caro, Guilherme! Você não é o único...
Esta semana enfim consegui assistir Clímax, do provocador e diretor de cinema argentino Gaspar Noé (de filmes polêmicos como Irreversível e Enter the void) e fiquei pensando mais uma vez no quanto estamos caminhando para uma sodoma e gomorra de proporções surreais. Em algum momento, por mais triste que seja dizer isto, a sociedade descarrilou do tempo e espaço e hoje encontra-se perdida, sem referenciais ou jornadas a serem seguidas. Pior: ainda por cima se orgulha disso e vende tal atitude como a mais acertada para sobreviver ao dia ao dia.
O longa conta a história de um grupo de dançarinos que se reúnem num prédio para festejar. O quê, exatamente, não fica bem claro (e esta não é a questão que move o roteiro da história). O que importa mesmo é a pista de dança. E lá que eles são os reis da noite, liberam suas endorfinas, podem ser livres como em nenhum outro lugar. Antes de suas apresentações, eles confessam em entrevistas o que a dança representa para eles. E, em alguns casos, há quem diga que até se mataria se ela não fizesse parte da sua vida.
O grupo - é bom que se diga em sua defesa - é talentoso e sabe fazer aquilo à que se pretende. Porém, entre uma dança e outra, conversam, expõem suas mazelas, seus preconceitos, seu sexismo, sua vontade de serem melhores do que realmente são. Em outras palavras: expurgam o niilismo de uma geração que não tem de fato para onde ir, daí a necessidade da dança como mecanismo de defesa para enfrentar o mundo selvagem lá fora.
O problema: a acusação de que a bebida da festa teria sido batizada com LSD promove uma retomada nas intenções do grupo naquele lugar. E a partir do momento em que os primeiros dançarinos começam a demonstrar sintomas de que algo não está bem, o que vemos a seguir é uma grande metonímia para entendermos o que está acontecendo com a humanidade neste século.
Brigas sem sentido, rivalidades amorosas, discussões entre familiares, a excitação tomando um viés incontrolável, uma mãe que tranca seu próprio filho pequeno numa sala onde ficam os disjuntores do prédio (aliás, quem realiza uma festa deste porte enquanto toma conta do filho de, o quê, 8, 9 anos? e foi quando me dei conta deste aspecto que comecei a entender no que se transformaria este cenário, até então, divertido), correria, em suma, gente enlouquecendo da maneira mais gratuita e bárbara.
Clímax guarda em si uma estrutura narrativa que me lembrou dos longametragens Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles e Mãe!, de Darren Aronofsky. A diferença é que, enquanto no primeiro os personagens estão cegos por uma circunstância misteriosa - chamada de treva branca -, e no segundo o que motiva a barbárie e o desespero humano é a falta de religiosidade, aqui o que vemos é um escolha de vida que visa unicamente parâmetros estéticos. E me pego refletindo: que mundo é este em que a derrota e a miséria humana têm o semblante do entretenimento?
Por fim, o que vemos é um mundo de ponta a cabeça (e isso é mostrado de forma inteligente pelo diretor) com "sobreviventes" que mais parecem animais estilizados, reagindo instintualmente ao invés de pensar de forma lógica.
A grande mensagem que Gaspar Noé deixa para este que vos escreve é: espero que a sociedade como a conhecemos acorde. O quanto antes. Estamos nos transformando numa espécie de idiocracia movida a prazeres efêmeros e alucinógenos, onde o conceito de lucidez deu lugar a um apetite voraz por tudo aquilo que é polêmico, proibido e carnal. E a continuarmos por esta trilha nonsense só nos restará reconhecer que enlouquecemos de vez e desistir do lugar onde vivemos, pois não haverá mais nada pelo que as próximas gerações possam lutar.
P.S: desde já adianto: eu não quero estar aqui para ver isto. Não mesmo.
O Abominável Dr. Phibes
4.0 126O Abominável Dr. Phibes é terror como, infelizmente, não se faz mais hoje em dia (que dirá nos Estados Unidos). Simples em sua história e com um protagonista econômico em diálogos, o filme de Robert Fuest é um colírio para os olhos dos fãs mais nostálgicos do gênero. E tive uma legítima impressão em alguns momentos de que o diretor Brian de Palma bebeu nesta fonte para realizar o seu O fantasma do paraíso, três anos depois.