Embora seja um filme ligeiramente supervalorizado, especialmente por seu público-alvo mais imediato - a meninada entre os 13 e os 16 anos -, O ESTRANHO MUNDO DE JACK traz, acima de tudo, um sopro de vida cinematográfico em sua técnica, evidente em cada fotograma. A massinha, os fantoches, a iluminação, tudo neste filme tem uma organização das mais minuciosas - cada boneco tinha pelo menos vinte cabeças diferentes, e cada piscadela de um personagem durava o tempo de recomposição, o ajuste e a fotografia propriamente dita de cada quadro. Se algo estivesse errado na montagem final, eles tinham de montar todo o cenário novamente, exatamente como estava nas fotos, e refotografar tudo. O que impressiona, no mais, é este trabalho homérico que desprendeu-se de Tim Burton e sua equipe de arte, que não dirigiram o filme (!!!), mas puseram na mesa daquele início dos anos 1990 não apenas uma película delicada e revisitável sobre o anti-Natal, mas uma obra estética profusa, que combinava morbidez, onirismo e o melhor da animação à sua época. Visionário, e sem dúvidas numa ótica transgressora, Tim Burton desenvolveria, a partir de obras como esta e "Vincent", a sua marca registrada, notável também nos igualmente memoráveis "A Noiva Cadáver" e "Edward Mãos de Tesoura". Muito embora peque por uma unidimensionalidade extrema no roteiro, incomum nos filmes infantis, Jack e sua turma certamente agradam adultos e crianças das mais corajosas. E, por falar em coragem, como deve ter sido extremo para essa galera, sob o selo da DISNEY, produzir um filme deste naipe, né? Os monstros são eles! Bravo!
"Jack Skellington: [singing] Just because I cannot see it, doesn't mean I can't believe it!"
Não há palavra que dê conta da experiência que Sylvia Likens viveu naquela casa. Não há filme, não há roteiro, não há colóquio. A homenagem de Tommy O’haver não tem nada de sensacionalista, nada de espetacularização capitalista da violência. Mesmo contando com um elenco de peso, e afiadas produção e montagem, “Um Crime Americano” deixa de ser um filme dramático-policial para se tornar, em grande medida, um despertador do fator humano, através da rara (e, por vezes, inalcançável) empatia que só o cinema é capaz de provocar. É inominável. Dadas as proporções daquilo que aconteceu em 1965, é impossível ter havido quem defendesse Gertrude Baniszewski, mesmo que fosse seu direito previsto na Constituição. Ninguém pode ter levado em consideração o depoimento daquela mulher doente, vil, e daquelas perversas filhas e filho que criava. Quem defendeu a família Baniszewski? Com que recursos, com que argumentos se justificaria a cristificação de Sylvia Likens, e seu legado para as histórias de crianças assassinadas nos Estados Unidos? Mesmo que a obra não tenha explorado tudo – quem procurou na internet descobriu uma série de outras situações a que Sylvia foi submetida, com impiedosos requintes de crueldade –, AN AMERICAN CRIME levanta questões sérias para debates muito atuais, como a pena de morte, o limite entre o público e o privado, a presença dos pais na formação e (urgentemente) no zelo de qualquer criança... Até que ponto podemos dizer “isso é problema deles, não vou me meter”, ou “cada um cuida do seu, não vou questionar”? Foi esta atitude, em última análise, que matou, via de regra, Sylvia Likens: o não-questionamento, a obediência, o medo da repreensão. Se alguém, qualquer um que soube daquilo, que conhecia a menina, que tivesse coragem para desbravar aquele porão maldito, se alguém tivesse a força de vontade de denunciar o que acontecia ali, é ilusório pensar que ela teria sobrevivido? Que ela estaria viva hoje, fazendo campanhas e militando nas causas das crianças abandonadas e em situação de exceção? E, talvez, o mais latente e subversivo dos questionamentos do filme: o que fazer com uma senhora capaz de proporcionar uma danação dessas? Para onde ela deve ser levada? Qual o seu destino? Detenção? Reabilitação? Ressocialização? O que deve ser feito, e por que motivo ela respondeu em liberdade condicional, em 1985, e viveu até os anos 1990? Realmente não me sinto capaz de responder. É um mal que não tem nome, não tem rosto, não tem tipo – e pode acontecer bem perto da gente, sem podermos perceber. Mais que um terror sobre cárcere privado, doutrinação parental, domínio matriarca e dinâmica de micropoderes, “Um Crime Americano” versa com destreza sobre a importância da nossa atitude empática e piedosa. Sem religião específica, sem etnia específica, sem idade específica. Já vi gente dizendo que esse filme não tem sentido de existir, porque é só trata a desgraça alheia, e como mero entretenimento. Acredito que vai da concepção e da expectativa de conforto de cada um. Para mim, não teve como não favoritar. Mexe com muita coisa dentro de você. Só por isso, já se tem uma justificativa para assistir a ele. Colocar-se no lugar do outro, no caso daquela menina, na sua última tentativa desproporcional de fugir, de lutar, de desaparecer daquele porão, daquela monstruosidade. Onde estava Sylvia Likens, naqueles últimos minutos em que correu porta afora... E nunca mais envelheceu?
“Shirley Baniszewski: I thought we were just teaching her."
Destacar as proezas técnicas deste filme é repetir-se, mas não temo os clichês: THE IMITATION GAME é uma bela montagem de cenários, imagens de arquivo, palhetas de cores e iluminação, com seus toques delicados e sua dinâmica latente, que traz para a mesa do Óscar uma profunda reflexão sobre o papel da criptografia na Europa do Nazismo, do Fascismo e da terrível 2ª Guerra Mundial. Morten Tyldum, que já havia mandado bem em Headhunters, conduz com mão firme a eletrizante biografia dos mais relevantes feitos de Alan Turing, exímio matemático que criou o ancestral do que chamamos hoje de computador. Muito embora alguns equívocos históricos se façam presentes na narrativa, a maior parte do filme é densa e brilhantemente carregada pela performance do protagonista Benedict Cumberbatch, e da (desbravadíssima) Keira Knightley, num papel feminista particularmente tocante. A (falta de) química do casal também merece seu reconhecimento, uma vez que é um dos maiores argumentos em favor do filme, conduzindo-o por suas mensagens e seu poder de choque. Infelizmente, como nas diversas narrativas de cunho LGBT no cinema, como o deslumbrante “Brokeback Mountain” ou o polêmico “Azul é a Cor Mais Quente”, e mesmo de acordo com a historiografia, o destino de Turing não é diferente daquele dos personagens de outros filmes, em que homossexuais encontram preconceito, doenças, separações e, em casos, a morte. É de se salientar a importância que tem um filme como este, que congrega valores anti-nazistas nobres, mas que se utilizou da situação de seu protagonista para criar um desfecho ainda mais reflexivo – qual o lugar do homossexual na sociedade. E seja na sociedade ocidental das décadas de 1940, 1950, seja hoje, nos finalmentes de 2015, é de muito bom tom que se estabeleça, na Academia, uma obra heroica e eufórica como esta, que combina ao mesmo tempo a irracionalidade do antissemitismo com a da homofobia, em certa medida. É aquele tipo de filme que você perde algumas perspectivas se não assistir. Tem no Netflix, hein. Assista. Não tem erro.
“Sometimes it's the very people who no one imagines anything of who do the things no one can imagine.”
Embora o filme tenha suas qualidades e seu esforço seja visível, acaba se tornando morno em sua linguagem, como tantos outros representantes do cinema estrangeiro. HIPÓCRATES tem alguns elementos constitutivos da contemporaneidade, similares com produções brasileiras sobre a saúde pública, mas não chega a marcar. A greve dos internos, momento que considero mais relevante na obra, revela que não, o Brasil não é o único país do planeta passível de uma má administração ou de um desvio ideológico, de verba ou de função, o que contraria aquele conhecido estereótipo europeu do idealismo e da ordem geral. O retrato de Benjamin também tem muito a dizer sobre a inexperiência da sua geração, o despreparo, a insegurança e a confusão que banham os jovens franceses e de tantas outras nacionalidades neste longo século XXI. Somos sociedades viciadas, alienadas, profundamente niilistas e desalentadoras politicamente, e o filme se vale disso de uma forma muito clara, trazendo na efetivação profissional de um rapaz a corrupção generalizada e encoberta de todo um sistema hospitalar. E a ponte que isso faz com a nossa própria história vai de cada um. É um filme interessante em algum nível, mas fica naquela situação de "podia ter sido diferente". Não sei se tem a ver com o fato de ser o primeiro longa do diretor, mas mesmo assim, faltaram a ele uma série de elementos marcantes, alguns ostinatos, algumas abordagens que teriam funcionado melhor com sua plateia. Fica para quem realmente estiver curioso.
Isso tinha que sofrer boicote. A sociedade deveria poder se proteger cognitiva e intelectualmente desse tipo de tirania. Essa... Opressão imperialista da cultura deveria ser considerada crime ideológico. Vocês podem ficar aí discutindo o quanto quiserem sobre “qual filme é melhor” entre os da franquia, ou qual tem “jump scares” mais “legais”, ou qual é mais “criativo e inovador”. Pra mim, isso não tem mais justificativa. Este é o sétimo filme que leva o nome “Atividade Paranormal”, contando com os spin-offs, que contabiliza mais de um bilhão e meio de dólares para a Paramount Pictures. Um bilhão e meio. Isso é quase 4.000% de lucro. É um capital inversamente proporcional ao conjunto de obra estúpido, vazio e falido de significados que coroa. Não me interessam os sustos rápidos, o didatismo com que tudo se revela ou a ausência de uma efetiva NARRATIVA capaz de dar conta do suspense que propõe. Também não me importa que os atores sejam fraquíssimos, os diálogos ainda mais e a edição, a cada filme que passa, vá de encontro mais e mais ao sufocamento da própria capacidade de tencionar, autêntica e naturalmente, o seu ansioso público. Isso não é cinema, é falta de respeito. Não tem justificativa para o sétimo cuspe do mesmo enredo, variando apenas entre casas e atores. Países afora geram receita com o bolso de cada um que lotou as salas de cinema ao longo desses oito anos, e que também compraram blu-rays e DVDs dos filmes. Isso é uma guerra cultural de teor imperialista – é deixar na margem filmes que muitas vezes têm mais a dizer, para colocar no lugar uma variedade enorme de obras superficiais e meramente anestesiantes. Frankfurt estava certa – a linguagem foi exaurida, e a substância primordial, o motor da Indústria, se tornou um eterno retorno pós-moderno ao filme que se fez ano passado, mas que “este ano está diferente”. Este ano, “pela primeira vez, você verá a Atividade”. Isso não tinha que ocupar salas de cinema ao redor do mundo. Isso é o que tinha de ser deixado à margem, porque não tem a menor qualidade tanto para o gênero do qual faz parte quanto para a arte em si. Porém, tem muito dinheiro envolvido, e não é de hoje. Enquanto um Tarkosvky ou um Glauber Rocha se foderam a vida toda para arranjar recursos e fazer cinema de verdade, esses filhos da puta não só nadam no dinheiro como ganham menção honrosa num lugar entre os mais rentáveis do ano, regozijando-se sobre a ideologia capitalista que indefinidamente os respaldará. É crime organizado. É mundial, é glocal, é regional. Para cada sala de cinema que lota com “Atividade Paranormal”, mais um filme-arte fica na gaveta, ou cai na margem, para salas tristes, de poucos assentos e com poucas sessões. Enquanto houver a dinâmica de mercado regendo cada aspecto da distribuição das artes, haverá marginalização do que é puro, e belo, e bom. Isso também vale para os filmes de terror de baixo orçamento, que fique claro. O real terror, se é que há, jaz justamente nesses bastidores. E tenho dito.
"Emily: I've heard of spirit photography before; I've just never seen it in person."
Quase todo ator passa por uma fase dark, né. Convenhamos, é difícil ter uma carreira impecável. AURA, suspense assinado por Fabián Bielinsky (que já havia trabalhado com Darín em 2000), simplesmente não desceu. Com uma trama de simplicidade preocupante, surpreendida por um ou dois momentos de criatividade sem grande fôlego, a película argentina tem um argumento estéril e que se torna gradualmente desinteressante. Ricardo Darín convence, como em qualquer outro papel, porém, o seu trabalho sozinho não é capaz de suportar o peso do restante do filme, duramente rebaixado por conta, principalmente, dos atores coadjuvantes. O resultado, infelizmente, é uma série de personagens secundários unidimensionais, unidos com um didatismo de forma e conteúdo desnecessário, e descaracterizados numa ausência de autenticidade, tanto no suspense como no drama do filme. "El Aura" se torna, como tantas outras produções de baixo orçamento, mais uma decepção no catálogo falido do Netflix, que priorizou tanto a produção independente que já começo a questionar a qualidade de seu repertório. É o quarto filme a que assisto em prol da valorização do cinema estrangeiro, e a quarta decepção seguida. Bola pra frente.
Que vergonha, Neo... "Bata Antes de Entrar" é o mais recente filme do cara que deu à luz “O Albergue”, um filme desgraçado de nojento com um roteiro simples mas honesto, com muitas doses de tensão e gore, para o gozo daqueles que, como eu, curtem muito o (decadente) gênero. Entre aquele filme da furadeira e este aqui há um abismo notável, a partir do qual começo a discorrer: na ausência de uma violência efetiva, ou uma tensão efetiva, ou um tesão, este farofão de "terror erótico" (bela invenção da pós-modernidade) não consegue encontrar um público ou uma linguagem própria. Com muito medo de ousar em qualquer parte, Eli Roth bota na mesa um filme estéril e vazio, sendo considerado quase capenga. E, trabalhando mecanicamente, sem convencer nem a si próprio, Keanu Reeves entrega talvez seu trabalho mais fraco em anos, sob o papel de um homem fraco, pouco embasado e dolorosamente burro. Não que suas duas companheiras não sejam igualmente porcamente escritas, mas isso é detalhe, não é mesmo? Aliás, um terror que tem como ponto de partida um ménage num banheiro já é uma parada questionável. Mesmo assim, faltou ao filme qualquer cena de sexo, ou de outros dos elementos que Eli Roth tanto utilizou em seus filmes anteriores (tortura, morte, suspense, instigação). Sob a pena de ser descoberto, Evan passa o filme inteiro tentando escapar ou se esconder das duas moças que também atuam pessimamente – como todo o restante do filme. Mesmo que seja apenas mais um dos produtos da indústria cultural, KNOCK KNOCK deve muito a duas pessoas: Michael Haneke e David Slade. Ao primeiro, pelas duas versões (alemã e americana) de “Violência Gratuita”, o excelente filme sobre os dois meninos que botam o terror na família perfeita sem justificativa alguma, e ao segundo, por “Menina Má.Com”, donde claramente saíram a chantagem emocional e a noção do “perigo feminino apartamentístico”. Com essas duas obras na bagagem, KNOCK KNOCK se torna desprezível e supérfluo, tendo ainda a audácia daquele final com a piadinha infame da “curtida no Facebook”. Não costumo ser teimoso, mas dessa vez, não deu. Mal ae. Ruim demais.
Lamento. Um documentário muito aquém da capacidade criativa e transgressora da banda de que se vale. Los Hermanos é um dos grandes grupos brasileiros dos anos 2000, não me entendam mal (sou fã confesso), porém, de documentário mesmo, não há muito neste infeliz filme de Maria Ribeiro. Sendo direcionado mais aos fãs, mesmo que qualquer um possa assistir a ele, ESSE É SÓ O COMEÇO explora a consumação da turnê brasileira dos barbudos em 2012, e muito embora o foco sejam os bastidores dos shows, com uma proposta de registrar a intimidade do grupo, a obra tenta o longo voo e fracassa dolorosamente - com muito mais filmagens das músicas das apresentações do que tempo de relato e entrevista. O filme peca por não sair muito do lugar, repetindo-se mais notadamente da metade até o final. Insistindo em manter as músicas do início ao fim, tocando mais de cinco canções que seu público já conhece de cabo a rabo, Maria Ribeiro fez com que prestar atenção se tornasse um esforço injustificável. Não é como se o documentário "não valesse nada" ou que "não deveria haver filmagens dos shows", lógico que não. A turnê deveria ser coberta sim; no entanto, primar, na edição, pelo palco que pelo ensaio, para mim, foi irresolúvel equívoco. Maçante e despropositada, a morna cria morta de Maria Ribeiro não desconstrói nada, uma vez que não revisita, e não constrói nada, uma vez que é chama - e chama se apaga. Faísca.
"Ainda tem a cora Gentinha atrevi Da cá sua vi Da cá seu suin-", Marcelo Camelo.
Dos grandes filmes Argentinos que vêm enriquecendo nossa cultura há décadas, RELATOS SELVAGENS é daqueles experimentais, sem sequência lógica ou cronológica, que desconcerta e chega a deixar eufórico o espectador desavisado. Juntando seis contos urbanos, a obra, que carrega o pesadíssimo Ricardo Darín em seu elenco, discorre sobre os extremos da nossa consciência de mundo, perpassando o ciúme, a raiva, a vingança e outros tipos de sedes às quais, por vezes, sucumbimos durante nossa longa caminhada. Um casamento falido à loucura, uma briga de trânsito impressionista e um assassinato por envenenamento “sem querer querendo” são alguns dos elementos que compõem o teatro desta gloriosa empreitada. Bem editado e voraz, RELATOS também explora a questão do Homem contra o Homem, em pelo menos duas de suas estórias, e do Homem contra o Estado, contra as instituições que lhe são maiores e antropofágicas. Contra a Mulher, explícita e latente, temos uma crítica mais-que-válida, ilustrada pelos conflitos de um casal fadado ao fracasso de uma descoberta incendiária. Difícil mesmo é não se identificar com a selvageria, a nudez com que são expostos os vis humanos, desrespeitosos com o próximo e contra tudo que vier contra eles. Se pudéssemos soltar nosso lado mais visceral, mais cruel e insano, é certo que o resultado seria parecido com pelo menos uma das seis crônicas narradas aqui. Uma ode moderna ao que temos de pior, esta é decerto uma boa pedida para quem procura ação, dinamismo e conteúdo, num formato acessível e de fácil entendimento. Muito bom.
“Moza: Boa noite, uma mesa para um? Cuenca: Vejo que você é boa em matemática.”
Retorno triunfal do diretor por trás do clássico “Alien – O Oitavo Passageiro”, PERDIDO EM MARTE apresenta um Ridley Scott reinventado, afinado com os filmes do gênero que o consagrou. Misturando momentos de tensão com silêncios, e explosões com humor, a obra não deixa a peteca cair e, apesar de trazer um roteiro clichê, é capaz de reter a atenção do início ao fim. Depois de algumas vaciladas, como o recente “Êxodo: Deuses e Reis”, Scott mostra porque não pode ser resumido a seus grandes sucessos – fazendo referências a conquistas da ciência moderna e até à música dos anos 80, a nova película reúne muito do repertório técnico e artístico de sua equipe e resulta numa viagem ao espaço substancialmente satisfatória. Todavia, é difícil ignorar o discurso político altamente nacionalista que permeia este roteiro: que os Estados Unidos venceram a Guerra Fria, eles já repetiram milhares de vezes – talvez “2001” seja a maior e mais ousada empreitada de tal discurso –, porém, é quase irrisório esperar que, no momento em que a NASA precisa de ajuda, ela vá recorrer às antigas Repúblicas Soviéticas para salvar o grande Matt Damon; pelo contrário, o chefe do departamento terceirizado americano coincidentemente tem parentesco com o dono da transnacional concorrente na China. A aliança (e sua consequente propaganda) no filme nos faz questionar a real ‘conclusão’ da rivalidade entre estadunidenses e russos; se a Guerra Fria encerrou-se sem remorsos diplomáticos entre as grandes potências, por que não procurar a ajuda Socialista? Questionamentos teimosos à parte, os méritos do filme são perceptíveis mesmo àqueles para os quais o ufanismo e a exaltação da cultura estadunidense passaram despercebidos. Além de uma grata diversão, muitíssimo bem conduzida, PERDIDO EM MARTE deixa em aberto este talvez constante dever, por parte da Indústria Cultural, da exaltação do astronauta norte-americanizado, revisitado inúmeras vezes, e mais recentemente nos também estarrecedores “Gravidade” e “Interestelar”. É certo que este não será o filme definitivo da corrida espacial, como aquele de Kubrick também não foi – mas será que este não ilustra, em alguma medida, o não-esquecimento das rivalidades oriundas dos confrontos entre os mais poderosos deste nosso minúsculo planeta? Fica a dúvida.
“Mark Watney: Não quero parecer arrogante aqui, mas eu sou o maior botânico deste planeta.”
Para mim, esse cara é o limite da maestria artística. Como a um Tarkovsky no cinema, o Tom Zé é o compositor baiano mais fodido, mais desrespeitado de que se tem notícia e certamente o mais injustiçado, uma vez que caiu num puta ostracismo por conta da forma de suas músicas, do timbre de sua voz e da própria experiência de sua composição. Manteve-se fiel ao Tropicalismo, às teorias modernas, às destruições artísticas e ao caos geral, refletindo metanarrativas semióticas, revisitando e distorcendo melodias, e muitas vezes estudando e destroçando a própria Música. Poucos tiveram a coragem de seguir uma carreira defendendo política e ideologicamente um movimento tão indefensável quanto a Tropicália. Nunca perdeu a lucidez, e vai de encontro, a cada dia que passa, mais e mais ao sublime da genialidade, se distanciando em linguagem e forma de todos nós, meros espectadores, mantendo-nos ligados às suas palavras desconexas e aos seus instrumentos não-convencionais no palco. Ele é o limite da maestria artística - o ápice a que um artista chega quando morre; transcende o tempo, as pessoas, as coisas, e se torna parte do Todo, senão o próprio. A mente intranquila de Tom Zé, condenada a arrebentar melodias, descentralizar tônicas e destruir ritmos compostos, manda "pra porra" qualquer autoritarismo sobre o seu trabalho. Testemunha ocular da morte de Deus, o filho tropical bastardo reinventou a abordagem urbano-industrial na música brasileira e destituiu o próprio tempo de seus componentes estruturais básicos - as pessoas e o mundo. Um dos poucos que chegou lá, onde o tempo é estático e a arte é. Como disse Dalí, em sua frase célebre, "Eu não uso drogas. Eu SOU a droga". Tom Zé é a arte inteira.
Filme despretensioso para passar uma tarde sem chuva. Bons efeitos especiais, inclusive porque acabamos esquecendo que Freddie Highmore é os dois irmãos ao mesmo tempo... Trama bem simples, bem conduzida, mesmo que unidimensional, e clichê para o gênero, mas não perdendo o fôlego, e em alguns momentos surpreendendo com alguma destreza. Não é próximo do maior de sua geração, mas passa longe de um fiasco como "Os Seis Signos da Luz". No mais, diversão para a família. Divertidinho.
"Jared Grace: Why can't I see you? Thimbletack: You don't see us, now you do, but only if we want you to."
Me perdoem os fãs, mas este aqui não passou... Um dos filmes mais fracos em roteiro, desenvolvimento e estrutura que já vi num cinema. Discutir sobre os aspectos da trama que têm furos não me parece suficiente nem importante, afinal, um filme de circuito fechado que ganhou pouquíssima visibilidade e não tem uma fotografia que preste, uma trilha sonora que envolva, uma atuação que desconcerte... Tudo aqui, tudo, é morno demais para um filme sobre o pós-guerra; quiçá sobre a reconstrução de uma vida e o descobrimento de uma nova identidade. Resenhar já é elogio para "Phoenix", e sinto, cada vez mais, que os filmes de circuito alternativo de fato não têm tanto a dizer quanto os espectadores que os resenham. Não é uma indireta a ninguém, nem uma crítica a este filme em específico - mas, a ele, especialmente, falta uma série de características, que não sinto a necessidade de especificar, para apenas torná-lo "assistível", sem o marasmo que o domina em sua primeira meia-hora de exibição e o leva até o final. Respeito a opinião contrária, é óbvio. Mas não achei isto aqui minimamente interessante. E é só o que vejo.
Da ordem dos filmes que traumatizam. "Dançando no Escuro" flerta com a prosa e a poesia de uma vida subvertida, deturpada e confusa. Björk, sempre audaz, transmite as grandes questões de sua personagem com a destreza de uma gigante; as inseguranças, os segredos e as verdades que constituem um ser humano profundamente miserável, numa exposição ao mesmo tempo cativante e cruel. Tocante, um dos melhores longas de Lars von Trier nos saúda com as assinaturas de praxe (cortes repentinos, reforço de silêncios e câmera "instável") com a gritante diferença que, aqui, a forma é a de um musical - um tenebroso e por vezes mórbido musical contemporâneo, cujas canções flertam com o experimentalismo harmônico e a recitação de versos. Um filme linear, nada misterioso ou simbólico, que lembra tanto a estética naturalista d'Os Idiotas' como a abordagem de seus trabalhos mais reflexivos, em especial 'Dogville', em que partem da própria narrativa, e não dos diálogos que a conduzem, as críticas à sociedade e à hipocrisia. Salvaguardadas as proporções e os enredos, tais filmes abordam a questão humana de maneira semelhante - e o fardo de existir, tema recorrente em Lars, ganha aqui uma remodelagem histérica e visceral, conjugada na pessoa da Selma, e sua complexa relação com o ambiente hostil que a rodeia. O resultado a que se chega é de uma tristeza tão profunda, uma dor tão ardida, que me atrevo a compará-lo ao que Tarkovsky encontrou em "O Espelho", obra inclusive referenciada pelo próprio Lars, para quem o russo beirava à divindade: é raro de se ver, no cinema, uma inocência tão pura quanto poderosa, brutalmente destituída de suas razões de ser, em virtude da crescente e irrefreável violência que restitui as propriedades privadas e os interesses individuais, não importando a quem doa, ou quanto doa. E é, de fato, isso mesmo; dançamos no escuro das nossas próprias solidões, incompreensivos, desprotegidos e despreparados, suportados por cotidianos estruturalmente assassinos e... tristes. Insoluvelmente tristes.
"I used to dream that I was in a musical, because in a musical, nothing dreadful ever happens."
Muito embora alguns possam não gostar da sua proposta "mirabolante", acho que é exatamente isso que faz com que "O Jardineiro Fiel" passe longe daqueles dramas com os quais nos confundimos quando vamos a uma locadora; com uma trama bastante distinta, trata de determinada desumanidade que ocorre no Quênia, em prol de uma multinacional capitalista de larga escala. É necessário reconhecer o Fernando Meirelles como um realizador brasileiro de calibre, e suas assinaturas, como a coloração ligeiramente mais cinzenta e o uso da luz ofuscada transpondo-se nas cenas. Perturbadora e envolvente, a película que conta a história de Justin Quayle revela-se ao mesmo tempo uma grata surpresa no seu desenvolvimento, que chega a confundir propositalmente o espectador pelo menos duas vezes, como também mostra uma Rachel Weisz mais madura que outros de seus trabalhos, como "Círculo de Fogo" e "O Júri", também bons. Pontos também para o Ralph Fiennes, completamente entregue na pele de um homem perdido nas incertezas de um passado não tão distante. Um filme pesado e inteligente, digno de uma conferida.
"Lorbeer: I only give the food to the women, Mr. Black. Women make the homes, men just make wars... and hooch. Adam was God's first draft - He got it right with Eve. Tell that to your readers, Mr. Black."
Cubismo, experimentalismo, filme-arte. O grande passo para a vanguarda, a quebra de narrativa, a Nouvelle Vague. Em 1965, Jean-Luc Godard e suas não-linearidades trocaram as coisas de lugar, recitaram poesia, mudaram os conceitos temporais, as dinâmicas sonoras e, principalmente, os objetivos dos filmes franceses que se fariam dali para frente. Não desmerecendo um Resnais ou Truffaut, é claro, é preciso destacar, porém, o cinema que este outro francês compôs. O detalhismo e o concretismo são intenções latentes no longa "O Demônio das Onze Horas", que discorre sobre o descompasso de um casal de criminosos. Com imersões absurdas na psiquê dos dois, o filme dialoga com campos da filosofia, da psicanálise e até da antropologia, esmiuçando à exaustão aspectos aleatórios de uma história que, mesmo estraçalhada pela modernidade, soa completa. O frescor do pós-estruturalismo ainda se faz presente cinquenta anos depois de sua estreia, impressionantemente. Anna Karina arrebenta, e as montagens aqui são excelentes - afinadíssimas com a proposta niilista/nietzschiana que desenvolve. Cenários que misturam o clássico antagonismo do vermelho com o azul também chamam atenção. No mais, difícil de se esquecer. Da ordem dos filmes que ficam. Foda.
"Tenho pena do cinema francês porque não tem dinheiro. Tenho pena do cinema americano porque não tem ideias" - Jean-Luc Godard
Este filme traça uma descrição tão fina dos contornos do Caio que parece que o próprio, na sua condição de cronista cirúrgico, assinou o roteiro. Dando pinceladas nos casos, nas filosofias e angústias do homem por trás daqueles morangos mofados, "Para Sempre Teu, Caio F" delineia a sua trajetória a passos largos, desde a infância, com relatos de parentes como a própria mãe, até os últimos estágios de sua vida, consumida pela AIDS que lhe ceifou. Reunindo entrevistas, curiosidades e interpretações de seus textos por atores conhecidos, o filme toca em tudo - sexo, amor, depressão, religiosidade, e até uma árvore especial num jardim, em que ele costumava subir. Trata-se não de uma investigação profunda das intenções de seus trabalhos, mas de uma fotografia do artista que dura toda a sua vida. Mais que apresentar ao público sua irreverência e criatividade, esta produção consegue divertir, emocionar e, quem sabe, até trazer novos entusiastas para a leitura de suas crônicas. Não fosse um filme de circuito fechado, e parcamente difundido nas redes sociais, certamente encantaria aos milhares. Certamente me encantou. Lindo demais.
"O amor só acontece quando o homem admite que é bicho."
A estreia no cinema do diretor Tony Kaye não podia ser mais magistral. “A Outra História Americana”, estrelado por Edward Norton e indicado ao Oscar de 1999, conta a história de um ex-presidiário neo-nazista que tenta impedir seu irmão mais novo de seguir o mesmo caminho que ele. Com violenta condução e indefensável crueza, o filme disseca o perigo das instituições radicais e conservadoras no mundo profundamente plural em que vivemos. Intenso, dinâmico e esteticamente desconfortável, o filme defende que o ódio é inóquo, e que a violência não produz senão mais violência. Aqui, ela se torna um eterno retorno do qual participam negros, caucasianos e todas as outras etinas. Entre os recursos técnicos melhor trabalhados estão os detalhes, através das câmeras lentas, e a trilha sonora instigante. Kaye se apresenta como um diretor de assinatura que tem plena capacidade de contar uma história ao passo que propõe reflexões sobre ela. Destacam-se também o uso de iluminação natural em boa parte da película e a construção de uma narrativa não-linear digna de um filme de David Lynch. Muito embora soe didático por vezes, e caia em determinados lugares-comuns (em especial, por conta de alguns dos atores coadjuvantes), o filme delineia um raciocínio claro com fôlego e força, cuja tese o irmão mais novo recita, ao final – “ódio é bagagem, e a vida é muito curta para ficarmos chateados o tempo todo”. A violência simplesmente não há motivo de ser. Toda a expressão racista em “American History X”, que choca e causa extremo incômodo, funciona como um refúgio daqueles preconceituosos que vão perdendo suas bases aos poucos – os alicerces de uma família destruída pelo racismo, e um grupo de reacionários que perde sua certeza quando a tolerância e o respeito passam a falar mais alto, mesmo que apenas para um integrante, e a necessidade de revoltar-se contra sistemas e minorias não mais se manifesta com a mesma intensidade entre eles. Como discorre Edward Norton, que inclusive consegue convencer-nos de que é racista durante o filme, os estigmas podem ser refutados. Não há instituições maiores que a capacidade do ser humano de superar-se, de modificar-se, de compreender o outro em sua plenitude. Preconceitos e radicalismos conservam valores e aprisionam os indivíduos em seus dogmas, limitando-os e, não raro, sufocando-os e extirpando-os. Apenas uma forte conscientização, como a que este filme propõe e gloriosamente realiza, é capaz de revolucionar as questões que o Homem tem sobre seus semelhantes, e desestruturar o desamor que ainda hoje se encontra profundamente instaurado nas sociedades modernas.
“Bob Sweeney: Alguma coisa que você fez tornou sua vida melhor?”
Depois do gigante “Cidade de Deus” e do notável “O Jardineiro Fiel”, Fernando Meirelles dirige outro fantástico trabalho sobre a degradação humana, o descompasso e a doença da ambição. “Ensaio Sobre a Cegueira” retrata a história de uma cegueira repentina e coletiva, inexplicável, numa cidade qualquer, na qual uma única pessoa imune (Julianne Moore, trabalhando de maneira profunda e entregue) procura ajudar o marido e outros doentes do “terror branco”. Os enfermos são rapidamente enviados a instituições especiais para ficar em quarentena, numa moção que dá ao filme todo o subsídio de que precisa para sua tese sobre a desumanidade e os grandes defeitos do ser. Seria um longa apenas bom se construísse o drama romântico e a estética, furtiva e angustiante, dos planos brancos que muitas vezes encobrem a visão da plateia. Porém, “Ensaio sobre a Cegueira”, baseado na obra homônima de Saramago, enxerga além da concepção imediatista e percebe os impasses dolorosamente possíveis que se seguiriam: diante das péssimas condições em que foram colocados, os doentes passam pelo descaso do Estado, pelo enclausuramento e, principalmente, pela fome, uma vez que uma das alas da instituição decide por arbítrio que a comida, que alimentaria a todos igualmente, será posse apenas de seus pertencentes. Surge aí o grande lance do filme: apesar de todos estarem nas mesmas condições de saúde, na mesma geografia e com o mesmo suprimento, ainda surge espaço para os jogos de poder, numa perspectiva foucaultiana extremamente desalentadora. Cegos e doentes, os seres humanos ainda são capazes de matar, estuprar e saquear qualquer um que esteja em seu caminho. Saramago e Meirelles dizem, em uníssono, que a nossa espécie é incapaz de compreender o outro de forma plena, com suas necessidades e desejos, seus medos e anseios. Depois desta cisão, o filme fala por si: estaremos sempre à margem – do Estado, dos nossos amigos e até do nosso cônjuge – se precisarmos deles na forma primordial. Seremos traumatizados, abusados e enganados até pelos que dizem nos amar se precisarmos viver em detrimento deles, por eles, deles. Haverá um momento – com sorte, a velhice – em que o nosso próprio crescimento ceifará a nossa capacidade de comunicação com o outro, e a nossa saúde se transformará na nossa solidão absurda, e as nossas frustrações falarão cada vez mais alto. Neste tempo, quando o Estado já não nos pensar importante, quando nossos amigos já não estiverem mais vivos e nosso cônjuge já nos tiver deixado, encararemos, inevitavelmente, a dor advinda das nossas próprias escolhas. Será lá, no leito de morte, que tudo tornará a ser o que não foi, mas podia-ter-sido. E diante dessa austera possibilidade, preferiremos ser todos cegos. Se há algo capaz de mudar isso, em verdade vos digo: será o amor, puro e pulsante, capaz unicamente de suportar o fardo humano de coexistir. Amemos, pois.
"Rei da Ala 3: Eu não vou esquecer a sua voz! Esposa do Doutor: E eu não vou esquecer o seu rosto!"
“Tudo Sobre Minha Mãe” é outro dos magníficos filmes de Pedro Almodóvar – talentoso e peculiar, ácido e crítico, íntimo das mulheres e das travestis – um verdadeiro show de cores, interposição de tramas e reviravoltas complexas, de deixar qualquer espectador sem chão. Aqui, já um experiente diretor, carregando o peso dos excelentes “A Lei do Desejo” e “Mulheres à Beira...”, Pedro realiza um de seus maiores longas, em especial pela sua linguagem, que exalta o colóquio, e a naturalidade com que trata cotidianos problemáticos e díspares, sua sexualidade e suas (im)posições. Considero-o, junto de “Má Educação”, uma produção inequívoca para quem quer conhecer o cinema espanhol de primeira viagem – um filme completo, bem atuado, bem filmado, bem editado e, ainda, afinado com as lutas LGBT, e o eterno desejo de se manter íntegro e respeitado junto às diferentes formas de se amar. Em última análise, um grande filme. Vocês perdem por não assistir!
“Agrado: Apenas não desapareça de novo. Eu gosto de me despedir das pessoas que amo, mesmo que seja apenas para me acabar em choro, vadia!”
Mais uma vez, o cinema nos presenteia com essa inescapável jornada pela preservação da identidade, a luta de um ser humano pela sobrevivência de suas obras frente ao tempo, de sua vida frente à eternidade. “Para Sempre Alice” se mostra um retrato delicado e azedo sobre o Alzheimer, e seus devastadores efeitos sobre a vida humana. Com direção afinada, Julianne Moore é a protagonista de um drama Sartriano de questões gigantescas: até onde vai a vida, e o que ela de fato significa? Somos compostos apenas pelo nosso presente, ou também pelo passado - somos o que conseguimos lembrar de nós mesmos? E qual seria a garantia de que o nosso legado não seria esquecido pelo tempo que escorre, e as flores que secam, e a vida que se esvai? Acima de tudo, temos aqui um longa existencialista sobre a devassidão das nossas lembranças, e do profundo sentimento de autopreservação da nossa espécie, seja pela cultura da memória, ou seja pela tradição oral, mental e emocional de manter aquecidas em nós todas as sensações boas que já proporcionamos aos outros e a nós mesmos. Todo o fazer humano é lembrar e sentir. Seremos eternos observadores do passado, conclamando o nosso presente e cumprimentando, com cumplicidade genuína, tudo aquilo que estiver à nossa frente nessa dimensão do espaço. As civilizações não foram feitas para cair no esquecimento, mas para viver em comunhão com ele – na mais verdadeira forma de se admitir incapaz de ser tudo, estar tudo, viver tudo. Os seres humanos não sobreviveriam ao Alzheimer todos de uma vez; e é exatamente por isso que temos uns aos outros. Os outros serão o arcabouço de tudo o que viveremos no depois. Pois vivamos com eles. Todos os dias.
“So, 'live in the moment' I tell myself. It's really all I can do, live in the moment. And not beat myself up too much... and not beat myself up too much for mastering the art of losing. One thing I will try to hold onto though is the memory of speaking here today. It will go, I know it will. It may be gone by tomorrow. But it means so much to be talking here, today, like my old ambitious self who was so fascinated by communication. Thank you for this opportunity. It means the world to me. Thank you.”
Tem uma linguagem de fato dinâmica, e uns bons momentos de descontração. Algumas das reflexões sobre sexualidade realmente soam bastante bem-pensadas, em especial sobre a curiosidade de Daniela e de sua "frequência", rs. Porém, senti que deixou muito a desejar na sua finalização... Como quase todo filme estrangeiro, especialmente indicado no Sundance, esse é outro dos que terminam no meio do nada, com um anti-clímax chato e que constrói toda uma narrativa criativa para se afundar na "posteridade estórica". Não curti muito não... Vale a pena pelas boas tiradas, mas só.
"No sé si creo ni en la felicidars, ni en la calma, ni en la madurasound."
Deplorável. Um dos mais dolorosos e entediantes filmes brasileiros que já vi. Utilizar um massacre num baile black para forrar a história de dois personagens vazios, sem motivos-de-ser, já é algo questionável. Agora, produzir uma distopia de ficção-científica sobre esses homens e seu objetivo de viajar numa nave até Brasília e explodir o Congresso... Numa boa, mandaram muito mal. Nada nisto aqui funcionou; fotografia, direção de arte, trilha sonora e atuações risíveis. Nem comento sobre os efeitos especiais. E a crítica, se é que existia, queimou junto com o sofá, nos últimos segundos deste absurdo. "Branco Sai, Preto Fica" enterra todas as gigantescas expectativas de seu público em solo semi-árido, mostrando mais uma vez como não se deve fazer Marketing ou Cinema no Brasil; um verdadeiro show de horrores pseudo-virtuosos que, de fato, tornam-se originais se você parar para pensar: mas num sentido de "nunca vi algo tão horroroso antes". Baixem a bola, isso aqui ficou muito ruim. Doído.
Antes de qualquer coisa, quero dizer que não sou marinheiro de primeira viagem com Bergman – assisti a várias de suas produções. Acredito que sua filmografia é de altos e baixos, tendo grandes conquistas entre alguns poucos filmes que simplesmente tentam a longa viagem e não a conseguem – e, infelizmente, sinto ser este o caso de “Fanny e Alexander”. Seguindo quase um passo-a-passo kubrickiano em seu renascentista “Barry Lyndon”, Bergman dirigiu um longa quase tão elegante quanto, com ambiência, cenografia e figurino afinados. Parece-me estranho, porém, que haja tantos comentários favoráveis à técnica deste, que, comparado ao de Kubrick, não atingiu a perfeição nem na fotografia e nem no desenvolvimento de sua, cá entre nós, curta história (um pecado bergmaniano com o qual muitos regozijam, mas para o qual passei a torcer o nariz). Se lhes parece equivocado comparar um diretor com outro, busco então filmes de sua própria carreira – “Através de Um Espelho”, por exemplo. O jogo de sombras, característico de sua obra e latente neste, não acontece em “Fanny”. A exploração da fantasia infantil em “Morangos Silvestres” também não se faz presente aqui satisfatoriamente, e a imersão em “Cenas de Um Casamento” não ocorre de maneira minimamente singular neste. A sensação que se tem é de que não há nada neste filme que o diretor já não tenha feito antes, exaustivas vezes e melhor – valendo como lembrete o fato de que este é seu quadragésimo quinto trabalho, só contando os cadastrados no Filmow. Como seu ídolo, Tarkovsky, Ingmar também não procura ter carinho por quem o assiste, trazendo uma película arrastada e rasamente filosófica, com raros diálogos interessantes, tornando-se um de seus trabalhos menos inspirados. Com isso, não falo que o filme é vazio em si, mas se vocês falam em Obra Prima do diretor, sabem que boa parte da filosofia bergmaniana é tempo, morte e solidão – efemeridade existencialista. Dois terços do filme mal procuram dizer algo sobre isso. E esta minissérie, tornada filme sabe deus por quê, também não chega a grandes conclusões, mal tocando nas próprias questões que propõe em seu percurso – poder, inocência e maturidade. Não procuro uma falácia ad hominen com este que é um dos maiores diretores da história do Cinema, mas “Fanny e Alexander”, para mim, não desceu. Considero-o, de longe, a menos envolvente e interessante de suas produções até agora. Não é incrível assim. Não forcem.
“Alexander Ekdahl: [to his stepfather] Alexander does not wish the Bishop a good night.”
O Estranho Mundo de Jack
4.1 1,3K Assista AgoraEmbora seja um filme ligeiramente supervalorizado, especialmente por seu público-alvo mais imediato - a meninada entre os 13 e os 16 anos -, O ESTRANHO MUNDO DE JACK traz, acima de tudo, um sopro de vida cinematográfico em sua técnica, evidente em cada fotograma. A massinha, os fantoches, a iluminação, tudo neste filme tem uma organização das mais minuciosas - cada boneco tinha pelo menos vinte cabeças diferentes, e cada piscadela de um personagem durava o tempo de recomposição, o ajuste e a fotografia propriamente dita de cada quadro. Se algo estivesse errado na montagem final, eles tinham de montar todo o cenário novamente, exatamente como estava nas fotos, e refotografar tudo.
O que impressiona, no mais, é este trabalho homérico que desprendeu-se de Tim Burton e sua equipe de arte, que não dirigiram o filme (!!!), mas puseram na mesa daquele início dos anos 1990 não apenas uma película delicada e revisitável sobre o anti-Natal, mas uma obra estética profusa, que combinava morbidez, onirismo e o melhor da animação à sua época.
Visionário, e sem dúvidas numa ótica transgressora, Tim Burton desenvolveria, a partir de obras como esta e "Vincent", a sua marca registrada, notável também nos igualmente memoráveis "A Noiva Cadáver" e "Edward Mãos de Tesoura". Muito embora peque por uma unidimensionalidade extrema no roteiro, incomum nos filmes infantis, Jack e sua turma certamente agradam adultos e crianças das mais corajosas.
E, por falar em coragem, como deve ter sido extremo para essa galera, sob o selo da DISNEY, produzir um filme deste naipe, né? Os monstros são eles!
Bravo!
"Jack Skellington: [singing] Just because I cannot see it, doesn't mean I can't believe it!"
Um Crime Americano
4.0 989 Assista AgoraNão há palavra que dê conta da experiência que Sylvia Likens viveu naquela casa. Não há filme, não há roteiro, não há colóquio. A homenagem de Tommy O’haver não tem nada de sensacionalista, nada de espetacularização capitalista da violência. Mesmo contando com um elenco de peso, e afiadas produção e montagem, “Um Crime Americano” deixa de ser um filme dramático-policial para se tornar, em grande medida, um despertador do fator humano, através da rara (e, por vezes, inalcançável) empatia que só o cinema é capaz de provocar.
É inominável. Dadas as proporções daquilo que aconteceu em 1965, é impossível ter havido quem defendesse Gertrude Baniszewski, mesmo que fosse seu direito previsto na Constituição. Ninguém pode ter levado em consideração o depoimento daquela mulher doente, vil, e daquelas perversas filhas e filho que criava. Quem defendeu a família Baniszewski? Com que recursos, com que argumentos se justificaria a cristificação de Sylvia Likens, e seu legado para as histórias de crianças assassinadas nos Estados Unidos?
Mesmo que a obra não tenha explorado tudo – quem procurou na internet descobriu uma série de outras situações a que Sylvia foi submetida, com impiedosos requintes de crueldade –, AN AMERICAN CRIME levanta questões sérias para debates muito atuais, como a pena de morte, o limite entre o público e o privado, a presença dos pais na formação e (urgentemente) no zelo de qualquer criança... Até que ponto podemos dizer “isso é problema deles, não vou me meter”, ou “cada um cuida do seu, não vou questionar”? Foi esta atitude, em última análise, que matou, via de regra, Sylvia Likens: o não-questionamento, a obediência, o medo da repreensão. Se alguém, qualquer um que soube daquilo, que conhecia a menina, que tivesse coragem para desbravar aquele porão maldito, se alguém tivesse a força de vontade de denunciar o que acontecia ali, é ilusório pensar que ela teria sobrevivido? Que ela estaria viva hoje, fazendo campanhas e militando nas causas das crianças abandonadas e em situação de exceção?
E, talvez, o mais latente e subversivo dos questionamentos do filme: o que fazer com uma senhora capaz de proporcionar uma danação dessas? Para onde ela deve ser levada? Qual o seu destino? Detenção? Reabilitação? Ressocialização? O que deve ser feito, e por que motivo ela respondeu em liberdade condicional, em 1985, e viveu até os anos 1990? Realmente não me sinto capaz de responder. É um mal que não tem nome, não tem rosto, não tem tipo – e pode acontecer bem perto da gente, sem podermos perceber.
Mais que um terror sobre cárcere privado, doutrinação parental, domínio matriarca e dinâmica de micropoderes, “Um Crime Americano” versa com destreza sobre a importância da nossa atitude empática e piedosa. Sem religião específica, sem etnia específica, sem idade específica. Já vi gente dizendo que esse filme não tem sentido de existir, porque é só trata a desgraça alheia, e como mero entretenimento. Acredito que vai da concepção e da expectativa de conforto de cada um.
Para mim, não teve como não favoritar. Mexe com muita coisa dentro de você. Só por isso, já se tem uma justificativa para assistir a ele. Colocar-se no lugar do outro, no caso daquela menina, na sua última tentativa desproporcional de fugir, de lutar, de desaparecer daquele porão, daquela monstruosidade. Onde estava Sylvia Likens, naqueles últimos minutos em que correu porta afora...
E nunca mais envelheceu?
“Shirley Baniszewski: I thought we were just teaching her."
O Jogo da Imitação
4.3 3,0K Assista AgoraDestacar as proezas técnicas deste filme é repetir-se, mas não temo os clichês: THE IMITATION GAME é uma bela montagem de cenários, imagens de arquivo, palhetas de cores e iluminação, com seus toques delicados e sua dinâmica latente, que traz para a mesa do Óscar uma profunda reflexão sobre o papel da criptografia na Europa do Nazismo, do Fascismo e da terrível 2ª Guerra Mundial. Morten Tyldum, que já havia mandado bem em Headhunters, conduz com mão firme a eletrizante biografia dos mais relevantes feitos de Alan Turing, exímio matemático que criou o ancestral do que chamamos hoje de computador.
Muito embora alguns equívocos históricos se façam presentes na narrativa, a maior parte do filme é densa e brilhantemente carregada pela performance do protagonista Benedict Cumberbatch, e da (desbravadíssima) Keira Knightley, num papel feminista particularmente tocante. A (falta de) química do casal também merece seu reconhecimento, uma vez que é um dos maiores argumentos em favor do filme, conduzindo-o por suas mensagens e seu poder de choque.
Infelizmente, como nas diversas narrativas de cunho LGBT no cinema, como o deslumbrante “Brokeback Mountain” ou o polêmico “Azul é a Cor Mais Quente”, e mesmo de acordo com a historiografia, o destino de Turing não é diferente daquele dos personagens de outros filmes, em que homossexuais encontram preconceito, doenças, separações e, em casos, a morte. É de se salientar a importância que tem um filme como este, que congrega valores anti-nazistas nobres, mas que se utilizou da situação de seu protagonista para criar um desfecho ainda mais reflexivo – qual o lugar do homossexual na sociedade.
E seja na sociedade ocidental das décadas de 1940, 1950, seja hoje, nos finalmentes de 2015, é de muito bom tom que se estabeleça, na Academia, uma obra heroica e eufórica como esta, que combina ao mesmo tempo a irracionalidade do antissemitismo com a da homofobia, em certa medida. É aquele tipo de filme que você perde algumas perspectivas se não assistir.
Tem no Netflix, hein.
Assista. Não tem erro.
“Sometimes it's the very people who no one imagines anything of who do the things no one can imagine.”
Hipócrates
3.4 33Embora o filme tenha suas qualidades e seu esforço seja visível, acaba se tornando morno em sua linguagem, como tantos outros representantes do cinema estrangeiro. HIPÓCRATES tem alguns elementos constitutivos da contemporaneidade, similares com produções brasileiras sobre a saúde pública, mas não chega a marcar. A greve dos internos, momento que considero mais relevante na obra, revela que não, o Brasil não é o único país do planeta passível de uma má administração ou de um desvio ideológico, de verba ou de função, o que contraria aquele conhecido estereótipo europeu do idealismo e da ordem geral. O retrato de Benjamin também tem muito a dizer sobre a inexperiência da sua geração, o despreparo, a insegurança e a confusão que banham os jovens franceses e de tantas outras nacionalidades neste longo século XXI. Somos sociedades viciadas, alienadas, profundamente niilistas e desalentadoras politicamente, e o filme se vale disso de uma forma muito clara, trazendo na efetivação profissional de um rapaz a corrupção generalizada e encoberta de todo um sistema hospitalar.
E a ponte que isso faz com a nossa própria história vai de cada um.
É um filme interessante em algum nível, mas fica naquela situação de "podia ter sido diferente". Não sei se tem a ver com o fato de ser o primeiro longa do diretor, mas mesmo assim, faltaram a ele uma série de elementos marcantes, alguns ostinatos, algumas abordagens que teriam funcionado melhor com sua plateia.
Fica para quem realmente estiver curioso.
"Abdel: Você fez a REM? E o que encontrou nela?"
Atividade Paranormal: Dimensão Fantasma
2.4 874 Assista AgoraIsso tinha que sofrer boicote. A sociedade deveria poder se proteger cognitiva e intelectualmente desse tipo de tirania. Essa... Opressão imperialista da cultura deveria ser considerada crime ideológico. Vocês podem ficar aí discutindo o quanto quiserem sobre “qual filme é melhor” entre os da franquia, ou qual tem “jump scares” mais “legais”, ou qual é mais “criativo e inovador”.
Pra mim, isso não tem mais justificativa. Este é o sétimo filme que leva o nome “Atividade Paranormal”, contando com os spin-offs, que contabiliza mais de um bilhão e meio de dólares para a Paramount Pictures. Um bilhão e meio. Isso é quase 4.000% de lucro. É um capital inversamente proporcional ao conjunto de obra estúpido, vazio e falido de significados que coroa.
Não me interessam os sustos rápidos, o didatismo com que tudo se revela ou a ausência de uma efetiva NARRATIVA capaz de dar conta do suspense que propõe. Também não me importa que os atores sejam fraquíssimos, os diálogos ainda mais e a edição, a cada filme que passa, vá de encontro mais e mais ao sufocamento da própria capacidade de tencionar, autêntica e naturalmente, o seu ansioso público.
Isso não é cinema, é falta de respeito. Não tem justificativa para o sétimo cuspe do mesmo enredo, variando apenas entre casas e atores. Países afora geram receita com o bolso de cada um que lotou as salas de cinema ao longo desses oito anos, e que também compraram blu-rays e DVDs dos filmes. Isso é uma guerra cultural de teor imperialista – é deixar na margem filmes que muitas vezes têm mais a dizer, para colocar no lugar uma variedade enorme de obras superficiais e meramente anestesiantes. Frankfurt estava certa – a linguagem foi exaurida, e a substância primordial, o motor da Indústria, se tornou um eterno retorno pós-moderno ao filme que se fez ano passado, mas que “este ano está diferente”. Este ano, “pela primeira vez, você verá a Atividade”.
Isso não tinha que ocupar salas de cinema ao redor do mundo. Isso é o que tinha de ser deixado à margem, porque não tem a menor qualidade tanto para o gênero do qual faz parte quanto para a arte em si. Porém, tem muito dinheiro envolvido, e não é de hoje. Enquanto um Tarkosvky ou um Glauber Rocha se foderam a vida toda para arranjar recursos e fazer cinema de verdade, esses filhos da puta não só nadam no dinheiro como ganham menção honrosa num lugar entre os mais rentáveis do ano, regozijando-se sobre a ideologia capitalista que indefinidamente os respaldará. É crime organizado. É mundial, é glocal, é regional. Para cada sala de cinema que lota com “Atividade Paranormal”, mais um filme-arte fica na gaveta, ou cai na margem, para salas tristes, de poucos assentos e com poucas sessões.
Enquanto houver a dinâmica de mercado regendo cada aspecto da distribuição das artes, haverá marginalização do que é puro, e belo, e bom. Isso também vale para os filmes de terror de baixo orçamento, que fique claro.
O real terror, se é que há, jaz justamente nesses bastidores.
E tenho dito.
"Emily: I've heard of spirit photography before; I've just never seen it in person."
Aura
3.3 84Quase todo ator passa por uma fase dark, né. Convenhamos, é difícil ter uma carreira impecável. AURA, suspense assinado por Fabián Bielinsky (que já havia trabalhado com Darín em 2000), simplesmente não desceu. Com uma trama de simplicidade preocupante, surpreendida por um ou dois momentos de criatividade sem grande fôlego, a película argentina tem um argumento estéril e que se torna gradualmente desinteressante. Ricardo Darín convence, como em qualquer outro papel, porém, o seu trabalho sozinho não é capaz de suportar o peso do restante do filme, duramente rebaixado por conta, principalmente, dos atores coadjuvantes. O resultado, infelizmente, é uma série de personagens secundários unidimensionais, unidos com um didatismo de forma e conteúdo desnecessário, e descaracterizados numa ausência de autenticidade, tanto no suspense como no drama do filme. "El Aura" se torna, como tantas outras produções de baixo orçamento, mais uma decepção no catálogo falido do Netflix, que priorizou tanto a produção independente que já começo a questionar a qualidade de seu repertório. É o quarto filme a que assisto em prol da valorização do cinema estrangeiro, e a quarta decepção seguida.
Bola pra frente.
"Ele não voltará mais."
Bata Antes de Entrar
2.3 998 Assista AgoraQue vergonha, Neo...
"Bata Antes de Entrar" é o mais recente filme do cara que deu à luz “O Albergue”, um filme desgraçado de nojento com um roteiro simples mas honesto, com muitas doses de tensão e gore, para o gozo daqueles que, como eu, curtem muito o (decadente) gênero. Entre aquele filme da furadeira e este aqui há um abismo notável, a partir do qual começo a discorrer: na ausência de uma violência efetiva, ou uma tensão efetiva, ou um tesão, este farofão de "terror erótico" (bela invenção da pós-modernidade) não consegue encontrar um público ou uma linguagem própria. Com muito medo de ousar em qualquer parte, Eli Roth bota na mesa um filme estéril e vazio, sendo considerado quase capenga. E, trabalhando mecanicamente, sem convencer nem a si próprio, Keanu Reeves entrega talvez seu trabalho mais fraco em anos, sob o papel de um homem fraco, pouco embasado e dolorosamente burro. Não que suas duas companheiras não sejam igualmente porcamente escritas, mas isso é detalhe, não é mesmo?
Aliás, um terror que tem como ponto de partida um ménage num banheiro já é uma parada questionável. Mesmo assim, faltou ao filme qualquer cena de sexo, ou de outros dos elementos que Eli Roth tanto utilizou em seus filmes anteriores (tortura, morte, suspense, instigação). Sob a pena de ser descoberto, Evan passa o filme inteiro tentando escapar ou se esconder das duas moças que também atuam pessimamente – como todo o restante do filme. Mesmo que seja apenas mais um dos produtos da indústria cultural, KNOCK KNOCK deve muito a duas pessoas: Michael Haneke e David Slade. Ao primeiro, pelas duas versões (alemã e americana) de “Violência Gratuita”, o excelente filme sobre os dois meninos que botam o terror na família perfeita sem justificativa alguma, e ao segundo, por “Menina Má.Com”, donde claramente saíram a chantagem emocional e a noção do “perigo feminino apartamentístico”. Com essas duas obras na bagagem, KNOCK KNOCK se torna desprezível e supérfluo, tendo ainda a audácia daquele final com a piadinha infame da “curtida no Facebook”.
Não costumo ser teimoso, mas dessa vez, não deu. Mal ae.
Ruim demais.
“Genesis: Knock, knock.
Bel: Who's there?
Genesis: Cheating Evan.
Bel: Cheating Evan who?
Genesis: Cheating Evan-tually gets you killed.”
Los Hermanos - Esse é só o começo do fim …
3.7 76Lamento.
Um documentário muito aquém da capacidade criativa e transgressora da banda de que se vale. Los Hermanos é um dos grandes grupos brasileiros dos anos 2000, não me entendam mal (sou fã confesso), porém, de documentário mesmo, não há muito neste infeliz filme de Maria Ribeiro. Sendo direcionado mais aos fãs, mesmo que qualquer um possa assistir a ele, ESSE É SÓ O COMEÇO explora a consumação da turnê brasileira dos barbudos em 2012, e muito embora o foco sejam os bastidores dos shows, com uma proposta de registrar a intimidade do grupo, a obra tenta o longo voo e fracassa dolorosamente - com muito mais filmagens das músicas das apresentações do que tempo de relato e entrevista. O filme peca por não sair muito do lugar, repetindo-se mais notadamente da metade até o final. Insistindo em manter as músicas do início ao fim, tocando mais de cinco canções que seu público já conhece de cabo a rabo, Maria Ribeiro fez com que prestar atenção se tornasse um esforço injustificável. Não é como se o documentário "não valesse nada" ou que "não deveria haver filmagens dos shows", lógico que não. A turnê deveria ser coberta sim; no entanto, primar, na edição, pelo palco que pelo ensaio, para mim, foi irresolúvel equívoco. Maçante e despropositada, a morna cria morta de Maria Ribeiro não desconstrói nada, uma vez que não revisita, e não constrói nada, uma vez que é chama - e chama se apaga.
Faísca.
"Ainda tem a cora
Gentinha atrevi
Da cá sua vi
Da cá seu suin-", Marcelo Camelo.
Relatos Selvagens
4.4 2,9K Assista AgoraDos grandes filmes Argentinos que vêm enriquecendo nossa cultura há décadas, RELATOS SELVAGENS é daqueles experimentais, sem sequência lógica ou cronológica, que desconcerta e chega a deixar eufórico o espectador desavisado. Juntando seis contos urbanos, a obra, que carrega o pesadíssimo Ricardo Darín em seu elenco, discorre sobre os extremos da nossa consciência de mundo, perpassando o ciúme, a raiva, a vingança e outros tipos de sedes às quais, por vezes, sucumbimos durante nossa longa caminhada. Um casamento falido à loucura, uma briga de trânsito impressionista e um assassinato por envenenamento “sem querer querendo” são alguns dos elementos que compõem o teatro desta gloriosa empreitada.
Bem editado e voraz, RELATOS também explora a questão do Homem contra o Homem, em pelo menos duas de suas estórias, e do Homem contra o Estado, contra as instituições que lhe são maiores e antropofágicas. Contra a Mulher, explícita e latente, temos uma crítica mais-que-válida, ilustrada pelos conflitos de um casal fadado ao fracasso de uma descoberta incendiária. Difícil mesmo é não se identificar com a selvageria, a nudez com que são expostos os vis humanos, desrespeitosos com o próximo e contra tudo que vier contra eles. Se pudéssemos soltar nosso lado mais visceral, mais cruel e insano, é certo que o resultado seria parecido com pelo menos uma das seis crônicas narradas aqui.
Uma ode moderna ao que temos de pior, esta é decerto uma boa pedida para quem procura ação, dinamismo e conteúdo, num formato acessível e de fácil entendimento.
Muito bom.
“Moza: Boa noite, uma mesa para um?
Cuenca: Vejo que você é boa em matemática.”
Perdido em Marte
4.0 2,3K Assista AgoraRetorno triunfal do diretor por trás do clássico “Alien – O Oitavo Passageiro”, PERDIDO EM MARTE apresenta um Ridley Scott reinventado, afinado com os filmes do gênero que o consagrou. Misturando momentos de tensão com silêncios, e explosões com humor, a obra não deixa a peteca cair e, apesar de trazer um roteiro clichê, é capaz de reter a atenção do início ao fim. Depois de algumas vaciladas, como o recente “Êxodo: Deuses e Reis”, Scott mostra porque não pode ser resumido a seus grandes sucessos – fazendo referências a conquistas da ciência moderna e até à música dos anos 80, a nova película reúne muito do repertório técnico e artístico de sua equipe e resulta numa viagem ao espaço substancialmente satisfatória.
Todavia, é difícil ignorar o discurso político altamente nacionalista que permeia este roteiro: que os Estados Unidos venceram a Guerra Fria, eles já repetiram milhares de vezes – talvez “2001” seja a maior e mais ousada empreitada de tal discurso –, porém, é quase irrisório esperar que, no momento em que a NASA precisa de ajuda, ela vá recorrer às antigas Repúblicas Soviéticas para salvar o grande Matt Damon; pelo contrário, o chefe do departamento terceirizado americano coincidentemente tem parentesco com o dono da transnacional concorrente na China. A aliança (e sua consequente propaganda) no filme nos faz questionar a real ‘conclusão’ da rivalidade entre estadunidenses e russos; se a Guerra Fria encerrou-se sem remorsos diplomáticos entre as grandes potências, por que não procurar a ajuda Socialista?
Questionamentos teimosos à parte, os méritos do filme são perceptíveis mesmo àqueles para os quais o ufanismo e a exaltação da cultura estadunidense passaram despercebidos. Além de uma grata diversão, muitíssimo bem conduzida, PERDIDO EM MARTE deixa em aberto este talvez constante dever, por parte da Indústria Cultural, da exaltação do astronauta norte-americanizado, revisitado inúmeras vezes, e mais recentemente nos também estarrecedores “Gravidade” e “Interestelar”. É certo que este não será o filme definitivo da corrida espacial, como aquele de Kubrick também não foi – mas será que este não ilustra, em alguma medida, o não-esquecimento das rivalidades oriundas dos confrontos entre os mais poderosos deste nosso minúsculo planeta?
Fica a dúvida.
“Mark Watney: Não quero parecer arrogante aqui, mas eu sou o maior botânico deste planeta.”
Fabricando Tom Zé
4.3 77Para mim, esse cara é o limite da maestria artística.
Como a um Tarkovsky no cinema, o Tom Zé é o compositor baiano mais fodido, mais desrespeitado de que se tem notícia e certamente o mais injustiçado, uma vez que caiu num puta ostracismo por conta da forma de suas músicas, do timbre de sua voz e da própria experiência de sua composição. Manteve-se fiel ao Tropicalismo, às teorias modernas, às destruições artísticas e ao caos geral, refletindo metanarrativas semióticas, revisitando e distorcendo melodias, e muitas vezes estudando e destroçando a própria Música.
Poucos tiveram a coragem de seguir uma carreira defendendo política e ideologicamente um movimento tão indefensável quanto a Tropicália. Nunca perdeu a lucidez, e vai de encontro, a cada dia que passa, mais e mais ao sublime da genialidade, se distanciando em linguagem e forma de todos nós, meros espectadores, mantendo-nos ligados às suas palavras desconexas e aos seus instrumentos não-convencionais no palco. Ele é o limite da maestria artística - o ápice a que um artista chega quando morre; transcende o tempo, as pessoas, as coisas, e se torna parte do Todo, senão o próprio. A mente intranquila de Tom Zé, condenada a arrebentar melodias, descentralizar tônicas e destruir ritmos compostos, manda "pra porra" qualquer autoritarismo sobre o seu trabalho. Testemunha ocular da morte de Deus, o filho tropical bastardo reinventou a abordagem urbano-industrial na música brasileira e destituiu o próprio tempo de seus componentes estruturais básicos - as pessoas e o mundo.
Um dos poucos que chegou lá, onde o tempo é estático e a arte é. Como disse Dalí, em sua frase célebre, "Eu não uso drogas. Eu SOU a droga".
Tom Zé é a arte inteira.
As Crônicas de Spiderwick
3.4 438 Assista AgoraFilme despretensioso para passar uma tarde sem chuva. Bons efeitos especiais, inclusive porque acabamos esquecendo que Freddie Highmore é os dois irmãos ao mesmo tempo... Trama bem simples, bem conduzida, mesmo que unidimensional, e clichê para o gênero, mas não perdendo o fôlego, e em alguns momentos surpreendendo com alguma destreza. Não é próximo do maior de sua geração, mas passa longe de um fiasco como "Os Seis Signos da Luz".
No mais, diversão para a família.
Divertidinho.
"Jared Grace: Why can't I see you?
Thimbletack: You don't see us, now you do, but only if we want you to."
Phoenix
3.8 104 Assista AgoraMe perdoem os fãs, mas este aqui não passou... Um dos filmes mais fracos em roteiro, desenvolvimento e estrutura que já vi num cinema. Discutir sobre os aspectos da trama que têm furos não me parece suficiente nem importante, afinal, um filme de circuito fechado que ganhou pouquíssima visibilidade e não tem uma fotografia que preste, uma trilha sonora que envolva, uma atuação que desconcerte... Tudo aqui, tudo, é morno demais para um filme sobre o pós-guerra; quiçá sobre a reconstrução de uma vida e o descobrimento de uma nova identidade. Resenhar já é elogio para "Phoenix", e sinto, cada vez mais, que os filmes de circuito alternativo de fato não têm tanto a dizer quanto os espectadores que os resenham. Não é uma indireta a ninguém, nem uma crítica a este filme em específico - mas, a ele, especialmente, falta uma série de características, que não sinto a necessidade de especificar, para apenas torná-lo "assistível", sem o marasmo que o domina em sua primeira meia-hora de exibição e o leva até o final.
Respeito a opinião contrária, é óbvio. Mas não achei isto aqui minimamente interessante.
E é só o que vejo.
"Speak low..."
Dançando no Escuro
4.4 2,3K Assista AgoraDa ordem dos filmes que traumatizam.
"Dançando no Escuro" flerta com a prosa e a poesia de uma vida subvertida, deturpada e confusa. Björk, sempre audaz, transmite as grandes questões de sua personagem com a destreza de uma gigante; as inseguranças, os segredos e as verdades que constituem um ser humano profundamente miserável, numa exposição ao mesmo tempo cativante e cruel. Tocante, um dos melhores longas de Lars von Trier nos saúda com as assinaturas de praxe (cortes repentinos, reforço de silêncios e câmera "instável") com a gritante diferença que, aqui, a forma é a de um musical - um tenebroso e por vezes mórbido musical contemporâneo, cujas canções flertam com o experimentalismo harmônico e a recitação de versos. Um filme linear, nada misterioso ou simbólico, que lembra tanto a estética naturalista d'Os Idiotas' como a abordagem de seus trabalhos mais reflexivos, em especial 'Dogville', em que partem da própria narrativa, e não dos diálogos que a conduzem, as críticas à sociedade e à hipocrisia.
Salvaguardadas as proporções e os enredos, tais filmes abordam a questão humana de maneira semelhante - e o fardo de existir, tema recorrente em Lars, ganha aqui uma remodelagem histérica e visceral, conjugada na pessoa da Selma, e sua complexa relação com o ambiente hostil que a rodeia.
O resultado a que se chega é de uma tristeza tão profunda, uma dor tão ardida, que me atrevo a compará-lo ao que Tarkovsky encontrou em "O Espelho", obra inclusive referenciada pelo próprio Lars, para quem o russo beirava à divindade: é raro de se ver, no cinema, uma inocência tão pura quanto poderosa, brutalmente destituída de suas razões de ser, em virtude da crescente e irrefreável violência que restitui as propriedades privadas e os interesses individuais, não importando a quem doa, ou quanto doa.
E é, de fato, isso mesmo; dançamos no escuro das nossas próprias solidões, incompreensivos, desprotegidos e despreparados, suportados por cotidianos estruturalmente assassinos e... tristes.
Insoluvelmente tristes.
"I used to dream that I was in a musical, because in a musical, nothing dreadful ever happens."
O Jardineiro Fiel
3.9 574 Assista AgoraMuito embora alguns possam não gostar da sua proposta "mirabolante", acho que é exatamente isso que faz com que "O Jardineiro Fiel" passe longe daqueles dramas com os quais nos confundimos quando vamos a uma locadora; com uma trama bastante distinta, trata de determinada desumanidade que ocorre no Quênia, em prol de uma multinacional capitalista de larga escala. É necessário reconhecer o Fernando Meirelles como um realizador brasileiro de calibre, e suas assinaturas, como a coloração ligeiramente mais cinzenta e o uso da luz ofuscada transpondo-se nas cenas.
Perturbadora e envolvente, a película que conta a história de Justin Quayle revela-se ao mesmo tempo uma grata surpresa no seu desenvolvimento, que chega a confundir propositalmente o espectador pelo menos duas vezes, como também mostra uma Rachel Weisz mais madura que outros de seus trabalhos, como "Círculo de Fogo" e "O Júri", também bons. Pontos também para o Ralph Fiennes, completamente entregue na pele de um homem perdido nas incertezas de um passado não tão distante.
Um filme pesado e inteligente, digno de uma conferida.
"Lorbeer: I only give the food to the women, Mr. Black. Women make the homes, men just make wars... and hooch. Adam was God's first draft - He got it right with Eve. Tell that to your readers, Mr. Black."
O Demônio das Onze Horas
4.2 431 Assista AgoraCubismo, experimentalismo, filme-arte. O grande passo para a vanguarda, a quebra de narrativa, a Nouvelle Vague. Em 1965, Jean-Luc Godard e suas não-linearidades trocaram as coisas de lugar, recitaram poesia, mudaram os conceitos temporais, as dinâmicas sonoras e, principalmente, os objetivos dos filmes franceses que se fariam dali para frente. Não desmerecendo um Resnais ou Truffaut, é claro, é preciso destacar, porém, o cinema que este outro francês compôs.
O detalhismo e o concretismo são intenções latentes no longa "O Demônio das Onze Horas", que discorre sobre o descompasso de um casal de criminosos. Com imersões absurdas na psiquê dos dois, o filme dialoga com campos da filosofia, da psicanálise e até da antropologia, esmiuçando à exaustão aspectos aleatórios de uma história que, mesmo estraçalhada pela modernidade, soa completa.
O frescor do pós-estruturalismo ainda se faz presente cinquenta anos depois de sua estreia, impressionantemente. Anna Karina arrebenta, e as montagens aqui são excelentes - afinadíssimas com a proposta niilista/nietzschiana que desenvolve. Cenários que misturam o clássico antagonismo do vermelho com o azul também chamam atenção.
No mais, difícil de se esquecer.
Da ordem dos filmes que ficam.
Foda.
"Tenho pena do cinema francês porque não tem dinheiro. Tenho pena do cinema americano porque não tem ideias" - Jean-Luc Godard
Para Sempre Teu, Caio F.
4.3 26Este filme traça uma descrição tão fina dos contornos do Caio que parece que o próprio, na sua condição de cronista cirúrgico, assinou o roteiro. Dando pinceladas nos casos, nas filosofias e angústias do homem por trás daqueles morangos mofados, "Para Sempre Teu, Caio F" delineia a sua trajetória a passos largos, desde a infância, com relatos de parentes como a própria mãe, até os últimos estágios de sua vida, consumida pela AIDS que lhe ceifou. Reunindo entrevistas, curiosidades e interpretações de seus textos por atores conhecidos, o filme toca em tudo - sexo, amor, depressão, religiosidade, e até uma árvore especial num jardim, em que ele costumava subir.
Trata-se não de uma investigação profunda das intenções de seus trabalhos, mas de uma fotografia do artista que dura toda a sua vida. Mais que apresentar ao público sua irreverência e criatividade, esta produção consegue divertir, emocionar e, quem sabe, até trazer novos entusiastas para a leitura de suas crônicas.
Não fosse um filme de circuito fechado, e parcamente difundido nas redes sociais, certamente encantaria aos milhares. Certamente me encantou.
Lindo demais.
"O amor só acontece quando o homem admite que é bicho."
A Outra História Americana
4.4 2,2K Assista AgoraA estreia no cinema do diretor Tony Kaye não podia ser mais magistral. “A Outra História Americana”, estrelado por Edward Norton e indicado ao Oscar de 1999, conta a história de um ex-presidiário neo-nazista que tenta impedir seu irmão mais novo de seguir o mesmo caminho que ele. Com violenta condução e indefensável crueza, o filme disseca o perigo das instituições radicais e conservadoras no mundo profundamente plural em que vivemos.
Intenso, dinâmico e esteticamente desconfortável, o filme defende que o ódio é inóquo, e que a violência não produz senão mais violência. Aqui, ela se torna um eterno retorno do qual participam negros, caucasianos e todas as outras etinas. Entre os recursos técnicos melhor trabalhados estão os detalhes, através das câmeras lentas, e a trilha sonora instigante. Kaye se apresenta como um diretor de assinatura que tem plena capacidade de contar uma história ao passo que propõe reflexões sobre ela. Destacam-se também o uso de iluminação natural em boa parte da película e a construção de uma narrativa não-linear digna de um filme de David Lynch.
Muito embora soe didático por vezes, e caia em determinados lugares-comuns (em especial, por conta de alguns dos atores coadjuvantes), o filme delineia um raciocínio claro com fôlego e força, cuja tese o irmão mais novo recita, ao final – “ódio é bagagem, e a vida é muito curta para ficarmos chateados o tempo todo”. A violência simplesmente não há motivo de ser. Toda a expressão racista em “American History X”, que choca e causa extremo incômodo, funciona como um refúgio daqueles preconceituosos que vão perdendo suas bases aos poucos – os alicerces de uma família destruída pelo racismo, e um grupo de reacionários que perde sua certeza quando a tolerância e o respeito passam a falar mais alto, mesmo que apenas para um integrante, e a necessidade de revoltar-se contra sistemas e minorias não mais se manifesta com a mesma intensidade entre eles.
Como discorre Edward Norton, que inclusive consegue convencer-nos de que é racista durante o filme, os estigmas podem ser refutados. Não há instituições maiores que a capacidade do ser humano de superar-se, de modificar-se, de compreender o outro em sua plenitude. Preconceitos e radicalismos conservam valores e aprisionam os indivíduos em seus dogmas, limitando-os e, não raro, sufocando-os e extirpando-os. Apenas uma forte conscientização, como a que este filme propõe e gloriosamente realiza, é capaz de revolucionar as questões que o Homem tem sobre seus semelhantes, e desestruturar o desamor que ainda hoje se encontra profundamente instaurado nas sociedades modernas.
“Bob Sweeney: Alguma coisa que você fez tornou sua vida melhor?”
Ensaio Sobre a Cegueira
4.0 2,5KDepois do gigante “Cidade de Deus” e do notável “O Jardineiro Fiel”, Fernando Meirelles dirige outro fantástico trabalho sobre a degradação humana, o descompasso e a doença da ambição. “Ensaio Sobre a Cegueira” retrata a história de uma cegueira repentina e coletiva, inexplicável, numa cidade qualquer, na qual uma única pessoa imune (Julianne Moore, trabalhando de maneira profunda e entregue) procura ajudar o marido e outros doentes do “terror branco”. Os enfermos são rapidamente enviados a instituições especiais para ficar em quarentena, numa moção que dá ao filme todo o subsídio de que precisa para sua tese sobre a desumanidade e os grandes defeitos do ser.
Seria um longa apenas bom se construísse o drama romântico e a estética, furtiva e angustiante, dos planos brancos que muitas vezes encobrem a visão da plateia. Porém, “Ensaio sobre a Cegueira”, baseado na obra homônima de Saramago, enxerga além da concepção imediatista e percebe os impasses dolorosamente possíveis que se seguiriam: diante das péssimas condições em que foram colocados, os doentes passam pelo descaso do Estado, pelo enclausuramento e, principalmente, pela fome, uma vez que uma das alas da instituição decide por arbítrio que a comida, que alimentaria a todos igualmente, será posse apenas de seus pertencentes. Surge aí o grande lance do filme: apesar de todos estarem nas mesmas condições de saúde, na mesma geografia e com o mesmo suprimento, ainda surge espaço para os jogos de poder, numa perspectiva foucaultiana extremamente desalentadora. Cegos e doentes, os seres humanos ainda são capazes de matar, estuprar e saquear qualquer um que esteja em seu caminho. Saramago e Meirelles dizem, em uníssono, que a nossa espécie é incapaz de compreender o outro de forma plena, com suas necessidades e desejos, seus medos e anseios.
Depois desta cisão, o filme fala por si: estaremos sempre à margem – do Estado, dos nossos amigos e até do nosso cônjuge – se precisarmos deles na forma primordial. Seremos traumatizados, abusados e enganados até pelos que dizem nos amar se precisarmos viver em detrimento deles, por eles, deles. Haverá um momento – com sorte, a velhice – em que o nosso próprio crescimento ceifará a nossa capacidade de comunicação com o outro, e a nossa saúde se transformará na nossa solidão absurda, e as nossas frustrações falarão cada vez mais alto. Neste tempo, quando o Estado já não nos pensar importante, quando nossos amigos já não estiverem mais vivos e nosso cônjuge já nos tiver deixado, encararemos, inevitavelmente, a dor advinda das nossas próprias escolhas. Será lá, no leito de morte, que tudo tornará a ser o que não foi, mas podia-ter-sido. E diante dessa austera possibilidade, preferiremos ser todos cegos.
Se há algo capaz de mudar isso, em verdade vos digo: será o amor, puro e pulsante, capaz unicamente de suportar o fardo humano de coexistir.
Amemos, pois.
"Rei da Ala 3: Eu não vou esquecer a sua voz!
Esposa do Doutor: E eu não vou esquecer o seu rosto!"
Tudo Sobre Minha Mãe
4.2 1,3K Assista Agora“Tudo Sobre Minha Mãe” é outro dos magníficos filmes de Pedro Almodóvar – talentoso e peculiar, ácido e crítico, íntimo das mulheres e das travestis – um verdadeiro show de cores, interposição de tramas e reviravoltas complexas, de deixar qualquer espectador sem chão. Aqui, já um experiente diretor, carregando o peso dos excelentes “A Lei do Desejo” e “Mulheres à Beira...”, Pedro realiza um de seus maiores longas, em especial pela sua linguagem, que exalta o colóquio, e a naturalidade com que trata cotidianos problemáticos e díspares, sua sexualidade e suas (im)posições. Considero-o, junto de “Má Educação”, uma produção inequívoca para quem quer conhecer o cinema espanhol de primeira viagem – um filme completo, bem atuado, bem filmado, bem editado e, ainda, afinado com as lutas LGBT, e o eterno desejo de se manter íntegro e respeitado junto às diferentes formas de se amar.
Em última análise, um grande filme. Vocês perdem por não assistir!
“Agrado: Apenas não desapareça de novo. Eu gosto de me despedir das pessoas que amo, mesmo que seja apenas para me acabar em choro, vadia!”
Para Sempre Alice
4.1 2,3K Assista AgoraMais uma vez, o cinema nos presenteia com essa inescapável jornada pela preservação da identidade, a luta de um ser humano pela sobrevivência de suas obras frente ao tempo, de sua vida frente à eternidade. “Para Sempre Alice” se mostra um retrato delicado e azedo sobre o Alzheimer, e seus devastadores efeitos sobre a vida humana. Com direção afinada, Julianne Moore é a protagonista de um drama Sartriano de questões gigantescas: até onde vai a vida, e o que ela de fato significa? Somos compostos apenas pelo nosso presente, ou também pelo passado - somos o que conseguimos lembrar de nós mesmos? E qual seria a garantia de que o nosso legado não seria esquecido pelo tempo que escorre, e as flores que secam, e a vida que se esvai? Acima de tudo, temos aqui um longa existencialista sobre a devassidão das nossas lembranças, e do profundo sentimento de autopreservação da nossa espécie, seja pela cultura da memória, ou seja pela tradição oral, mental e emocional de manter aquecidas em nós todas as sensações boas que já proporcionamos aos outros e a nós mesmos.
Todo o fazer humano é lembrar e sentir. Seremos eternos observadores do passado, conclamando o nosso presente e cumprimentando, com cumplicidade genuína, tudo aquilo que estiver à nossa frente nessa dimensão do espaço. As civilizações não foram feitas para cair no esquecimento, mas para viver em comunhão com ele – na mais verdadeira forma de se admitir incapaz de ser tudo, estar tudo, viver tudo. Os seres humanos não sobreviveriam ao Alzheimer todos de uma vez; e é exatamente por isso que temos uns aos outros.
Os outros serão o arcabouço de tudo o que viveremos no depois.
Pois vivamos com eles. Todos os dias.
“So, 'live in the moment' I tell myself. It's really all I can do, live in the moment. And not beat myself up too much... and not beat myself up too much for mastering the art of losing. One thing I will try to hold onto though is the memory of speaking here today. It will go, I know it will. It may be gone by tomorrow. But it means so much to be talking here, today, like my old ambitious self who was so fascinated by communication. Thank you for this opportunity. It means the world to me. Thank you.”
Jovem Aloucada
3.2 337 Assista AgoraTem uma linguagem de fato dinâmica, e uns bons momentos de descontração. Algumas das reflexões sobre sexualidade realmente soam bastante bem-pensadas, em especial sobre a curiosidade de Daniela e de sua "frequência", rs. Porém, senti que deixou muito a desejar na sua finalização... Como quase todo filme estrangeiro, especialmente indicado no Sundance, esse é outro dos que terminam no meio do nada, com um anti-clímax chato e que constrói toda uma narrativa criativa para se afundar na "posteridade estórica".
Não curti muito não... Vale a pena pelas boas tiradas, mas só.
"No sé si creo ni en la felicidars, ni en la calma, ni en la madurasound."
Branco Sai, Preto Fica
3.5 173Deplorável.
Um dos mais dolorosos e entediantes filmes brasileiros que já vi. Utilizar um massacre num baile black para forrar a história de dois personagens vazios, sem motivos-de-ser, já é algo questionável. Agora, produzir uma distopia de ficção-científica sobre esses homens e seu objetivo de viajar numa nave até Brasília e explodir o Congresso...
Numa boa, mandaram muito mal.
Nada nisto aqui funcionou; fotografia, direção de arte, trilha sonora e atuações risíveis. Nem comento sobre os efeitos especiais. E a crítica, se é que existia, queimou junto com o sofá, nos últimos segundos deste absurdo. "Branco Sai, Preto Fica" enterra todas as gigantescas expectativas de seu público em solo semi-árido, mostrando mais uma vez como não se deve fazer Marketing ou Cinema no Brasil; um verdadeiro show de horrores pseudo-virtuosos que, de fato, tornam-se originais se você parar para pensar: mas num sentido de "nunca vi algo tão horroroso antes".
Baixem a bola, isso aqui ficou muito ruim.
Doído.
Fanny e Alexander
4.3 215Antes de qualquer coisa, quero dizer que não sou marinheiro de primeira viagem com Bergman – assisti a várias de suas produções. Acredito que sua filmografia é de altos e baixos, tendo grandes conquistas entre alguns poucos filmes que simplesmente tentam a longa viagem e não a conseguem – e, infelizmente, sinto ser este o caso de “Fanny e Alexander”.
Seguindo quase um passo-a-passo kubrickiano em seu renascentista “Barry Lyndon”, Bergman dirigiu um longa quase tão elegante quanto, com ambiência, cenografia e figurino afinados. Parece-me estranho, porém, que haja tantos comentários favoráveis à técnica deste, que, comparado ao de Kubrick, não atingiu a perfeição nem na fotografia e nem no desenvolvimento de sua, cá entre nós, curta história (um pecado bergmaniano com o qual muitos regozijam, mas para o qual passei a torcer o nariz). Se lhes parece equivocado comparar um diretor com outro, busco então filmes de sua própria carreira – “Através de Um Espelho”, por exemplo. O jogo de sombras, característico de sua obra e latente neste, não acontece em “Fanny”. A exploração da fantasia infantil em “Morangos Silvestres” também não se faz presente aqui satisfatoriamente, e a imersão em “Cenas de Um Casamento” não ocorre de maneira minimamente singular neste. A sensação que se tem é de que não há nada neste filme que o diretor já não tenha feito antes, exaustivas vezes e melhor – valendo como lembrete o fato de que este é seu quadragésimo quinto trabalho, só contando os cadastrados no Filmow.
Como seu ídolo, Tarkovsky, Ingmar também não procura ter carinho por quem o assiste, trazendo uma película arrastada e rasamente filosófica, com raros diálogos interessantes, tornando-se um de seus trabalhos menos inspirados. Com isso, não falo que o filme é vazio em si, mas se vocês falam em Obra Prima do diretor, sabem que boa parte da filosofia bergmaniana é tempo, morte e solidão – efemeridade existencialista. Dois terços do filme mal procuram dizer algo sobre isso. E esta minissérie, tornada filme sabe deus por quê, também não chega a grandes conclusões, mal tocando nas próprias questões que propõe em seu percurso – poder, inocência e maturidade.
Não procuro uma falácia ad hominen com este que é um dos maiores diretores da história do Cinema, mas “Fanny e Alexander”, para mim, não desceu. Considero-o, de longe, a menos envolvente e interessante de suas produções até agora.
Não é incrível assim. Não forcem.
“Alexander Ekdahl: [to his stepfather] Alexander does not wish the Bishop a good night.”