A única ressalva que eu faço ao cinema de Reichenbach é um certo núcleo conservador que, à época - me parece -, soava como contestação pura, "liberdade", etc. Passa por isso, por exemplo e sobretudo, a posição que as mulheres ocupam em suas obras, cuja única emancipação e autonomia são sexuais: nunca estão fora desta posição, exceto para barrar a vida dos protagonistas masculinos. Em Filme Demência isso ocorre uma vez mais.
Isto posto, temos aqui uma bela obra, marca de absoluta erudição e ímpeto de circulação de referências a partir de uma visão da realidade nacional. Reichenbach tira leite de pedra dos traumáticos anos 1980 e 1990 deste país.
Eu realmente espero que haja uma versão deste filme sem legendas, porque isso representa um grau absurdo de violência com aquilo que é narrado e visto, instaura uma distância intransponível que não é a do eu e do outro, mas do interior e exterior. Isso é imperdoável. A palavra não compreendida, a dicção, a prosódia, tudo isso faz parte constitutivamente do que é contado: quando você escolhe legendar - isto é, colocar na sua língua - você denota quem espera que seja seu público, e que tipo de recepção - a mais confortável - quer que ele tenha. A legenda é um erro que relativiza qualquer acerto que possa haver na obra.
O autor não é o latifundiário da obra, de fato, mas Nelson Pereira dos Santos lança, em comentário ao filme, uma vereda muito interessante para se ler O Amuleto de Ogum:
Segundo o diretor, as molduras na obra são uma crítica e uma blague com o contexto em que foi concebida. Como vimos, os três malandros, depois de assaltarem o cego Macalé, pedem para que ele conte/cante a) uma narrativa histórica, sobre Pedro Álvares Cabral, b) uma narrativa erótica e c) uma história infantil. Nelson Pereira diz que, no contexto pós AI-5, estes três eixos eram os mais incentivados e viabilizados no cinema nacional, e qualquer coisa que se quisesse fazer para além disso - um filme como O Amuleto de Ogum, por exemplo - sofreria todo tipo de embargo de recepção e difusão.
Na segunda metade da moldura, depois de finda a narrativa, Macalé retorna dizendo que "quem não gostou da história vá pra puta que o pariu", e assassina os três bandidos, porque tem também o corpo fechado. Naquele momento, segundo Nelson Pereira, o cego é ele mesmo o cinema brasileiro: desconsiderando as demandas populistas, devolvendo na navalhada e no insulto e, por fim, "voltando pra curtir".
O que fica claro com essa história é que, por mais que se tente, é impossível traçar um lado de fora e um lado de dentro do cinema: suas posições se implicam mutuamente: os autores transformam o contexto em obra, a obra visa agir no contexto, as condições materiais implicam mudanças de forma, a obra visa propor mudanças nas condições materiais. O cinema como dialética, enfim: eis a herança que sai daqui para o mundo.
Acho Orestes muito feliz em caracterizar a existência da violência na sociedade como uma linha de força para instauração e destruição de grupos, significados, indivíduos, locais, momentos históricos; e as imagens do urubu - que não à toa abrem o filme - e do helicóptero - que a ressoam - dão a pista desta interpretação. Assim, a aproximação entre pessoas distintas marcadas por momentos distintos, mas unidas pelo Estado como vetor de violência, é feliz na construção de uma visão de campo que indica como a história se constrói como um discurso de ressonância, aproximação e distanciamento - com significado sempre em jogo.
Creio, contudo, que o experimento potencialmente muito interessante - ressoando Coutinho sim, mas também o visionário Salaam Cinema - não consegue dar conta de explorar a multiplicidade de narrativas em jogo ali: há pessoas que pouco falam, cujas histórias são mera presença espectral, em detrimento de outras que têm o direito da profundidade e da contradição: gostaria de ouvir muito mais, de saber muito mais sobre os pais daqueles assassinados pela PM, sobre a defensora da pena de morte - cujos poucos momentos de complexidade certamente são o melhor que o filme tem a oferecer -, sobre os juízes e promotores. Se isso incorresse em 1h a mais de filme, não haveria nenhum problema, só haveria ganhos.
Para além disso, também sinto pouca profundidade na abordagem feita do sistema penal - que não é uma abordagem, afinal, mas mera suspensão do local de enunciação: o que significa uma corte, um juri, um juiz em um país cuja principal função tem sido assassinar? Como simplesmente expor um julgamento como se fora fruto de um lugar e um tempo descolados de qualquer contexto? Colocar uma perspectiva crítica sobre aquele lugar de enunciação é uma chance perdida mesmo dentro da leitura de Orestes, o grego, como parábola, já que passa por ali o horizonte crítico da obra.
Enfim, permanece o brilho da ideia e os acertos de execução - abertura e fechamento trágicos são incontestavelmente valiosos - assim como um apontamento para um cinema interessado naquilo que o atravessa e ultrapassa. Há nisso grande valor.
Seis anos depois da Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, Bressane tem a astúcia de fazer um ensaio que lança luz ao mesmo significante que ajudou a unificar as pautas da classe média às da casta militar: a Família vai para o título do filme, aparece nas fotografias posadas dos clãs e é subvertida pela relação absurda entre os três membros que, pelo baixo corporal, pela causação inconcebível, pela violência, devolve o mesmo significante com o valor invertido. A crítica à situação material do Brasil é brutal, portanto. E ressoa no pastiche do cinema épico/romântico estadunidense e das comédias televisivas que contrastam/se somam à fotografia estourada, ao roteiro sem linearidade, aos erros de gravação que são somados à representação. Mais uma vez devolve-se o mesmo com valor diverso. Isso é dialética para se ver e ouvir: pura negatividade: arte, enfim.
Direção soberba para um filme muito surpreendente. A única ressalva fica por conta da questão de classe, mal-trabalhada e que prejudica a adesão ao casal principal. Percebo em Domingos um esforço para colocar em contexto a história de amor narrada no filme, a partir de presenças como a do engraxate, da foto de Lenin e dos caminhões do exército que passam ao fundo; essas presenças, no entanto, não alteram de nenhuma maneira aquilo que é narrado em primeiro plano, apenas permanecem como espectros para uma história que se desloca de todo o contexto possível. Isso rebate, assim, a moral tipicamente burguesa que, mesmo criticada, parece prevalecer no final da obra, na falsa encruzilhada entre libertinagem e família que ali se desenha.
Se há um gênio neste filme, ele é Dib Lutfi. No meio de um discurso do marxismo CPC mais tacanho - que equipara, por exemplo, o neopentecostalismo com a umbanda como "formas de alienação" - a riqueza das imagens obtidas pelo fotógrafo é inegável, e sem dúvidas me fez gostar muito mais deste filme: está na maneira de filmar o momento de maior honestidade crítica da obra. No discurso, no texto, tem-se o cinismo daquele que tenta extrair do "real" a comprovação de suas teses: longe da opinião pública, tem-se a opinião de Jabor lida com voz muito bem impostada. Lutfi, por outro lado, assume a distância do real para a representação de maneira produtiva e joga com ela, cria cenários para as entrevistas, foca e desfoca fundo e frente criando relações com o que é dito. Assume o real como construção, enfim.
A Opinião Pública, ao cabo, é um curioso relato sobre, simultaneamente, como fazer e não fazer cinema de viés documentário. Coutinho e Raulino darão o salto discursivo necessário logo mais.
De modo algum creio que este seja um filme ruim, e seria um despautério dizê-lo. Aliás, pelo contrário, Abril Despedaçado é uma obra que parece ter sido feita tendo em vista agradar todos os públicos, todos os críticos, todos os jurados de festivais a partir da plasticidade das imagens e dos diálogos que não deixam arestas. O recado é claro, as metáforas são claras - pêndulos, círculos, giros repetições que emulam as práticas de um mundo arcaico, e que se contrapõem ao que será chamado de "liberdade" a partir do amor, da arte, da letra. Mas essa clareza diversas vezes cruza um limite muito perigoso, que é o do didatismo, daquele cinema que quer pagar o preço da beleza "universal" e da linearidade da narrativa pela necessidade de aclarar todos os pontos, todas as imagens e significados dispostos na obra. É como se tudo que estivesse em cena tivesse um motivo implícito na naquilo que é narrado: nada é gratuito, nada é acaso, nada está simplesmente ali. Perde-se a história neste movimento, e pende-se para a bela parábola que pode servir para diversos usos.
Pensando um pouco mais sobre esse filme, acho que seu argumento é muito mais complexo do que "o trabalho animaliza o homem", como um sabichão aí abaixo tentou resumir em sua "facilidade".
O símbolo que representa o corpo bestial encontrado dentro da parede parece dar um indicativo de que, muito mais do que produzir animalidade, o trabalho - não em abstrato, mas dentro de uma ordem neoliberal, e isso é bem claro - não consegue esconder a animalidade intrínseca ao homem. Ainda que se tente moldar as relações violentas em termos de uma cordialidade, que se tente limpar o resto simbólico da produção de violência e de capital, e ainda que remetaforize essa violência sob o verniz da "competição" e do networking", o homem é um animal - a cena final é clara nesse sentido. Tudo que tenta afastá-lo disso - cordialidade, simpatia, anglicismos, o mito da meritocracia - é cinismo puro: o cinismo que alimenta a existência de toda a classe média, que se transforma em pulsão de morte e irromperá em algum momento como violência.
O casal principal ilustra bem, portanto, como a classe média é moldada para se deslocar com naturalidade neste mundo envernizado, para tentar suprimir o assombro da violência-base na acumulação de capital (e note-se como os subordinados lidam com aquele animal de maneira bem diferente do que os patrões, a corretora e o locatário) e para operá-la ao seu favor, dando maleabilidade às regras, contratos e leis, tudo na base do sorrisinho e da simpatia. Creio que a imagem do "lobisomem" na parede - aquele homem que desapareceu enquanto trabalhava - é, portanto, perfeita para simbolizar o resto simbólico de um sistema que tenta se construir como polido, racional e funcional, mas que ao cabo é simplesmente uma máscara de suas intenções e métodos. Aí está a classe média.
Se você tentar ver todos os filmes como se fossem produtos da Netflix, você vai começar a achar que A Cor da Romã não tem "enredo", que Sonhos é excessivamente "abstrato", que as cenas de nudez de O Império dos Sentidos são "apelativas", que Branco Sai, Preto Fica é um filme "arrastado" e sem "plot". Em suma: você vai achar que as únicas coisas boas no mundo são feitas a partir de uma lógica comercial de linguagem, você vai ser suscetível a um único regime de sensibilidade.
Digo isso após ler a maioria dos comentários sobre este filme, que apontam justamente estas "falhas" de sua produção. A partir do momento em que você conceber que todos os filmes partem dos mesmos pressupostos, têm os mesmos objetivos, lidam com as mesmas noções de tempo, você perdeu para o cinema como entretenimento: ele quer que você acredite que não existe lado de fora.
Mas existe. Divino Amor é um testemunho disso, basta ter olhos para ver. Exemplo: em um filme que põe em cena como a partilha das pulsões é mediada de maneira explícita pelo neopentecostalismo e pelo Estado aparelhado por ele - o que implica uma igreja que considera dar vazão discursiva ao próprio ato sexual, sob pressuposto da procriação e da vida heterossexual monogâmica - nenhuma cena de sexo é simplesmente uma cena de sexo: é esta a questão principal da vida das personagens, merece extensão e centralidade. Outro exemplo: se esta distopia não tem "fundo" a partir de um contexto político ou de personagens secundários, talvez isso evidencie como a partir da igreja Divino Amor seja a vida do casal a única que importe: a vida diegética contamina as maneiras de dizê-la, e isso é grandioso. Mais um: se o marido é uma figura pouco expressiva, é interessante pensar de que maneira isso se liga a seu trabalho - que passa também pelo manejo de corpos e de seus lugares -, a sua função de procriador estéril: isto faz sentido para a narrativa. Pense no sentido de uma fotografia tão coerente que une todos os espaços representados.
Enfim. Tudo isso para dizer que este é um grande filme, com um roteiro e uma direção muito interessantes e sensíveis, impressionantes. Se exigíssemos de nós um pouco da sensibilidade que exigimos dos realizadores, veríamos que há muita coisa ainda por descobrir, basta relativizar nossos pressupostos do que é "bom", do que "presta". Grande surpresa este filme.
Quando Godard dizia* que um plano sequência era, acima de tudo, uma questão ética, parecia explicar bem a diferença entre O Processo e o aclamado Democracia em Vertigem. Explico: pode-se dizer que os dois filmes, que abordam um mesmo momento político em perspectiva ideológica similar e a partir de um surpreendente acesso aos bastidores, são praticamente opostos na ética que escolhem para sua linguagem: Democracia em Vertigem opta pela hiper-intervenção e pela escolha da narradora como fio condutor subjetivo, enquanto O Processo se esforça por construir - não há cinema "natural", afinal - um ambiente de afastamento de observador. Até aí, isso não diz nada.
A questão é que vê-se, pois, como estão em jogo modos diferentes de fazer cinema, que dizem respeito diretamente ao aporte financeiro das obras e ao seu reconhecimento público como objetos artísticos. O Processo é chamado de arrastado e lento, Democracia em Vertigem é chamado de artístico e belo: a que isso se deve? A escolhas de linguagem mais próximas ou mais distantes da lógica que rege a manufatura internacional de séries e filmes, que determina padrões de fotografia e linguagem e que, por fim e a princípio, dá o aporte financeiro e garante a entrada em determinados circuitos de crítica e recepção a suas obras. De um lado está a paisagem filmada com drones, a limpeza de edição e fotografia, o reconhecimento critico; do outro, o enquadramento deslocado, o silêncio de trilha sonora e narração, o preto e branco das legendas. Ambos são construções, trazem consigo seus ganhos e cinismos, é claro: mas só um dos filmes é debatido e aclamado.
Mas, como disse, escolher construções de objetividade ou subjetividade não diz nada em si sobre uma obra. A questão é que O Processo é muito mais feliz em todos os aspectos mesmo. Sua edição é brilhante e constrói uma narrativa sem a necessidade do conforto do narrador onisciente, seus registros são documentalmente muito ricos, sua ambientação do espaço político - onde não nega se situar - é muito natural e sensível e não precisa se valer de mecanismos óbvios de embelezamento para tal. Em um mundo em que um filme canalha como Roma - não surpreendentemente também uma orgulhosa produção Netflix como Democracia em Vertigem - é aclamado por uma fotografia em preto e branco e planos sequência na frente do mar, O Processo é uma prova positiva de que ainda é possível fazer cinema com algum tipo de honestidade artística e intelectual.
*desculpe começar um comentário com esse sintagma, pareço um Faria Limer, eu sei haha
Nem tudo que não é mimético é surrealista, gente. Aliás, o filme só funciona tão bem porque seu tipo de nexo causal é incerto, deriva entre o real e o surreal, entre a causação lógica e a causação estética. Dizer que o filme é simplesmente "surrealista" é perder exatamente o espaço que ele requisita para sua ficção.
Um roteiro brilhante que esbarra na incapacidade de Meirelles em parar a câmera por mais de 10s. Uma pena esse tipo de direção bem Netflix - uma espécie de The Voice cinematográfico, em que cada segundo tem que se mostrar ruidosamente "artístico", seja lá o que isso signifique -, sobretudo diante de um texto tão bem escrito. Preciso tomar um dramin.
Ode à mediocridade. Daqueles filmes que não trazem nenhum tipo de proposta de conteúdo ou de linguagem, que não apresentam abordagens novas nem procuram novos objetos: tudo é o mesmo: mesmos espaços, na mesma forma de narrar e de representar, com os mesmo tipos de corpos em cena. Para mim, foi um verdadeiro martírio assistir a esse filme, como se fora um Tarantino de 3h30. E pensar que caí nessa ladainha de ser um filme que não se pode pausar, como se tivesse um ritmo próprio ou uma ambientação cuidadosa: pause 500 vezes se quiser, que a direção água-com-açúcar te conduzirá amavelmente ao mesmo lugar de observador-voyeur da violência, e te oferecerá aquela dicção irônica por meio da trilha sonora, do slow motion e das piadas soltas.
Mas se o fetiche for por filme grande, eu te garanto que as 5h de um Lav Diaz ou de um Angelopoulos valem bem mais a pena, e trazem consigo uma proposição nova de cinema.
Esse filme me deixou numa encruzilhada muito difícil, que eu realmente não consegui até agora resolver.
Quando Marcelo Gomes, na posição de membro de um exogrupo e diretor de um filme, resolve intervir na realidade material daquilo que está retratando - no instante em que oferece uma compensação monetária em troca dos vídeos do carnaval - ele não passa a se submeter à própria lógica do que ele está criticando? Se a crítica da obra é sobre um novo tipo de mediação com o tempo e o espaço imposto pelo dinheiro, o diretor não reproduz esta lógica e a internaliza ao oferecer também ele dinheiro em troca de imagens para sua obra? Será esta ética coerente com a própria obra?
Perdão pelo dilema de Aloysio Raulino, mas isso não me sai da cabeça.
Filme Demência
4.1 42 Assista AgoraA única ressalva que eu faço ao cinema de Reichenbach é um certo núcleo conservador que, à época - me parece -, soava como contestação pura, "liberdade", etc. Passa por isso, por exemplo e sobretudo, a posição que as mulheres ocupam em suas obras, cuja única emancipação e autonomia são sexuais: nunca estão fora desta posição, exceto para barrar a vida dos protagonistas masculinos. Em Filme Demência isso ocorre uma vez mais.
Isto posto, temos aqui uma bela obra, marca de absoluta erudição e ímpeto de circulação de referências a partir de uma visão da realidade nacional. Reichenbach tira leite de pedra dos traumáticos anos 1980 e 1990 deste país.
Belair
3.6 28Não faz jus. Bem longe disso.
Bye Bye Brasil
3.9 145 Assista AgoraCarlos Diegues fez dois dos melhores filmes da história do Brasil e depois perdeu a cabeça: aí deu nisso.
Terra Deu, Terra Come
4.2 43 Assista AgoraEu realmente espero que haja uma versão deste filme sem legendas, porque isso representa um grau absurdo de violência com aquilo que é narrado e visto, instaura uma distância intransponível que não é a do eu e do outro, mas do interior e exterior. Isso é imperdoável. A palavra não compreendida, a dicção, a prosódia, tudo isso faz parte constitutivamente do que é contado: quando você escolhe legendar - isto é, colocar na sua língua - você denota quem espera que seja seu público, e que tipo de recepção - a mais confortável - quer que ele tenha. A legenda é um erro que relativiza qualquer acerto que possa haver na obra.
Carnaval na Lama
4.3 5Só os mitológicos mesmo viram esse filme haahah
O Amuleto de Ogum
3.7 23 Assista AgoraO autor não é o latifundiário da obra, de fato, mas Nelson Pereira dos Santos lança, em comentário ao filme, uma vereda muito interessante para se ler O Amuleto de Ogum:
Segundo o diretor, as molduras na obra são uma crítica e uma blague com o contexto em que foi concebida. Como vimos, os três malandros, depois de assaltarem o cego Macalé, pedem para que ele conte/cante a) uma narrativa histórica, sobre Pedro Álvares Cabral, b) uma narrativa erótica e c) uma história infantil. Nelson Pereira diz que, no contexto pós AI-5, estes três eixos eram os mais incentivados e viabilizados no cinema nacional, e qualquer coisa que se quisesse fazer para além disso - um filme como O Amuleto de Ogum, por exemplo - sofreria todo tipo de embargo de recepção e difusão.
Na segunda metade da moldura, depois de finda a narrativa, Macalé retorna dizendo que "quem não gostou da história vá pra puta que o pariu", e assassina os três bandidos, porque tem também o corpo fechado. Naquele momento, segundo Nelson Pereira, o cego é ele mesmo o cinema brasileiro: desconsiderando as demandas populistas, devolvendo na navalhada e no insulto e, por fim, "voltando pra curtir".
O que fica claro com essa história é que, por mais que se tente, é impossível traçar um lado de fora e um lado de dentro do cinema: suas posições se implicam mutuamente: os autores transformam o contexto em obra, a obra visa agir no contexto, as condições materiais implicam mudanças de forma, a obra visa propor mudanças nas condições materiais. O cinema como dialética, enfim: eis a herança que sai daqui para o mundo.
No Coração do Mundo
3.9 62 Assista AgoraE.E. Carlos Reichenbach
Orestes
4.1 8Eu diria "quase".
Acho Orestes muito feliz em caracterizar a existência da violência na sociedade como uma linha de força para instauração e destruição de grupos, significados, indivíduos, locais, momentos históricos; e as imagens do urubu - que não à toa abrem o filme - e do helicóptero - que a ressoam - dão a pista desta interpretação. Assim, a aproximação entre pessoas distintas marcadas por momentos distintos, mas unidas pelo Estado como vetor de violência, é feliz na construção de uma visão de campo que indica como a história se constrói como um discurso de ressonância, aproximação e distanciamento - com significado sempre em jogo.
Creio, contudo, que o experimento potencialmente muito interessante - ressoando Coutinho sim, mas também o visionário Salaam Cinema - não consegue dar conta de explorar a multiplicidade de narrativas em jogo ali: há pessoas que pouco falam, cujas histórias são mera presença espectral, em detrimento de outras que têm o direito da profundidade e da contradição: gostaria de ouvir muito mais, de saber muito mais sobre os pais daqueles assassinados pela PM, sobre a defensora da pena de morte - cujos poucos momentos de complexidade certamente são o melhor que o filme tem a oferecer -, sobre os juízes e promotores. Se isso incorresse em 1h a mais de filme, não haveria nenhum problema, só haveria ganhos.
Para além disso, também sinto pouca profundidade na abordagem feita do sistema penal - que não é uma abordagem, afinal, mas mera suspensão do local de enunciação: o que significa uma corte, um juri, um juiz em um país cuja principal função tem sido assassinar? Como simplesmente expor um julgamento como se fora fruto de um lugar e um tempo descolados de qualquer contexto? Colocar uma perspectiva crítica sobre aquele lugar de enunciação é uma chance perdida mesmo dentro da leitura de Orestes, o grego, como parábola, já que passa por ali o horizonte crítico da obra.
Enfim, permanece o brilho da ideia e os acertos de execução - abertura e fechamento trágicos são incontestavelmente valiosos - assim como um apontamento para um cinema interessado naquilo que o atravessa e ultrapassa. Há nisso grande valor.
A Família do Barulho
3.6 22Seis anos depois da Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, Bressane tem a astúcia de fazer um ensaio que lança luz ao mesmo significante que ajudou a unificar as pautas da classe média às da casta militar: a Família vai para o título do filme, aparece nas fotografias posadas dos clãs e é subvertida pela relação absurda entre os três membros que, pelo baixo corporal, pela causação inconcebível, pela violência, devolve o mesmo significante com o valor invertido. A crítica à situação material do Brasil é brutal, portanto. E ressoa no pastiche do cinema épico/romântico estadunidense e das comédias televisivas que contrastam/se somam à fotografia estourada, ao roteiro sem linearidade, aos erros de gravação que são somados à representação. Mais uma vez devolve-se o mesmo com valor diverso. Isso é dialética para se ver e ouvir: pura negatividade: arte, enfim.
Todas as Mulheres do Mundo
4.0 89Direção soberba para um filme muito surpreendente. A única ressalva fica por conta da questão de classe, mal-trabalhada e que prejudica a adesão ao casal principal. Percebo em Domingos um esforço para colocar em contexto a história de amor narrada no filme, a partir de presenças como a do engraxate, da foto de Lenin e dos caminhões do exército que passam ao fundo; essas presenças, no entanto, não alteram de nenhuma maneira aquilo que é narrado em primeiro plano, apenas permanecem como espectros para uma história que se desloca de todo o contexto possível. Isso rebate, assim, a moral tipicamente burguesa que, mesmo criticada, parece prevalecer no final da obra, na falsa encruzilhada entre libertinagem e família que ali se desenha.
Fora isso, o filme é irretocável.
Viagem ao Fim do Mundo
4.0 16Essa é, honestamente, a melhor abertura de filme que eu já vi.
A Opinião Pública
3.7 32Se há um gênio neste filme, ele é Dib Lutfi. No meio de um discurso do marxismo CPC mais tacanho - que equipara, por exemplo, o neopentecostalismo com a umbanda como "formas de alienação" - a riqueza das imagens obtidas pelo fotógrafo é inegável, e sem dúvidas me fez gostar muito mais deste filme: está na maneira de filmar o momento de maior honestidade crítica da obra. No discurso, no texto, tem-se o cinismo daquele que tenta extrair do "real" a comprovação de suas teses: longe da opinião pública, tem-se a opinião de Jabor lida com voz muito bem impostada. Lutfi, por outro lado, assume a distância do real para a representação de maneira produtiva e joga com ela, cria cenários para as entrevistas, foca e desfoca fundo e frente criando relações com o que é dito. Assume o real como construção, enfim.
A Opinião Pública, ao cabo, é um curioso relato sobre, simultaneamente, como fazer e não fazer cinema de viés documentário. Coutinho e Raulino darão o salto discursivo necessário logo mais.
Um Homem e Sua Jaula
3.3 1Há aqui mais um grande diretor brasileiro inviabilizado pela ditadura civil-militar. Nosso dever é não deixar que esse embargo prevaleça.
Abril Despedaçado
4.2 673De modo algum creio que este seja um filme ruim, e seria um despautério dizê-lo. Aliás, pelo contrário, Abril Despedaçado é uma obra que parece ter sido feita tendo em vista agradar todos os públicos, todos os críticos, todos os jurados de festivais a partir da plasticidade das imagens e dos diálogos que não deixam arestas. O recado é claro, as metáforas são claras - pêndulos, círculos, giros repetições que emulam as práticas de um mundo arcaico, e que se contrapõem ao que será chamado de "liberdade" a partir do amor, da arte, da letra. Mas essa clareza diversas vezes cruza um limite muito perigoso, que é o do didatismo, daquele cinema que quer pagar o preço da beleza "universal" e da linearidade da narrativa pela necessidade de aclarar todos os pontos, todas as imagens e significados dispostos na obra. É como se tudo que estivesse em cena tivesse um motivo implícito na naquilo que é narrado: nada é gratuito, nada é acaso, nada está simplesmente ali. Perde-se a história neste movimento, e pende-se para a bela parábola que pode servir para diversos usos.
Trabalhar Cansa
3.6 211Pensando um pouco mais sobre esse filme, acho que seu argumento é muito mais complexo do que "o trabalho animaliza o homem", como um sabichão aí abaixo tentou resumir em sua "facilidade".
O símbolo que representa o corpo bestial encontrado dentro da parede parece dar um indicativo de que, muito mais do que produzir animalidade, o trabalho - não em abstrato, mas dentro de uma ordem neoliberal, e isso é bem claro - não consegue esconder a animalidade intrínseca ao homem. Ainda que se tente moldar as relações violentas em termos de uma cordialidade, que se tente limpar o resto simbólico da produção de violência e de capital, e ainda que remetaforize essa violência sob o verniz da "competição" e do networking", o homem é um animal - a cena final é clara nesse sentido. Tudo que tenta afastá-lo disso - cordialidade, simpatia, anglicismos, o mito da meritocracia - é cinismo puro: o cinismo que alimenta a existência de toda a classe média, que se transforma em pulsão de morte e irromperá em algum momento como violência.
O casal principal ilustra bem, portanto, como a classe média é moldada para se deslocar com naturalidade neste mundo envernizado, para tentar suprimir o assombro da violência-base na acumulação de capital (e note-se como os subordinados lidam com aquele animal de maneira bem diferente do que os patrões, a corretora e o locatário) e para operá-la ao seu favor, dando maleabilidade às regras, contratos e leis, tudo na base do sorrisinho e da simpatia. Creio que a imagem do "lobisomem" na parede - aquele homem que desapareceu enquanto trabalhava - é, portanto, perfeita para simbolizar o resto simbólico de um sistema que tenta se construir como polido, racional e funcional, mas que ao cabo é simplesmente uma máscara de suas intenções e métodos. Aí está a classe média.
Divino Amor
3.4 241Se você tentar ver todos os filmes como se fossem produtos da Netflix, você vai começar a achar que A Cor da Romã não tem "enredo", que Sonhos é excessivamente "abstrato", que as cenas de nudez de O Império dos Sentidos são "apelativas", que Branco Sai, Preto Fica é um filme "arrastado" e sem "plot". Em suma: você vai achar que as únicas coisas boas no mundo são feitas a partir de uma lógica comercial de linguagem, você vai ser suscetível a um único regime de sensibilidade.
Digo isso após ler a maioria dos comentários sobre este filme, que apontam justamente estas "falhas" de sua produção. A partir do momento em que você conceber que todos os filmes partem dos mesmos pressupostos, têm os mesmos objetivos, lidam com as mesmas noções de tempo, você perdeu para o cinema como entretenimento: ele quer que você acredite que não existe lado de fora.
Mas existe. Divino Amor é um testemunho disso, basta ter olhos para ver. Exemplo: em um filme que põe em cena como a partilha das pulsões é mediada de maneira explícita pelo neopentecostalismo e pelo Estado aparelhado por ele - o que implica uma igreja que considera dar vazão discursiva ao próprio ato sexual, sob pressuposto da procriação e da vida heterossexual monogâmica - nenhuma cena de sexo é simplesmente uma cena de sexo: é esta a questão principal da vida das personagens, merece extensão e centralidade. Outro exemplo: se esta distopia não tem "fundo" a partir de um contexto político ou de personagens secundários, talvez isso evidencie como a partir da igreja Divino Amor seja a vida do casal a única que importe: a vida diegética contamina as maneiras de dizê-la, e isso é grandioso. Mais um: se o marido é uma figura pouco expressiva, é interessante pensar de que maneira isso se liga a seu trabalho - que passa também pelo manejo de corpos e de seus lugares -, a sua função de procriador estéril: isto faz sentido para a narrativa. Pense no sentido de uma fotografia tão coerente que une todos os espaços representados.
Enfim. Tudo isso para dizer que este é um grande filme, com um roteiro e uma direção muito interessantes e sensíveis, impressionantes. Se exigíssemos de nós um pouco da sensibilidade que exigimos dos realizadores, veríamos que há muita coisa ainda por descobrir, basta relativizar nossos pressupostos do que é "bom", do que "presta". Grande surpresa este filme.
O Processo
4.0 240Quando Godard dizia* que um plano sequência era, acima de tudo, uma questão ética, parecia explicar bem a diferença entre O Processo e o aclamado Democracia em Vertigem. Explico: pode-se dizer que os dois filmes, que abordam um mesmo momento político em perspectiva ideológica similar e a partir de um surpreendente acesso aos bastidores, são praticamente opostos na ética que escolhem para sua linguagem: Democracia em Vertigem opta pela hiper-intervenção e pela escolha da narradora como fio condutor subjetivo, enquanto O Processo se esforça por construir - não há cinema "natural", afinal - um ambiente de afastamento de observador. Até aí, isso não diz nada.
A questão é que vê-se, pois, como estão em jogo modos diferentes de fazer cinema, que dizem respeito diretamente ao aporte financeiro das obras e ao seu reconhecimento público como objetos artísticos. O Processo é chamado de arrastado e lento, Democracia em Vertigem é chamado de artístico e belo: a que isso se deve? A escolhas de linguagem mais próximas ou mais distantes da lógica que rege a manufatura internacional de séries e filmes, que determina padrões de fotografia e linguagem e que, por fim e a princípio, dá o aporte financeiro e garante a entrada em determinados circuitos de crítica e recepção a suas obras. De um lado está a paisagem filmada com drones, a limpeza de edição e fotografia, o reconhecimento critico; do outro, o enquadramento deslocado, o silêncio de trilha sonora e narração, o preto e branco das legendas. Ambos são construções, trazem consigo seus ganhos e cinismos, é claro: mas só um dos filmes é debatido e aclamado.
Mas, como disse, escolher construções de objetividade ou subjetividade não diz nada em si sobre uma obra. A questão é que O Processo é muito mais feliz em todos os aspectos mesmo. Sua edição é brilhante e constrói uma narrativa sem a necessidade do conforto do narrador onisciente, seus registros são documentalmente muito ricos, sua ambientação do espaço político - onde não nega se situar - é muito natural e sensível e não precisa se valer de mecanismos óbvios de embelezamento para tal. Em um mundo em que um filme canalha como Roma - não surpreendentemente também uma orgulhosa produção Netflix como Democracia em Vertigem - é aclamado por uma fotografia em preto e branco e planos sequência na frente do mar, O Processo é uma prova positiva de que ainda é possível fazer cinema com algum tipo de honestidade artística e intelectual.
*desculpe começar um comentário com esse sintagma, pareço um Faria Limer, eu sei haha
Holy Motors
3.9 651Nem tudo que não é mimético é surrealista, gente. Aliás, o filme só funciona tão bem porque seu tipo de nexo causal é incerto, deriva entre o real e o surreal, entre a causação lógica e a causação estética. Dizer que o filme é simplesmente "surrealista" é perder exatamente o espaço que ele requisita para sua ficção.
Conversas no Maranhão
3.4 3Comentando qualquer coisa só pra sobrepor o idiota que está aí embaixo.
Dois Papas
4.1 962 Assista AgoraUm roteiro brilhante que esbarra na incapacidade de Meirelles em parar a câmera por mais de 10s. Uma pena esse tipo de direção bem Netflix - uma espécie de The Voice cinematográfico, em que cada segundo tem que se mostrar ruidosamente "artístico", seja lá o que isso signifique -, sobretudo diante de um texto tão bem escrito. Preciso tomar um dramin.
A Vizinhança do Tigre
3.9 44Affonso Uchoa filma um projeto de país.
O Irlandês
4.0 1,5K Assista AgoraOde à mediocridade. Daqueles filmes que não trazem nenhum tipo de proposta de conteúdo ou de linguagem, que não apresentam abordagens novas nem procuram novos objetos: tudo é o mesmo: mesmos espaços, na mesma forma de narrar e de representar, com os mesmo tipos de corpos em cena. Para mim, foi um verdadeiro martírio assistir a esse filme, como se fora um Tarantino de 3h30. E pensar que caí nessa ladainha de ser um filme que não se pode pausar, como se tivesse um ritmo próprio ou uma ambientação cuidadosa: pause 500 vezes se quiser, que a direção água-com-açúcar te conduzirá amavelmente ao mesmo lugar de observador-voyeur da violência, e te oferecerá aquela dicção irônica por meio da trilha sonora, do slow motion e das piadas soltas.
Mas se o fetiche for por filme grande, eu te garanto que as 5h de um Lav Diaz ou de um Angelopoulos valem bem mais a pena, e trazem consigo uma proposição nova de cinema.
Arábia
4.2 168 Assista AgoraUm dos melhores filmes da história. Sem nenhuma hipérbole nisso.
Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar
4.3 210Esse filme me deixou numa encruzilhada muito difícil, que eu realmente não consegui até agora resolver.
Quando Marcelo Gomes, na posição de membro de um exogrupo e diretor de um filme, resolve intervir na realidade material daquilo que está retratando - no instante em que oferece uma compensação monetária em troca dos vídeos do carnaval - ele não passa a se submeter à própria lógica do que ele está criticando? Se a crítica da obra é sobre um novo tipo de mediação com o tempo e o espaço imposto pelo dinheiro, o diretor não reproduz esta lógica e a internaliza ao oferecer também ele dinheiro em troca de imagens para sua obra? Será esta ética coerente com a própria obra?
Perdão pelo dilema de Aloysio Raulino, mas isso não me sai da cabeça.