Como o Kiyoshi Kurosawa, que dirigiu meu filme de terror predileto dos anos 2000, Kairo, uma alegoria fantasmagórica sobre a solidão nos nossos tempos, pode ter dirigido uma porcaria dessas? Pense num thriller investigativo onde absolutamente nada funciona. Um puta desperdício de mise-en-scène e habilidade diretiva, numa trama irregular e repleta de furos no roteiro, com personagens estúpidos, sem motivações aparentes, cometendo erros primários o tempo inteiro. Duas horas que parecem cinco numa empreitada que só me deu alguma satisfação nos dez minutos finais, quando já era tarde demais. Primeira grande decepção de 2017.
Ainda hipnotizado pela beleza da Harriet Andersson nesse conto agridoce de amour fou inesperadamente realista do Bergman, recheado de cenários idílicos e um erotismo extremamente vivaz e pulsante, que dão um tom libertário ao filme (ao menos até os dissabores da vida adulta aparecerem). Embora não goze de privilégios e nem comungue de dilemas pequeno-burgueses (o oposto disso, na verdade), Monika é a personagem mais rohmeriana do Bergman: sua inconsequência juvenil, sua malícia e sua implacável vontade de viver e ser amada/desejada a tornam uma fonte inesgotável de carisma. E as lentes do Gunnar Fischer não permitem que sua inocência perdida nos escape aos olhos e aos sentidos por um momento sequer. Numa das cenas mais bonitas de que me recordo (e o filme está repleto delas, acredite), Monika foge tresloucada e aos tropeços pela floresta, faminta e com um pedaço de carne na mão, tentando encontrar seu jovem amante após um furto que deu errado. Tudo isso acompanhado pela câmera num jogo gracioso de luz e movimento. Um quadro vivo em esplendoroso preto e branco. Filme lindo e melancólico, sobre paixão, escolhas, amadurecimento e impermanência. Aliás, o quanto o cinema francês absorveu desse filme do diretor sueco não dá mesmo pra mensurar. Um pequeno tesouro.
João Pedro Rodrigues não decepciona, mesmo com as expectativas lá nas alturas. O Ornitólogo é maravilhoso a cada minuto, principalmente no terço final, quando o filme supera a beleza do protagonista e das locações e mergulha no simbolismo. Me lembrou muito o cinema do Derek Jarman, não somente pelas referências iconoclastas (São Sebastião, A incredulidade de São Tomé do Caravaggio, etc), mas pela verve poética e autoral do diretor. Lindo.
O amor como impulso artístico. Meio piegas, mas foi por essa razão que gostei tanto desse Greenaway, que deveria constar em todas as listas de filmes queer de 2016, não por ser tão fálico, mas pela honestidade desconcertante de várias cenas, sobretudo quando o protagonista encontra afirmação através da própria sexualidade. Filmão com alguns momentos antológicos que merece ser visto também pela montagem frenética, pela entrega corporal dos atores e acima de tudo pela visão pouco ortodoxa do diretor sobre um dos verdadeiros pais do cinema (o filme deveria se chamar: Que Viva Eisenstein! - Um Filme que Abalou a Rússia Homofóbica). Só essa cena do Eisenstein e seu amante Palomino dialogando no cemitério vale toda a empreitada:
Cañedo: Não o surpreende que passemos tanto tempo fazendo gente morrer em filmes? Eisenstein: Todos os atores, mais cedo ou mais tarde, de preferência mais cedo, de cinema e teatro em todo o mundo, são solicitados a foder ou morrer. Hamlet, Otelo, Macbeth, Julieta, Madame Butterfly, Joana D'Arc, Yevgeniy 0negin, Cleópatra, Júlio César, Savonarola, Helena de Troia, Ivan o Terrível. Cañedo: Nós lhe permitimos que mostrem pessoas fodendo e morrendo. Sabemos que não estão. Você também sabe. E sabemos que você sabe que nós sabemos que não estão. Eisenstein: Tudo para provar que vivemos duas vezes. Primeiro como afirmação, depois como um desafio à própria morte. A voluntária e indispensável suspensão da descrença. Na Rússia de hoje a morte chega bêbeda, toda amarfanhada, e sem roupas íntimas, porque lá ninguém tem dinheiro para isso. Veste uma camisa branca usada, sem colarinho e com punhos sujos. A morte na Rússia é um evento desagradável no fim da vida. Aqui no México, ela chega de olhos resplandecentes, risonha, totalmente sóbria, dando início à sua maior aventura, distribuindo beijos. Sua cabeça, seu coração e seu pau levantados. Sexo e morte, as duas únicas coisas inegociáveis: Eros e Thanatos.
Não tem o que discutir: o terror pertence ao cinema asiático. Há anos não vejo um thriller tão sinistro, cuidadoso e envolvente, cheio de simbolismos e reviravoltas, como esse O Lamento, me lembrando muito a sofisticação e atmosfera do Memórias de Um Assassino, do Bong Joon-ho. Caralho, esses coreanos não tem pra ninguém. Filmão da porra! Vejam antes de 2016 acabar pra encerrar o ano com uma obra-prima do gênero.
Só mesmo o Herzog pra transformar o que poderia ser mais um documentário sobre vulcões nessa experiência mística e dantesca nos confins do mundo. A convergência entre imagens espetaculares da natureza, existencialismo e crenças ancestrais impressionam e já são marca no seu cinema. Da Islândia a Etiópia, em meio a nuvens piroclásticas, explosões retumbantes de lava e música clássica, Herzog parece estar mais preocupado com a experiência humana acima de tudo. No ponto alto do documentário, filmado na Coreia do Norte (e que por isso parece saído de um filme distópico dos anos 80), o diretor tenta extrair uma resposta pessoal sobre a relação entre o vulcão, religião e política de um dos guias coreanos e obtém, para sua frustração, apenas respostas vagas e programadas que revelam muito daquele país. No fim, uma inevitável jornada espiritual pelos vulcões mais ativos do mundo, guiada por um cineasta sem limites. E o melhor: fresquinho na Netflix.
Caralho, como eu AMO Jacques Tourneur. Ninguém cria uma atmosfera de terror com tanta sugestão e elegância como esse homem. Essa luz, essas sombras, esses sons que irrompem o silêncio da noite trazendo consigo um perigo iminente. Maravilhoso, assim como em Sangue de Pantera e A Morta-Viva.
Como esperado, fiquei apaixonado por esse draminha dinamarquês sobre rebeldia e descoberta na infância, Du Er Ikke Alene ("Você não está sozinho"), retratado do ponto de vista de adolescentes que vivem em um repressor internato no final dos anos 70. Poucos filmes coming-of-age (com viés queer ou não) conseguiram retratar com tanto lirismo e, ao mesmo tempo, bravura o desabrochar para a vida e para o amor como esse filme. Só consigo pensar em duas obras que conseguiram tal proeza: o francês Les amitiés particulières (1964) e o alemão Noordzee, Texas (2011). Em paralelo, também pensei em Le souffle au cœur (1971) e Stand By Me (1986).
Pena que o filme encontre tanta resistência em certos públicos até hoje, que o encaram como controverso por tratar, sem muitas reservas, do primeiro amor gay entre dois infantes. Sobre esse falso tabu é interessante observar como os conflitos do filme residem muito mais no choque entre a visão moralista dos professores da bucólica cidade versus os ideais revolucionários e a ebulição hormonal dos alunos (lembrando muito Dazed and Confused) do que na paixonite juvenil ainda ambivalente entre os dois protagonistas, tratada com uma inesquecível naturalidade. Tanto que as cenas de afeto entre os dois, apesar de chocantes para alguns, são completamente naturais para quem vivenciou o rito de passagem da infância para a adolescência sem muitos traumas: a repressão paterna, a curiosidade da descoberta, a linha tênue entre a inocência e o desejo, os toques sem malícia, a vontade de estar junto. Quem nunca falou de masturbação com um amiguinho do colégio? Uma pena que ainda vivamos em tempos tão sombrios onde se censure tanto esta fase e um filme tão bonito como esse precise de alcunhas como “provocador” e “liberal”.
Muito mais do que um romancezinho gay, fica aí a dica para quem quer ver um conto extraordinário sobre amizade, companheirismo e teenage angst. A cena final é de uma coragem e de uma beleza tão espantosas que passados quase 40 anos poucos diretores teriam a audácia de filmá-la.
Em um relacionamento sério com esse documentário, À la recherche du paradis perdu: Vivre Nu (algo como “Em Busca do Paraíso Perdido: Viver nu”), do Robert Salis, sobre os modos de vida naturistas francês e alemão. As paisagens arcadianas, ensolaradas e idílicas do Sul da França e a poesia dos corpos em sintonia com a trilha transformam esse filme num misto de Eric Rohmer e Henry Scott Tuke. Só por isso, as suas quase duas horas valeriam a pena, mas o diretor vai bem além: sem proselitismo e munido de depoimentos diversos e um rico acervo visual e histórico (1939--1993), ele desmistifica uma série de pré-conceitos sobre o naturismo e mostra como sua prática ainda é pouco compreendida enquanto filosofia e estilo de vida ao tempo que ganha cada vez mais adeptos e defensores ao redor do mundo.
Muito se pensa dos retiros naturistas como espaços para neo-hippies aplaudirem o sol, abraçar árvores e invocar Gaia ao luar, ou para gente rica e entediada dar vasão às suas extravagâncias sem o julgamento alheio, ou - e talvez o mais comum - como antros de libertinagem para pessoas em busca de explorar os seus lados kinky-hedonistas. Salis desconstrói essa visão caricata e mostra como retiros naturistas são espaços democráticos (respeitadas as suas variedades: retiros, praias, resorts, etc) destinados para pessoas e famílias que simplesmente desejam vivenciar a nudez de forma coletiva e com espontaneidade, independente de classe, sexo, religião ou qualquer máscara social.
Mostra, com isso, a ubiquidade do dogmatismo cristão, tão forte em nossa cultura que somos doutrinados desde cedo a enxergar a nudez como algo ofensivo, associando-a sumariamente à pornografia e ao sexo, através de uma erotização compulsória do corpo, quando, na verdade, tudo não passa de uma enraizada convenção social sustentada pelo moralismo, pelo bodyshaming, pela culpa, pelo medo da própria sexualidade e pela ignorância.
O que acho fascinante sobre esse documentário é que ele consegue, através da diversidade e seriedade dos seus depoimentos e sem a catequização do espectador, transmitir o naturismo como um potencializador de nossas liberdades porque apoiado em uma filosofia de harmonia com a natureza, de autoaceitação, de tolerância, de bem-estar e de respeito. Diferentemente da selva de pedra, nesses espaços não há ansiedade para atender expectativas sociais exasperantes e padrões de beleza inatingíveis. Não existe competição por status ou poder. Não existe o conceito de “beach body” ou a glamourização do corpo jovem/esbelto acompanhada da ojeriza ao corpo velho/flácido dos mais idosos. Não existe a ideia de posse do homem sobre o corpo da mulher. É quase um estado-utópico. A verdadeira Arcádia. Com corpos sendo livres, sem vergonha ou pudor. E não há nada mais belo e natural que isso.
Encerro com uma frase dita no doc que achei genial e que atesta a não romantização do assunto: “Uma multidão de pessoas despidas pode ser tão entediante quanto uma multidão de pessoas vestidas”.
Protelei horrores. Deveria ter protelado mais. Primeiro filme do Woody que me custou chegar até o fim. Li comentários positivos dizendo que o diretor tinha "voltado à velha forma" e fui esperando um Deconstructing Harry ou Radio Days, mas o resultado é terrível: personagens insuportáveis e sem carisma algum! O que já era de se esperar com essa escolha grotesca de elenco que nem a Blake Lively e a Parker Posey conseguiram salvar. Maior miscasting do ano´, sem dúvidas. Isso sem falar nas piadas sobre judaísmo que não funcionam mais e no roteiro preguiçoso que tenta se sustentar nessa nostalgia/romantismo batido da Era de Ouro de Hollywood (também não funcionou pros Coen esse ano). Nem a fotografia se salva, já que tudo é tão plástico e exageradamente amarelado que na metade do filme eu já não aguentava mais. Woody, meu véio, it's been a long time. Saudade Judy Davis em Husbands and Wives: neurose at its finest.
Uma das poucas coisas que me confortam nessa vida é saber que ainda tenho uma dezena de filmes do Rohmer pra assistir nos próximos anos – por isso o faço assim, sem pressa, saboreando em doses homeopáticas o minimalismo de seus filmes. A última surpresa – e das boas – foi Full Moon in Paris, da série “Comédias e Provérbios", onde temos uma das heroínas mais multidimensionais e interessantes do diretor, talvez a melhor delas: Louise. Aliás, um parêntese, alguém precisa escrever sobre como as mulheres rohmerianas são tão bem construídas: Laura (Béatrice Romand) em Le Genou de Claire, Delphine (Marie Rivière) em Le Rayon Vert, Pauline (Amanda Langlet) em Pauline à la Plage e agora Louise (Pascale Ogier) em Nuits de la pleine lune. É de um frescor sem igual se deixar envolver pelos diálogos e dilemas dessas personagens, tão palpáveis e tão mundanos (quando não muito pequeno-burgueses), que qualquer um de nós poderia ter.
Louise é dessas personagens francesas que parecem ter sido a fonte de inspiração para o cinema do Woody Allen: jovem, com potencial criativo, assertiva e independente, mas nunca satisfeita e de alguma forma perdida nos embaraços do amor. Octave (Fabrice Luchini, maravilhoso), seu amigo-confidente e que vai protagonizar os diálogos mais sagazes do filme, a descreve bem: “Você dá a impressão de viver no mundo da lua, mas, na verdade, é concreta, prática e realista.”. Louise acabou de se formar em Belas Artes e está num relacionamento sufocante que não tem funcionado porque seu namorado, o possessivo Remi, gosta de passar a noite em casa enquanto ela, jovem e extrovertida, gosta de sair à noite em busca de excitação. Para superar esse entrave, ela propõe uma alternativa inesperada: viver em casas separadas alguns dias da semana para “reduzir os danos” das incompatibilidades entre os dois, dando-lhes mais autonomia e espaço – preservando, com isso, o relacionamento. Como essa mudança na rotina se desdobrará na vida de todos é o que vai dar combustão à narrativa.
Destaco o contraste da monotonia melancólica do subúrbio, com apartamentos cinza e quadros do Mondrian que sugerem ordem e harmonia, e a efervescência notívaga do centro parisiense, que parece mover nossa protagonista. Aliás, todas as definições de festinhas-no-apê foram zeradas com esse filme. A linguagem corporal dos atores e figurantes e os passinhos oitentistas em duas cenas são simplesmente impagáveis. Uma digressão: preciso desabafar que fiquei profundamente nostálgico e terrivelmente frustrado com nossa geração de amores líquidos e voláteis, festinhas entediantes, carões e swipes em aplicativos. A aventura, a química e o deleite irresistível que é avistar alguém offline e paquerar deram lugar ao comodismo da praticidade.
“O ar do campo é bom, mas pesa. Preciso estar no ‘centro’. De um país, de uma cidade que é como o centro do mundo. Certa vez fui professor em Orleans. Podia ter morado lá mesmo, mas gastava uma hora de trem para voltar a Paris toda noite. E por quê? Geralmente eu lia ou escutava o rádio. Voltava só para escutar música! Mas sabia que na rua havia cinemas, restaurantes, mulheres incríveis. Mil oportunidades. Tudo estava lá, disponível. Sabia que só precisava descer.”.
Com esperada maestria, Rohmer trabalha a ideia de que o amor não pode ser domesticado ou adestrado, mas não é desonesto com certezas absolutas e nem nos ilude com soluções idealizadas e romantizadas para suas personagens. Louise deseja amar e ser amada, mas quer continuar livre. Consciente ou inconscientemente, é o que todos desejamos, embora saibamos que a aplicabilidade desse desejo é qualquer coisa, menos fácil. As personagens rohmerianas são inteligentes, mas vítimas dos seus próprios medos, dúvidas, contradições e inseguranças, porque humanas e, portanto, falíveis. “Quero amá-lo e ficar com ele. O que me impede é que ele me ama demais. E, automaticamente, eu o amo de menos.”: quem nunca esteve em um dos dois lados desse drama?
Uma maravilha charmosa de filme sobre um tema inesgotável: relacionamentos e suas disfuncionalidades. Tragicômico como é a vida – por isso bem-aventurados aqueles que chegam ao fim das suas carregando consigo decepções e triunfos. Não importa a proporção, ao menos tentaram.
*Uma curiosidade triste: Pascale Ogier morreu de ataque cardíaco na véspera do seu aniversário de 26 anos, pouco tempo depois de ter sido premiada como Melhor Atriz no Festival de Veneza por esse papel. Jim Jarmusch homenageou a atriz dedicando um dos seus melhores filmes, Down by Law, a ela. Respect.
Imagine uma transa entre Uma Mulher sob Influência do Cassavetes e Repulsa ao Sexo do Polanski. É o badalado longa de estreia do Trey Edward Shults. Ainda que deva muito à Gena Rowlands, Krisha Fairchild é um trem descarrilhando. Uma bomba de ansiedade prestes a explodir a qualquer momento. Poucos minutos em cena e o espectador já pressente que algo vai acontecer.
Aliado a isso, Shults faz muito bom uso da trilha e da câmera - sempre angustiantes e repetitivas, que dão o tom sufocante do filme, embora se exceda um pouco ao tentar evocar o clima de paranoia e desastre iminente com o insistente uso de zoom in e zoom out.
Mas isso é detalhe porque o diretor consegue criar um naturalismo surpreendente, já que a fórmula family drama + dinner went wrong tem sempre a chance de cair numa teatralidade caricata desgastada. Shults parece saber que nada pode ser tão intimidador e opressor quanto uma noite de Ação de Graças se você é a ovelha negra da família, que sempre fodeu tudo e nunca conquistou nada e precisa conviver com os sorrisos amarelos dos vitoriosos e os olhares condescendentes que dizem "beberrona, derrotada, você é um caso perdido".
Excessos à parte, um bom filme sobre deslocamento, o peso das nossas escolhas, que podem ser irreversíveis, mas, sobretudo, um retrato duro de como família nem sempre é sinônimo de acalento.
Alguma coisa deu muito errado no meio do caminho e a mão dos Coen pesou mais do que deveria, resultando no filme mais insípido dos caras desde The Ladykillers. O único deleite dessa sátira capenga sobre Hollywood são os cenários e a Tilda Swinton pronunciando "On Wings as Eagles" com ar de mistério. Maps to The Stars do Cronenberg é infinitamente melhor.
"O amor que não ousa falar o seu nome, neste século, é como um grande carinho entre um homem mais velho e um mais novo, como o que havia entre David e Jonathan, como naquele o qual Platão baseou sua filosofia, e como o que pode-se encontrar nos sonetos de Michelangelo e Shakespeare. Ele é, neste século, incompreendido, tão incompreendido que pode ser descrito como o amor que não ousa falar seu nome. E, por conta disso, estou onde estou agora. É lindo. É refinado. É a forma mais nobre de afeto. Não há nada de antinatural. É intelectual e se dá repetidamente entre um homem mais velho e um mais jovem quando o mais velho tem intelecto e o mais jovem tem toda a alegria, a esperança e a beleza da vida diante dele. Deveria ser assim, o mundo não o compreende. O mundo o ridiculariza e, às vezes, coloca alguém no pelourinho por causa dele."
Não sei o que pensar sobre esse filme. Talvez seja 2deep4me num primeiro momento, mas suas imagens de desolação já estão cravadas em mim pra sempre. O olhar assombrado do protagonista - que é também o nosso olhar - ao presenciar o caos e ver tudo desmoronar ao seu redor é algo que não dá pra descrever. Béla Tarr consegue capturar toda a angústia e melancolia do mundo e despejar, letargicamente, em cada frame, em cada plano justificadamente longo e gélido de sua obra. Desses filmes que parecem justificar a existência do cinema.
Rod Steiger, veterano do cinema estadunidense, que atuou ao lado do Marlon Brando em Sindicato de Ladrões, interpreta um tenente homossexual que cai num espiral de desejo e obsessão por um soldado do seu quartel, interpretado por John Phillip Law (o anjo de Barbarella).
The Sergeant (Na Solidão do Desejo) é um filme com tudo a seu favor: elenco de peso, trama que podia ter sido escrita pelo Tennessee Williams; fotografia e sets realçando a tensão sufocante de desejo com a atmosfera desoladora do pós-guerra; período que marcou o fim do Hays Code (1968), o que simbolizaria, a partir dali, dentre outras coisas, liberdade autoral na representação de personagens homossexuais no cinema sem a necessidade de eufemismos e subtextos.
No entanto, um potencial desperdiçado. A atuação irretocável do Steiger em sua batalha interna é quase inteiramente prejudicada pela personalidade antipática, austera e beberrona de seu personagem, do qual não se sente empatia, mas pena. Sua rigidez vai se transformando gradativamente em ações infantis, exageradas e constrangedoras (algumas cenas são sofríveis), mesmo mantendo uma certa coerência, pois tudo era fruto da repressão dos seus desejos mais íntimos durante toda uma vida dedicada ao exército.
Além disso, dois aspectos bastante incômodos, naturalizados na era Hays e que infelizmente permaneceram no filme: associação, indireta ou não, entre desejo homossexual e alguma espécie de trauma (neste caso, os horrores da guerra); e desfecho drástico, afinal nada mais indigno que um honrado tenente revelar-se gay em rompantes públicos e melodramáticos de desespero.
Apesar dos pesares, um clássico, pois marca uma transição importante no retrato do homossexual no cinema. Traz duas cenas muito marcantes: esse beijo e uma alusão fálica das mais indecentes que já vi na vida. Uma pena que falte um toque de Blanche DuBois na loucura e decadência que tomam conta do protagonista. Tornaria o filme muito mais proveitoso.
Como não conhecia esse Pasolini mítico? Puro êxtase visual, lembrando bastante o Parajanov nos cenários e figurinos. Maria Callas exuberante em seu único papel no cinema, a terrível, passional e impenetrável Medéia de Eurípides, a quem empresta dignamente seus olhares fatais. Quem mais esperou ela cantar Madama Butterfly no final? <3
Enquanto fã confesso (sim) do Noé: que decepção do caralho. Ô filmezinho sobre amour fou autocentrado, preguiçoso e esquemático. Cenas de sexo bonitas demais, bem orquestradas demais, sensuais demais (parecem versões estendidas do maravilhoso Carne Trémula). Que protagonista detestável. Quanta forçação de barra. Too much Erik Satie. Um desfile de frases de efeito. Repetitivas conversas sobre o quão disfuncionais são os relacionamentos. Que todos somos menos liberais do que aparentamos. Que experimentar não vale quando a mulher está curtindo mais que você. Nada de novo sob o sol. Quase não sobrevivi ao constrangimento que foi aquele diálogo sobre amor e o significado da vida no parque ao som de Gnossienne No. 3? Uma estrelinha e meia por Bobby Beausoleil (Lucifer Rising!) e John Frusciante na trilha e pela cena do clube de swing. Porque sobre amor e sexo, Love não adiciona em nada. Triste.
Creepy
3.1 69 Assista AgoraComo o Kiyoshi Kurosawa, que dirigiu meu filme de terror predileto dos anos 2000, Kairo, uma alegoria fantasmagórica sobre a solidão nos nossos tempos, pode ter dirigido uma porcaria dessas? Pense num thriller investigativo onde absolutamente nada funciona. Um puta desperdício de mise-en-scène e habilidade diretiva, numa trama irregular e repleta de furos no roteiro, com personagens estúpidos, sem motivações aparentes, cometendo erros primários o tempo inteiro. Duas horas que parecem cinco numa empreitada que só me deu alguma satisfação nos dez minutos finais, quando já era tarde demais. Primeira grande decepção de 2017.
A Criada
4.4 1,3K Assista AgoraMagritte criando vida na tela. Que filmão da PORRA!
Monika e o Desejo
4.0 120 Assista AgoraAinda hipnotizado pela beleza da Harriet Andersson nesse conto agridoce de amour fou inesperadamente realista do Bergman, recheado de cenários idílicos e um erotismo extremamente vivaz e pulsante, que dão um tom libertário ao filme (ao menos até os dissabores da vida adulta aparecerem). Embora não goze de privilégios e nem comungue de dilemas pequeno-burgueses (o oposto disso, na verdade), Monika é a personagem mais rohmeriana do Bergman: sua inconsequência juvenil, sua malícia e sua implacável vontade de viver e ser amada/desejada a tornam uma fonte inesgotável de carisma. E as lentes do Gunnar Fischer não permitem que sua inocência perdida nos escape aos olhos e aos sentidos por um momento sequer. Numa das cenas mais bonitas de que me recordo (e o filme está repleto delas, acredite), Monika foge tresloucada e aos tropeços pela floresta, faminta e com um pedaço de carne na mão, tentando encontrar seu jovem amante após um furto que deu errado. Tudo isso acompanhado pela câmera num jogo gracioso de luz e movimento. Um quadro vivo em esplendoroso preto e branco. Filme lindo e melancólico, sobre paixão, escolhas, amadurecimento e impermanência. Aliás, o quanto o cinema francês absorveu desse filme do diretor sueco não dá mesmo pra mensurar. Um pequeno tesouro.
O Ornitólogo
3.5 84João Pedro Rodrigues não decepciona, mesmo com as expectativas lá nas alturas. O Ornitólogo é maravilhoso a cada minuto, principalmente no terço final, quando o filme supera a beleza do protagonista e das locações e mergulha no simbolismo. Me lembrou muito o cinema do Derek Jarman, não somente pelas referências iconoclastas (São Sebastião, A incredulidade de São Tomé do Caravaggio, etc), mas pela verve poética e autoral do diretor. Lindo.
Que Viva Eisenstein! - 10 Dias que Abalaram o México
3.5 16O amor como impulso artístico. Meio piegas, mas foi por essa razão que gostei tanto desse Greenaway, que deveria constar em todas as listas de filmes queer de 2016, não por ser tão fálico, mas pela honestidade desconcertante de várias cenas, sobretudo quando o protagonista encontra afirmação através da própria sexualidade. Filmão com alguns momentos antológicos que merece ser visto também pela montagem frenética, pela entrega corporal dos atores e acima de tudo pela visão pouco ortodoxa do diretor sobre um dos verdadeiros pais do cinema (o filme deveria se chamar: Que Viva Eisenstein! - Um Filme que Abalou a Rússia Homofóbica). Só essa cena do Eisenstein e seu amante Palomino dialogando no cemitério vale toda a empreitada:
Cañedo: Não o surpreende que passemos tanto tempo fazendo gente morrer em filmes?
Eisenstein: Todos os atores, mais cedo ou mais tarde, de preferência mais cedo, de cinema e teatro em todo o mundo, são solicitados a foder ou morrer. Hamlet, Otelo, Macbeth, Julieta, Madame Butterfly, Joana D'Arc, Yevgeniy 0negin, Cleópatra, Júlio César, Savonarola, Helena de Troia, Ivan o Terrível.
Cañedo: Nós lhe permitimos que mostrem pessoas fodendo e morrendo. Sabemos que não estão. Você também sabe. E sabemos que você sabe que nós sabemos que não estão.
Eisenstein: Tudo para provar que vivemos duas vezes. Primeiro como afirmação, depois como um desafio à própria morte. A voluntária e indispensável suspensão da descrença. Na Rússia de hoje a morte chega bêbeda, toda amarfanhada, e sem roupas íntimas, porque lá ninguém tem dinheiro para isso. Veste uma camisa branca usada, sem colarinho e com punhos sujos. A morte na Rússia é um evento desagradável no fim da vida. Aqui no México, ela chega de olhos resplandecentes, risonha, totalmente sóbria, dando início à sua maior aventura, distribuindo beijos. Sua cabeça, seu coração e seu pau levantados. Sexo e morte, as duas únicas coisas inegociáveis: Eros e Thanatos.
O Lamento
3.9 431 Assista AgoraNão tem o que discutir: o terror pertence ao cinema asiático. Há anos não vejo um thriller tão sinistro, cuidadoso e envolvente, cheio de simbolismos e reviravoltas, como esse O Lamento, me lembrando muito a sofisticação e atmosfera do Memórias de Um Assassino, do Bong Joon-ho. Caralho, esses coreanos não tem pra ninguém. Filmão da porra! Vejam antes de 2016 acabar pra encerrar o ano com uma obra-prima do gênero.
Um Cadáver para Sobreviver
3.5 936 Assista AgoraIf you don't know Jurassic Park, you don't know shit.
Visita ao Inferno
4.0 39 Assista AgoraSó mesmo o Herzog pra transformar o que poderia ser mais um documentário sobre vulcões nessa experiência mística e dantesca nos confins do mundo. A convergência entre imagens espetaculares da natureza, existencialismo e crenças ancestrais impressionam e já são marca no seu cinema. Da Islândia a Etiópia, em meio a nuvens piroclásticas, explosões retumbantes de lava e música clássica, Herzog parece estar mais preocupado com a experiência humana acima de tudo. No ponto alto do documentário, filmado na Coreia do Norte (e que por isso parece saído de um filme distópico dos anos 80), o diretor tenta extrair uma resposta pessoal sobre a relação entre o vulcão, religião e política de um dos guias coreanos e obtém, para sua frustração, apenas respostas vagas e programadas que revelam muito daquele país.
No fim, uma inevitável jornada espiritual pelos vulcões mais ativos do mundo, guiada por um cineasta sem limites. E o melhor: fresquinho na Netflix.
O Homem-Leopardo
3.6 23Caralho, como eu AMO Jacques Tourneur. Ninguém cria uma atmosfera de terror com tanta sugestão e elegância como esse homem. Essa luz, essas sombras, esses sons que irrompem o silêncio da noite trazendo consigo um perigo iminente. Maravilhoso, assim como em Sangue de Pantera e A Morta-Viva.
O Homem nas Trevas
3.7 1,9K Assista AgoraO filme todo esse misto de:
"que aflição do caralho vou morre" e
"nossa, mas esse sugar daddy hein, pai"
Você Não Está Sozinho
3.8 120Como esperado, fiquei apaixonado por esse draminha dinamarquês sobre rebeldia e descoberta na infância, Du Er Ikke Alene ("Você não está sozinho"), retratado do ponto de vista de adolescentes que vivem em um repressor internato no final dos anos 70. Poucos filmes coming-of-age (com viés queer ou não) conseguiram retratar com tanto lirismo e, ao mesmo tempo, bravura o desabrochar para a vida e para o amor como esse filme. Só consigo pensar em duas obras que conseguiram tal proeza: o francês Les amitiés particulières (1964) e o alemão Noordzee, Texas (2011). Em paralelo, também pensei em Le souffle au cœur (1971) e Stand By Me (1986).
Pena que o filme encontre tanta resistência em certos públicos até hoje, que o encaram como controverso por tratar, sem muitas reservas, do primeiro amor gay entre dois infantes. Sobre esse falso tabu é interessante observar como os conflitos do filme residem muito mais no choque entre a visão moralista dos professores da bucólica cidade versus os ideais revolucionários e a ebulição hormonal dos alunos (lembrando muito Dazed and Confused) do que na paixonite juvenil ainda ambivalente entre os dois protagonistas, tratada com uma inesquecível naturalidade. Tanto que as cenas de afeto entre os dois, apesar de chocantes para alguns, são completamente naturais para quem vivenciou o rito de passagem da infância para a adolescência sem muitos traumas: a repressão paterna, a curiosidade da descoberta, a linha tênue entre a inocência e o desejo, os toques sem malícia, a vontade de estar junto. Quem nunca falou de masturbação com um amiguinho do colégio? Uma pena que ainda vivamos em tempos tão sombrios onde se censure tanto esta fase e um filme tão bonito como esse precise de alcunhas como “provocador” e “liberal”.
Muito mais do que um romancezinho gay, fica aí a dica para quem quer ver um conto extraordinário sobre amizade, companheirismo e teenage angst. A cena final é de uma coragem e de uma beleza tão espantosas que passados quase 40 anos poucos diretores teriam a audácia de filmá-la.
À La Recherche du Paradis Perdu
3.7 3Em um relacionamento sério com esse documentário, À la recherche du paradis perdu: Vivre Nu (algo como “Em Busca do Paraíso Perdido: Viver nu”), do Robert Salis, sobre os modos de vida naturistas francês e alemão. As paisagens arcadianas, ensolaradas e idílicas do Sul da França e a poesia dos corpos em sintonia com a trilha transformam esse filme num misto de Eric Rohmer e Henry Scott Tuke. Só por isso, as suas quase duas horas valeriam a pena, mas o diretor vai bem além: sem proselitismo e munido de depoimentos diversos e um rico acervo visual e histórico (1939--1993), ele desmistifica uma série de pré-conceitos sobre o naturismo e mostra como sua prática ainda é pouco compreendida enquanto filosofia e estilo de vida ao tempo que ganha cada vez mais adeptos e defensores ao redor do mundo.
Muito se pensa dos retiros naturistas como espaços para neo-hippies aplaudirem o sol, abraçar árvores e invocar Gaia ao luar, ou para gente rica e entediada dar vasão às suas extravagâncias sem o julgamento alheio, ou - e talvez o mais comum - como antros de libertinagem para pessoas em busca de explorar os seus lados kinky-hedonistas. Salis desconstrói essa visão caricata e mostra como retiros naturistas são espaços democráticos (respeitadas as suas variedades: retiros, praias, resorts, etc) destinados para pessoas e famílias que simplesmente desejam vivenciar a nudez de forma coletiva e com espontaneidade, independente de classe, sexo, religião ou qualquer máscara social.
Mostra, com isso, a ubiquidade do dogmatismo cristão, tão forte em nossa cultura que somos doutrinados desde cedo a enxergar a nudez como algo ofensivo, associando-a sumariamente à pornografia e ao sexo, através de uma erotização compulsória do corpo, quando, na verdade, tudo não passa de uma enraizada convenção social sustentada pelo moralismo, pelo bodyshaming, pela culpa, pelo medo da própria sexualidade e pela ignorância.
O que acho fascinante sobre esse documentário é que ele consegue, através da diversidade e seriedade dos seus depoimentos e sem a catequização do espectador, transmitir o naturismo como um potencializador de nossas liberdades porque apoiado em uma filosofia de harmonia com a natureza, de autoaceitação, de tolerância, de bem-estar e de respeito. Diferentemente da selva de pedra, nesses espaços não há ansiedade para atender expectativas sociais exasperantes e padrões de beleza inatingíveis. Não existe competição por status ou poder. Não existe o conceito de “beach body” ou a glamourização do corpo jovem/esbelto acompanhada da ojeriza ao corpo velho/flácido dos mais idosos. Não existe a ideia de posse do homem sobre o corpo da mulher. É quase um estado-utópico. A verdadeira Arcádia. Com corpos sendo livres, sem vergonha ou pudor. E não há nada mais belo e natural que isso.
Encerro com uma frase dita no doc que achei genial e que atesta a não romantização do assunto: “Uma multidão de pessoas despidas pode ser tão entediante quanto uma multidão de pessoas vestidas”.
Café Society
3.3 530 Assista AgoraProtelei horrores. Deveria ter protelado mais. Primeiro filme do Woody que me custou chegar até o fim. Li comentários positivos dizendo que o diretor tinha "voltado à velha forma" e fui esperando um Deconstructing Harry ou Radio Days, mas o resultado é terrível: personagens insuportáveis e sem carisma algum! O que já era de se esperar com essa escolha grotesca de elenco que nem a Blake Lively e a Parker Posey conseguiram salvar. Maior miscasting do ano´, sem dúvidas. Isso sem falar nas piadas sobre judaísmo que não funcionam mais e no roteiro preguiçoso que tenta se sustentar nessa nostalgia/romantismo batido da Era de Ouro de Hollywood (também não funcionou pros Coen esse ano). Nem a fotografia se salva, já que tudo é tão plástico e exageradamente amarelado que na metade do filme eu já não aguentava mais. Woody, meu véio, it's been a long time. Saudade Judy Davis em Husbands and Wives: neurose at its finest.
Noites de Lua Cheia
4.0 35Uma das poucas coisas que me confortam nessa vida é saber que ainda tenho uma dezena de filmes do Rohmer pra assistir nos próximos anos – por isso o faço assim, sem pressa, saboreando em doses homeopáticas o minimalismo de seus filmes. A última surpresa – e das boas – foi Full Moon in Paris, da série “Comédias e Provérbios", onde temos uma das heroínas mais multidimensionais e interessantes do diretor, talvez a melhor delas: Louise. Aliás, um parêntese, alguém precisa escrever sobre como as mulheres rohmerianas são tão bem construídas: Laura (Béatrice Romand) em Le Genou de Claire, Delphine (Marie Rivière) em Le Rayon Vert, Pauline (Amanda Langlet) em Pauline à la Plage e agora Louise (Pascale Ogier) em Nuits de la pleine lune. É de um frescor sem igual se deixar envolver pelos diálogos e dilemas dessas personagens, tão palpáveis e tão mundanos (quando não muito pequeno-burgueses), que qualquer um de nós poderia ter.
Louise é dessas personagens francesas que parecem ter sido a fonte de inspiração para o cinema do Woody Allen: jovem, com potencial criativo, assertiva e independente, mas nunca satisfeita e de alguma forma perdida nos embaraços do amor. Octave (Fabrice Luchini, maravilhoso), seu amigo-confidente e que vai protagonizar os diálogos mais sagazes do filme, a descreve bem: “Você dá a impressão de viver no mundo da lua, mas, na verdade, é concreta, prática e realista.”. Louise acabou de se formar em Belas Artes e está num relacionamento sufocante que não tem funcionado porque seu namorado, o possessivo Remi, gosta de passar a noite em casa enquanto ela, jovem e extrovertida, gosta de sair à noite em busca de excitação. Para superar esse entrave, ela propõe uma alternativa inesperada: viver em casas separadas alguns dias da semana para “reduzir os danos” das incompatibilidades entre os dois, dando-lhes mais autonomia e espaço – preservando, com isso, o relacionamento. Como essa mudança na rotina se desdobrará na vida de todos é o que vai dar combustão à narrativa.
Destaco o contraste da monotonia melancólica do subúrbio, com apartamentos cinza e quadros do Mondrian que sugerem ordem e harmonia, e a efervescência notívaga do centro parisiense, que parece mover nossa protagonista. Aliás, todas as definições de festinhas-no-apê foram zeradas com esse filme. A linguagem corporal dos atores e figurantes e os passinhos oitentistas em duas cenas são simplesmente impagáveis. Uma digressão: preciso desabafar que fiquei profundamente nostálgico e terrivelmente frustrado com nossa geração de amores líquidos e voláteis, festinhas entediantes, carões e swipes em aplicativos. A aventura, a química e o deleite irresistível que é avistar alguém offline e paquerar deram lugar ao comodismo da praticidade.
“O ar do campo é bom, mas pesa. Preciso estar no ‘centro’. De um país, de uma cidade que é como o centro do mundo. Certa vez fui professor em Orleans. Podia ter morado lá mesmo, mas gastava uma hora de trem para voltar a Paris toda noite. E por quê? Geralmente eu lia ou escutava o rádio. Voltava só para escutar música! Mas sabia que na rua havia cinemas, restaurantes, mulheres incríveis. Mil oportunidades. Tudo estava lá, disponível. Sabia que só precisava descer.”.
Com esperada maestria, Rohmer trabalha a ideia de que o amor não pode ser domesticado ou adestrado, mas não é desonesto com certezas absolutas e nem nos ilude com soluções idealizadas e romantizadas para suas personagens. Louise deseja amar e ser amada, mas quer continuar livre. Consciente ou inconscientemente, é o que todos desejamos, embora saibamos que a aplicabilidade desse desejo é qualquer coisa, menos fácil. As personagens rohmerianas são inteligentes, mas vítimas dos seus próprios medos, dúvidas, contradições e inseguranças, porque humanas e, portanto, falíveis. “Quero amá-lo e ficar com ele. O que me impede é que ele me ama demais. E, automaticamente, eu o amo de menos.”: quem nunca esteve em um dos dois lados desse drama?
Uma maravilha charmosa de filme sobre um tema inesgotável: relacionamentos e suas disfuncionalidades. Tragicômico como é a vida – por isso bem-aventurados aqueles que chegam ao fim das suas carregando consigo decepções e triunfos. Não importa a proporção, ao menos tentaram.
*Uma curiosidade triste: Pascale Ogier morreu de ataque cardíaco na véspera do seu aniversário de 26 anos, pouco tempo depois de ter sido premiada como Melhor Atriz no Festival de Veneza por esse papel. Jim Jarmusch homenageou a atriz dedicando um dos seus melhores filmes, Down by Law, a ela. Respect.
Krisha
3.7 83Imagine uma transa entre Uma Mulher sob Influência do Cassavetes e Repulsa ao Sexo do Polanski. É o badalado longa de estreia do Trey Edward Shults. Ainda que deva muito à Gena Rowlands, Krisha Fairchild é um trem descarrilhando. Uma bomba de ansiedade prestes a explodir a qualquer momento. Poucos minutos em cena e o espectador já pressente que algo vai acontecer.
Aliado a isso, Shults faz muito bom uso da trilha e da câmera - sempre angustiantes e repetitivas, que dão o tom sufocante do filme, embora se exceda um pouco ao tentar evocar o clima de paranoia e desastre iminente com o insistente uso de zoom in e zoom out.
Mas isso é detalhe porque o diretor consegue criar um naturalismo surpreendente, já que a fórmula family drama + dinner went wrong tem sempre a chance de cair numa teatralidade caricata desgastada. Shults parece saber que nada pode ser tão intimidador e opressor quanto uma noite de Ação de Graças se você é a ovelha negra da família, que sempre fodeu tudo e nunca conquistou nada e precisa conviver com os sorrisos amarelos dos vitoriosos e os olhares condescendentes que dizem "beberrona, derrotada, você é um caso perdido".
Excessos à parte, um bom filme sobre deslocamento, o peso das nossas escolhas, que podem ser irreversíveis, mas, sobretudo, um retrato duro de como família nem sempre é sinônimo de acalento.
Demônio de Neon
3.2 1,2K Assista AgoraJá tem a Bande originale du film no Spotify. Te amo, Cliff Martinez.
O Ornitólogo
3.5 84Preciso disso em minha vida!
Ave, César!
3.2 311 Assista AgoraAlguma coisa deu muito errado no meio do caminho e a mão dos Coen pesou mais do que deveria, resultando no filme mais insípido dos caras desde The Ladykillers. O único deleite dessa sátira capenga sobre Hollywood são os cenários e a Tilda Swinton pronunciando "On Wings as Eagles" com ar de mistério. Maps to The Stars do Cronenberg é infinitamente melhor.
Wilde – O Primeiro Homem Moderno
3.7 91"O amor que não ousa falar o seu nome, neste século, é como um grande carinho entre um homem mais velho e um mais novo, como o que havia entre David e Jonathan, como naquele o qual Platão baseou sua filosofia, e como o que pode-se encontrar nos sonetos de Michelangelo e Shakespeare. Ele é, neste século, incompreendido, tão incompreendido que pode ser descrito como o amor que não ousa falar seu nome. E, por conta disso, estou onde estou agora. É lindo. É refinado. É a forma mais nobre de afeto. Não há nada de antinatural. É intelectual e se dá repetidamente entre um homem mais velho e um mais jovem quando o mais velho tem intelecto e o mais jovem tem toda a alegria, a esperança e a beleza da vida diante dele. Deveria ser assim, o mundo não o compreende. O mundo o ridiculariza e, às vezes, coloca alguém no pelourinho por causa dele."
As Harmonias de Werckmeister
4.3 94Não sei o que pensar sobre esse filme. Talvez seja 2deep4me num primeiro momento, mas suas imagens de desolação já estão cravadas em mim pra sempre. O olhar assombrado do protagonista - que é também o nosso olhar - ao presenciar o caos e ver tudo desmoronar ao seu redor é algo que não dá pra descrever. Béla Tarr consegue capturar toda a angústia e melancolia do mundo e despejar, letargicamente, em cada frame, em cada plano justificadamente longo e gélido de sua obra. Desses filmes que parecem justificar a existência do cinema.
Na Solidão do Desejo
3.8 5Rod Steiger, veterano do cinema estadunidense, que atuou ao lado do Marlon Brando em Sindicato de Ladrões, interpreta um tenente homossexual que cai num espiral de desejo e obsessão por um soldado do seu quartel, interpretado por John Phillip Law (o anjo de Barbarella).
The Sergeant (Na Solidão do Desejo) é um filme com tudo a seu favor: elenco de peso, trama que podia ter sido escrita pelo Tennessee Williams; fotografia e sets realçando a tensão sufocante de desejo com a atmosfera desoladora do pós-guerra; período que marcou o fim do Hays Code (1968), o que simbolizaria, a partir dali, dentre outras coisas, liberdade autoral na representação de personagens homossexuais no cinema sem a necessidade de eufemismos e subtextos.
No entanto, um potencial desperdiçado. A atuação irretocável do Steiger em sua batalha interna é quase inteiramente prejudicada pela personalidade antipática, austera e beberrona de seu personagem, do qual não se sente empatia, mas pena. Sua rigidez vai se transformando gradativamente em ações infantis, exageradas e constrangedoras (algumas cenas são sofríveis), mesmo mantendo uma certa coerência, pois tudo era fruto da repressão dos seus desejos mais íntimos durante toda uma vida dedicada ao exército.
Além disso, dois aspectos bastante incômodos, naturalizados na era Hays e que infelizmente permaneceram no filme: associação, indireta ou não, entre desejo homossexual e alguma espécie de trauma (neste caso, os horrores da guerra); e desfecho drástico, afinal nada mais indigno que um honrado tenente revelar-se gay em rompantes públicos e melodramáticos de desespero.
Apesar dos pesares, um clássico, pois marca uma transição importante no retrato do homossexual no cinema. Traz duas cenas muito marcantes: esse beijo e uma alusão fálica das mais indecentes que já vi na vida. Uma pena que falte um toque de Blanche DuBois na loucura e decadência que tomam conta do protagonista. Tornaria o filme muito mais proveitoso.
O Importante é Amar
4.0 34"A solidão é a higiene da alma."
Medéia, A Feiticeira do Amor
3.7 40Como não conhecia esse Pasolini mítico? Puro êxtase visual, lembrando bastante o Parajanov nos cenários e figurinos. Maria Callas exuberante em seu único papel no cinema, a terrível, passional e impenetrável Medéia de Eurípides, a quem empresta dignamente seus olhares fatais. Quem mais esperou ela cantar Madama Butterfly no final? <3
Love
3.5 882 Assista AgoraEnquanto fã confesso (sim) do Noé: que decepção do caralho. Ô filmezinho sobre amour fou autocentrado, preguiçoso e esquemático. Cenas de sexo bonitas demais, bem orquestradas demais, sensuais demais (parecem versões estendidas do maravilhoso Carne Trémula). Que protagonista detestável. Quanta forçação de barra. Too much Erik Satie. Um desfile de frases de efeito. Repetitivas conversas sobre o quão disfuncionais são os relacionamentos. Que todos somos menos liberais do que aparentamos. Que experimentar não vale quando a mulher está curtindo mais que você. Nada de novo sob o sol. Quase não sobrevivi ao constrangimento que foi aquele diálogo sobre amor e o significado da vida no parque ao som de Gnossienne No. 3?
Uma estrelinha e meia por Bobby Beausoleil (Lucifer Rising!) e John Frusciante na trilha e pela cena do clube de swing. Porque sobre amor e sexo, Love não adiciona em nada.
Triste.