O grande barato de LAND OF PLENTY é retratar a angústia e a paranoia (sem perder o bom humor) dos Estados Unidos pós 11 de setembro. John Diehl interpreta Paul, um ex-sargento sobrevivente da guerra do Vietnã que dedica as 24 horas de seu dia a patrulhar a cidade de Los Angeles (cinzenta, empoeirada e triste) como se ainda servisse ao exército - e a grande sacada do filme é jamais deixar claro o grau de insanidade do personagem: ele de fato registra num gravador suas informações para alguém ou simplesmente não aguenta a solidão oriunda do "milagre" que o salvara numa queda de helicóptero? Lana, vivida com delicadeza por Michelle Williams, é responsável pelas principais reflexões sobre a condição humana - o diálogo em que ela relata a comemoração de "pessoas comuns, não terroristas" quando ainda vivia no Oriente Médio, no momento em que viram pela televisão os aviões sequestrados colidirem com as torres gêmeas, é de uma sutileza calculada e muito profunda. Wim Wenders procura imprimir uma sensação de urgência e angústia com seus planos instáveis, e a montagem faz um belo trabalho ao intercalar as ações de Lana e seu tio Paul, até o momento em que se juntam de vez, no terceiro ato. LAND OF PLENTY pode não ser o filme mais inspirado de Wim Wenders, mas certamente é um reflexo duro e legítimo de uma época.
Anna Muylaert sabe perfeitamente a história que quer contar e consegue, através de seus planos calculados, conduzir os personagens em favor de uma visão de mundo admirável, tudo sem jamais perder a leveza. A montagem de Karen Harley para QUE HORAS ELA VOLTA? ratifica a opção estética da direção ao manter pelos segundos necessários alguns planos estáticos, próprios para a reflexão. Com um trabalho corporal/gestual incrível, Regina Casé se inspira numa parcela grande das mulheres brasileiras para compor sua doce Val, dona de mil contradições e muito afeto. A composição desta personagem levanta muitas discussões, e não duvido de que o filme será capaz de fazer muitas pessoas compreenderem que nem sempre nossos pais fazem o melhor pelos filhos, mas às vezes precisam fazer o necessário. Outro grande acerto é a forte presença de Camila Márdila, que interpreta a cativante Jéssica: cativante pela rigidez em sua fala/postura, pela determinação de suas ações (muito bem pensadas) e pela leveza que só a juventude poderia lhe conceder. Sua entrada na trama, aliás, não só altera a lógica pela qual acompanhamos a história como também faz brilhar os excelentes personagens coadjuvantes, interpretados por nomes interessantíssimos como Lourenço Mutarelli (sempre característico em sua fala mansa e olhar calculado), Karine Teles (a mais caricata, porém importantíssima para estabelecer as relações de poder evidenciadas pelo filme) e Helena Albergaria (que sai diretamente dos filmes horroríficos de Juliana Rojas e Marco Dutra para se aventurar por outros gêneros). QUE HORAS ELA VOLTA? certamente é um dos filmes mais importantes lançados no Brasil nos últimos 25 anos.
Um filme que possui uma declaração tão forte quanto "eu morri aos oito anos de idade" não deve ser analisado com displicência. A FAMÍLIA DE ELIZABETH TEIXEIRA vai além de sua função enquanto extra de um filme, trazendo novos conflitos e novos-velhos personagens (impossível não ficar assustado ao constatar a crueldade e a sabedoria do tempo). Assim como o memorial de João Pedro Teixeira, parece que a épica narrativa de CABRA MARCADO PARA MORRER está em constante exaltação/expansão.
Talvez o grande mérito de CABRA MARCADO PARA MORRER seja o legado deixado por e para Eduardo Coutinho, enquanto diretor e ser humano, a partir de seu épico processo de produção/criação. Consequentemente, um legado para o cinema brasileiro e para o mundo da arte.
NOT QUITE HOLLYWOOD é o típico documentário que só possui olhos para o seu próprio objeto. E ainda por este motivo, tem sua estética inteiramente voltada para o tipo de assunto tratado. Entendo a relevância do projeto e a estratégia narrativa, mas confesso que o frame rate descontrolado, as split screens e o excesso de informação oriunda das vozes dos entrevistados me deixaram bem atordoado. Entre um filme e outro, sem quase respiro algum, conhecemos um pouco mais da proto-indústria cinematográfica australiana das décadas de 70 e 80 e somos bombardeados com histórias, polêmicas e confusões relatadas pelas vozes dos próprios profissionais e realizadores desses filmes. Gosto especialmente do momento "Dennis Hopper" e quando abordam as loucuras cometidas por Grant Page, um dos mais insanos dublês de todos os tempos. A paixão nas falas de Quentin Tarantino também é um ponto alto desta obra, que apesar de verborrágica jamais deixa de ser divertida e extremamente relevante. E só de ter como cenário de determinado entrevistado uma stripper praticando pole dance ao fundo já ganhou meu respeito!
Richard Linklater não era exatamente um garoto quando dirigiu DAZED AND CONFUSED. Aos 27 anos, o diretor muito provavelmente já havia passado da fase "jovem, louca e rebelde" característica dos adolescentes estadunidenses. Ainda assim, é uma grata surpresa chegar até o final deste filme e constatar que não há um pingo de moralismo ou hipocrisia. As presenças de Milla Jovovich, Adam Goldberg e Matthew McConaughey são incríveis, mas Wiley Wiggins é o grande responsável pela empatia que estabelecemos com as situações vividas pelos personagens. E mesmo um Ben Affleck irreconhecível (interpretando um personagem detestável) pode ser divertido no final das contas.
Os planos abertos concebidos por David Robert Mitchell e por seu diretor de fotografia Mike Gioulakis ratificam a singularidade de um projeto que vai na contramão da maioria dos filmes de horror produzidos nos Estados Unidos. Nada de sustos fáceis ou reviravoltas mirabolantes. Aqui, a preferência é estabelecer alguns códigos narrativos inusitados e seguí-los até o fim.
IT FOLLOWS é ambientado em Detroit, uma das cidades mais violentas do país, e seu plot é introduzido por uma bela sequência de abertura que nos apresenta parte das regras e o destino irremediável de quem acaba envolvido nessa história. Partindo deste ponto de vista, é admirável a maneira como o roteiro foi construído: apesar de alguns furos e pelo menos um personagem desnecessário, apresenta um arco dramático coeso e um final aberto e inteligente, que chega a extrapolar os conceitos de pessimismo e otimismo.
A direção de arte cuidadosa evita a localização do filme numa determinada época ao utilizar objetos de caráter anacrônico, o que de certa maneira ajuda a instaurar uma aura de instabilidade psicológica no grupo de adolescentes. Esta confusão, aliás, que ultrapassa os personagens e chega ao espectador, é reforçada pelas constantes elipses, que servem muito bem ao roteiro, cuja sacada é jamais fornecer um padrão que denuncie o tempo para que o vilão se aproxime, promovendo um constante clima de tensão que dura do primeiro ao último ato.
Em primeiro lugar, é preciso situar esta obra de Paul Morrissey no tempo. A década de 70 talvez tenha sido o período mais libertário e sexual do mundo moderno. Co-produção entre Estados Unidos, França e Itália, e rodado nos estúdios da Cinecittà, em Roma (um filme italiano, portanto), CARNE PARA FRANKENSTEIN é uma subversão erótica e gore da obra de Mary Shelley. A primeira cena com as crianças, os subtextos homoafetivos, a derradeira sequência final... todos os elementos deste filme convergem em tabus raramente discutidos pela sociedade.
Preciso enaltecer a forte presença de Nicoletta Elmi, que interpreta a filha dos barões. Já havia me deparado com ela em outras obras (BARÃO SANGUINÁRIO, de Mario Bava, PRELÚDIO PARA MATAR, de Dario Argento e DEMONS - FILHOS DAS TREVAS, de Lamberto Bava), e é impossível esquecer seu rosto e seu modo frio e aterrorizante ao interpretar suas personagens.
Overacting, sangue pastoso e vermelho demais, nudez, diálogos expositivos... tudo é intencionalmente exagerado e justificado. Estranho e fabuloso!
Como pode um diretor de um filme só conceber uma obra tão icônica como O MENSAGEIRO DO DIABO? Charles Laughton já era um ator consolidado quando resolveu se enveredar pela arte da direção, em 1955. A história de um missionário misógino que tortura psicologicamente duas crianças à procura de dez mil dólares poderia ter sido adaptada de diversas maneiras. Em determinado momento, ao ser atingido por um tiro de espingarda, o missionário solta um grito demoníaco, escancarando o aspecto fabulesco desta obra, característica fundamental para desvendarmos esta produção. A religiosidade, questionada e ao mesmo tempo reverenciada durante todo o filme, é só mais uma das peculiaridades de uma obra pouco vista, mas que merece todos os aplausos possíveis. Só de lembrar da tenebrosa canção entoada pela voz grave de Robert Mitchum já me dá calafrios.
Metalinguístico e sarcástico, PÂNICO escancara os clichês de pelo menos 20 anos de slasher movies e ri de si próprio a todo momento, sem jamais deixar de ser assustador por conta disso. Esta talvez seja a grande sacada de Wes Craven neste filme: não ignorar um passado (o próprio também, claro) bem sucedido e ao mesmo tempo jamais subestimar seu público.
Máscaras sempre me impressionaram, tanto do ponto de vista estético como metafórico. Em A MALDIÇÃO DO DEMÔNIO, Mario Bava se utiliza da metáfora ao conferir aos personagens uma dualidade fundamental à narrativa, e apesar de jamais enganar o espectador, coloca-o numa posição de temor para com a princesa Katia Vajda e seus defensores.
Com um roteiro (baseado num conto de Nikolai Gogol) que mistura conceitos de histórias de vampiros, zumbis e bruxas, Ennio De Concini e Mario Serandrei vão do século XVII ao XIX para retratar uma maldição demoníaca que atravessa gerações e estabelece regras e padrões muito bem definidos, como a ligação entre as personagens de Asa (a bruxa), Marsha (a princesa que morreu misteriosamente no século XVIII, retrata no quadro do castelo) e Katia, todas fisicamente idênticas. Barbara Steele certamente foi uma brilhante escolha para interpretar a mocinha e a vilã. Com sua beleza rígida e seus grandes olhos profundos, que ora transmitem pavor e desespero, ora ódio e sede por vingança, sua interpretação no terceiro ato é fundamental para transmitir credibilidade ao desfecho.
Mario Bava, como de costume, também assina como diretor de fotografia, e em conjunto ao belo trabalho realizado pela direção de arte e figurino imprime uma textura rugosa que reflete a história que está sendo contada.
As imagens que criamos, a partir do que Herzog nos proporciona enxergar, escutar e imaginar, vai muito além da arte concebida por seres humanos de mais de trinta mil anos atrás. A CAVERNA DOS SONHOS ESQUECIDOS nos transporta para além das nossas fronteiras; ou melhor dizendo, para o fundo de nossa própria alma. Discussões filosóficas sobre a gênesis da vida, o "propósito" da arte e muitos outros complexos devaneios vem à tona durante e após a sessão. Apesar do roteiro e da montagem terem me deixado confuso em alguns momentos, a narração poética de Herzog nos conduz sempre ao cerne da questão: a imensa capacidade do ser humano de encantar o outro.
O HOMEM IRRACIONAL figura no âmbito recente de "altos e baixos" da carreira de Woody Allen. Ser tão prolífico pode custar caro, e talvez os resultados obtidos pelo diretor nos últimos 15 anos - isto para não falar de sua carreira como um todo - nem sejam tão custosos assim.
Sua última empreitada coloca Joaquin Phoenix no centro de discussões envolvendo as diversas formas de se encarar a vida, tudo traduzido filosófica e superficialmente por uma narração em voice over. A razão pela qual coloco o filme na caixinha dos "baixos" está diretamente ligada ao tom indeciso da direção, que insiste em retratar alguns momentos pesados de forma leve, quando isto claramente não se mostra a melhor estratégia para o desenvolvimento da narrativa - e é só pegarmos como exemplo a irritante música-tema, que nos assombra do início ao fim, para enxergarmos tal equívoco.
Enquanto Emma Stone surge interpretando com pouco brilho uma personagem ainda menos interessante, cuspindo referências literárias sem o menor pudor, Phoenix mais uma vez entrega uma atuação calculada e sincera, física e psicologicamente dedicado a um papel que infelizmente é deixado de lado pelo roteiro, que abdica de seu caráter enquanto estudo de personagem para investir num sonolento plot de detetive. A reta final tenta empolgar, mas sofre demais com o decadente segundo ato.
De apuro técnico impressionante, OBRA dialoga com um pensamento existencialista, e deposita em seu protagonista todas as obrigações de ser o rei agente de si próprio. Subverte-se, entretanto, os aspectos fundamentais: Irandhir Santos interpreta um homem passivo, mas consciente de que essa passividade jamais o levará a algum lugar, o forçando a cometer pequenos atos ao longo de sua trajetória. A relação visual e temática representada pelas "colunas" do filme é a chave para desvendar quaisquer sentimentos vividos por ele. Comprovando o caráter existencialista do filme, são os poucos momentos de confronto que alavancam a narrativa, nos colocando diante de um dilema insolucionável: a maior satisfação de um ser humano se deve ao seu próprio legado?
Apesar do estranhamento inicial causado pela presença da câmera dentro do campo, o que me levou a questionar a metodologia utilizada por Eryk Rocha para realizar este documentário, CAMPO DE JOGO, além de belíssimo, provoca reflexões sobre a desigualdade social, a rivalidade hostil e a passividade diante de uma derrota - que pode ser atribuída não só ao perdedor da partida, mas às diversas perdas que inevitavelmente ocorrem na vida dessas pessoas. Interessante perceber como o design de som é fundamental para a narrativa, com todas as suas sobreposições, texturas e efeitos, dialogando com as imagens de forma a dar um novo sentido ao que estamos assistindo. Eryk Rocha faz de um campeonato de futebol um elegante exercício narrativo, com toques de drama, suspense e ação. Uma declaração de amor ao futebol e repúdio ao bundamolismo de um sistema esportivo em crise.
"- Filho, o que você quer ser quando crescer? - Eu quero ser grande!"
Esta era basicamente minha resposta corriqueira à familiar e recorrente pergunta.
QUERO SER GRANDE é um filme bastante representativo de uma época. E com isso não me limito ao período em que ele foi realizado, mas me refiro ao estado de espírito em que todos nós, adultos, um dia já deixamos pra trás (em parte ou completamente - em alguns infelizes casos).
O figurino de Judianna Makovsky é formidável, uma vez que exerce um papel fundamental na construção do personagem interpretado por Tom Hanks: preste bem atenção em como suas camisas floridas e infantis se convertem em paletós cinzas, refletindo cada vez mais sua personalidade em constante amadurecimento. Seu maior trunfo, entretanto, é a utilização das gravatas, que representam um elo entre o novo e o antigo Josh.
Com uma estrutura cativante, o roteiro começa leve e divertido e vai ficando cada vez mais complexo e dramático, permitindo que seus personagens sejam desenvolvidos aos poucos e cuidadosamente. Gosto particularmente de Susan (Elizabeth Perkins), personagem tridimensional que conquista seu lugar dentro da narrativa vagarosamente.
No final das contas, além do óbvio em nos fazer refletir sobre nossa própria condição enquanto adultos, o filme ainda encontra tempo pra discussões sérias sobre identidade e sexualidade. Um filme importante para todos nós, "grandes" ou não.
São muitos os aspectos fundamentais que fazem de A MALVADA um grande filme. O impecável roteiro talvez seja o principal: excelentes diálogos costurados numa estrutura perfeita. Fiquei maravilhado ao perceber os arcos dramáticos que se encerram, com o início espelhando seu próprio fim. A direção de Joseph L. Mankiewicz é soberba, o que fica evidente não só pela fluidez que ele impõe em toda a narrativa, mas também em planos específicos, como é o caso das mãos que introduzem a personagem-título e a habilidade em esconder e revelar situações e pessoas com naturalidade dentro de uma mesma cena. Destaque para os belos e sobretudo eficientes figurinos de Edith Head, que contribuem para que o espectador tire suas conclusões a cerca dos personagens, ato fundamental para o sucesso da trama. Um filme sobre corrupção, sucesso, ética e... atores. Ou melhor, atrizes. Bette Davis e Anne Baxter, portanto, são pelas chaves para a roda girar, e Barbara Bates, Thelma Ritter, Marilyn Monroe e Celeste Holm completam este espetacular elenco feminino.
THE SOUL OF A MAN é uma ode aos artistas obscuros e potencialmente populares do blues americano. Calcado na biografia musical de três gigantes (Blind Willie Johnson, Skip James e J.B. Lenoir), o coerente roteiro conduz o espectador por uma jornada que começa no reconhecimento dessas vozes fundamentais para a música popular e segue para o infinito.
Gosto particularmente das cenas em que Wim Wenders recria algumas situações do passado (técnica outrora muito bem elaborada no magistral A TRICK OF LIGHT).
No caso das apresentações musicais, não gosto da forma como foram registradas, apesar de apreciar demais a estrutura, calcada sobretudo na música. Os entrevistados pontuais também me agradaram bastante, levantando histórias incríveis sobre os personagens.
"Impossível com você. Impossível sem você. Tchau amor." Sem dúvida, este é um dos momentos mais brilhantes da carreira de Jean Garrett. Todavia, TCHAU, AMOR não figura entre seus filmes mais bem resolvidos. Apresentando um roteiro bem construído, apesar de antipático, sobretudo pela presença de Antonio Fagundes no papel principal, o filme conta com um punhado de cenas de sexo burocráticas (a do programa de rádio é uma exceção) e uma relação clichê e mal resolvida entre o protagonista e sua família (apesar da sempre marcante presença de Selma Egrei). Os encontros e desencontros apaixonados e rebeldes do casal central desembocam num belo desfecho, que destoa do resto do filme. Vislumbres da cuidadosa e virtuosa direção de Garrett podem ser vistos em planos como o movimento que resulta num plongé de Angelina Muniz, demonstrando a fragilidade que sente ao ser abandonada.
Adorei os traços leves e marcantes de ERNEST E CÉLESTINE, assim como algumas sequências magistrais, sobretudo o momento em que os dois personagens "pintam" o veículo roubado e a brilhante e caótica montagem paralela no terceiro ato. Entretanto, apesar de curto o filme me pareceu ter qualquer problema com seu ritmo.
As péssimas condições em que assisti a ESTRANHO DESEJO fatalmente influenciaram minha apreciação, mas dentre todos os filmes que assisti do Garrett este certamente foi o que mais me causou a impressão de ter sido produzido a toque de caixa (mesmo para os padrões do modo de produção da Boca do Lixo). Me diverti com o discurso e o plano final - que reforça a preocupação do diretor com as discussões sobre a exploração da imagem da mulher e sua posição na sociedade, super recorrente em suas obras -, mas mesmo assim saí da sessão com um gosto amargo de ter visto uma produção aquém do que ela poderia ter sido, sobretudo ao considerarmos as obras anteriores de Jean Garrett.
O ano de 1982 foi bastante intenso para Jean Garrett e para a Boca do Lixo como um todo. Em plena decadência, o sistema de produção da Rua do Triunfo dá seu último suspiro antes de afundar-se nas fitas de sexo explícito e, posteriormente, no ostracismo absoluto. KARINA, OBJETO DE PRAZER é um excelente representante deste período. Jean Garrett concebe planos inspiradíssimos com a ajuda de Cláudio Portioli na direção de fotografia. O acabamento é rigoroso e os excelentes esforços da direção de arte e do figurino só não salvam totalmente o filme da cafonice por conta da trilha sonora pavorosa. Assim como em trabalhos anteriores, Garrett introduz um falso moralismo para depois desconstruí-lo, flertando até mesmo com pensamentos feministas (como também o fez nos antecessores MULHER, MULHER e A MULHER QUE INVENTOU O AMOR).
A CASA DE CECÍLIA conversa ao pé do ouvido com uma geração solitária (aparentemente ou não, e com ou sem motivos para tal), de classe econômica proeminente, nascida e crescida num universo que dita suas próprias regras. Para o roteirista Gabriel Ritter e para a diretora Clarissa Appelt, o importante não é só a ação dos personagens, mas a reflexão que esta causa neles mesmos e, por que não, no próprio espectador. Se alimentar de comida congelada, demonstrar desprezo à possibilidade de comer um arroz "velho" (do dia seguinte até vai!), derrubar coca-cola na pia ao encher demais o copo (e ao invés de limpar com as próprias mãos, utilizando a água da pia, preferir gastar um pedaço de papel para realizar o serviço)... todos esses pequenos detalhes podem nem ter passado pela cabeça dos realizadores, mas de uma maneira ou de outra se encontram no inconsciente dos mesmos. Gosto da ideia da inserção de elementos horroríficos para compor a psique da protagonista, mas não tanto da forma como eles são empregados: a trilha sonora, por exemplo, vacila por cair numa armadilha óbvia de ruídos e texturas em momentos que se sustentavam pela imagem; determinado movimento de câmera nos força a prestar atenção a algo que já estávamos vendo; a caracterização dos "vultos" num momento chave da narrativa. De todo modo, a ambientação funciona com o suspense criado, sobretudo no que diz respeito ao "vazio" da casa (movimento que intensifica-se gradualmente até o final).
Sean S. Cunningham e seu parceiro Victor Miller compuseram um roteiro contraditório. Se sustentando até praticamente o final do segundo ato com sequências de assassinatos não muito inspiradas, SEXTA-FEIRA 13 só consegue engatar realmente após sua grande revelação nos últimos 20 minutos. A câmera subjetiva de Cunningham surpreende não pela originalidade (Carpenter já havia filmado dois anos antes um magistral plano sequência de abertura em seu clássico HALLOWEEN, utilizando a técnica), mas pela inquestionável inteligência ao brincar com as próprias expectativas do público (destaque para a cena em que a câmera subjetiva parece estar representando o ponto de vista de um personagem, quando na realidade representa outro, sugestão habilmente conquistada por um lento e cuidadoso zoom out). Ainda sobre o filme, alguns sustos e a mística envolvendo o grande vilão funcionam, tornando-o um marco para uma geração do gênero horror.
Medo e Obsessão
3.0 18 Assista AgoraO grande barato de LAND OF PLENTY é retratar a angústia e a paranoia (sem perder o bom humor) dos Estados Unidos pós 11 de setembro. John Diehl interpreta Paul, um ex-sargento sobrevivente da guerra do Vietnã que dedica as 24 horas de seu dia a patrulhar a cidade de Los Angeles (cinzenta, empoeirada e triste) como se ainda servisse ao exército - e a grande sacada do filme é jamais deixar claro o grau de insanidade do personagem: ele de fato registra num gravador suas informações para alguém ou simplesmente não aguenta a solidão oriunda do "milagre" que o salvara numa queda de helicóptero? Lana, vivida com delicadeza por Michelle Williams, é responsável pelas principais reflexões sobre a condição humana - o diálogo em que ela relata a comemoração de "pessoas comuns, não terroristas" quando ainda vivia no Oriente Médio, no momento em que viram pela televisão os aviões sequestrados colidirem com as torres gêmeas, é de uma sutileza calculada e muito profunda. Wim Wenders procura imprimir uma sensação de urgência e angústia com seus planos instáveis, e a montagem faz um belo trabalho ao intercalar as ações de Lana e seu tio Paul, até o momento em que se juntam de vez, no terceiro ato. LAND OF PLENTY pode não ser o filme mais inspirado de Wim Wenders, mas certamente é um reflexo duro e legítimo de uma época.
Que Horas Ela Volta?
4.3 3,0K Assista AgoraAnna Muylaert sabe perfeitamente a história que quer contar e consegue, através de seus planos calculados, conduzir os personagens em favor de uma visão de mundo admirável, tudo sem jamais perder a leveza. A montagem de Karen Harley para QUE HORAS ELA VOLTA? ratifica a opção estética da direção ao manter pelos segundos necessários alguns planos estáticos, próprios para a reflexão. Com um trabalho corporal/gestual incrível, Regina Casé se inspira numa parcela grande das mulheres brasileiras para compor sua doce Val, dona de mil contradições e muito afeto. A composição desta personagem levanta muitas discussões, e não duvido de que o filme será capaz de fazer muitas pessoas compreenderem que nem sempre nossos pais fazem o melhor pelos filhos, mas às vezes precisam fazer o necessário. Outro grande acerto é a forte presença de Camila Márdila, que interpreta a cativante Jéssica: cativante pela rigidez em sua fala/postura, pela determinação de suas ações (muito bem pensadas) e pela leveza que só a juventude poderia lhe conceder. Sua entrada na trama, aliás, não só altera a lógica pela qual acompanhamos a história como também faz brilhar os excelentes personagens coadjuvantes, interpretados por nomes interessantíssimos como Lourenço Mutarelli (sempre característico em sua fala mansa e olhar calculado), Karine Teles (a mais caricata, porém importantíssima para estabelecer as relações de poder evidenciadas pelo filme) e Helena Albergaria (que sai diretamente dos filmes horroríficos de Juliana Rojas e Marco Dutra para se aventurar por outros gêneros). QUE HORAS ELA VOLTA? certamente é um dos filmes mais importantes lançados no Brasil nos últimos 25 anos.
A Família de Elizabeth Teixeira
3.9 9Um filme que possui uma declaração tão forte quanto "eu morri aos oito anos de idade" não deve ser analisado com displicência. A FAMÍLIA DE ELIZABETH TEIXEIRA vai além de sua função enquanto extra de um filme, trazendo novos conflitos e novos-velhos personagens (impossível não ficar assustado ao constatar a crueldade e a sabedoria do tempo). Assim como o memorial de João Pedro Teixeira, parece que a épica narrativa de CABRA MARCADO PARA MORRER está em constante exaltação/expansão.
Cabra Marcado Para Morrer
4.5 253 Assista AgoraTalvez o grande mérito de CABRA MARCADO PARA MORRER seja o legado deixado por e para Eduardo Coutinho, enquanto diretor e ser humano, a partir de seu épico processo de produção/criação. Consequentemente, um legado para o cinema brasileiro e para o mundo da arte.
Além de Hollywood: O Melhor do Cinema Australiano
4.0 19NOT QUITE HOLLYWOOD é o típico documentário que só possui olhos para o seu próprio objeto. E ainda por este motivo, tem sua estética inteiramente voltada para o tipo de assunto tratado. Entendo a relevância do projeto e a estratégia narrativa, mas confesso que o frame rate descontrolado, as split screens e o excesso de informação oriunda das vozes dos entrevistados me deixaram bem atordoado. Entre um filme e outro, sem quase respiro algum, conhecemos um pouco mais da proto-indústria cinematográfica australiana das décadas de 70 e 80 e somos bombardeados com histórias, polêmicas e confusões relatadas pelas vozes dos próprios profissionais e realizadores desses filmes. Gosto especialmente do momento "Dennis Hopper" e quando abordam as loucuras cometidas por Grant Page, um dos mais insanos dublês de todos os tempos. A paixão nas falas de Quentin Tarantino também é um ponto alto desta obra, que apesar de verborrágica jamais deixa de ser divertida e extremamente relevante. E só de ter como cenário de determinado entrevistado uma stripper praticando pole dance ao fundo já ganhou meu respeito!
Jovens, Loucos e Rebeldes
3.7 447 Assista AgoraRichard Linklater não era exatamente um garoto quando dirigiu DAZED AND CONFUSED. Aos 27 anos, o diretor muito provavelmente já havia passado da fase "jovem, louca e rebelde" característica dos adolescentes estadunidenses. Ainda assim, é uma grata surpresa chegar até o final deste filme e constatar que não há um pingo de moralismo ou hipocrisia. As presenças de Milla Jovovich, Adam Goldberg e Matthew McConaughey são incríveis, mas Wiley Wiggins é o grande responsável pela empatia que estabelecemos com as situações vividas pelos personagens. E mesmo um Ben Affleck irreconhecível (interpretando um personagem detestável) pode ser divertido no final das contas.
Corrente do Mal
3.2 1,8K Assista AgoraOs planos abertos concebidos por David Robert Mitchell e por seu diretor de fotografia Mike Gioulakis ratificam a singularidade de um projeto que vai na contramão da maioria dos filmes de horror produzidos nos Estados Unidos. Nada de sustos fáceis ou reviravoltas mirabolantes. Aqui, a preferência é estabelecer alguns códigos narrativos inusitados e seguí-los até o fim.
IT FOLLOWS é ambientado em Detroit, uma das cidades mais violentas do país, e seu plot é introduzido por uma bela sequência de abertura que nos apresenta parte das regras e o destino irremediável de quem acaba envolvido nessa história. Partindo deste ponto de vista, é admirável a maneira como o roteiro foi construído: apesar de alguns furos e pelo menos um personagem desnecessário, apresenta um arco dramático coeso e um final aberto e inteligente, que chega a extrapolar os conceitos de pessimismo e otimismo.
A direção de arte cuidadosa evita a localização do filme numa determinada época ao utilizar objetos de caráter anacrônico, o que de certa maneira ajuda a instaurar uma aura de instabilidade psicológica no grupo de adolescentes. Esta confusão, aliás, que ultrapassa os personagens e chega ao espectador, é reforçada pelas constantes elipses, que servem muito bem ao roteiro, cuja sacada é jamais fornecer um padrão que denuncie o tempo para que o vilão se aproxime, promovendo um constante clima de tensão que dura do primeiro ao último ato.
Carne para Frankenstein
3.5 32Em primeiro lugar, é preciso situar esta obra de Paul Morrissey no tempo. A década de 70 talvez tenha sido o período mais libertário e sexual do mundo moderno. Co-produção entre Estados Unidos, França e Itália, e rodado nos estúdios da Cinecittà, em Roma (um filme italiano, portanto), CARNE PARA FRANKENSTEIN é uma subversão erótica e gore da obra de Mary Shelley. A primeira cena com as crianças, os subtextos homoafetivos, a derradeira sequência final... todos os elementos deste filme convergem em tabus raramente discutidos pela sociedade.
Preciso enaltecer a forte presença de Nicoletta Elmi, que interpreta a filha dos barões. Já havia me deparado com ela em outras obras (BARÃO SANGUINÁRIO, de Mario Bava, PRELÚDIO PARA MATAR, de Dario Argento e DEMONS - FILHOS DAS TREVAS, de Lamberto Bava), e é impossível esquecer seu rosto e seu modo frio e aterrorizante ao interpretar suas personagens.
Overacting, sangue pastoso e vermelho demais, nudez, diálogos expositivos... tudo é intencionalmente exagerado e justificado. Estranho e fabuloso!
O Mensageiro do Diabo
4.1 261 Assista AgoraO cinema e suas histórias...
Como pode um diretor de um filme só conceber uma obra tão icônica como O MENSAGEIRO DO DIABO? Charles Laughton já era um ator consolidado quando resolveu se enveredar pela arte da direção, em 1955. A história de um missionário misógino que tortura psicologicamente duas crianças à procura de dez mil dólares poderia ter sido adaptada de diversas maneiras. Em determinado momento, ao ser atingido por um tiro de espingarda, o missionário solta um grito demoníaco, escancarando o aspecto fabulesco desta obra, característica fundamental para desvendarmos esta produção. A religiosidade, questionada e ao mesmo tempo reverenciada durante todo o filme, é só mais uma das peculiaridades de uma obra pouco vista, mas que merece todos os aplausos possíveis. Só de lembrar da tenebrosa canção entoada pela voz grave de Robert Mitchum já me dá calafrios.
Pânico
3.6 1,6K Assista AgoraMetalinguístico e sarcástico, PÂNICO escancara os clichês de pelo menos 20 anos de slasher movies e ri de si próprio a todo momento, sem jamais deixar de ser assustador por conta disso. Esta talvez seja a grande sacada de Wes Craven neste filme: não ignorar um passado (o próprio também, claro) bem sucedido e ao mesmo tempo jamais subestimar seu público.
A Máscara de Satã
3.9 90Máscaras sempre me impressionaram, tanto do ponto de vista estético como metafórico. Em A MALDIÇÃO DO DEMÔNIO, Mario Bava se utiliza da metáfora ao conferir aos personagens uma dualidade fundamental à narrativa, e apesar de jamais enganar o espectador, coloca-o numa posição de temor para com a princesa Katia Vajda e seus defensores.
Com um roteiro (baseado num conto de Nikolai Gogol) que mistura conceitos de histórias de vampiros, zumbis e bruxas, Ennio De Concini e Mario Serandrei vão do século XVII ao XIX para retratar uma maldição demoníaca que atravessa gerações e estabelece regras e padrões muito bem definidos, como a ligação entre as personagens de Asa (a bruxa), Marsha (a princesa que morreu misteriosamente no século XVIII, retrata no quadro do castelo) e Katia, todas fisicamente idênticas. Barbara Steele certamente foi uma brilhante escolha para interpretar a mocinha e a vilã. Com sua beleza rígida e seus grandes olhos profundos, que ora transmitem pavor e desespero, ora ódio e sede por vingança, sua interpretação no terceiro ato é fundamental para transmitir credibilidade ao desfecho.
Mario Bava, como de costume, também assina como diretor de fotografia, e em conjunto ao belo trabalho realizado pela direção de arte e figurino imprime uma textura rugosa que reflete a história que está sendo contada.
A Caverna dos Sonhos Esquecidos
4.2 142 Assista AgoraAs imagens que criamos, a partir do que Herzog nos proporciona enxergar, escutar e imaginar, vai muito além da arte concebida por seres humanos de mais de trinta mil anos atrás. A CAVERNA DOS SONHOS ESQUECIDOS nos transporta para além das nossas fronteiras; ou melhor dizendo, para o fundo de nossa própria alma. Discussões filosóficas sobre a gênesis da vida, o "propósito" da arte e muitos outros complexos devaneios vem à tona durante e após a sessão. Apesar do roteiro e da montagem terem me deixado confuso em alguns momentos, a narração poética de Herzog nos conduz sempre ao cerne da questão: a imensa capacidade do ser humano de encantar o outro.
O Homem Irracional
3.5 551 Assista AgoraO HOMEM IRRACIONAL figura no âmbito recente de "altos e baixos" da carreira de Woody Allen. Ser tão prolífico pode custar caro, e talvez os resultados obtidos pelo diretor nos últimos 15 anos - isto para não falar de sua carreira como um todo - nem sejam tão custosos assim.
Sua última empreitada coloca Joaquin Phoenix no centro de discussões envolvendo as diversas formas de se encarar a vida, tudo traduzido filosófica e superficialmente por uma narração em voice over. A razão pela qual coloco o filme na caixinha dos "baixos" está diretamente ligada ao tom indeciso da direção, que insiste em retratar alguns momentos pesados de forma leve, quando isto claramente não se mostra a melhor estratégia para o desenvolvimento da narrativa - e é só pegarmos como exemplo a irritante música-tema, que nos assombra do início ao fim, para enxergarmos tal equívoco.
Enquanto Emma Stone surge interpretando com pouco brilho uma personagem ainda menos interessante, cuspindo referências literárias sem o menor pudor, Phoenix mais uma vez entrega uma atuação calculada e sincera, física e psicologicamente dedicado a um papel que infelizmente é deixado de lado pelo roteiro, que abdica de seu caráter enquanto estudo de personagem para investir num sonolento plot de detetive. A reta final tenta empolgar, mas sofre demais com o decadente segundo ato.
Obra
3.0 48De apuro técnico impressionante, OBRA dialoga com um pensamento existencialista, e deposita em seu protagonista todas as obrigações de ser o rei agente de si próprio. Subverte-se, entretanto, os aspectos fundamentais: Irandhir Santos interpreta um homem passivo, mas consciente de que essa passividade jamais o levará a algum lugar, o forçando a cometer pequenos atos ao longo de sua trajetória. A relação visual e temática representada pelas "colunas" do filme é a chave para desvendar quaisquer sentimentos vividos por ele. Comprovando o caráter existencialista do filme, são os poucos momentos de confronto que alavancam a narrativa, nos colocando diante de um dilema insolucionável: a maior satisfação de um ser humano se deve ao seu próprio legado?
Campo de Jogo
3.2 10Apesar do estranhamento inicial causado pela presença da câmera dentro do campo, o que me levou a questionar a metodologia utilizada por Eryk Rocha para realizar este documentário, CAMPO DE JOGO, além de belíssimo, provoca reflexões sobre a desigualdade social, a rivalidade hostil e a passividade diante de uma derrota - que pode ser atribuída não só ao perdedor da partida, mas às diversas perdas que inevitavelmente ocorrem na vida dessas pessoas. Interessante perceber como o design de som é fundamental para a narrativa, com todas as suas sobreposições, texturas e efeitos, dialogando com as imagens de forma a dar um novo sentido ao que estamos assistindo. Eryk Rocha faz de um campeonato de futebol um elegante exercício narrativo, com toques de drama, suspense e ação. Uma declaração de amor ao futebol e repúdio ao bundamolismo de um sistema esportivo em crise.
Quero ser Grande
3.7 802"- Filho, o que você quer ser quando crescer?
- Eu quero ser grande!"
Esta era basicamente minha resposta corriqueira à familiar e recorrente pergunta.
QUERO SER GRANDE é um filme bastante representativo de uma época. E com isso não me limito ao período em que ele foi realizado, mas me refiro ao estado de espírito em que todos nós, adultos, um dia já deixamos pra trás (em parte ou completamente - em alguns infelizes casos).
O figurino de Judianna Makovsky é formidável, uma vez que exerce um papel fundamental na construção do personagem interpretado por Tom Hanks: preste bem atenção em como suas camisas floridas e infantis se convertem em paletós cinzas, refletindo cada vez mais sua personalidade em constante amadurecimento. Seu maior trunfo, entretanto, é a utilização das gravatas, que representam um elo entre o novo e o antigo Josh.
Com uma estrutura cativante, o roteiro começa leve e divertido e vai ficando cada vez mais complexo e dramático, permitindo que seus personagens sejam desenvolvidos aos poucos e cuidadosamente. Gosto particularmente de Susan (Elizabeth Perkins), personagem tridimensional que conquista seu lugar dentro da narrativa vagarosamente.
No final das contas, além do óbvio em nos fazer refletir sobre nossa própria condição enquanto adultos, o filme ainda encontra tempo pra discussões sérias sobre identidade e sexualidade. Um filme importante para todos nós, "grandes" ou não.
A Malvada
4.4 660 Assista AgoraSão muitos os aspectos fundamentais que fazem de A MALVADA um grande filme. O impecável roteiro talvez seja o principal: excelentes diálogos costurados numa estrutura perfeita. Fiquei maravilhado ao perceber os arcos dramáticos que se encerram, com o início espelhando seu próprio fim. A direção de Joseph L. Mankiewicz é soberba, o que fica evidente não só pela fluidez que ele impõe em toda a narrativa, mas também em planos específicos, como é o caso das mãos que introduzem a personagem-título e a habilidade em esconder e revelar situações e pessoas com naturalidade dentro de uma mesma cena. Destaque para os belos e sobretudo eficientes figurinos de Edith Head, que contribuem para que o espectador tire suas conclusões a cerca dos personagens, ato fundamental para o sucesso da trama. Um filme sobre corrupção, sucesso, ética e... atores. Ou melhor, atrizes. Bette Davis e Anne Baxter, portanto, são pelas chaves para a roda girar, e Barbara Bates, Thelma Ritter, Marilyn Monroe e Celeste Holm completam este espetacular elenco feminino.
The Blues - The Soul of a Man
4.4 6THE SOUL OF A MAN é uma ode aos artistas obscuros e potencialmente populares do blues americano. Calcado na biografia musical de três gigantes (Blind Willie Johnson, Skip James e J.B. Lenoir), o coerente roteiro conduz o espectador por uma jornada que começa no reconhecimento dessas vozes fundamentais para a música popular e segue para o infinito.
Gosto particularmente das cenas em que Wim Wenders recria algumas situações do passado (técnica outrora muito bem elaborada no magistral A TRICK OF LIGHT).
No caso das apresentações musicais, não gosto da forma como foram registradas, apesar de apreciar demais a estrutura, calcada sobretudo na música. Os entrevistados pontuais também me agradaram bastante, levantando histórias incríveis sobre os personagens.
Tchau, Amor
3.4 10"Impossível com você. Impossível sem você. Tchau amor."
Sem dúvida, este é um dos momentos mais brilhantes da carreira de Jean Garrett. Todavia, TCHAU, AMOR não figura entre seus filmes mais bem resolvidos. Apresentando um roteiro bem construído, apesar de antipático, sobretudo pela presença de Antonio Fagundes no papel principal, o filme conta com um punhado de cenas de sexo burocráticas (a do programa de rádio é uma exceção) e uma relação clichê e mal resolvida entre o protagonista e sua família (apesar da sempre marcante presença de Selma Egrei). Os encontros e desencontros apaixonados e rebeldes do casal central desembocam num belo desfecho, que destoa do resto do filme. Vislumbres da cuidadosa e virtuosa direção de Garrett podem ser vistos em planos como o movimento que resulta num plongé de Angelina Muniz, demonstrando a fragilidade que sente ao ser abandonada.
Ernest e Célestine
4.4 319Adorei os traços leves e marcantes de ERNEST E CÉLESTINE, assim como algumas sequências magistrais, sobretudo o momento em que os dois personagens "pintam" o veículo roubado e a brilhante e caótica montagem paralela no terceiro ato. Entretanto, apesar de curto o filme me pareceu ter qualquer problema com seu ritmo.
Estranho Desejo
2.6 3As péssimas condições em que assisti a ESTRANHO DESEJO fatalmente influenciaram minha apreciação, mas dentre todos os filmes que assisti do Garrett este certamente foi o que mais me causou a impressão de ter sido produzido a toque de caixa (mesmo para os padrões do modo de produção da Boca do Lixo). Me diverti com o discurso e o plano final - que reforça a preocupação do diretor com as discussões sobre a exploração da imagem da mulher e sua posição na sociedade, super recorrente em suas obras -, mas mesmo assim saí da sessão com um gosto amargo de ter visto uma produção aquém do que ela poderia ter sido, sobretudo ao considerarmos as obras anteriores de Jean Garrett.
Karina, Objeto de Prazer
3.3 15O ano de 1982 foi bastante intenso para Jean Garrett e para a Boca do Lixo como um todo. Em plena decadência, o sistema de produção da Rua do Triunfo dá seu último suspiro antes de afundar-se nas fitas de sexo explícito e, posteriormente, no ostracismo absoluto. KARINA, OBJETO DE PRAZER é um excelente representante deste período. Jean Garrett concebe planos inspiradíssimos com a ajuda de Cláudio Portioli na direção de fotografia. O acabamento é rigoroso e os excelentes esforços da direção de arte e do figurino só não salvam totalmente o filme da cafonice por conta da trilha sonora pavorosa. Assim como em trabalhos anteriores, Garrett introduz um falso moralismo para depois desconstruí-lo, flertando até mesmo com pensamentos feministas (como também o fez nos antecessores MULHER, MULHER e A MULHER QUE INVENTOU O AMOR).
A Casa de Cecília
2.6 11A CASA DE CECÍLIA conversa ao pé do ouvido com uma geração solitária (aparentemente ou não, e com ou sem motivos para tal), de classe econômica proeminente, nascida e crescida num universo que dita suas próprias regras. Para o roteirista Gabriel Ritter e para a diretora Clarissa Appelt, o importante não é só a ação dos personagens, mas a reflexão que esta causa neles mesmos e, por que não, no próprio espectador. Se alimentar de comida congelada, demonstrar desprezo à possibilidade de comer um arroz "velho" (do dia seguinte até vai!), derrubar coca-cola na pia ao encher demais o copo (e ao invés de limpar com as próprias mãos, utilizando a água da pia, preferir gastar um pedaço de papel para realizar o serviço)... todos esses pequenos detalhes podem nem ter passado pela cabeça dos realizadores, mas de uma maneira ou de outra se encontram no inconsciente dos mesmos. Gosto da ideia da inserção de elementos horroríficos para compor a psique da protagonista, mas não tanto da forma como eles são empregados: a trilha sonora, por exemplo, vacila por cair numa armadilha óbvia de ruídos e texturas em momentos que se sustentavam pela imagem; determinado movimento de câmera nos força a prestar atenção a algo que já estávamos vendo; a caracterização dos "vultos" num momento chave da narrativa. De todo modo, a ambientação funciona com o suspense criado, sobretudo no que diz respeito ao "vazio" da casa (movimento que intensifica-se gradualmente até o final).
Sexta-Feira 13
3.4 778 Assista AgoraSean S. Cunningham e seu parceiro Victor Miller compuseram um roteiro contraditório. Se sustentando até praticamente o final do segundo ato com sequências de assassinatos não muito inspiradas, SEXTA-FEIRA 13 só consegue engatar realmente após sua grande revelação nos últimos 20 minutos. A câmera subjetiva de Cunningham surpreende não pela originalidade (Carpenter já havia filmado dois anos antes um magistral plano sequência de abertura em seu clássico HALLOWEEN, utilizando a técnica), mas pela inquestionável inteligência ao brincar com as próprias expectativas do público (destaque para a cena em que a câmera subjetiva parece estar representando o ponto de vista de um personagem, quando na realidade representa outro, sugestão habilmente conquistada por um lento e cuidadoso zoom out). Ainda sobre o filme, alguns sustos e a mística envolvendo o grande vilão funcionam, tornando-o um marco para uma geração do gênero horror.