Antonioni disse que A Idade da Terra é uma aula de cinema moderno. O próprio teria dito a Glauber, em ocasião anterior, que o cineasta brasileiro devia fazer captação direta do som, algo mais harmônico com o tipo de cinema que buscava fazer. Pois bem, Glauber o faz nesse filme e aproveita pra brincar com isso nas cenas em que ouvimos ele próprio dando orientações para os atores.
Ainda na relação com os italianos, Glauber se dedicou a pensar sobre o Cristo de Pasolini, quando elogiou nele sua violência e seu aspecto de agitador social. E podemos lembrar de Pier Paolo quando vemos novamente Glauber invocar Jesus por meio de vários Cristos de um “Terceiro mundo”, além de explorar a relação entre o poder e a pornografia.
Por vezes parece menos uma idade da terra do que uma história do Brasil, inclusive com entrevistas, discursos de especialistas. Mas é possível ver o Brasil sendo retratado como o mundo, como uma síntese da Terra, na medida em que vemos o filme destacar a mistura de culturas, “da Grécia aos Estados Unidos”, a ênfase no continente africano e no mundo indígena.
Nesse longa longuíssimo, já célebre por ser cansativo, vemos uma proposta clara de exaustão, de esgotamento, com a repetição de cenas, como que num registro do ensaio e de variações de gravações e ângulos. Quem sabe um eterno retorno perspectivístico, uma repetição que traz diferença. O tom nietzschiano é possível encontrar inclusive no tom muito direto e ao mesmo tempo enigmático das falas, como que em máximas. Talvez haja uma proposta de mais apresentar do que representar, usando todo esse tempo de filme para retomar seus temas mais caros: o messianismo, a religião, a mistura, a política.
A obsessão por Brasília nesse filme já é premeditada Em O Dragão da Maldade, com o Bar Alvorada, referência ao palácio da cidade-satélite. Brasília é um bar, um brega, uma festa? Quando Brahms chega em Brasília é como se chegasse em uma balada. Mas seu discurso lembra uma inversão de Porfírio Díaz, ele fala em não buscar a vitória mas a paz, contrasta com o elogio da força pela “harmonia universal dos infernos”. Mas no fim dessa sequência Bhrams diz “vocês vão aprender, eu voltarei”, o que lembra o “aprenderão” do personagem de Terra em Transe.
Destaque novamente para a composição sonora. Nunca óbvia, muitas vezes conflitando com a imagem. Os tambores trazem o transe, que se liga à religião e à repetição – dois elementos essenciais do filme. Ressalta-se aqui o aspecto dionisíaco, muitas vezes exposto em encenações desformes, de duas maneiras: uma com a câmera se agitando ao ponto de não percebermos as formas/contornos dos corpos; outra com a filmagem de corpos coletivos, como na orgia e no carnaval, em que não percebemos claramente os indivíduos.
A tensão entre o pesado e o leve, entre a flutuação dos corpos que dançam e a gravidade dos mesmos corpos martelando palavras e se agarrando à terra em imagens horizontalizadas. Não é difícil ver o trágico em seu cinema.
Gostei muito de como o filme foi montado e filmado, pois o Babenco enquadrado aparece como um objeto de amor que se confunde com o amor pelo cinema, ultrapassando a ideia de um amor individual e seus clichês - que ficam de lado aqui sobretudo pelo belo final. Acaba por ser um filme sobre amar o amor e sobre o aprender a amar num processo de aprendizado do olhar da própria Bárbara, um aprender a apreender e aprender a se desvencilhar.
Já em outros filmes Cuaron se destaca pelo virtuosismo técnico na composição dos planos. Mas em outros filmes, os planos-sequência em Children of Men por exemplo, é compreensível a integração entre os recursos formais e a narrativa. Em Roma, fico pensando se não há um exibicionismo nessa fotografia, de modo que caia naquela coisa meio Sebastião Salgado de embelezar a miséria com um p&b sublime. Entendo que a fotografia fornece a atmosfera onírica do filme, em um exercício de memória. Mas esse quesito é mais uma questão pessoal do diretor do que do filme por si mesmo. Acredito que a narrativa chama mais atenção para as questões sociais do que para questões subjetivas da memória, mas sua abordagem formal parece ir em direção contrária.
Mad Max: Fury Road é o filme de ação “puro”, de roteiro aparentemente simples e diálogos aparentemente banais, muito longe do cinema de ação/aventura que se pretende muito inteligente, como vemos em Nolan. Parecem cinemas, nesse sentido, totalmente opostos. Mas não por isso o filme do experiente Miller é algo como “burro” ou se pretende como tal. É um filme muito inteligente sem que soe pretensioso. Porque sua sagacidade não é verborrágica. Há uma complexidade que não deriva de um amontoado de palavras expressas tão rapidamente que deixam o espectador sufocado de texto ao ponto de não ter tempo pra pensar. Trata-se da engenhosidade das cenas de ação e da mecânica em sentido extenso e particular no manejo dos carros para a sucessão de batalhas. O uso do espaço do caminhão de Furiosa faz com que o filme seja guiado ali, quase como um road movie com seus clichês de auto-descoberta, mas algo ainda muito pequeno diante do grande filme de ação que se desenvolve numa corrida maluca no deserto. Há alguma dificuldade de compreender os mecanismos das batalhas porque a coisa vai bem acelerada nesse momento, mas a graça da ação é que ela se sustenta sem tanta compreensão racional, muitas vezes depende mais de uma intuição espaço-temporal. Ainda assim, Miller nos dá tempo pra respirar e cuspir a poeria, em momentos em que podemos nos deter mais na fotografia de John Seagle, mas nunca tempo demais pra achar que é possível ir no banheiro, nem parando a imagem.
O filme visga. Garante-se no controle do tempo e do espaço que as cenas usam com seu trabalho coreográfico arrojado percorrendo cenários que abusam da estética do futuro usado. O que vem pra pensar é adendo, mas tem-se o que pensar, sem que venha do texto, pois esse é o recurso mais óbvio e preguiçoso. O texto, inclusive, é propositalmente pobre. Mas assertivo. São poucas palavras, as vezes repetidas, que nos jogam na dinâmica dessa distopia. São essas palavras que fornecem a dimensão mítica do filme, e vão nos dando informações preciosas sem nenhum excesso verbal: quando o filho morto é tirado da barriga da mãe e é lamentado porque seria perfeito, podemos inferir daí que filhos saudáveis são raros ali, não somente pela circunstancias materiais, até mesmo porque a elite da cidade vivia bem, mas sim porque essa elite é um ciclo fechado, uma tribo que não parece passar pela exogamia, que portanto os filhos são derivados de relações consanguineas, que as esposas do grande pai podem ser bem suas filhas. Sabemos muito dessa figura do vilão em poucos atos.
Não se trata simplesmente de diálogos que desaparecem para exaltar a ação. Mas sim da adequação com a narrativa, com esse mundo-deserto em que o vocabulário empobrece, pois a visão de mundo é ela muito curta, é o cenário apocalíptico onde a qualquer momento o cruzamento de uma linha pode aparecer o fim do mundo, pois esse mundo futuro é tão arcaico que a terra pode voltar a ser plana, já que os jovens sustentam suas ações na esperança de um paraíso além-mundo, já que o governo da cidade central é feito por um tirano que controla a água. Economicamente, não há nada mais atual do que o domínio via tal recurso natural. Nesse mundo religioso e arcaico, só restam mitos, e isso é muito bem explorado nas palavras que restam. Temos ali mitos antigos como os nórdicos, aos quais sabemos que são muito atualizados na cultura pop, e andam ao lado de objetos de consumo como a coca-cola, não esquecida aqui. Mas também temos mitos que dialogam com a ciência, como a hipótese darwin-freudiana do pai primevo, o chefe da horda primitiva que é o pai de todos de seu grupo, porque detém as mulheres para si.
E é nesse tema que vemos o velho Miller se mostrar atualizado tematicamente, revivendo o personagem de Max, outrora interpretado pelo conservador Mel Gibson, agora com um Tom Brady que é tomado por alguns simples afetos: lutar, se assombrar e grunhir. Ele quase não fala, emite seus sons de ogro, mas não cai na fetichização de exibir o homem másculo e violento que domina a mulher, sendo as vezes agressivo com ela, mas que garante seu amor porque no fim estava certo (inúmeros são os casos, mas pra manter na direção cult-nerd, lembraria de 12 macacos e V de Vingança). O que ocorre é que Mad Max, ainda tramado no clichê da jornada de herói contemporânea, nessa coisa meio anti-herói que reluta em aceitar uma tarefa a qual está destinado, divide o protagonismo com a heroína furiosa e as mulheres-objeto que estão no processo de se tornarem sujeitas. Não há nada de gratuito em que o filme seja sobre isso: a busca de um grupo de mulheres em não ser simplesmente os objetos que foram condenados a serem e que pra isso escolhem uma mulher para ajudá-las.
Que o ostinato vá pro título mostra o interesse de Paula na repetição, algo de presença muito forte em seu outro novo filme, Hace o camino ao andar. Arrigo explica sobre o ostinato numa série. A série na dodecafonia é pra evitar a repetição, a poralização, o centro. Ao usar o ostinato, portanto, ele se diferencia dessa música frequentemente associada a ele e se aproxima da música popular. Daí a ideia do Arrigo, que ele repete ainda uma vez, de que sua música é um erudito-popular.
Mais um filme muito falado sobre um músico, ainda que não seja uma biografia. Arrigo já atuara com Paula e sua câmera é muito próxima dele. Quando fala de Beethoven, é curioso ver como ele próprio se parece com o autor de A Grande Fuga , uma peça-pensamento, segundo o próprio Arrigo, que diz isso após se levantar do piano, em que encostava a cabeça num misto de cansaço e de escuta atenta ao que a diretora fala numa conversa em que o confronta, sem qualquer agressividade, mas que soa como uma abordagem inesperada e fornece um outro filme na segunda parte do documentário.
Paula, que é uma cineasta muito sonora, chega a expor sua relação com a música nessa fala que se contrapõe a do Arrigo, e em algum momento do papo arremessa sobre ele uma declamação de um texto do Benjamin na voz do próprio Arrigo.
Não há nada de deselegante no diálogo entre os dois, muito pelo contrário. Se nessa segunda parte vemos Arrigo se propor a improvisar ao piano, Paula o conduz a uma improvisação no campo do pensamento.
A narrativa mais agradável possível em todo tipo de meio passa por apresentar um personagem zombador, megalomaníaco, que humilha seus adversários, e finalizar com sua derrota. O prazer aumenta quando o vencedor é um herói calado, humilde, que passou por muitas dificuldades e fez do silêncio uma singela oração. Ponto positivo para Ali desconstruir essa ideia. O filme mostra Ali em toda a segurança de si, beirando a arrogância, embora fique claro que ela é muito estratégica, tanto do ponto de vista específico contra seus adversários de ringue, quanto do ponto de vista mais amplo, contra os EUA. Que seja estratégico contra seus adversários, em sua maioria homens que passaram por problemas parecidos com os dele, fica claro quando Ali se encontra com Joe Frazier, e esse último realiza seu desejo de lhe conceder uma luta. Smokin Joe, na dele, vence, e este poderia ser o final do longa, daquele modo catártico de contar uma história, se o herói dela fosse o Frazier. Nenhum adversário de Ali é pintado como vilão (o contrário do que fizeram com Max Bauer em Cinederella Man), se existe uma figura incômoda ali, é ele próprio. No entanto, todos torcem por ele. O mundo do esporte parece acompanhar uma ética muito menos cristã do que grega, não a toa inventaram as olimpíadas. Se valoriza os que se sobressaem, mas não apenas, também os que se julgam como tal, aqueles que, antes de tudo, se declaram como os bons. E aqui bom não é o contrário de mau, mas o contrário de ruim, de modo que o atleta que assuma essa nobreza nietzschiana poderá ser chamado de mau, segundo a ética cristã. Nesse sentido é muito interessante ver Ali repetindo ser mau. E o faz de acordo com sua recusa ao cristianismo, que parece maior do que sua afirmação do islamismo, mesmo o islamismo afro-americano, que Malcom X perceberá como bem específico depois de sua peregrinação a Meca. A propósito, no filme de Spike Lee, Ali não é tão importante quanto Malcom é no filme de Michael Mann. A captação digital ocorre em alguns momentos, ainda não é predomínio como se tornará em Inimigos Públicos. O tremor da câmera é bem dosado e compatível com a vida dinâmica do personagem principal, com muitos tremores e menos temores, porque ele próprio não permitia que o medo o levasse ao nocaute.
Duro de matar é um desses filmes que ganha fãs de todos os tipos, com destaque para aquele tipo que decora falas. O filme fornece as condições para essa reprodução pois é cheio de boas tiradas. Segue muito um roteiro do cinema americano que vez ou outra é retomado: o heroísmo do homem “comum”. O que mais ressalta esse ponto não é nem o protagonista, mas o companheiro que ele ganha durante o filme. Um policial de baixa patente que se mostra muito mais perspicaz que o chefe da operação e até mesmo que o FBI – cujo comportamento previsível é precisamente o favorecimento no qual apostam os vilões. Muito interessante essa relação, a que é melhor constituída no filme, pois se dá na maior parte do tempo sem que os dois apareçam no mesmo plano, o que traz a catarse da cena final, que volta o herói não apenas a um reencontro com sua esposa, mas agora também com um amigo.
Filme de ação clichê, dialogando com os que o precedem, mas que tem o poder de impulsionar um cinema de ação posterior. Por seu realismo pé no chão, que remete a jornada do herói ao mundo dos mortais, não se compromete com o exagero performático de protagonista infalível, essa espécie de gênio acrobata com super-força. O modo como ele derrota os inimigos, um por um, vai lhe dando chance pouco a pouco, cada vez mais uma sobrevida, e o que mantém é essa capacidade de não morrer (daí veremos a sacada de Shyamalan em escalar Bruce Willis em Corpo Fechado). É esse realismo que torna mais marcante as cenas mais exageradas, como o salto do prédio sustentado por uma mangueira (vemos uma reencenação criativa e trash dessa cena em Machete, de Robert Rodriguez). O fascínio infantil com a metralhadora lembra o Scarface de Howard Hawks. O heroísmo de pés descalços é retomado depois em Filhos da Esperança. Mas não podemos esquecer que o arquétipo de um Herói com problemas nos pés alcança uma mitologia que remonta, no mínimo, a linhagem de Édipo Rei.
Toda essa narrativa de conciliação e reconciliação no inverno estadunidense casa perfeitamente com uma característica essencial: Duro de Matar é um Filme de Natal, e apesar da simplicidade, parece sim ter consciência do poder mítico que carrega.
Suspiria (2018), de Luca Guadagnino, certamente não é o tipo de remake dispensável. O diretor se apropria do material de Argento tentando enfatizar e dar força a alguns aspectos: mergulha na mitologia do diretor italiano, na medida em que homenageia não só Suspiria, mas toda a trilogia das mães; potencializa o papel da Alemanha na trama, ao inserir o enredo nas questões políticas da história do país; enfatiza também a atividade da dança, talvez o grande mérito do filme - o trabalho de coreografia vale por si só como uma obra artística própria dentro da obra maior que é o longa-metragem.
Se é possível pensar o Suspiria de 1977 como uma relação entre a beleza e o horror, o horror apareceria ali como uma essência da beleza, no sentido de algo que fica por trás de beleza. Contudo, não sou partidário dessa leitura pois não estou certo que o filme estabeleça uma relação causal entre esses elementos, acho inclusive que pelo seu caráter surreal, ele tente abolir algumas relações de causa e efeito. Acredito que a implicação causa e efeito é maior na adaptação de 2018 (com uma abordagem bem mais realista), mas com a mediação feita pela violência. A beleza da dança é imediatamente percebida como efeito e causa da violência. Desde a primeira dança de Susie Banion, vemos o peso dos seus movimentos, numa performance em que a noção de leveza passa muito distante. Um paralelo aqui pode ser traçado com Cisne Negro, mas o próprio filme de Aronovsky é um dos filhos do Suspiria de 1977.
Não aparecem a intensidade e multiplicidade de cores do filme anterior. A fotografia é bem sóbria. Não temos também a tempestade, mas muito gelo. Mantem-se aqui o distanciamento dos sustos e do recurso a escuridão como facilitador do medo. A iluminação é muito sóbria e se aproxima da de Argento somente no clímax, em uma cena em que desponta uma luz vermelha infernal.
Não temos a música da banda de rock progressivo Goblin (quem assume a trilha é Thom Yorke), mas os suspiros, obviamente essenciais, permanecem na diegese do longa-metragem, como efeitos diretos da dança. É um filme também muito sensorial, que flerta o tempo inteiro com o pesadelo e não justifica todos seus acontecimentos. No entanto, alguns elementos sugestivos (por ex. A dimensão sexual) são muito mais explícitos nessa nova versão. Se no filme de Argento o efeito sensorial se dava por um excesso de luz, cor e som, aqui se dá como um estranhamento direto do corpo. Contudo, o efeito de confusão também se dá no texto. Enquanto o Suspiria de Argento é muito simples e às vezes soa até infantil, o texto de Guadanino é mais complexo, mas também em função do próprio filme ser verborrágico. Acho que esse é o pecado do filme. O excesso do corpo bastaria, o filme não harmoniza esse ponto com o excesso de informação, de referências textuais e históricas (nazismo, RAF, Lacan, Jung, religião, questões de gênero). Não se decide bem, pois tenta manter a atmosfera surrealista, mas adota uma linguagem realista. Parece o caso de um filme que se torna complexo não por um processo imanente ao tema ou a forma, mas por um excesso de conteúdo que pretende dar conta de muita coisa, tornando o filme inclusive mais longo do que precisava.
Sintoma desse conteudismo é o fato de a refilmagem dar mais espaço para as professoras que para as alunas. É um filme professoral - lembraria que o tema mestre-discípulo já se apresenta de modo essencial em Me Chame pelo Seu Nome. Mas Guadagnino, ao homenagear seu compatriota, comete o erro de tentar ensinar demais, beirando o exibicionismo (o que o papel duplo para Tilda Swinton acrescenta?), esquecendo que a maestria tem mais a ver com a simplicidade ou com a justa medida, mesmo no excesso.
Direção de arte, fotografia e trilha sonora se destacam na proposta de Suspiria(1977) de Dario Argento: um horror sensorial. O enredo é muito simples, até porque serve a esse objetivo maior que são as sensações. Claro que a submissão ao sensível é típica desse gênero, mas na maioria das vezes busca-se simplesmente o medo repentino, o choque pelo susto. Em Suspiria, não se trata disso. A lógica é a da sensibilidade, mas de um modo mais complexo, sem excesso de sustos, e sim um excesso de visibilidade e sonoridade o tempo inteiro. É tudo muito grandioso e por isso caricato, mas deliberadamente. Um cenário barroco e uma trilha rica de ruídos de várias ordens, incluindo obviamente os suspiros (Novamente a banda de rock progressivo Goblin, já presente em Profondo Rosso).
A fotografia não se submete ao terror pelo sombrio, pela escuridão. O que impressiona é muito mais a vivacidade da cor, mesmo a iluminação sombria é muito colorida e as cores se tornam elemento fundamental da narrativa, inclusive do ponto de vista das peripécias, já que é uma cor que leva a personagem principal descobrir o covil que guarda o segredo do espaço.
Trata-se de um horror sensorial também na medida em que é absurdo, com uma atmosfera de surrealismo, com poucas explicações textuais e justificativas no roteiro, inclusive em sua resolução bem simplista, mas que se adéqua a essa proposta sensível de um grande pesadelo.
Uma combinação de um trato singular com personagens femininas, exploração de espaços fechados muito amplos e de singularidades dos corpos, atuações caricatas, acontecimentos absurdos e cores intensas me fazem pensar no horror posterior de diretores como Lynch, De Palma, Aronovsky e até Kubrick.
Se insere no cinema que discute classe sociais, algo que ganhou força em 2019. Contudo, o faz de modo desastroso. Não é nada sutil nesse sentido, mas também não se aprofunda no tema. O caráter político se baseia mais na construção de alguns tipos (o sindicalista, o anarquista, o peronista), mas se dilui em todo tipo de pieguice, com clichês de narrativa que se propõe como arrojada, como um manual de buscar os efeitos catárticos após tensões épicas, dentro de uma proposta que não se define muito bem como realista ou fantasiosa, numa comédia que não se equilibra bem no drama que também pretende ser.
A câmera obsedante que capta o poder em sua física mais visceral lembra Pasolini. Guto Parente já entrava no horror em A Misteriosa Morte de Pérola. Mas o que está no Clube, que parece caracterizar sua obra como um todo é a busca por filmar, no mínimo, dois mundos, e realizar o estudo de perspectivas.
Os pontos de vista são dados pela carne. Carne comida, carne que come. Comer, como tudo nesse filme, é um ato tão direto que nem chega a ser metafórico.
Desnecessário. Talvez seja o caso de voltar a 1996 pra tirar o gosto ruim dos olhos. Mass T2 tenta se alicerçar tanto no primeiro filme que é capaz de torná-lo ruim também.
É curioso o fascínio que a máfia italiana exerce em partes da comunidade afro-americana. Martin Scorsese, por exemplo, que nunca ou quase nunca escala negros em seus filmes, é provavelmente o cineasta mais citados por rappers. Assim, um filme biográfico como O Gangster, sobre Frank Lucas, o primeiro negro a superar os italianos no mundo da máfia norte-americana, parece ter chegado um pouco atrasado, e eu mesmo tendo assistido muito tarde, desconheço se houve grandes expectativas, e caso sim, se foram atendidas ou não.
A direção é de Ridley Scott, certamente um dos cineastas mais versáteis das últimas quatro décadas, que nunca recuperou o patamar dos seus filmes dos anos 80. Um dos riscos da versatilidade é a ausência de um estilo próprio, o que combina muito com o cinema deliberadamente industrial, e certamente o sucesso de Scott dependeu muito até hoje do público dessa escala. Uma das consequências de um enfraquecimento da assinatura é realizar obras muito genéricas. Me parece que em muitos momentos O Gangster é um filme genérico, mas em outros apenas tecnicamente eficiente, sem exibicionismos, permitindo a elevação do roteiro do ponto de vista dramático, mas com alguns pontos que ampliam as discussões de modo relevante.
Como os clássicos filmes de máfia, O Gangster exerce sua função de contar parte da história subterrânea dos Estados Unidos, além de usar isso para ser didático em uma disciplina muito explorada nesses casos: a microeconomia. Mas são outros os pontos que gostaria de destacar e eles giram em torno de questões éticas. Um deles é o fato de que consegue pontuar bem as questões raciais nas dinâmicas internas à máfia. Outro é destacar conflitos subjetivos de Frank Lucas – aí entra novamente a atuação de Denzel Washington - , um deles bem explícito por uma sequência de cenas que culmina numa vestimenta exuberante sendo jogada numa lareira, como efeito de burlar uma regra imposta a si mesmo. O terceiro diz respeito ao personagem interpretado por Russel Crowe, todo desenrolar de seu conflito dianoético até quando é confrontado pela ex-esposa no que diz respeito a sua pretensa pureza e honestidade. Contudo, o filme não desenvolve bem o questionamento do voluntarismo moral, obliterando-a em função do mito do herói virtuoso encarnado na figura do bom policial contra o sistema corrupto.
Não sei se é o caso das discussões virem de jegue dos Estados Unidos pra cá, mas muito de temática racial que parece fresquinha por aqui está nesse filme da década de 90, mas falando de coisas de algumas décadas mais atrás, e obviamente, da história macabra dos EUA e da civilização ocidental. E Spike Lee o faz encarando o caráter polêmico e conflituoso dos temas, como o faz em toda sua obra, sem deixar respostas definitivas.
Malcolm X é um épico de Spike Lee. A primeira parte do filme, que retrata a vida do jovem Malcolm, é mais experimental em termos de ângulos, cores, luzes e texto. A iluminação se integra as discussões religiosas que o filme propõe. Quando Malcolm se converte ao Islã e torna sua própria personalidade mais séria, a estética do filme também se torna mais clássica e mais austera. Tudo fica realista e solene. Mas é interessante que, aspectos do jovem Malcolm permanecem após sua guinada política, mesmo que com uma transformação radical de sua personalidade. Assim, percebemos que há uma continuidade no que diz respeito a sua persistência, ao senso se liderança, sua impavidez diante do risco de morte. Todas características que permanecem, a despeito de todas mudanças. Na verdade elas mesmas precisam dessas mudanças para persistir e ganhar mais força com novas configurações.
Um sintoma dessa questão está na própria figura de Spike Lee como ator, que interpreta aqui quase o mesmo personagem que ele insere em outros filmes em que ele dirige e atua, como em Ela quer Tudo e em Faça a Coisa Certa, essa figura meio malandra, meio bonachona em toda sua performance falada e corpórea. Isto é, é a repetição de um arquétipo que se adéqua a histórias muito diferentes a serem contadas.
Dentre muitos méritos, Denzel Washington se notabiliza por interpretar personalidades importantes da história norte-americana, como Frank Lucas em O Gangster, e Rubie Carter em The Hurricane. A primeira vez que fez isso foi incorporando Malcolm X, e ele se mostra exímio em situar seu personagem nessa dialética entre o ser e o devir.
Infelizmente quando se fala em um longa-metragem chamado Mãe/Mother, o que vem primeiro nas pesquisas e na mente de espectadores é o filme do Aronovsky, esquecendo-se do precioso filme de Bong Joon-Ho. Aqui se vê vários temas de seu novo filme e talvez mais célebre, Parasita, dos mais amplos, como a violência, a chuva, a pobreza, ao mais específico cenário em que alguém é obrigado a presenciar, escondido, uma cena de sexo sem a menor vontade de estar ali.
A direção precisa nos manipula perfeitamente aonde o roteiro quer chegar. Ainda que seja possível terminar o filme com uma pulga atrás da orelha, é certo que a trama traz uma discussão sobre a verdade, talvez um pouco aos moldes do clássico do cinema oriental Rashomon, de Akira Kurosawa, mas sendo um pouco mais direto nesse sentido, assumindo seus efeitos para se colocar a verdade como problema moral e social.
O filme também traz o tema do duplo e do uno. O duplo nas necessidades especiais no que diz respeito a saúde mental, entre os dois acusados de assassinato, até mesmo “compartilhando” o pensamento de que expor uma vítima de violência pode ajudar os mais aptos a conseguirem ajuda especializada. O duplo mãe-filho, consistindo justamente na união, na unidade proclamada pela mãe e nos atos cruciais do filho que derivam diretamente dos ensinamentos maternos: se te chamam de retardado, revide. Se te baterem, bata duas vezes.
Por outro lado, o longa também passa pela condição da mulher, através das obsessões de uma figura materna e do sofrimento de garotas nas mãos e olhos obsessivos de homens das mais diversas idades e capacidades físicas e mentais. A tragédia pode vir simplesmente da exaustão.
Assim como em Parasita, o final se prolonga e vai se desdobrando em novas e novas peripécias. A busca pela verdade se enreda na proteção pela mentira. Tudo se confunde, mas ficam as questões nietzschianas sobre as armadilhas morais da vontade de verdade e sobre o quanto de verdade alguém pode suportar.
2019 é um ano marcante para a discussão sobre relações de classe no cinema. No Brasil, Bacurau é tido como o grande representante nesse quesito, embora talvez o Clube dos Canibais seja mais apropriado nesse contexto, enquanto Bacurau deslize para discussão sobre imperialismo. Na Argentina, A Odisseia dos Tontos encampa essa empreitada da maneira mais explícita possível, no entanto, de modo muito ingênuo e clichê. Até mesmo O Coringa já foi lido, em algum grau, por esse viés. Mas o grande filme do ano no que diz respeito ao tema é Parasita.
O filme inicia como uma comédia dinâmica baseado na lógica da constituição da narrativa por meio da perspicácia de um grupo de personagens predominando sobre a ingenuidade de outros. Essa parte do filme, embora muito funcional e divertida, depende muito da confiança do espectador na verossimilhança de acontecimentos de uma cadeia causal possível, mas nem sempre provável. Trata-se do plano arquitetado pela família que, nesse momento do filme, pode leva a alcunha que dá nome ao longa-metragem. É interessante notar que, se o filme acabasse nessa primeira parte, facilmente poderíamos cair numa leitura do tipo taylorista mais arcaico: “não se deve confiar nos empregados”.
Contudo, no momento em que a família de ex-desempregados se encontra sozinha na mansão, tudo começa virar de ponta a cabeça, até que eles possam ao menos começar a intuir que são menos parasitas do que as famílias ricas, mas que no entanto sua condição de classe não os livra de serem insetos. Vale lembrar o inseticida jogado na casa deles no início do filme, bem como das palavras da esposa para o marido: se os patrões chegarem, você correrá como uma barata. Após um breve alívio na fuga rastejante a família desce como que numa regressão que parece infinita, mostrando o abismo entre as duas famílias. E a chuva, que vista da sala de estar da mansão era considerado algo chique, mostra como o capitalismo molda sem muita dificuldade as consequências dos eventos naturais: uma casa alagada, em que a única coisa acima da água imunda é uma privada. Está muito claro: a merda está acima daqueles indivíduos, e também o mijo, visto constantemente através do bêbado que urina na rua, na altura de suas cabeças. Ali já se vive no porão e a água está muito longe de ser o liquido cristalino engarrafado nas geladeiras do Senhor Park.
A profecia das baratas se cumpre depois de várias peripécias que apresentam outro elemento que simboliza o conflito e a submissão entre classes: o porão subterrâneo da mansão e seus novos personagens, um inteiramente novo e outra que ganha nova configuração. A ex-empregada que tenta convencer a atual por meio de um discurso que busca comover pela solidariedade da miséria. Em vários momentos essa solidariedade é recusada durante o filme, sendo aceita somente no momento em que o motorista se solidariza com o prisioneiro do porão a partir do cheiro. O “cheiro especial de quem pega o metrô”, diz o patrão. A solidariedade de classe pelo cheiro, belíssima ideia de uma das mentes mais criativas do roteiro de cinema contemporâneo.
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A Idade da Terra
3.6 52 Assista AgoraAntonioni disse que A Idade da Terra é uma aula de cinema moderno. O próprio teria dito a Glauber, em ocasião anterior, que o cineasta brasileiro devia fazer captação direta do som, algo mais harmônico com o tipo de cinema que buscava fazer. Pois bem, Glauber o faz nesse filme e aproveita pra brincar com isso nas cenas em que ouvimos ele próprio dando orientações para os atores.
Ainda na relação com os italianos, Glauber se dedicou a pensar sobre o Cristo de Pasolini, quando elogiou nele sua violência e seu aspecto de agitador social. E podemos lembrar de Pier Paolo quando vemos novamente Glauber invocar Jesus por meio de vários Cristos de um “Terceiro mundo”, além de explorar a relação entre o poder e a pornografia.
Por vezes parece menos uma idade da terra do que uma história do Brasil, inclusive com entrevistas, discursos de especialistas. Mas é possível ver o Brasil sendo retratado como o mundo, como uma síntese da Terra, na medida em que vemos o filme destacar a mistura de culturas, “da Grécia aos Estados Unidos”, a ênfase no continente africano e no mundo indígena.
Nesse longa longuíssimo, já célebre por ser cansativo, vemos uma proposta clara de exaustão, de esgotamento, com a repetição de cenas, como que num registro do ensaio e de variações de gravações e ângulos. Quem sabe um eterno retorno perspectivístico, uma repetição que traz diferença. O tom nietzschiano é possível encontrar inclusive no tom muito direto e ao mesmo tempo enigmático das falas, como que em máximas. Talvez haja uma proposta de mais apresentar do que representar, usando todo esse tempo de filme para retomar seus temas mais caros: o messianismo, a religião, a mistura, a política.
A obsessão por Brasília nesse filme já é premeditada Em O Dragão da Maldade, com o Bar Alvorada, referência ao palácio da cidade-satélite. Brasília é um bar, um brega, uma festa? Quando Brahms chega em Brasília é como se chegasse em uma balada. Mas seu discurso lembra uma inversão de Porfírio Díaz, ele fala em não buscar a vitória mas a paz, contrasta com o elogio da força pela “harmonia universal dos infernos”. Mas no fim dessa sequência Bhrams diz “vocês vão aprender, eu voltarei”, o que lembra o “aprenderão” do personagem de Terra em Transe.
Destaque novamente para a composição sonora. Nunca óbvia, muitas vezes conflitando com a imagem. Os tambores trazem o transe, que se liga à religião e à repetição – dois elementos essenciais do filme. Ressalta-se aqui o aspecto dionisíaco, muitas vezes exposto em encenações desformes, de duas maneiras: uma com a câmera se agitando ao ponto de não percebermos as formas/contornos dos corpos; outra com a filmagem de corpos coletivos, como na orgia e no carnaval, em que não percebemos claramente os indivíduos.
A tensão entre o pesado e o leve, entre a flutuação dos corpos que dançam e a gravidade dos mesmos corpos martelando palavras e se agarrando à terra em imagens horizontalizadas. Não é difícil ver o trágico em seu cinema.
Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou
4.0 64Gostei muito de como o filme foi montado e filmado, pois o Babenco enquadrado aparece como um objeto de amor que se confunde com o amor pelo cinema, ultrapassando a ideia de um amor individual e seus clichês - que ficam de lado aqui sobretudo pelo belo final. Acaba por ser um filme sobre amar o amor e sobre o aprender a amar num processo de aprendizado do olhar da própria Bárbara, um aprender a apreender e aprender a se desvencilhar.
Roma
4.1 1,4K Assista AgoraJá em outros filmes Cuaron se destaca pelo virtuosismo técnico na composição dos planos. Mas em outros filmes, os planos-sequência em Children of Men por exemplo, é compreensível a integração entre os recursos formais e a narrativa. Em Roma, fico pensando se não há um exibicionismo nessa fotografia, de modo que caia naquela coisa meio Sebastião Salgado de embelezar a miséria com um p&b sublime. Entendo que a fotografia fornece a atmosfera onírica do filme, em um exercício de memória. Mas esse quesito é mais uma questão pessoal do diretor do que do filme por si mesmo. Acredito que a narrativa chama mais atenção para as questões sociais do que para questões subjetivas da memória, mas sua abordagem formal parece ir em direção contrária.
O Hotel às Margens do Rio
3.4 12Encontro e aproximação entre mulheres. Desencontro e distanciamento entre homens. No meio, no todo, e ao redor do rio - a passagem.
Mad Max: Estrada da Fúria
4.2 4,7K Assista AgoraMad Max: Fury Road é o filme de ação “puro”, de roteiro aparentemente simples e diálogos aparentemente banais, muito longe do cinema de ação/aventura que se pretende muito inteligente, como vemos em Nolan. Parecem cinemas, nesse sentido, totalmente opostos. Mas não por isso o filme do experiente Miller é algo como “burro” ou se pretende como tal. É um filme muito inteligente sem que soe pretensioso. Porque sua sagacidade não é verborrágica. Há uma complexidade que não deriva de um amontoado de palavras expressas tão rapidamente que deixam o espectador sufocado de texto ao ponto de não ter tempo pra pensar. Trata-se da engenhosidade das cenas de ação e da mecânica em sentido extenso e particular no manejo dos carros para a sucessão de batalhas. O uso do espaço do caminhão de Furiosa faz com que o filme seja guiado ali, quase como um road movie com seus clichês de auto-descoberta, mas algo ainda muito pequeno diante do grande filme de ação que se desenvolve numa corrida maluca no deserto. Há alguma dificuldade de compreender os mecanismos das batalhas porque a coisa vai bem acelerada nesse momento, mas a graça da ação é que ela se sustenta sem tanta compreensão racional, muitas vezes depende mais de uma intuição espaço-temporal. Ainda assim, Miller nos dá tempo pra respirar e cuspir a poeria, em momentos em que podemos nos deter mais na fotografia de John Seagle, mas nunca tempo demais pra achar que é possível ir no banheiro, nem parando a imagem.
O filme visga. Garante-se no controle do tempo e do espaço que as cenas usam com seu trabalho coreográfico arrojado percorrendo cenários que abusam da estética do futuro usado. O que vem pra pensar é adendo, mas tem-se o que pensar, sem que venha do texto, pois esse é o recurso mais óbvio e preguiçoso. O texto, inclusive, é propositalmente pobre. Mas assertivo. São poucas palavras, as vezes repetidas, que nos jogam na dinâmica dessa distopia. São essas palavras que fornecem a dimensão mítica do filme, e vão nos dando informações preciosas sem nenhum excesso verbal: quando o filho morto é tirado da barriga da mãe e é lamentado porque seria perfeito, podemos inferir daí que filhos saudáveis são raros ali, não somente pela circunstancias materiais, até mesmo porque a elite da cidade vivia bem, mas sim porque essa elite é um ciclo fechado, uma tribo que não parece passar pela exogamia, que portanto os filhos são derivados de relações consanguineas, que as esposas do grande pai podem ser bem suas filhas. Sabemos muito dessa figura do vilão em poucos atos.
Não se trata simplesmente de diálogos que desaparecem para exaltar a ação. Mas sim da adequação com a narrativa, com esse mundo-deserto em que o vocabulário empobrece, pois a visão de mundo é ela muito curta, é o cenário apocalíptico onde a qualquer momento o cruzamento de uma linha pode aparecer o fim do mundo, pois esse mundo futuro é tão arcaico que a terra pode voltar a ser plana, já que os jovens sustentam suas ações na esperança de um paraíso além-mundo, já que o governo da cidade central é feito por um tirano que controla a água. Economicamente, não há nada mais atual do que o domínio via tal recurso natural. Nesse mundo religioso e arcaico, só restam mitos, e isso é muito bem explorado nas palavras que restam. Temos ali mitos antigos como os nórdicos, aos quais sabemos que são muito atualizados na cultura pop, e andam ao lado de objetos de consumo como a coca-cola, não esquecida aqui. Mas também temos mitos que dialogam com a ciência, como a hipótese darwin-freudiana do pai primevo, o chefe da horda primitiva que é o pai de todos de seu grupo, porque detém as mulheres para si.
E é nesse tema que vemos o velho Miller se mostrar atualizado tematicamente, revivendo o personagem de Max, outrora interpretado pelo conservador Mel Gibson, agora com um Tom Brady que é tomado por alguns simples afetos: lutar, se assombrar e grunhir. Ele quase não fala, emite seus sons de ogro, mas não cai na fetichização de exibir o homem másculo e violento que domina a mulher, sendo as vezes agressivo com ela, mas que garante seu amor porque no fim estava certo (inúmeros são os casos, mas pra manter na direção cult-nerd, lembraria de 12 macacos e V de Vingança). O que ocorre é que Mad Max, ainda tramado no clichê da jornada de herói contemporânea, nessa coisa meio anti-herói que reluta em aceitar uma tarefa a qual está destinado, divide o protagonismo com a heroína furiosa e as mulheres-objeto que estão no processo de se tornarem sujeitas. Não há nada de gratuito em que o filme seja sobre isso: a busca de um grupo de mulheres em não ser simplesmente os objetos que foram condenados a serem e que pra isso escolhem uma mulher para ajudá-las.
Ostinato
3.6 3Que o ostinato vá pro título mostra o interesse de Paula na repetição, algo de presença muito forte em seu outro novo filme, Hace o camino ao andar. Arrigo explica sobre o ostinato numa série. A série na dodecafonia é pra evitar a repetição, a poralização, o centro. Ao usar o ostinato, portanto, ele se diferencia dessa música frequentemente associada a ele e se aproxima da música popular. Daí a ideia do Arrigo, que ele repete ainda uma vez, de que sua música é um erudito-popular.
Mais um filme muito falado sobre um músico, ainda que não seja uma biografia. Arrigo já atuara com Paula e sua câmera é muito próxima dele. Quando fala de Beethoven, é curioso ver como ele próprio se parece com o autor de A Grande Fuga , uma peça-pensamento, segundo o próprio Arrigo, que diz isso após se levantar do piano, em que encostava a cabeça num misto de cansaço e de escuta atenta ao que a diretora fala numa conversa em que o confronta, sem qualquer agressividade, mas que soa como uma abordagem inesperada e fornece um outro filme na segunda parte do documentário.
Paula, que é uma cineasta muito sonora, chega a expor sua relação com a música nessa fala que se contrapõe a do Arrigo, e em algum momento do papo arremessa sobre ele uma declamação de um texto do Benjamin na voz do próprio Arrigo.
Não há nada de deselegante no diálogo entre os dois, muito pelo contrário. Se nessa segunda parte vemos Arrigo se propor a improvisar ao piano, Paula o conduz a uma improvisação no campo do pensamento.
Ali
3.6 173 Assista AgoraA narrativa mais agradável possível em todo tipo de meio passa por apresentar um personagem zombador, megalomaníaco, que humilha seus adversários, e finalizar com sua derrota. O prazer aumenta quando o vencedor é um herói calado, humilde, que passou por muitas dificuldades e fez do silêncio uma singela oração. Ponto positivo para Ali desconstruir essa ideia. O filme mostra Ali em toda a segurança de si, beirando a arrogância, embora fique claro que ela é muito estratégica, tanto do ponto de vista específico contra seus adversários de ringue, quanto do ponto de vista mais amplo, contra os EUA. Que seja estratégico contra seus adversários, em sua maioria homens que passaram por problemas parecidos com os dele, fica claro quando Ali se encontra com Joe Frazier, e esse último realiza seu desejo de lhe conceder uma luta. Smokin Joe, na dele, vence, e este poderia ser o final do longa, daquele modo catártico de contar uma história, se o herói dela fosse o Frazier.
Nenhum adversário de Ali é pintado como vilão (o contrário do que fizeram com Max Bauer em Cinederella Man), se existe uma figura incômoda ali, é ele próprio. No entanto, todos torcem por ele. O mundo do esporte parece acompanhar uma ética muito menos cristã do que grega, não a toa inventaram as olimpíadas. Se valoriza os que se sobressaem, mas não apenas, também os que se julgam como tal, aqueles que, antes de tudo, se declaram como os bons. E aqui bom não é o contrário de mau, mas o contrário de ruim, de modo que o atleta que assuma essa nobreza nietzschiana poderá ser chamado de mau, segundo a ética cristã. Nesse sentido é muito interessante ver Ali repetindo ser mau. E o faz de acordo com sua recusa ao cristianismo, que parece maior do que sua afirmação do islamismo, mesmo o islamismo afro-americano, que Malcom X perceberá como bem específico depois de sua peregrinação a Meca. A propósito, no filme de Spike Lee, Ali não é tão importante quanto Malcom é no filme de Michael Mann.
A captação digital ocorre em alguns momentos, ainda não é predomínio como se tornará em Inimigos Públicos. O tremor da câmera é bem dosado e compatível com a vida dinâmica do personagem principal, com muitos tremores e menos temores, porque ele próprio não permitia que o medo o levasse ao nocaute.
Duro de Matar
3.8 735 Assista AgoraDuro de matar é um desses filmes que ganha fãs de todos os tipos, com destaque para aquele tipo que decora falas. O filme fornece as condições para essa reprodução pois é cheio de boas tiradas. Segue muito um roteiro do cinema americano que vez ou outra é retomado: o heroísmo do homem “comum”. O que mais ressalta esse ponto não é nem o protagonista, mas o companheiro que ele ganha durante o filme. Um policial de baixa patente que se mostra muito mais perspicaz que o chefe da operação e até mesmo que o FBI – cujo comportamento previsível é precisamente o favorecimento no qual apostam os vilões. Muito interessante essa relação, a que é melhor constituída no filme, pois se dá na maior parte do tempo sem que os dois apareçam no mesmo plano, o que traz a catarse da cena final, que volta o herói não apenas a um reencontro com sua esposa, mas agora também com um amigo.
Filme de ação clichê, dialogando com os que o precedem, mas que tem o poder de impulsionar um cinema de ação posterior. Por seu realismo pé no chão, que remete a jornada do herói ao mundo dos mortais, não se compromete com o exagero performático de protagonista infalível, essa espécie de gênio acrobata com super-força. O modo como ele derrota os inimigos, um por um, vai lhe dando chance pouco a pouco, cada vez mais uma sobrevida, e o que mantém é essa capacidade de não morrer (daí veremos a sacada de Shyamalan em escalar Bruce Willis em Corpo Fechado). É esse realismo que torna mais marcante as cenas mais exageradas, como o salto do prédio sustentado por uma mangueira (vemos uma reencenação criativa e trash dessa cena em Machete, de Robert Rodriguez). O fascínio infantil com a metralhadora lembra o Scarface de Howard Hawks. O heroísmo de pés descalços é retomado depois em Filhos da Esperança. Mas não podemos esquecer que o arquétipo de um Herói com problemas nos pés alcança uma mitologia que remonta, no mínimo, a linhagem de Édipo Rei.
Toda essa narrativa de conciliação e reconciliação no inverno estadunidense casa perfeitamente com uma característica essencial: Duro de Matar é um Filme de Natal, e apesar da simplicidade, parece sim ter consciência do poder mítico que carrega.
Suspíria: A Dança do Medo
3.7 1,2K Assista AgoraSuspiria (2018), de Luca Guadagnino, certamente não é o tipo de remake dispensável. O diretor se apropria do material de Argento tentando enfatizar e dar força a alguns aspectos: mergulha na mitologia do diretor italiano, na medida em que homenageia não só Suspiria, mas toda a trilogia das mães; potencializa o papel da Alemanha na trama, ao inserir o enredo nas questões políticas da história do país; enfatiza também a atividade da dança, talvez o grande mérito do filme - o trabalho de coreografia vale por si só como uma obra artística própria dentro da obra maior que é o longa-metragem.
Se é possível pensar o Suspiria de 1977 como uma relação entre a beleza e o horror, o horror apareceria ali como uma essência da beleza, no sentido de algo que fica por trás de beleza. Contudo, não sou partidário dessa leitura pois não estou certo que o filme estabeleça uma relação causal entre esses elementos, acho inclusive que pelo seu caráter surreal, ele tente abolir algumas relações de causa e efeito. Acredito que a implicação causa e efeito é maior na adaptação de 2018 (com uma abordagem bem mais realista), mas com a mediação feita pela violência. A beleza da dança é imediatamente percebida como efeito e causa da violência. Desde a primeira dança de Susie Banion, vemos o peso dos seus movimentos, numa performance em que a noção de leveza passa muito distante. Um paralelo aqui pode ser traçado com Cisne Negro, mas o próprio filme de Aronovsky é um dos filhos do Suspiria de 1977.
Não aparecem a intensidade e multiplicidade de cores do filme anterior. A fotografia é bem sóbria. Não temos também a tempestade, mas muito gelo. Mantem-se aqui o distanciamento dos sustos e do recurso a escuridão como facilitador do medo. A iluminação é muito sóbria e se aproxima da de Argento somente no clímax, em uma cena em que desponta uma luz vermelha infernal.
Não temos a música da banda de rock progressivo Goblin (quem assume a trilha é Thom Yorke), mas os suspiros, obviamente essenciais, permanecem na diegese do longa-metragem, como efeitos diretos da dança. É um filme também muito sensorial, que flerta o tempo inteiro com o pesadelo e não justifica todos seus acontecimentos. No entanto, alguns elementos sugestivos (por ex. A dimensão sexual) são muito mais explícitos nessa nova versão. Se no filme de Argento o efeito sensorial se dava por um excesso de luz, cor e som, aqui se dá como um estranhamento direto do corpo. Contudo, o efeito de confusão também se dá no texto. Enquanto o Suspiria de Argento é muito simples e às vezes soa até infantil, o texto de Guadanino é mais complexo, mas também em função do próprio filme ser verborrágico. Acho que esse é o pecado do filme. O excesso do corpo bastaria, o filme não harmoniza esse ponto com o excesso de informação, de referências textuais e históricas (nazismo, RAF, Lacan, Jung, religião, questões de gênero). Não se decide bem, pois tenta manter a atmosfera surrealista, mas adota uma linguagem realista. Parece o caso de um filme que se torna complexo não por um processo imanente ao tema ou a forma, mas por um excesso de conteúdo que pretende dar conta de muita coisa, tornando o filme inclusive mais longo do que precisava.
Sintoma desse conteudismo é o fato de a refilmagem dar mais espaço para as professoras que para as alunas. É um filme professoral - lembraria que o tema mestre-discípulo já se apresenta de modo essencial em Me Chame pelo Seu Nome. Mas Guadagnino, ao homenagear seu compatriota, comete o erro de tentar ensinar demais, beirando o exibicionismo (o que o papel duplo para Tilda Swinton acrescenta?), esquecendo que a maestria tem mais a ver com a simplicidade ou com a justa medida, mesmo no excesso.
Suspiria
3.8 981 Assista AgoraDireção de arte, fotografia e trilha sonora se destacam na proposta de Suspiria(1977) de Dario Argento: um horror sensorial. O enredo é muito simples, até porque serve a esse objetivo maior que são as sensações. Claro que a submissão ao sensível é típica desse gênero, mas na maioria das vezes busca-se simplesmente o medo repentino, o choque pelo susto. Em Suspiria, não se trata disso. A lógica é a da sensibilidade, mas de um modo mais complexo, sem excesso de sustos, e sim um excesso de visibilidade e sonoridade o tempo inteiro. É tudo muito grandioso e por isso caricato, mas deliberadamente. Um cenário barroco e uma trilha rica de ruídos de várias ordens, incluindo obviamente os suspiros (Novamente a banda de rock progressivo Goblin, já presente em Profondo Rosso).
A fotografia não se submete ao terror pelo sombrio, pela escuridão. O que impressiona é muito mais a vivacidade da cor, mesmo a iluminação sombria é muito colorida e as cores se tornam elemento fundamental da narrativa, inclusive do ponto de vista das peripécias, já que é uma cor que leva a personagem principal descobrir o covil que guarda o segredo do espaço.
Trata-se de um horror sensorial também na medida em que é absurdo, com uma atmosfera de surrealismo, com poucas explicações textuais e justificativas no roteiro, inclusive em sua resolução bem simplista, mas que se adéqua a essa proposta sensível de um grande pesadelo.
Uma combinação de um trato singular com personagens femininas, exploração de espaços fechados muito amplos e de singularidades dos corpos, atuações caricatas, acontecimentos absurdos e cores intensas me fazem pensar no horror posterior de diretores como Lynch, De Palma, Aronovsky e até Kubrick.
A Odisseia dos Tontos
3.8 165Se insere no cinema que discute classe sociais, algo que ganhou força em 2019. Contudo, o faz de modo desastroso. Não é nada sutil nesse sentido, mas também não se aprofunda no tema. O caráter político se baseia mais na construção de alguns tipos (o sindicalista, o anarquista, o peronista), mas se dilui em todo tipo de pieguice, com clichês de narrativa que se propõe como arrojada, como um manual de buscar os efeitos catárticos após tensões épicas, dentro de uma proposta que não se define muito bem como realista ou fantasiosa, numa comédia que não se equilibra bem no drama que também pretende ser.
O Clube dos Canibais
3.1 149 Assista AgoraA câmera obsedante que capta o poder em sua física mais visceral lembra Pasolini. Guto Parente já entrava no horror em A Misteriosa Morte de Pérola. Mas o que está no Clube, que parece caracterizar sua obra como um todo é a busca por filmar, no mínimo, dois mundos, e realizar o estudo de perspectivas.
Os pontos de vista são dados pela carne. Carne comida, carne que come. Comer, como tudo nesse filme, é um ato tão direto que nem chega a ser metafórico.
T2: Trainspotting
4.0 695 Assista AgoraDesnecessário. Talvez seja o caso de voltar a 1996 pra tirar o gosto ruim dos olhos. Mass T2 tenta se alicerçar tanto no primeiro filme que é capaz de torná-lo ruim também.
O Gângster
4.0 456 Assista AgoraÉ curioso o fascínio que a máfia italiana exerce em partes da comunidade afro-americana. Martin Scorsese, por exemplo, que nunca ou quase nunca escala negros em seus filmes, é provavelmente o cineasta mais citados por rappers. Assim, um filme biográfico como O Gangster, sobre Frank Lucas, o primeiro negro a superar os italianos no mundo da máfia norte-americana, parece ter chegado um pouco atrasado, e eu mesmo tendo assistido muito tarde, desconheço se houve grandes expectativas, e caso sim, se foram atendidas ou não.
A direção é de Ridley Scott, certamente um dos cineastas mais versáteis das últimas quatro décadas, que nunca recuperou o patamar dos seus filmes dos anos 80. Um dos riscos da versatilidade é a ausência de um estilo próprio, o que combina muito com o cinema deliberadamente industrial, e certamente o sucesso de Scott dependeu muito até hoje do público dessa escala. Uma das consequências de um enfraquecimento da assinatura é realizar obras muito genéricas. Me parece que em muitos momentos O Gangster é um filme genérico, mas em outros apenas tecnicamente eficiente, sem exibicionismos, permitindo a elevação do roteiro do ponto de vista dramático, mas com alguns pontos que ampliam as discussões de modo relevante.
Como os clássicos filmes de máfia, O Gangster exerce sua função de contar parte da história subterrânea dos Estados Unidos, além de usar isso para ser didático em uma disciplina muito explorada nesses casos: a microeconomia. Mas são outros os pontos que gostaria de destacar e eles giram em torno de questões éticas. Um deles é o fato de que consegue pontuar bem as questões raciais nas dinâmicas internas à máfia. Outro é destacar conflitos subjetivos de Frank Lucas – aí entra novamente a atuação de Denzel Washington - , um deles bem explícito por uma sequência de cenas que culmina numa vestimenta exuberante sendo jogada numa lareira, como efeito de burlar uma regra imposta a si mesmo. O terceiro diz respeito ao personagem interpretado por Russel Crowe, todo desenrolar de seu conflito dianoético até quando é confrontado pela ex-esposa no que diz respeito a sua pretensa pureza e honestidade. Contudo, o filme não desenvolve bem o questionamento do voluntarismo moral, obliterando-a em função do mito do herói virtuoso encarnado na figura do bom policial contra o sistema corrupto.
Malcolm X
4.1 267 Assista AgoraNão sei se é o caso das discussões virem de jegue dos Estados Unidos pra cá, mas muito de temática racial que parece fresquinha por aqui está nesse filme da década de 90, mas falando de coisas de algumas décadas mais atrás, e obviamente, da história macabra dos EUA e da civilização ocidental. E Spike Lee o faz encarando o caráter polêmico e conflituoso dos temas, como o faz em toda sua obra, sem deixar respostas definitivas.
Malcolm X é um épico de Spike Lee. A primeira parte do filme, que retrata a vida do jovem Malcolm, é mais experimental em termos de ângulos, cores, luzes e texto. A iluminação se integra as discussões religiosas que o filme propõe. Quando Malcolm se converte ao Islã e torna sua própria personalidade mais séria, a estética do filme também se torna mais clássica e mais austera. Tudo fica realista e solene. Mas é interessante que, aspectos do jovem Malcolm permanecem após sua guinada política, mesmo que com uma transformação radical de sua personalidade. Assim, percebemos que há uma continuidade no que diz respeito a sua persistência, ao senso se liderança, sua impavidez diante do risco de morte. Todas características que permanecem, a despeito de todas mudanças. Na verdade elas mesmas precisam dessas mudanças para persistir e ganhar mais força com novas configurações.
Um sintoma dessa questão está na própria figura de Spike Lee como ator, que interpreta aqui quase o mesmo personagem que ele insere em outros filmes em que ele dirige e atua, como em Ela quer Tudo e em Faça a Coisa Certa, essa figura meio malandra, meio bonachona em toda sua performance falada e corpórea. Isto é, é a repetição de um arquétipo que se adéqua a histórias muito diferentes a serem contadas.
Dentre muitos méritos, Denzel Washington se notabiliza por interpretar personalidades importantes da história norte-americana, como Frank Lucas em O Gangster, e Rubie Carter em The Hurricane. A primeira vez que fez isso foi incorporando Malcolm X, e ele se mostra exímio em situar seu personagem nessa dialética entre o ser e o devir.
Mother - A Busca Pela Verdade
4.1 279Infelizmente quando se fala em um longa-metragem chamado Mãe/Mother, o que vem primeiro nas pesquisas e na mente de espectadores é o filme do Aronovsky, esquecendo-se do precioso filme de Bong Joon-Ho. Aqui se vê vários temas de seu novo filme e talvez mais célebre, Parasita, dos mais amplos, como a violência, a chuva, a pobreza, ao mais específico cenário em que alguém é obrigado a presenciar, escondido, uma cena de sexo sem a menor vontade de estar ali.
A direção precisa nos manipula perfeitamente aonde o roteiro quer chegar. Ainda que seja possível terminar o filme com uma pulga atrás da orelha, é certo que a trama traz uma discussão sobre a verdade, talvez um pouco aos moldes do clássico do cinema oriental Rashomon, de Akira Kurosawa, mas sendo um pouco mais direto nesse sentido, assumindo seus efeitos para se colocar a verdade como problema moral e social.
O filme também traz o tema do duplo e do uno. O duplo nas necessidades especiais no que diz respeito a saúde mental, entre os dois acusados de assassinato, até mesmo “compartilhando” o pensamento de que expor uma vítima de violência pode ajudar os mais aptos a conseguirem ajuda especializada. O duplo mãe-filho, consistindo justamente na união, na unidade proclamada pela mãe e nos atos cruciais do filho que derivam diretamente dos ensinamentos maternos: se te chamam de retardado, revide. Se te baterem, bata duas vezes.
Por outro lado, o longa também passa pela condição da mulher, através das obsessões de uma figura materna e do sofrimento de garotas nas mãos e olhos obsessivos de homens das mais diversas idades e capacidades físicas e mentais. A tragédia pode vir simplesmente da exaustão.
Assim como em Parasita, o final se prolonga e vai se desdobrando em novas e novas peripécias. A busca pela verdade se enreda na proteção pela mentira. Tudo se confunde, mas ficam as questões nietzschianas sobre as armadilhas morais da vontade de verdade e sobre o quanto de verdade alguém pode suportar.
Parasita
4.5 3,6K Assista Agora2019 é um ano marcante para a discussão sobre relações de classe no cinema. No Brasil, Bacurau é tido como o grande representante nesse quesito, embora talvez o Clube dos Canibais seja mais apropriado nesse contexto, enquanto Bacurau deslize para discussão sobre imperialismo. Na Argentina, A Odisseia dos Tontos encampa essa empreitada da maneira mais explícita possível, no entanto, de modo muito ingênuo e clichê. Até mesmo O Coringa já foi lido, em algum grau, por esse viés. Mas o grande filme do ano no que diz respeito ao tema é Parasita.
O filme inicia como uma comédia dinâmica baseado na lógica da constituição da narrativa por meio da perspicácia de um grupo de personagens predominando sobre a ingenuidade de outros. Essa parte do filme, embora muito funcional e divertida, depende muito da confiança do espectador na verossimilhança de acontecimentos de uma cadeia causal possível, mas nem sempre provável. Trata-se do plano arquitetado pela família que, nesse momento do filme, pode leva a alcunha que dá nome ao longa-metragem. É interessante notar que, se o filme acabasse nessa primeira parte, facilmente poderíamos cair numa leitura do tipo taylorista mais arcaico: “não se deve confiar nos empregados”.
Contudo, no momento em que a família de ex-desempregados se encontra sozinha na mansão, tudo começa virar de ponta a cabeça, até que eles possam ao menos começar a intuir que são menos parasitas do que as famílias ricas, mas que no entanto sua condição de classe não os livra de serem insetos. Vale lembrar o inseticida jogado na casa deles no início do filme, bem como das palavras da esposa para o marido: se os patrões chegarem, você correrá como uma barata. Após um breve alívio na fuga rastejante a família desce como que numa regressão que parece infinita, mostrando o abismo entre as duas famílias. E a chuva, que vista da sala de estar da mansão era considerado algo chique, mostra como o capitalismo molda sem muita dificuldade as consequências dos eventos naturais: uma casa alagada, em que a única coisa acima da água imunda é uma privada. Está muito claro: a merda está acima daqueles indivíduos, e também o mijo, visto constantemente através do bêbado que urina na rua, na altura de suas cabeças. Ali já se vive no porão e a água está muito longe de ser o liquido cristalino engarrafado nas geladeiras do Senhor Park.
A profecia das baratas se cumpre depois de várias peripécias que apresentam outro elemento que simboliza o conflito e a submissão entre classes: o porão subterrâneo da mansão e seus novos personagens, um inteiramente novo e outra que ganha nova configuração. A ex-empregada que tenta convencer a atual por meio de um discurso que busca comover pela solidariedade da miséria. Em vários momentos essa solidariedade é recusada durante o filme, sendo aceita somente no momento em que o motorista se solidariza com o prisioneiro do porão a partir do cheiro. O “cheiro especial de quem pega o metrô”, diz o patrão. A solidariedade de classe pelo cheiro, belíssima ideia de uma das mentes mais criativas do roteiro de cinema contemporâneo.