Informações sobre o kickstarter criado para viabilizar o novo projeto do Abel Ferrara estrelando Willem Dafoe, um filme baseado no Livro Vermelho de Carl Gustav Jung:
" Por muitos dias, me sinto como se estivesse mudando. Como se estivesse em uma jornada desconhecida, indo a algum lugar. Tudo está distante de mim."
Meu musical favorito. Explosão poética Bollywoodiana sobre uma mulher esmagada pela sociedade. Pakeezah nunca teve uma chance, filha de uma prostituta, nascida em um cemitério. Do túmulo ao túmulo. Só lhe restou a arte como único fio condutor de vida, na dança e no canto encontra o júbilo tão negado pela realidade. É um filme extremamente belo e sensível. Meena Kumari, ícone eterno do cinema, encarna Pakeezah como nenhuma outra atriz poderia. Se enxerga nos olhos dela, algo de de tão doloroso... uma luta pessoal. Um dos maiores filmes, absolutamente.
Revi este filme maravilhoso e ainda não sei como descrever a sensação, de ver a cidade em chamas, jovens vs. policiais, coqueteis Molotov vs. armas de fogo, o conflito vira uma massa violenta e caótica que devora tudo e a todos... quando comentei anteriormente na página alinhei o Jean-François Richet com Spike Lee, e ao rever o filme essa conexão me pareceu ainda mais clara, embora o Richet me pareça muito mais subversivo e radical na representação da violência e na veia teórica do filme ( inclusive agradecendo, no final, a Marx, Engels, aos combatentes urbanos, ao proletariado internacional, entre outros ) não é sem problemática que ele posa a questão da revolta violenta.
Enquanto em 'Do The Right Thing' o Spike Lee sobrepunha dois discursos diferentes e concluía que naquela situação, não existia a coisa certa a se fazer, em Ma 6-T va crack-er ( minha cidade vai explodir! ) o Richet, que também põe nas ruas os jovens de classe baixa e descendentes de outros países, furiosos e revoltados, contra o abuso de poder policial, busca na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ( "a insurreição é, para o povo e para cada parcela do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres."), implicar ainda mais o espectador. O resultado é um filme complexo que levanta várias questões importantes sobre o poder do Estado, a falta de preocupação com os direitos das classes baixas e filhos de imigrantes na Europa, a necessidade da insurreição do povo e a violência como expressão inevitável. Não é de se surpreender que o filme foi censurado e considerado perigoso ao bem-estar público, o maior elogio que um filme poderia receber!
Talvez citando o trecho de um Rap que toca num ponto crucial, seja feita alguma justiça aos sentimentos e reflexões que o filme deixa:
"Nada e ninguém pode suprimir uma revolta. Você semeou a semente do ódio, agora vai colher. Rebeldes e rejeitados optaram pelo boicote. Vamos fazer os ricos lamberem as nossas botas. Vamos fazer rastejar aqueles que já nos fizeram rastejar! Pagar o mal com mal não é bom, mas ... Raiva e frustração impedem a reflexão. É Deus ou o Diabo quem orienta todas nossas ações? Saiba que temos todos os nossos parceiros ao lado, Cada um de nós é um aliado, G e D, Mystik e eu. Nossa tendência ao extremismo é impulsionado pelo peso da justiça. Estritamente hardcore! Os jovens estão desesperados. É hardcore, e nada pode pará-los. Aconteça o que acontecer, nós também vamos nos defender. Coisas boas vêm para aqueles que esperam."
Em Go Go Tales, um dos filmes mais fluídos do Ferrara, ele recria o tipo de ambiente imprevisível e bem-humorado que era Crazy Horse West (do grande filme 'A Morte do Bookmaker Chinês' do John Cassavetes), de onde brotavam belos sentimentos e atos criativos. Mas na Manhattan moderna, tudo foi contaminado pelo dinheiro - até mesmo as paredes! Em tempos de crise econômica, o clube Paradise corre o risco de dar lugar a uma loja da rede Bed Bath & Beyond' (!), porém Ray acredita que criou um lugar realmente especial com seu Paradise, uma família. É com certa doçura que os corpos nus das strippers pulsam, entregues ao som da música. Música que continua durante as cenas nos bastidores, porque aqui também é arte transformar as relações e interações em uma extensão do palco, sob a ternura burlesca do artista que foi calejado pela vida, mas mantém o sorriso desafiador: 'The show must go on!'
The Brown Bunny certamente não vai agradar a todos e nem foi feito pra isso. É um filme imerso em tristeza e melancolia que inevitavelmente vai tocar um certo tipo de espectador.
Interessante notar que o diretor americano Monte Hellman era quem deveria ter dirigido o filme anterior do Gallo, Buffallo '66, mas por divergências criativas, Gallo assumiu a direção. Interessante porque, Brown Bunny remete muito a Two-Lane Blacktop, o filme mais famoso do Hellman. Em ambos os filmes o personagem principal é um jovem introspectivo, muitas vezes um enigma, e ele dirige, dirige em silêncio pelas estradas do país inteiro. Mas o que corrói esse tipo de personagem, por que está sempre inquieto? Ele guarda um segredo, seja um sentimento de culpa ou de estranheza profunda, uma memória que assombra ou uma desilusão amorosa, mas principalmente, e comicamente (porque vive em movimento veloz), ele é um tipo de personagem impassivo, incapaz de tomar decisão alguma que o tire do conforto da viagem solitária e da fuga. Daí a cena em Brown Bunny onde Bud (Vincent Gallo) convence uma garota a fugir com ele, e depois se manda. Existe algum trauma, algum evento que marcou profundamente e que impede de seguir com a vida, chega a sufocar tanto que o homem se tornou apenas uma marca d'água do passado, um fantasma que vaga pela estrada. E por falar em fantasmas, essa é exatamente a personagem de Chloë Sevigny, uma aparição, espírito indefinido e sem forma que vai ficando mais nítido a cada eco distante, a cada mulher encontrada pelo caminho. The Brown Bunny parte o coração com todas essas imagens que são memórias, cheio de inquietação e desespero, não importa o quanto digam que é pretensioso ou uma farsa, é um filme sincero e meio desajeitado que jamais seria feito por outro diretor, nem para outro espectador se não o que tem olhos pra ver e ouvidos pra ouvir os segredos escondidos na câmara mais íntima.
De vez em quando encontramos filmes que, desafiando convenções do harmonioso e do equilibrado típicas do cinema clássico, se desenrolam de forma torta, complexa e fascinante. Obedecendo a lógica nenhuma que não seja a exigida pela própria história, The Barefoot Contessa começa com a morte de sua protagonista, e depois vai buscar em relatos e pontos de vista distintos, na memória turva das personagens, o decorrer dos fatos. O filme para e recomeça no mínimo três vezes, assim como são três etapas que marcam a decadência e morte da misteriosa Maria Vargas. Lembra Rashomon (Kurosawa, 1950) em sua estrutura fragmentada e na impossibilidade de capturar eventos com clareza. A estrela aclamada pelas massas carrega dentro de si forças da natureza como terra e fogo: é descalça no pó que se sente segura, no transe hipnótico de uma dança sensual, mas também no sexo selvagem que se sente mulher satisfeita. Por outro lado, é percebida como gelo pelos observadores: distante e inescrutável. Daí a necessidade da câmera parada enquanto personagens posam e recitam: é através da distinção entre público e privado que se forma o grande teatro da vida e que se tenta sobreviver num grupo social, seja na impiedosa máquina de Hollywood ou na aristocracia Italiana. Um filme sobre percepções e projeções que se desenrola como um conto de fadas febril, onde o príncipe está mais pra fantasma imaginado, incapaz de consumar o relacionamento, e a princesa uma eterna projeção do primeiro contato, do encontro mágico. The Barefoot Contessa é feito desses pequenos momentos mágicos e hipnotizantes capazes de mudarem o curso de uma história: um olhar trocado através de uma sala ou um belo rosto banhado pela lua.
Simplesmente o filme mais bonito e esteticamente rigoroso já feito sobre a maturação do homem. É fora do tempo histórico que Grandrieux situa seu 'Un lac', tudo ganha um ar mítico e de extrema pureza no Éden congelado, aos poucos as relações entre personagens vão ficando mais claras, como se nunca houvesse existido uma família antes desta, e a cada gesto relações vão oscilando entre familiares e amorosas. E de fato, o que é uma família? O que é ser um filho, uma irmã ou uma mãe? Aqui os sentimentos possuem raízes tão profundas de dependência que os papéis são praticamente dissolvidos, e seria obsceno deduzir mais do que é mostrado. São humanos e vivem numa casa cheia de escuridão, e isso basta. Mas ainda existe a inquietação do coração jovem, o sentimento de que existe algo a mais no mundo e de que todas as experiências esperam do lado de fora, essa é a melancolia extrema que cerca o filme. Aí entra aquela história, 'os olhos do descobridor são os mesmos olhos que destroem' quando um novo personagem aparece, e nada pode voltar a ser o que era antes, isso também é fonte de tristeza. É a custo de grandes dores que a perda da inocência se dá, e Grandrieux filma essa transição da infância do homem de uma forma inexplicavelmente íntima e instintiva, no final resta um nó na garganta ao som do vento gelado. Junto com La vie nouvelle e Sombre, Un lac afirma Grandrieux como um dos diretores mais talentosos e únicos da história do cinema.
Obra-prima do cinema francês, um filme que capta inúmeras vibrações, ritmos e formas que resultam da apreensão humana do mundo e das coisas com uma sensibilidade única, mas também como uma missão incessante, levada até o limite do delírio. O inconsciente, o primitivo, o destrutivo, La vie nouvelle constrói através de repetições e variações um mosaico da noite do coração. Tão forte e intenso, quase nada é dito, mas mesmo assim o filme se faz entender bem, é um retrato ao mesmo tempo horroroso e magnífico da condição humana: um rosto que dissolve no escuro, dois corpos entranhados pulsando de desejo ou medo, um grito de solidão.
Isolados em prédios luxuosos, longe da ralé, estão os homens de bem, que lutaram muito pra construir um espaço seguro pra família, livre da contaminação dos movimentos sociai-OPS dos mortos-vivos. Se acham livres, mas nada poderia estar mais longe da verdade, vivem num espaço social onde é muito bom ser individualista e materialista, mas ser indivíduo livre pra agir de acordo com suas próprias ideias, aí já não pode, tem que ser tudo uniforme, bem iluminado e na vitrine mais atraente possível. Mas daí que os mortos-vivos já não são os mesmos de antes, agora eles começaram a articular as próprias ideias, e a recompensa, ao mesmo tempo assustadora e deliciosa, tarda mas não falha. Um filme absurdo e genial do Romero, Land of the Dead é a renovação do filme de gênero para uma época onde o capitalismo avançado, corporações multinacionais e globalização causam mais medo e impotência do que qualquer monstro.
Basicamente nenhum filme do Abel Ferrara é fácil de se compreender à primeira vista, e New Rose Hotel, o mais abertamente experimental, talvez o melhor de todos eles (se é que dá pra escolher), não é nenhuma exceção. Daí talvez venha a rejeição de muitos, algo incompreendido, só pode ser 'lixo' mal dirigido ou filme com um ou outro aspecto diferente e interessante mas falho, quando na verdade estamos tratando de filmes muito exigentes e cuidadosamente executados. Esses filmes possuem uma exigência formal como princípio, já que reinventam de dentro pra fora o gênero a que pertencem: filme de policial, de vampiro, de serial killer, Ferrara já filmou todos e nenhum escapa da questão moral do diretor.
New Rose Hotel pode parecer um filme confuso, quando é um filme SOBRE o confuso e sobre a impotência do homem diante da história, o espectador só recebe as mesmas informações que X (Willem Dafoe), o filme nos mergulha no misterioso e no desconhecido. Conhecimento é crucial em New Rose Hotel, é questão de vida ou morte : quem possui a informação, quem está por dentro do jogo, é quem sai por cima num mundo amoral onde tudo e todos os segredos são comprados, onde a privacidade é invadida por câmeras de vigilância instaladas nos lugares mais improváveis, onde grandes corporações possuem 'copyright' sobre a vida.
E qual mistério maior do que Sandii (Asia Argento), essa força da natureza em vermelho, uma 'puta' digna de Hitchcock, capaz de liberar o destino mais cruel sobre toda a humanidade? Não é mais mocinha nem mais vilã do que Kim Novak em Vertigo ou Tippi Hedren em Marnie. Sandii se mostra indecifrável, o coração negro do filme, é por isso que New Rose Hotel sempre vai ter algo que foge ao intelecto, não importa o quanto seja assistido. Abel Ferrara joga o espectador nesse delírio cyberpunk através de imagens e sons, numa experiência erótica muito intensa. E no final X se pergunta como tudo aconteceu, procura a informação que falta, pistas e inícios, mas daí já é tarde, está comprometido demais pra enxergar qualquer tipo de resposta clara e coerente, é o impulso amoroso que intoxica o coração do homem mesmo em face da destruição inevitável.
Cinema popular ridicularizado pelos críticos contemporâneos e tachado de brega, mas que é fiel à experimentação e ao seu diretor. Zalman King cultiva a incoerência em seus filmes, não é uma questão dele não ter capacidade de ser coerente, é que a coerência aqui pouco interessa, o que interessa é aquele momento de respiração suspensa, a surpresa, a reviravolta na trama, é o poder de uma imagem, a magnitude de uma onda. 'In God's hands' está cheio de momentos como esse, onde tudo cessa e só resta o choque, a tensão entre vida e morte, documentário e ficção.
Um filme onde a beleza quase insuportável da natureza cai nas costas do homem e das atitudes mesquinhas, La Folie Almayer capta bem essa contradição entre as imagens puras e belas e a ganância obscena do colonialismo. Além de explorar a terra e forçar uma lógica capitalista visando o lucro máximo, também são forçados os nativos a um ideal Europeu. E qual a dor maior pro colonizador, do que a própria filha se juntar aos nativos insurgentes ao voltar da Europa, onde deveria ter virado 'gente branca'? Daí tudo vira sofrimento, o desumano se propaga pelos corpos e até arrisca apagar o brilho do coração jovem.
Paul Schrader é o mestre de cerimônias do funeral americano e arranjou os preparativos de acordo. Os atores da farsa: James Deen, um ator pornô, e Lindsay Lohan, uma estrela caída oscilando entre performance e persona em todo o seu brilho desbotado. The Canyons começa com imagens apocalípticas: cinemas arruinados e abandonados, como que em estado de decomposição. Essas imagens assombram todo o filme, não apenas nos lembrando que um diretor como Paul Schrader não tem mais espaço nas salas de cinema, mas também que aquela experiência comunal de sentar junto de estranhos na mesma sala corre risco de se tornar passado. Seriam essas imagens uma insinuação de que o cinema está morto? O que fazer da declaração do próprio diretor que The Canyons é um filme 'pós-cinema'? E pra onde foi o público? Talvez estrelar seus próprios vídeos, maquiar a vida em um espetáculo com centenas de likes na internet.
Daí começa a música eletrônica genérica, depois da cena de abertura, Lindsay Lohan aparece de costas e como uma equilibrista, caminha com seus saltos altíssimos pelo chão polido e aparentemente escorregadio, se despe, para em frente a escada e olha para baixo - e aqui a escada é como um vão, um cânion - e desce. Este é exatamente o gesto que a atriz e o filme vão reproduzir, uma descida ao abismo da degradação e alienação - mas aqui a degradação é branca e bege, reluzente e uniforme, só aparece podre no canto escuro da casa, na luz verde que dá aos corpos aspecto doentio. The Canyons não tem mocinho, porque aqui todos são corrompidos e tudo é resolvido através de transferências sexuais, e também todos vivem em um estupor meio apático, completamente absorvidos em si mesmos e em seus smartphones.
O filme não anda pra lugar nenhum, porque, o que há de se fazer com figuras mortas? Só colocar em diferentes posições. Como desenvolver personagens atrofiadas, essas gárgulas que agarram com todas as forças a estagnação? O que elas poderiam dizer, além de clichês, o que representar, além de melodrama barato? Só resta ligar e câmera e registrar o estado de entropia. The Canyons está mais pra filme-diagnóstico, ou melhor, filme-catástrofe do que para o suspense. Com seu olhar gélido e cínico o filme olha o espectador de volta em várias cenas, como que dizendo: 'é isso o que você quer, não é? ser olhado.' E a ironia dolorosa, é que ninguém mais parece se importar tanto.
Um artista tem os ouvidos invadidos pelo barulho ensurdecedor, os olhos marcados pela visão epidêmica de moradores de rua, obrigado a dividir um espaço pequeno e pressionado por seus empregadores. Todo esse estresse é somatizado, se infiltra na arte do pintor, depois explode em fúria assassina, uma espécie de liberação fantástica onde o crânio penetrado é só uma versão mais explícita das situações que podem afligir os moradores de uma metrópole. The Driller Killer possui status de gore, mas seu tom quase documental revela um ensaio muito lúcido sobre a vida moderna e sobre a cena punk da época.
Primeiro longa dirigido por Abel Ferrara é um filme pornográfico tão curioso quanto seu título, '9 lives of a wet pussy', por adotar um ponto de vista feminino e por mostrar a mulher no controle dos atos sexuais (aqui vale notar que uma cena de estupro foi cortada da versão disponível comercialmente) alternando entre passado e presente, realidade e fantasia, o que resulta num tom psicodélico.
"Pobre Europa. Não purificada, mas corrupta pelo sofrimento [la souf-France]. Não exaltada, mas humilhada pela liberdade reconquistada."
Alain Badiou oferece uma aula de geometria no cruzeiro mas a sala está vazia, outras atividades mundanas ocupam a mente dos turistas. Essa breve cena na 1ª parte de Film Socialisme é uma ilustração dolorosa da Europa que caiu em amnésia coletiva diante dos horrores da história, e inevitavelmente, é ela que me vem à mente a cada comentário que leio desmerecendo o filme. Desorientador e cheio de abstrações? absolutamente. Mas também um filme de beleza poética imensa, porque abre ao invés de fechar : as questões, as ideias, as formas. Quanto mais velho, mais gaiato o Godard fica!
Sabe quando você cria uma certa expectativa sobre um filme e ele te puxa o tapete? Agora multiplica por 10. Como que um filme assim existe? Como que um diretor pode ir tão fundo na própria visão a ponto de arriscar alienar completamente quem nunca viu outro filme dele? Qual é o tamanho do público a que esse filme, essa cruza de erótico+Godard se dirige?! E o mais importante, por que uma obra-prima dessas cai na escuridão, ninguém debate, ninguém vê?
Women of the Night é o magnum opus do cinema de Zalman King : histórias que se referenciam entre si e que referenciam outras histórias, mais antigas, contadas por uma DJ (cega) na rádio pirata que fica dentro de um caminhão (?) equipado com armas-de-fogo (!) , mas ela mesma faz parte de uma das histórias contadas (que se une a todas as outras) ao mesmo tempo em que ela está sendo contada por outra DJ (em preto-e-branco) todas essas cenas trançadas como um tapete onírico, de forma vertiginosa e desorientadora em um verdadeiro hino à sexualidade feminina, que remete de David Lynch a Jacques Rivette, tudo isso embalado de forma sensual (com direito à trama de ator pornô que não consegue ter ereção, mulheres que depilam homens completamente(!) -num banheiro público !- e facas voando loucamente pelo ar) num filme pouco convencional e bem audacioso!
Depois de Teresa Villaverde, a maior surpresa que tive em termos de cinema esse ano foi Zalman King. Dois diretores bem distintos, mas que curiosamente estão fora do radar de todos meus amigos e blogs que sigo! A primeira, continua praticamente limitada aos festivais de cinema, já Zalman King, apesar de seu cinema popular, é obscurecido pela falta de distribuição e pelas críticas extremamente negativas que o dispensam como um diretor de softcore ou pior!
É de se perguntar se estas pessoas realmente assistiram algo dele ou ainda se morreram na praia e ficaram só na superfície dos filmes mesmo... Quantos diretores hoje não só adotam um ponto de vista feminino, mas mergulham profundamente no desejo sexual da mulher? Dá pra contar nos dedos. Delta Venus segue o despertar sexual de uma escritora que idealizava o homem e o romance, mas que quanto mais explora sua sexualidade percebe que através do auto-conhecimento ela vira a dona de seu próprio corpo, não mais necessitando de um relacionamento pra se satisfazer. Um filme militantemente feminista e que pode irritar quem está apenas buscando cenas quentes sem drama ou conteúdo. Com uma cinematografia que lembra a sensualidade latente de Bernardo Bertolucci, eu diria que Delta Venus é uma pequena obra-prima do gênero romântico/erótico.
"Dizer a verdade pode ser um negócio perigoso, o honesto e o popular não andam de mãos dadas" - trecho de uma música composta pelos personagens de Ishtar.
Ishtar é geralmente discutido como um bom exemplo dos piores filmes de Hollywood e como uma super-produção que resultou numa batalha de egos, estourou o orçamento e causou enorme prejuízo quando chegou nas salas de cinema. Embora alguns filmes tenham gerado mais prejuízo do que Ishtar, o filme continua no imaginário popular talvez como o maior flop de todos os tempos. Isso me parece extremamente bizarro, já que o filme não é nem de longe ruim como alguns blockbusters exibidos nas salas de cinema na mesma época, na verdade, o filme é muito melhor que todos eles! Mas então o que deu errado? Por que até hoje algumas pessoas escrutinizam o filme?
A fama de Ishtar como um fracasso veio antes mesmo da estreia, a imprensa impiedosamente acabou com a reputação do filme, escandalizada com os altos salários dos atores principais e com o gênio complicado e perfeccionista da diretora/escritora/comediante Elaine May, que filmava inúmeros takes da mesma cena e que se recusava a jogar o jogo dos grandes estúdios de Hollywood - veja a veia radicalmente independente de seu filme Mickey and Nick (1976). A crítica foi na mesma onda e já tinha diagnosticado o filme como uma pilha de cocô antes dele chegar ao público (com algumas exceções que elogiavam o filme).
Poucos compareceram nas salas de cinema, e quem viu o filme foi confrontado com algo que desafiava expectativas : uma sátira incessante das políticas americanas em terras estrangeiras, da própria inteligência americana e das atrocidades cometidas pelo governo americano em nome da "paz" no Oriente, uma comédia que prefigura o grande filme irônico dos anos 90, Starship Troopers (Paul Verhoeven, 1997). Ishtar utiliza um estilo cômico peculiar: um humor corporal pautado por momentos de desconforto físico e político, aquelas cenas constrangedoras que se estendem mais do que supostamente deveriam, elevando o potencial cômico. Um tipo de humor que foi popularizado nos anos 2000 com séries de TV cultuadas como Arrested Development (2004) ou The Office (2005).
E no centro de tudo existe o relacionamento entre dois artistas fracassados. Coerente com outros filmes da diretora, Ishtar problematiza a figura masculina, questionando ideais e fazendo seus protagonistas assumirem ora o papel de mãe e filho, ora amantes, ora machos-alfa competindo por uma fêmea (que aqui acaba se revelando a verdadeira figura poderosa e imprevisível, é ela quem segura as cartas), ora dois adultos infantilizados, mas sempre sentindo qualquer tipo de empatia por esses homens bobões - é aqui que Elaine May difere de Burn After Reading (2008) a sátira política dos irmãos Coen, por exemplo. Ishtar é um clássico da comédia a ser redescoberto!
Se por "terrivelmente fraco" o comentário abaixo se refere ao fato de que 'The Heartbreak Kid' pertence a uma certa linhagem de filmes, o 'cinema do corpo' de John Cassavetes ou Maurice Pialat, onde tudo é transmitido através da problematização de gestos, posturas, expressões, espaços interpessoais e que não está nem um pouco preocupado em 'convencer' o público das 'motivações' dos personagens como em filmes conformistas e tediosos -sério que depois de tantos anos de cinema moderno isso faz alguma diferença?- então sim, The Heartbreak Kid pode ser considerado "terrivelmente fraco em todos os aspectos".
Do contrário, essa é provavelmente a obra-prima da fantástica diretora Elaine May, que de forma bem-humorada sempre questiona o papel da figura masculina e o ideal de masculinidade, tão arraigado na nossa cultura e pregado exaustivamente pelo cinema industrial.
A fascinação causada pela presença única que só uma estrela como Jean Seberg é capaz de emanar da tela em contraste com o roteiro que beira o sombrio e o ousado (com direito a insinuações incestuosas) fazem de Bonjour Tristesse (1958) um filme pouco convencional. Flerta com o noir, o novelístico e filmes teen ao mesmo tempo em que antecipa a Nouvelle Vague e a crítica social ao estilo de vida burguês, tão em voga nos filmes europeus dos anos 60/70.
Uma adolescente mimada e egocêntrica -mas irresistivelmente charmosa- se sente ameaçada pela figura maternal (Deborah Kerr) que começa a impor limites em sua vida "livre" de petit bourgeois e que provavelmente irá substituí-la no relacionamento com seu pai, logo a adolescente começa a maquinar um plano pra remover o obstáculo insuportável que essa rival representa. Um ano depois, a protagonista se encontra em Paris, o filme agora em preto e branco, contrastando com o verão ensolarado e sensualmente colorido onde tudo ocorreu. Mas o que exatamente ocorreu? Como e por que?
O roteiro poderia cair no melodrama barato, mas Otto Preminger realmente eleva o material e faz de Bonjour Tristesse mais do que um ponto de convergência entre cinema clássico e moderno, um filme belíssimo onde presente e passado duelam na memória de uma protagonista inconsequente, onde tramas infantis tomam proporções adultas e o que nos resta (ainda bem) é a ambiguidade magistralmente construída pelo diretor, que pode levar à negação ou ao remorso e a tristeza profunda. Tudo isso em CinemaScope de cair o queixo! Obra-prima.
Sibéria
2.8 35 Assista AgoraInformações sobre o kickstarter criado para viabilizar o novo projeto do Abel Ferrara estrelando Willem Dafoe, um filme baseado no Livro Vermelho de Carl Gustav Jung:
https://www.kickstarter.com/projects/1839258859/siberia-starring-willem-dafoe
http://www.theguardian.com/film/2015/may/18/abel-ferrera-kickstarter-cannes-siberia
http://www.indiewire.com/article/determined-to-get-final-cut-abel-ferrara-turns-to-kickstarter-to-fund-siberia-20150528
http://pipocamoderna.virgula.uol.com.br/abel-ferrara-tenta-bancar-seu-proximo-filme-via-financiamento-coletivo/425572
Kiss
3.0 13"A maior transferência é o contato dos lábios, das pontas dos dedos , línguas , etc. " - José Val del Omar
Pakeezah
3.2 5" Por muitos dias, me sinto como se estivesse mudando. Como se estivesse em uma jornada desconhecida, indo a algum lugar. Tudo está distante de mim."
Meu musical favorito. Explosão poética Bollywoodiana sobre uma mulher esmagada pela sociedade. Pakeezah nunca teve uma chance, filha de uma prostituta, nascida em um cemitério. Do túmulo ao túmulo. Só lhe restou a arte como único fio condutor de vida, na dança e no canto encontra o júbilo tão negado pela realidade. É um filme extremamente belo e sensível. Meena Kumari, ícone eterno do cinema, encarna Pakeezah como nenhuma outra atriz poderia. Se enxerga nos olhos dela, algo de de tão doloroso... uma luta pessoal. Um dos maiores filmes, absolutamente.
Meu Bairro Vai Rachar
3.5 5Revi este filme maravilhoso e ainda não sei como descrever a sensação, de ver a cidade em chamas, jovens vs. policiais, coqueteis Molotov vs. armas de fogo, o conflito vira uma massa violenta e caótica que devora tudo e a todos... quando comentei anteriormente na página alinhei o Jean-François Richet com Spike Lee, e ao rever o filme essa conexão me pareceu ainda mais clara, embora o Richet me pareça muito mais subversivo e radical na representação da violência e na veia teórica do filme ( inclusive agradecendo, no final, a Marx, Engels, aos combatentes urbanos, ao proletariado internacional, entre outros ) não é sem problemática que ele posa a questão da revolta violenta.
Enquanto em 'Do The Right Thing' o Spike Lee sobrepunha dois discursos diferentes e concluía que naquela situação, não existia a coisa certa a se fazer, em Ma 6-T va crack-er ( minha cidade vai explodir! ) o Richet, que também põe nas ruas os jovens de classe baixa e descendentes de outros países, furiosos e revoltados, contra o abuso de poder policial, busca na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ( "a insurreição é, para o povo e para cada parcela do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres."), implicar ainda mais o espectador. O resultado é um filme complexo que levanta várias questões importantes sobre o poder do Estado, a falta de preocupação com os direitos das classes baixas e filhos de imigrantes na Europa, a necessidade da insurreição do povo e a violência como expressão inevitável. Não é de se surpreender que o filme foi censurado e considerado perigoso ao bem-estar público, o maior elogio que um filme poderia receber!
Talvez citando o trecho de um Rap que toca num ponto crucial, seja feita alguma justiça aos sentimentos e reflexões que o filme deixa:
"Nada e ninguém pode suprimir uma revolta.
Você semeou a semente do ódio, agora vai colher.
Rebeldes e rejeitados optaram pelo boicote.
Vamos fazer os ricos lamberem as nossas botas.
Vamos fazer rastejar aqueles que já nos fizeram rastejar!
Pagar o mal com mal não é bom, mas ...
Raiva e frustração impedem a reflexão.
É Deus ou o Diabo quem orienta todas nossas ações?
Saiba que temos todos os nossos parceiros ao lado,
Cada um de nós é um aliado, G e D, Mystik e eu.
Nossa tendência ao extremismo é impulsionado pelo peso da justiça.
Estritamente hardcore! Os jovens estão desesperados.
É hardcore, e nada pode pará-los.
Aconteça o que acontecer, nós também vamos nos defender.
Coisas boas vêm para aqueles que esperam."
Napoli, Napoli, Napoli
3.3 10apenas: http://youtu.be/B2GeLEhfUqo
ABEL LENDA!
Go Go Tales
3.5 11Em Go Go Tales, um dos filmes mais fluídos do Ferrara, ele recria o tipo de ambiente imprevisível e bem-humorado que era Crazy Horse West (do grande filme 'A Morte do Bookmaker Chinês' do John Cassavetes), de onde brotavam belos sentimentos e atos criativos. Mas na Manhattan moderna, tudo foi contaminado pelo dinheiro - até mesmo as paredes! Em tempos de crise econômica, o clube Paradise corre o risco de dar lugar a uma loja da rede Bed Bath & Beyond' (!), porém Ray acredita que criou um lugar realmente especial com seu Paradise, uma família. É com certa doçura que os corpos nus das strippers pulsam, entregues ao som da música. Música que continua durante as cenas nos bastidores, porque aqui também é arte transformar as relações e interações em uma extensão do palco, sob a ternura burlesca do artista que foi calejado pela vida, mas mantém o sorriso desafiador: 'The show must go on!'
Brown Bunny
3.1 109The Brown Bunny certamente não vai agradar a todos e nem foi feito pra isso. É um filme imerso em tristeza e melancolia que inevitavelmente vai tocar um certo tipo de espectador.
Interessante notar que o diretor americano Monte Hellman era quem deveria ter dirigido o filme anterior do Gallo, Buffallo '66, mas por divergências criativas, Gallo assumiu a direção. Interessante porque, Brown Bunny remete muito a Two-Lane Blacktop, o filme mais famoso do Hellman. Em ambos os filmes o personagem principal é um jovem introspectivo, muitas vezes um enigma, e ele dirige, dirige em silêncio pelas estradas do país inteiro. Mas o que corrói esse tipo de personagem, por que está sempre inquieto? Ele guarda um segredo, seja um sentimento de culpa ou de estranheza profunda, uma memória que assombra ou uma desilusão amorosa, mas principalmente, e comicamente (porque vive em movimento veloz), ele é um tipo de personagem impassivo, incapaz de tomar decisão alguma que o tire do conforto da viagem solitária e da fuga. Daí a cena em Brown Bunny onde Bud (Vincent Gallo) convence uma garota a fugir com ele, e depois se manda. Existe algum trauma, algum evento que marcou profundamente e que impede de seguir com a vida, chega a sufocar tanto que o homem se tornou apenas uma marca d'água do passado, um fantasma que vaga pela estrada. E por falar em fantasmas, essa é exatamente a personagem de Chloë Sevigny, uma aparição, espírito indefinido e sem forma que vai ficando mais nítido a cada eco distante, a cada mulher encontrada pelo caminho. The Brown Bunny parte o coração com todas essas imagens que são memórias, cheio de inquietação e desespero, não importa o quanto digam que é pretensioso ou uma farsa, é um filme sincero e meio desajeitado que jamais seria feito por outro diretor, nem para outro espectador se não o que tem olhos pra ver e ouvidos pra ouvir os segredos escondidos na câmara mais íntima.
A Condessa Descalça
3.7 33 Assista AgoraDe vez em quando encontramos filmes que, desafiando convenções do harmonioso e do equilibrado típicas do cinema clássico, se desenrolam de forma torta, complexa e fascinante. Obedecendo a lógica nenhuma que não seja a exigida pela própria história, The Barefoot Contessa começa com a morte de sua protagonista, e depois vai buscar em relatos e pontos de vista distintos, na memória turva das personagens, o decorrer dos fatos. O filme para e recomeça no mínimo três vezes, assim como são três etapas que marcam a decadência e morte da misteriosa Maria Vargas. Lembra Rashomon (Kurosawa, 1950) em sua estrutura fragmentada e na impossibilidade de capturar eventos com clareza. A estrela aclamada pelas massas carrega dentro de si forças da natureza como terra e fogo: é descalça no pó que se sente segura, no transe hipnótico de uma dança sensual, mas também no sexo selvagem que se sente mulher satisfeita. Por outro lado, é percebida como gelo pelos observadores: distante e inescrutável. Daí a necessidade da câmera parada enquanto personagens posam e recitam: é através da distinção entre público e privado que se forma o grande teatro da vida e que se tenta sobreviver num grupo social, seja na impiedosa máquina de Hollywood ou na aristocracia Italiana. Um filme sobre percepções e projeções que se desenrola como um conto de fadas febril, onde o príncipe está mais pra fantasma imaginado, incapaz de consumar o relacionamento, e a princesa uma eterna projeção do primeiro contato, do encontro mágico. The Barefoot Contessa é feito desses pequenos momentos mágicos e hipnotizantes capazes de mudarem o curso de uma história: um olhar trocado através de uma sala ou um belo rosto banhado pela lua.
Um lago
3.4 5Simplesmente o filme mais bonito e esteticamente rigoroso já feito sobre a maturação do homem. É fora do tempo histórico que Grandrieux situa seu 'Un lac', tudo ganha um ar mítico e de extrema pureza no Éden congelado, aos poucos as relações entre personagens vão ficando mais claras, como se nunca houvesse existido uma família antes desta, e a cada gesto relações vão oscilando entre familiares e amorosas. E de fato, o que é uma família? O que é ser um filho, uma irmã ou uma mãe? Aqui os sentimentos possuem raízes tão profundas de dependência que os papéis são praticamente dissolvidos, e seria obsceno deduzir mais do que é mostrado. São humanos e vivem numa casa cheia de escuridão, e isso basta. Mas ainda existe a inquietação do coração jovem, o sentimento de que existe algo a mais no mundo e de que todas as experiências esperam do lado de fora, essa é a melancolia extrema que cerca o filme. Aí entra aquela história, 'os olhos do descobridor são os mesmos olhos que destroem' quando um novo personagem aparece, e nada pode voltar a ser o que era antes, isso também é fonte de tristeza. É a custo de grandes dores que a perda da inocência se dá, e Grandrieux filma essa transição da infância do homem de uma forma inexplicavelmente íntima e instintiva, no final resta um nó na garganta ao som do vento gelado. Junto com La vie nouvelle e Sombre, Un lac afirma Grandrieux como um dos diretores mais talentosos e únicos da história do cinema.
Uma Nova Vida
3.4 2Obra-prima do cinema francês, um filme que capta inúmeras vibrações, ritmos e formas que resultam da apreensão humana do mundo e das coisas com uma sensibilidade única, mas também como uma missão incessante, levada até o limite do delírio. O inconsciente, o primitivo, o destrutivo, La vie nouvelle constrói através de repetições e variações um mosaico da noite do coração. Tão forte e intenso, quase nada é dito, mas mesmo assim o filme se faz entender bem, é um retrato ao mesmo tempo horroroso e magnífico da condição humana: um rosto que dissolve no escuro, dois corpos entranhados pulsando de desejo ou medo, um grito de solidão.
Terra dos Mortos
3.0 292 Assista AgoraIsolados em prédios luxuosos, longe da ralé, estão os homens de bem, que lutaram muito pra construir um espaço seguro pra família, livre da contaminação dos movimentos sociai-OPS dos mortos-vivos. Se acham livres, mas nada poderia estar mais longe da verdade, vivem num espaço social onde é muito bom ser individualista e materialista, mas ser indivíduo livre pra agir de acordo com suas próprias ideias, aí já não pode, tem que ser tudo uniforme, bem iluminado e na vitrine mais atraente possível. Mas daí que os mortos-vivos já não são os mesmos de antes, agora eles começaram a articular as próprias ideias, e a recompensa, ao mesmo tempo assustadora e deliciosa, tarda mas não falha. Um filme absurdo e genial do Romero, Land of the Dead é a renovação do filme de gênero para uma época onde o capitalismo avançado, corporações multinacionais e globalização causam mais medo e impotência do que qualquer monstro.
Enigma do Poder
3.5 40Basicamente nenhum filme do Abel Ferrara é fácil de se compreender à primeira vista, e New Rose Hotel, o mais abertamente experimental, talvez o melhor de todos eles (se é que dá pra escolher), não é nenhuma exceção. Daí talvez venha a rejeição de muitos, algo incompreendido, só pode ser 'lixo' mal dirigido ou filme com um ou outro aspecto diferente e interessante mas falho, quando na verdade estamos tratando de filmes muito exigentes e cuidadosamente executados. Esses filmes possuem uma exigência formal como princípio, já que reinventam de dentro pra fora o gênero a que pertencem: filme de policial, de vampiro, de serial killer, Ferrara já filmou todos e nenhum escapa da questão moral do diretor.
New Rose Hotel pode parecer um filme confuso, quando é um filme SOBRE o confuso e sobre a impotência do homem diante da história, o espectador só recebe as mesmas informações que X (Willem Dafoe), o filme nos mergulha no misterioso e no desconhecido. Conhecimento é crucial em New Rose Hotel, é questão de vida ou morte : quem possui a informação, quem está por dentro do jogo, é quem sai por cima num mundo amoral onde tudo e todos os segredos são comprados, onde a privacidade é invadida por câmeras de vigilância instaladas nos lugares mais improváveis, onde grandes corporações possuem 'copyright' sobre a vida.
E qual mistério maior do que Sandii (Asia Argento), essa força da natureza em vermelho, uma 'puta' digna de Hitchcock, capaz de liberar o destino mais cruel sobre toda a humanidade? Não é mais mocinha nem mais vilã do que Kim Novak em Vertigo ou Tippi Hedren em Marnie. Sandii se mostra indecifrável, o coração negro do filme, é por isso que New Rose Hotel sempre vai ter algo que foge ao intelecto, não importa o quanto seja assistido. Abel Ferrara joga o espectador nesse delírio cyberpunk através de imagens e sons, numa experiência erótica muito intensa. E no final X se pergunta como tudo aconteceu, procura a informação que falta, pistas e inícios, mas daí já é tarde, está comprometido demais pra enxergar qualquer tipo de resposta clara e coerente, é o impulso amoroso que intoxica o coração do homem mesmo em face da destruição inevitável.
Nas Mãos de Deus
3.9 15Cinema popular ridicularizado pelos críticos contemporâneos e tachado de brega, mas que é fiel à experimentação e ao seu diretor. Zalman King cultiva a incoerência em seus filmes, não é uma questão dele não ter capacidade de ser coerente, é que a coerência aqui pouco interessa, o que interessa é aquele momento de respiração suspensa, a surpresa, a reviravolta na trama, é o poder de uma imagem, a magnitude de uma onda. 'In God's hands' está cheio de momentos como esse, onde tudo cessa e só resta o choque, a tensão entre vida e morte, documentário e ficção.
A Loucura de Almayer
3.6 6 Assista AgoraUm filme onde a beleza quase insuportável da natureza cai nas costas do homem e das atitudes mesquinhas, La Folie Almayer capta bem essa contradição entre as imagens puras e belas e a ganância obscena do colonialismo. Além de explorar a terra e forçar uma lógica capitalista visando o lucro máximo, também são forçados os nativos a um ideal Europeu. E qual a dor maior pro colonizador, do que a própria filha se juntar aos nativos insurgentes ao voltar da Europa, onde deveria ter virado 'gente branca'? Daí tudo vira sofrimento, o desumano se propaga pelos corpos e até arrisca apagar o brilho do coração jovem.
Vale do Pecado
2.2 182 Assista AgoraPaul Schrader é o mestre de cerimônias do funeral americano e arranjou os preparativos de acordo. Os atores da farsa: James Deen, um ator pornô, e Lindsay Lohan, uma estrela caída oscilando entre performance e persona em todo o seu brilho desbotado. The Canyons começa com imagens apocalípticas: cinemas arruinados e abandonados, como que em estado de decomposição. Essas imagens assombram todo o filme, não apenas nos lembrando que um diretor como Paul Schrader não tem mais espaço nas salas de cinema, mas também que aquela experiência comunal de sentar junto de estranhos na mesma sala corre risco de se tornar passado. Seriam essas imagens uma insinuação de que o cinema está morto? O que fazer da declaração do próprio diretor que The Canyons é um filme 'pós-cinema'? E pra onde foi o público? Talvez estrelar seus próprios vídeos, maquiar a vida em um espetáculo com centenas de likes na internet.
Daí começa a música eletrônica genérica, depois da cena de abertura, Lindsay Lohan aparece de costas e como uma equilibrista, caminha com seus saltos altíssimos pelo chão polido e aparentemente escorregadio, se despe, para em frente a escada e olha para baixo - e aqui a escada é como um vão, um cânion - e desce. Este é exatamente o gesto que a atriz e o filme vão reproduzir, uma descida ao abismo da degradação e alienação - mas aqui a degradação é branca e bege, reluzente e uniforme, só aparece podre no canto escuro da casa, na luz verde que dá aos corpos aspecto doentio.
The Canyons não tem mocinho, porque aqui todos são corrompidos e tudo é resolvido através de transferências sexuais, e também todos vivem em um estupor meio apático, completamente absorvidos em si mesmos e em seus smartphones.
O filme não anda pra lugar nenhum, porque, o que há de se fazer com figuras mortas? Só colocar em diferentes posições. Como desenvolver personagens atrofiadas, essas gárgulas que agarram com todas as forças a estagnação? O que elas poderiam dizer, além de clichês, o que representar, além de melodrama barato? Só resta ligar e câmera e registrar o estado de entropia. The Canyons está mais pra filme-diagnóstico, ou melhor, filme-catástrofe do que para o suspense. Com seu olhar gélido e cínico o filme olha o espectador de volta em várias cenas, como que dizendo: 'é isso o que você quer, não é? ser olhado.' E a ironia dolorosa, é que ninguém mais parece se importar tanto.
O Assassino da Furadeira
3.2 72 Assista AgoraUm artista tem os ouvidos invadidos pelo barulho ensurdecedor, os olhos marcados pela visão epidêmica de moradores de rua, obrigado a dividir um espaço pequeno e pressionado por seus empregadores. Todo esse estresse é somatizado, se infiltra na arte do pintor, depois explode em fúria assassina, uma espécie de liberação fantástica onde o crânio penetrado é só uma versão mais explícita das situações que podem afligir os moradores de uma metrópole. The Driller Killer possui status de gore, mas seu tom quase documental revela um ensaio muito lúcido sobre a vida moderna e sobre a cena punk da época.
Nove Vidas de uma Gata Molhada
2.4 4Primeiro longa dirigido por Abel Ferrara é um filme pornográfico tão curioso quanto seu título, '9 lives of a wet pussy', por adotar um ponto de vista feminino e por mostrar a mulher no controle dos atos sexuais (aqui vale notar que uma cena de estupro foi cortada da versão disponível comercialmente) alternando entre passado e presente, realidade e fantasia, o que resulta num tom psicodélico.
Film Socialisme
3.2 128"Pobre Europa. Não purificada, mas corrupta pelo sofrimento [la souf-France]. Não exaltada, mas humilhada pela liberdade reconquistada."
Alain Badiou oferece uma aula de geometria no cruzeiro mas a sala está vazia, outras atividades mundanas ocupam a mente dos turistas. Essa breve cena na 1ª parte de Film Socialisme é uma ilustração dolorosa da Europa que caiu em amnésia coletiva diante dos horrores da história, e inevitavelmente, é ela que me vem à mente a cada comentário que leio desmerecendo o filme. Desorientador e cheio de abstrações? absolutamente. Mas também um filme de beleza poética imensa, porque abre ao invés de fechar : as questões, as ideias, as formas. Quanto mais velho, mais gaiato o Godard fica!
Mulheres na Noite
1.7 1Sabe quando você cria uma certa expectativa sobre um filme e ele te puxa o tapete? Agora multiplica por 10. Como que um filme assim existe? Como que um diretor pode ir tão fundo na própria visão a ponto de arriscar alienar completamente quem nunca viu outro filme dele? Qual é o tamanho do público a que esse filme, essa cruza de erótico+Godard se dirige?! E o mais importante, por que uma obra-prima dessas cai na escuridão, ninguém debate, ninguém vê?
Women of the Night é o magnum opus do cinema de Zalman King : histórias que se referenciam entre si e que referenciam outras histórias, mais antigas, contadas por uma DJ (cega) na rádio pirata que fica dentro de um caminhão (?) equipado com armas-de-fogo (!) , mas ela mesma faz parte de uma das histórias contadas (que se une a todas as outras) ao mesmo tempo em que ela está sendo contada por outra DJ (em preto-e-branco) todas essas cenas trançadas como um tapete onírico, de forma vertiginosa e desorientadora em um verdadeiro hino à sexualidade feminina, que remete de David Lynch a Jacques Rivette, tudo isso embalado de forma sensual (com direito à trama de ator pornô que não consegue ter ereção, mulheres que depilam homens completamente(!) -num banheiro público !- e facas voando loucamente pelo ar) num filme pouco convencional e bem audacioso!
Delta de Vênus
3.3 35Depois de Teresa Villaverde, a maior surpresa que tive em termos de cinema esse ano foi Zalman King. Dois diretores bem distintos, mas que curiosamente estão fora do radar de todos meus amigos e blogs que sigo! A primeira, continua praticamente limitada aos festivais de cinema, já Zalman King, apesar de seu cinema popular, é obscurecido pela falta de distribuição e pelas críticas extremamente negativas que o dispensam como um diretor de softcore ou pior!
É de se perguntar se estas pessoas realmente assistiram algo dele ou ainda se morreram na praia e ficaram só na superfície dos filmes mesmo... Quantos diretores hoje não só adotam um ponto de vista feminino, mas mergulham profundamente no desejo sexual da mulher? Dá pra contar nos dedos. Delta Venus segue o despertar sexual de uma escritora que idealizava o homem e o romance, mas que quanto mais explora sua sexualidade percebe que através do auto-conhecimento ela vira a dona de seu próprio corpo, não mais necessitando de um relacionamento pra se satisfazer. Um filme militantemente feminista e que pode irritar quem está apenas buscando cenas quentes sem drama ou conteúdo. Com uma cinematografia que lembra a sensualidade latente de Bernardo Bertolucci, eu diria que Delta Venus é uma pequena obra-prima do gênero romântico/erótico.
Ishtar
2.5 13"Dizer a verdade pode ser um negócio perigoso, o honesto e o popular não andam de mãos dadas" - trecho de uma música composta pelos personagens de Ishtar.
Ishtar é geralmente discutido como um bom exemplo dos piores filmes de Hollywood e como uma super-produção que resultou numa batalha de egos, estourou o orçamento e causou enorme prejuízo quando chegou nas salas de cinema. Embora alguns filmes tenham gerado mais prejuízo do que Ishtar, o filme continua no imaginário popular talvez como o maior flop de todos os tempos. Isso me parece extremamente bizarro, já que o filme não é nem de longe ruim como alguns blockbusters exibidos nas salas de cinema na mesma época, na verdade, o filme é muito melhor que todos eles! Mas então o que deu errado? Por que até hoje algumas pessoas escrutinizam o filme?
A fama de Ishtar como um fracasso veio antes mesmo da estreia, a imprensa impiedosamente acabou com a reputação do filme, escandalizada com os altos salários dos atores principais e com o gênio complicado e perfeccionista da diretora/escritora/comediante Elaine May, que filmava inúmeros takes da mesma cena e que se recusava a jogar o jogo dos grandes estúdios de Hollywood - veja a veia radicalmente independente de seu filme Mickey and Nick (1976). A crítica foi na mesma onda e já tinha diagnosticado o filme como uma pilha de cocô antes dele chegar ao público (com algumas exceções que elogiavam o filme).
Poucos compareceram nas salas de cinema, e quem viu o filme foi confrontado com algo que desafiava expectativas : uma sátira incessante das políticas americanas em terras estrangeiras, da própria inteligência americana e das atrocidades cometidas pelo governo americano em nome da "paz" no Oriente, uma comédia que prefigura o grande filme irônico dos anos 90, Starship Troopers (Paul Verhoeven, 1997). Ishtar utiliza um estilo cômico peculiar: um humor corporal pautado por momentos de desconforto físico e político, aquelas cenas constrangedoras que se estendem mais do que supostamente deveriam, elevando o potencial cômico. Um tipo de humor que foi popularizado nos anos 2000 com séries de TV cultuadas como Arrested Development (2004) ou The Office (2005).
E no centro de tudo existe o relacionamento entre dois artistas fracassados. Coerente com outros filmes da diretora, Ishtar problematiza a figura masculina, questionando ideais e fazendo seus protagonistas assumirem ora o papel de mãe e filho, ora amantes, ora machos-alfa competindo por uma fêmea (que aqui acaba se revelando a verdadeira figura poderosa e imprevisível, é ela quem segura as cartas), ora dois adultos infantilizados, mas sempre sentindo qualquer tipo de empatia por esses homens bobões - é aqui que Elaine May difere de Burn After Reading (2008) a sátira política dos irmãos Coen, por exemplo. Ishtar é um clássico da comédia a ser redescoberto!
O Rapaz que Partia Corações
3.4 20Se por "terrivelmente fraco" o comentário abaixo se refere ao fato de que 'The Heartbreak Kid' pertence a uma certa linhagem de filmes, o 'cinema do corpo' de John Cassavetes ou Maurice Pialat, onde tudo é transmitido através da problematização de gestos, posturas, expressões, espaços interpessoais e que não está nem um pouco preocupado em 'convencer' o público das 'motivações' dos personagens como em filmes conformistas e tediosos -sério que depois de tantos anos de cinema moderno isso faz alguma diferença?- então sim, The Heartbreak Kid pode ser considerado "terrivelmente fraco em todos os aspectos".
Do contrário, essa é provavelmente a obra-prima da fantástica diretora Elaine May, que de forma bem-humorada sempre questiona o papel da figura masculina e o ideal de masculinidade, tão arraigado na nossa cultura e pregado exaustivamente pelo cinema industrial.
Bom Dia, Tristeza
3.9 53 Assista AgoraA fascinação causada pela presença única que só uma estrela como Jean Seberg é capaz de emanar da tela em contraste com o roteiro que beira o sombrio e o ousado (com direito a insinuações incestuosas) fazem de Bonjour Tristesse (1958) um filme pouco convencional. Flerta com o noir, o novelístico e filmes teen ao mesmo tempo em que antecipa a Nouvelle Vague e a crítica social ao estilo de vida burguês, tão em voga nos filmes europeus dos anos 60/70.
Uma adolescente mimada e egocêntrica -mas irresistivelmente charmosa- se sente ameaçada pela figura maternal (Deborah Kerr) que começa a impor limites em sua vida "livre" de petit bourgeois e que provavelmente irá substituí-la no relacionamento com seu pai, logo a adolescente começa a maquinar um plano pra remover o obstáculo insuportável que essa rival representa. Um ano depois, a protagonista se encontra em Paris, o filme agora em preto e branco, contrastando com o verão ensolarado e sensualmente colorido onde tudo ocorreu. Mas o que exatamente ocorreu? Como e por que?
O roteiro poderia cair no melodrama barato, mas Otto Preminger realmente eleva o material e faz de Bonjour Tristesse mais do que um ponto de convergência entre cinema clássico e moderno, um filme belíssimo onde presente e passado duelam na memória de uma protagonista inconsequente, onde tramas infantis tomam proporções adultas e o que nos resta (ainda bem) é a ambiguidade magistralmente construída pelo diretor, que pode levar à negação ou ao remorso e a tristeza profunda. Tudo isso em CinemaScope de cair o queixo! Obra-prima.
Núpcias de Escândalo
3.9 109 Assista Agora"The time to make up your mind about people is never !"