A seleção natural (O poço, de Galder Gaztelu-Urrutia, é uma alegoria doentia sobre a luta por um direito básico universal: o de sobreviver)
É... Não tá fácil, não! Na verdade está piorando...
Na tv, senadores confabulam (leia-se: guerreiam com unhas e dentes), sem chegar a um acordo, pelo chamado contrato verde-e-amarelo que, na prática, exclui diversos direitos trabalhistas outrora adquiridos. É uma terra de lobos comendo lobos a política partidária. Enquanto isso, a sociedade definha entre um aviso de morte por covid-19 e outro. É o agora, atingindo nossos olhos e consciências como um dardo envenenado.
E mediante toda essa insensatez e falta de escrúpulos achei extremamente enriquecedor - há quem certamente me chamará de maluco - assistir ao longa-metragem da Netflix O poço, do diretor Galder Gaztelu-Urrutia. E digo isso porque, mais do que nunca, precisamos entender (mesmo que vendo na marra) o mundo caótico que ajudamos a construir.
O poço traz uma plataforma (e nesse sentido, o título em inglês mostrado no IMDb faz bem mais sentido para mim) onde diferentes seres humanos, que se cadastraram para participar dessa suposta experiência, se intercalam, uma dupla por andar. Detalhe: o período em que cada dupla permanece no mesmo andar é de um mês. Após isso, eles vão para um outro, escolhido pelos administradores aleatoriamente. Parece simples de entender, mas o que realmente interessa não é o local, mas a mentalidade de seus moradores.
E é difícil classificar o novato Goreng (Ivan Massagué) como um protagonista desta trama. Pelo contrário. Ele me parece mais uma engrenagem de um indústria que trabalha com produção em série, como em Tempos Modernos, do sempre genial Charles Chaplin.
Aliás, qualquer correlação feita aqui com o mercado de trabalho de forma geral é muito bem-vinda. O filme expõe de forma lúcida (sem perder o seu percentual de enigmático) o eterno regime de castas no qual estamos amordaçados desde que o mundo é mundo.
Há de tudo no poço: homens e mulheres desesperançados por natureza, reféns de seu próprio niilismo; uma mãe desesperada que procura seu filho perdido no meio dos moradores; um fanático religioso que acredita piamente que somente Deus poderá tirá-lo daquele lugar miserável; canibais contemporâneos à espera de que qualquer pessoa morra a qualquer momento para que ele(a) não morra de fome; etc...
Quase ia me esquecendo: o elevador que traz a comida diária para os moradores do poço é o retrato do que existe de mais vil (e não menos verdadeiro) no que conhecemos como sociedade contemporânea. Ali se vê claramente a mentalidade egoísta do homem, incapaz de enxergar além de seu próprio umbigo e convicções. Quem comeu, comeu; quem não comeu, que reze, peça a Deus por dias melhores.
Neste momento a trama ganha uma conotação quase darwiniana, pois a seleção natural que se constrói diante de nossos olhos é sórdida, diria mesmo macabra (entendo perfeitamente os espectadores que classificam o longa dentro do gênero terror). Trata-se de uma luta inumana por aquele que deveria ser um direito básico universal garantido ao homem: o de sobreviver. E, no entanto, percebemos que nossa existência aqui não tem nada de garantido. Não há certezas no mundo dos homens. Apenas possibilidades e a maioria delas injustas.
Enquanto a sociedade procura por heróis de plástico e líderes tendenciosos a quem possam seguir inutilmente, como cachorrinhos de madame, o mundo real - aquele que nunca quisemos encarar de fato, frente a frente, pois é mais fácil ser covarde ou demagogo - nos coloca uns contra os outros e ainda disponibiliza as armas, para que nos matemos mais rápidos.
Eu já prevejo alguns leitores entediantes e repetitivos dizendo: "que crítico maquiavélico esse rapaz! não apresentou nenhuma notícia feliz ou sinal de esperança para o futuro" e eles podem se manifestar à vontade. Mas me parece à primeira vista impossível uma solução para o mundo enquanto empurrarmos o lado duro da vida para debaixo do tapete. O contrário disso sempre me soou como hipocrisia e dela, que conheço de cor e salteado, eu já ando cheio. Mesmo.
P.S: desde Mãe!, de Darren Aronofsky, um filme não mexia tanto com a minha cabeça como esse aqui. E a minha cabeça precisava de uma sacudida forte.
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Catarse alucinógena (Medo e delírio em Las Vegas, Terry Gilliam e uma viagem psicodélica ao mundo perturbador das drogas)
Gosto de Hunther S.Thompson. Mesmo. Lembro-me da primeira vez que eu li um livro de sua autoria, comprado num sebo no Largo do Machado. O nome da obra em questão era Screw Jack e me deparei com um dos relatos literários mais alucinados que eu tinha lido até então. O tempo passou e eu corri atrás de outros exemplares de sua bibliografia. E acreditem: aqui no Rio de Janeiro, assim como o poeta americano Charles Bukowski, Thompson não é um autor fácil de ser encontrado. Mas achei outros. A duras penas, mas achei. Dentre eles, o mítico Medo e delírio em Las Vegas.
No ano seguinte à minha leitura do livro - era uma versão pocket da LPM - fico sabendo da existência da adaptação cinematográfica realizada pelo diretor Terry Gilliam (de quem sou fá há anos, desde os tempos do Monty Python!). E começa então uma nova corrida, desta vez para assistir o fatídico filme. E o tempo passou, passou, passou, e o filme entrou para minha lista sempre cheia de "filmes a serem assistidos um dia".
Passaram-se quase 12 anos e eis que, finalmente, e graças à quarentena do coronavírus, eu encontro o filme no catalógo do Now disponibilizado gratuitamente entre um montante de longas-metragens os mais diversos. E desde já adianto: valeu a pena esperar.
Medo e delírio em Las Vegas traz Raoul Duke (Johnny Depp, num dos muitos alter-egos de Thompson) acompanhado de seu advogado, o Dr. Gonzo (Benicio del Toro), numa viagem rumo à terra dos cassinos e da perdição para cobrir uma corrida de motocross. Mas essa, meus caros leitores, é a última coisa que Raoul e seu amigo farão nessa terra onde "o que acontece por ali, fica por ali mesmo".
O que Raoul e Gonzo apresentam para os espectadores - de preferência, os de mente mais aberta - é um dos retratos mais surreais que eu já vi até hoje da dependência química. E ambos são viciados no que quer que seja, da cocaína ao éter, passando por comprimidos e o que mais você puder imaginar. Eles enlouquecem literalmente, têm visões de todo tipo, volta e meia se dizem perseguidos por forças obscuras e por inimigos imaginários, na melhor faceta Gilliam de ser (afinal de contas, se trata de um mago das imagens - e quem quiser se inteirar mais pela carreira do diretor, procure por O mundo imaginário do Doutor Parnassus e 12 macacos).
E dessa grande catarse alucinógena, repleta de reviravoltas as mais inverossímeis, vemos como pano de fundo a verdadeira América. Aquela que gosta de se vender para o resto do mundo através de seus heróis - Lincoln, Kennedy, etc - e seu discurso de vencedora, mas que adora varrer para o tapete suas desilusões, seus vícios e seu verdadeiro modo de vida.
A dupla Depp/Del Toro funciona bem durante toda a jornada, e me peguei a todo momento perguntando o que foi que aconteceu com o ator de Edward mãos de tesoura e Piratas do Caribe nos últimos anos. Onde foi parar toda essa ousadia e coragem para interpretar personagens alucinados? Engraçado. E tem fãs que dizem que artistas não desaprendem a atuar. Às vezes, eu sinceramente tenho as minhas dúvidas.
A mistura Thompson + Gilliam + Depp não só fundiu a minha cabeça de forma permanente, à procura de referências as mais loucas e diversas, como também me deixou com saudades dessa velha hollywood (o filme é de 1998, logo do século passado).
Estamos tão viciados em tecnologias de última geração, óculos 3D enfiados na cara o tempo todo, o vício exorbitante por franquias excessivas e remakes e spinoffs vazios, que perdemos completamente a noção do que significa ser original nos dias de hoje. E até quando o quesito em questão é adaptação, perdemos o gosto por boas histórias, cheias de nuances e tramas rebuscadas, e nos rendemos ao gratuito dos quadrinhos e ao vazio da cultura pop superficial. Uma pena!
Em outras palavras: Medo e delírio em Las Vegas é cinema que vem desaparecendo com o tempo e ninguém dá a mínima, pois a alienação e a barbárie ditam as regras do mercado cinematográfico atual. Mas se você, como eu, cansou desse óbvio ululante, dessa zona de conforto incômoda e repetitiva, então, meu amigo e minha amiga, essa sétima arte aqui é pra você. E mais não digo.
Pois a decisão de descobri-la é sua, e somente sua...
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Meio que um precursor dos filmes de zumbi que andam tão em voga atualmente em hollywood. . Cronenberg destila todo o seu nonsense, marca registrada que o consagrou no início da carreira, levando-o posteriormente à obras-primas B como A mosca e Gêmeos - mórbida semelhança. Vale a conferida para que os cinéfilos conheçam o mestre ainda em formação!
O quarto reich sempre esteve por aqui (Hunters é sátira ao nazismo, mas também interessante reflexão sobre os fascistas que andam entre nós desde que o mundo é mundo)
Os puristas estudiosos de história volta e meia encrespam com certas liberdades poéticas presentes em adaptações cinematográficas e televisivas de momentos históricos específicos. E no caso da Segunda Guerra Mundial e o holocausto em particular, eles vão além, chegando a ficar de cabelos em pé. Na boa... O problema é única e exclusivamente deles. E, além disso, a sétima arte nunca se viu engessada unicamente a discursos literários e acadêmicos. Mais: ela se permite ousar toda vez que a situação se apresente.
Logo, foi com um enorme prazer que assisti a primeira temporada de Hunters, série de tv da Amazon criada por David Weil, e constatei se tratar de uma grande e divertida ousadia.
Hunters conta a história do jovem judeu Jonah Heidelbaum (Logan Lerman, da franquia Percy Jackson), que vê a avó ser assassinada diante de seus olhos, sem que ele esboce qualquer reação, e descobre que ela pertencia a um grupo de caçadores de nazistas, capitaneado pelo milionário Meyer Offerman (Al Pacino, em seu regresso à tv depois de 17 anos).
Eu sei... Parece simplista resumir a série num raso parágrafo de cinco linhas. E é. Contudo, Hunters está tão cheia de desdobramentos e reviravoltas que é difícil, à primeira vista, resumi-la em poucas palavras. Trata-se, no final das contas, de um grande ensaio sobre a América contemporânea - leia-se: pós eleição de Donald Trump - e o fascismo que nunca deixou de estar entre nós, embora a segunda guerra já tenha acabado há mais de 70 anos. E olha que a narrativa televisiva se passa em 1977!
O grupo que acompanha Jonah e Meyer é bastante eclético e reflete bem a estereotipia que convive a duras penas na terra do Tio Sam. Há o ator decadente, que sobrevive dos poucos fãs que ainda se lembram dos tempos em que ele era uma grande promessa de hollywood; uma versão um pouco mais engajada da musa da Blaxploitation, Cleópatra Jones; um ex-soldado da guerra do vietnã, ainda traumatizado pelos horrores que viu e perpetrou durante o conflito e até mesmo uma ex-noviça revoltada, bem na linha Grindhouse de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez.
E não bastasse tudo isso os produtores da série - dentre eles, o fenômeno da atualidade, Jordan Peele - ainda debocham de tudo o que podem e não perdem a chance de usar referências do universo quadrinhos e da cultura pop em geral. Fãs da Marvel, deem uma chance a esse programa! Vocês não vão se arrepender!
Para aqueles que esperam algo mais visceral e contundente, na linha A queda: as últimas horas de Hitler ou A lista de Schindler, procurem outro formato. O que está em jogo aqui é uma grande fabulação, um desejo de zoar também com a própria história passada (e os conservadores vão reclamar, como sempre!). Já se você curtiu a maneira como Tarantino recontou a jornada de Hilter em Bastardos inglórios, assistam até o último episódio pois o desfecho é avassalador.
Desde que li a respeito do projeto pela primeira vez, fiquei interessado na premissa (e, lógico, pela presença de Pacino, o eterno Michael Corleone) e ansioso pela estreia. E ratifico: Hunters é tudo aquilo que eu esperava. Contudo, é preciso ter mente aberta ao assisti-lo, já que a série não se prende a normatismos e discursos literais. Como disse no primeiro parágrafo, "ela se permite ousar". E ousadia é tudo o que o cinema americano não tem feito nos últimos anos. Por isso vem perdendo espaço dia a dia para a televisão.
O quarto reich proposto pela série sempre esteve por aqui. Não é algo que simplesmente desapareceu por conta da derrota dos nazistas. Não, meus caros leitores! O fascismo sempre se esconde e procura uma nova oportunidade de tomar o poder no futuro. E assim será também depois que a nossa geração não estiver mais por aqui, ad aeternum.
Logo, a decisão de ler essa história de maneira emburrada, enfadonha, resmungando de tudo o tempo todo ou sabendo rir da própria desgraça (e aprendendo com isso) é só sua. Então, pelo amor de Deus, escolham com sabedoria.
A vida, vocês sabem, é uma só e nunca dura o tempo que nós gostaríamos que durasse...
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Territorialismos (Faça a coisa certa, de Spike Lee, e a América dos excluídos que competem entre si com unhas e dentes pelo mínimo necessário)
Todas as vezes que me perguntaram o que é mais extraordinário na história da sétima arte eu sempre respondi: "a capacidade de certos cineastas fazerem o seu trabalho repercutir além da geração para quem o seu cinema foi realizado". E há sempre uma lista imensa de filmes que cabem como uma luva nessa categoria. E dentre os filmes que vêm à minha cabeça toda vez que eu penso na lista desses filmes que foram além de sua própria época, é impossível não me lembrar de Faça a coisa certa, do diretor Spike Lee.
Lá se foram mais de três décadas e o longa de Spike não envelheceu um segundo sequer. Pelo contrário. Parece até que foi realizado no mês passado, na semana passada, tamanha a atualidade de seu discurso. E antes que os espectadores mais tradicionais e viciados num resuminho básico me aporrinhem, é preciso adiantar: Faça a coisa certa é um filme sobre territorialismos, sobre disputar espaço, qualquer espaço, o mínimo que seja, como quem luta pela própria vida. E isso, meus caros leitores e fãs de cinema, é muito maior do que qualquer sinopse que eu vá narrar aqui.
Seus personagens buscam razões para lutar por sua própria identidade, mesmo quando tudo parece conspirar contra eles. E o pano de fundo para essas discussões e disputas de território, além da música forte e precisa do Public Enemy, é a câmera subjetiva do diretor que nos proporciona um grande passeio pela vizinhança numa América à anos-luz daquela que vemos todo dia nos tabloides e na programação da CNN ou da Fox News.
E a estereotipia do lugar, é claro, chama a atenção com gigantesca facilidade. Se é possível falar em protagonistas, fiquemos então - na superfície - com o duelo entre Sal (Danny Aiello, fantástico!), o dono da pizzaria, point de grande parte dos moradores do bairro, e Mookie (o próprio Spike Lee), seu entregador, que vive reclamando do pagamento atrasado. Mas como disse no início do parágrafo é um protagonismo superficial, pois eles dividem a atenção com uma série de figuras que flertam com tipos sociais, embora tenham revolta e atitude própria para dar e vender.
Radio Raheem (Bill Nunn), como diz o próprio nome, anda para cima e para baixo carregando seu rádio no mais alto volume e incomodando os outros moradores da região. E ai de quem mandá-lo abaixar o som! Da Mayor (Ossie Davis) é praticamente um zorba, o grego da rua, sempre sugerindo soluções para os outros e tentando manter a paz a qualquer custo. Mother Sister (Ruby Dee) vê a vida passar da janela de sua casa, mas não perde a chance - quando a oportunidade lhe aparece - de palpitar sobre o que quer que seja. Buggin (Giacarlo Esposito) é aquele revoltado que existe em qualquer subúrbio do mundo. Deseja boicotar a pizzaria do Sal simplesmente porque ele não possui em seu hall da fama - a parede onde constam fotografias de clientes famosos - um homem negro sequer. Smiley (Roger Guenveur Smith) é o gago que perambula pelas ruas vendendo seus folhetos e lutando contra o preconceito daqueles que acreditam que ele deveria parar de encher o saco ou simplesmente desaparecer de uma vez por todas. E Love Daddy (Samuel L. Jackson), com suas tiradas no programa de rádio que apresenta, faz as vezes de cronista do cotidiano daquelas ruas sofridas.
E isso porque eu fiquei somente nos moradores mais influentes. Mas uma dica aqui: prestem atenção no contexto geral.
Digo isso porque, lógico, há sempre espaço para discussões entre vizinhos, crianças quase sendo atropeladas porque decidiram atravessar a rua na hora errada, brigas entre irmãos, a eterna guerra entre os policiais brancos que rondam a área e os moradores (detalhe: há uma sequência em que são exibidos os mais diferentes tipos de insultos que, por si só, vale pelo filme todo!) e a convivência difícil entre a comunidade negra e os donos de estabelecimentos comerciais de outras etnias.
Embora Spike Lee tenha se consagrado por uma carreira cheia de sucessos, acredito piamente que seu estrelato esteja até hoje muito atrelado ao sucesso desse longa. Digo mais: acredito que foi aqui que começou a sua fama de ativista. E os fãs de sua gloriosa carreira têm muito a agradecer...
Até hoje me pergunto onde a Academia de artes e ciências cinematográficas estava com a cabeça quando premiou Conduzindo Miss Daisy com o Oscar e não esta pequena obra-prima, que gera reflexões valiosíssimas até hoje. A América contraditória que virou as costas para New Orleans após o furacão Katrina e que trouxe de volta à cena a Ku Klux Klan em plena era Trump tem aqui o seu embrião (embora muitos demagogos prefiram não enxergar dessa forma).
Em outras palavras: os moradores do Brooklyn de Faça a coisa certa estão, embora prefiram não lembrar e se preocupar com questões mais pertinentes e agradáveis, sentados num enorme barril de pólvora, pronto para explodir a qualquer momento. E o fósforo que promoverá essa tragédia está na intolerância e na incompreensão de certos discursos. Porque o ser humano, infelizmente, nunca perde a mania de se achar mais do que os outros ou contar vantagem de si. Logo, esperar pelo pior não é uma promessa e sim uma realidade a longo prazo.
Tenho (sempre tive) a curiosidade de ver a continuação desse filme com seus personagens mais velhos, digamos, 20 anos depois do incêndio que encerra o longa. Infelizmente o tempo passou e Danny Aiello não está mais entre nós (o que é uma perda irreparável). E não bastasse tudo isso Spike decidiu seguir um novo caminho, não menos denunciatório. Uma pena! Precisávamos - e muito - rediscutir o que foi iniciado aqui, principalmente depois do advento das novas tecnologias e a chegada das redes sociais. Como isso não aconteceu, que bom saber que pelo menos podemos revê-lo e repensarmos a sociedade quantas vezes quisermos!
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O Cristo da vez (O caso de Richard Jewell, de Clint Eastwood, na verdade é a América fabricando heróis e vilões ao sabor de seus próprios interesses escusos)
Os Estados Unidos, que certos brasileiros frustrados adoram chamar de "a maior nação do planeta", é um país no mínimo irônico. Vive de fabricar maniqueísmos os mais diversos com o intuito de se promover e, com isso, conseguir mais adeptos alienados, antenados com a sua "causa" aham patriótica. E o maior exemplo disso é a maneira como constrói para a opinião pública seus conceitos de herói e vilão.
Dito isso, confesso que foi uma grata surpresa assistir o último longa de Clint Eastwood, O caso de Richard Jewell. E digo surpresa porque antes mesmo do filme ser lançado em nossas salas de projeção, já aportou por aqui carregado de polêmica por conta da maneira como o diretor expôs o ponto de vista de uma das personagens principais da trama.
Contudo, o protagonista desta história, Richard (vivido de forma exuberante pelo ótimo Paul Walter Hauser) tem seu próprio calvário para enfrentar. Ele é um reles segurança, ex-agente policial, que busca melhorar de vida para poder pagar suas contas e ajudar a mãe, Bobi (Kathy Bates, também excelente!). Mas sua vida muda completamente quando decide trabalhar nas olimpíadas de Atlanta, em 1996.
Uma bomba é colocada no Centennial Park e Richard é o primeiro a localizá-la e informar as autoridades. A explosão causa graves sequelas no público presente, mas a maior delas certamente na vida do próprio segurança. E tudo por causa da personagem que rendeu polêmica (como citado no segundo parágrafo). Kathy Scruggs - vivida por Olivia Wilde - é uma jornalista ambiciosa à procura de um furo de reportagem que tire a sua carreira do tédio. E que vê numa informação tendenciosa obtida através de um agente do FBI razões suficientes para colocar sobre Jewell a culpa pelo atentado.
A razão por trás da suspeita: o passado de Richard advoga contra ele e, nesse momento, surge uma cultura muito comum na sociedade globalizada em que vivemos. A eterna mania de ver o pior nos outros e não acreditarmos que as pessoas mereçam uma segunda chance.
(Detalhe: a polêmica que engoliu as intenções do filme em conseguir indicações para as principais categorias do Oscar e da temporada de prêmios em geral tem a ver com o fato da jornalista, no filme, trocar sexo por informação privilegiada sobre o caso. E é nesse momento - em tempos de feminismo ganhando espaço nas redes sociais e na internet, Me Too, etc - que a coisa começa a feder.
E fazendo aqui um aparte em defesa das mulheres que chegaram a rotular Clint de misógino e cruel, acredito que Eastwood queimou seu filme de graça aqui, pois vende a imagem de Kathy desde o primeiro fotograma como uma mulher promíscua, capaz de qualquer coisa para se dar bem. E só por isso já temos motivo suficiente para tomarmos cuidado ao analisar o projeto.
No final das contas, o que salvou o filme do eterno Dirty Harry de não cair no ostracismo e virar alvo de ativistas é o grande painel que ele construiu sobre os EUA controverso de hoje. Há um pouco de tudo aqui: a eterna mídia sensacionalista, que volta e meia bagunça a vida dos outros e, quando erra, não pede desculpas; a cultura viciante da hierarquia policial, não por estar preocupada em fazer justiça e averiguar os fatos, mas porque quer assumir o caso visando a fama; e a indústria dos ressentidos que adoram pegar volta e meia alguém para Cristo.
E Richard Jewell funciona bem como o Cristo da vez. Ele não se encaixa no padrão do que a sociedade americana gosta de vender como correto, como modelo. É gordo, nunca é levado a sério, mora com a mãe - para muitos, o suficiente para ser rotulado como um perdedor - e está sempre disponível (para o senso comum: disponível em excesso).
O monólogo final do personagem, quando enfrenta cara a cara o agente do FBI que quase destruiu sua vida, é extraordinário e mostra uma realidade nua e crua. Não é à toa que tão poucos ajudam no mundo, e tantos prefiram fugir, se esconder, virar a cara para o outro lado. No final das contas, parece que bandido é "aquele que faz a sua parte, que se preocupa, que toma uma atitude".
Logo, que país é esse que se esconde atrás de super-heróis e presidentes machões, mas adora varrer para debaixo do tapete a verdade sobre certas histórias contadas ao povo? Richard Jewell nada mais é do que um Lee Harvey Oswald aprimorado. Aquele que deve herdar a culpa para que não precisemos ir longe descobrir a verdade.
Mas vai ter gente por aqui dizendo que "não é bem assim", pois não tem recursos para formar uma opinião melhor do que essa.
P.S (e numa era cheia de politicamente correto e demagogos religiosos no Brasil, eu não posso terminar essa crítica sem dizer isso): você, cristão chato e que chama tudo de blasfêmia, que se incomodou com o título do meu texto, na boa... O problema é seu e só seu. Eu tenho mais o que fazer do que esperar a sua benção sobre tudo o que eu penso, digo ou escrevo. Anotou?
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Manual prático para entender psicopatas (A casa que Jack construiu, de Lars von Trier, é o resultado de uma sociedade que acredita na eficácia de guerras, armas e muita violência)
O mundo está cheio de Jacks, mas a humanidade (ah! a humanidade!) prefere o conforto da hipocrisia, e esconder suas mentiras preferidas atrás do discurso de que "fala sério! isso é mais uma invenção da cultura pop!". E por isso, defendo aqui o diretor Lars Von Trier. Ele matou a pau.
A casa que Jack construiu, último longa lançado pelo diretor (e que foi odiado de forma maciça pela crítica; teve até gente que abandonou a sessão no meio num dos festivais de cinema da Europa) é um grande ensaio sobre a hipocrisia latente que reina entre nós.
O Jack - interpretado pelo ator Matt Dillon, que depois de anos perdendo tempo com personagens inúteis, enfim faz uma boa escolha de carreira - proposto por Von Trier é o estereótipo máximo da psicopatia. Mata única e exclusivamente pelo prazer de matar. A ele não interessa nenhum juízo de valor ou moral ilibada. Ele é desse jeito porque decidiu ser assim. E suas vítimas são aquelas que aparecem diante de si quando a oportunidade se mostra. Ele não precisa de um motivo para caçá-las ou perseguí-las. Nada disso. Na prática, ele aprecia o momento e exerce "sua arte".
E é nesse momento que o filme se torna ainda mais interessante como reflexão (e essa, por sinal, deveria ser a principal abordagem dos cinéfilos, e não buscar algum tipo de adoração ou repulsa pela barbárie ou tentar catalogá-lo dentro do universo "filme de terror"). O diretor faz uma inteligente correlação entre os crimes de Jack e as obras de artistas clássicos da pintura.
Me peguei a todo momento pensando nessa geração de hoje que não sabe separar a obra artística de um indivíduo de seus delitos morais e perniciosos. Pior: boicotam suas carreiras, chegam a fazer campanha para que outros a boicotem também. Estão perdendo tempo, coitados! É praticamente impossível encontrar no mundo das artes alguém - e olha que eu já procurei por isso - que tenha uma vida acima de qualquer suspeita.
Parece fazer parte desse mundo a ideia de perversão, de incômodo. E isso é muito bem trabalhado em forma de telas, películas, livros, fotografias, músicas, ou seja lá que plataforma artística eles escolham. Não se trata - sinto muito aos moralistas que estiverem lendo esta crítica - de uma ciência exata, de uma realidade feita apenas de virtudes. Quem dera fosse fácil assim!
E Jack entende isso como poucos. Chega a descer ao seu último grau de indecência para provar às suas vítimas e perseguidores o quanto sua "arte" é pura, e não atrelada aos desejos de outros. Ele é, na melhor (ou pior, dependendo de como você enxergue a situação) expressão do termo, um sobrevivente do caos diário. E por isso não deve justificativas àqueles que nunca irão compreendê-lo como um todo. Porém, um todo fadado a destruir e não a construir o que quer seja.
E nesse sentido a casa que ele "supostamente construiu" é apenas uma dúvida, uma lamento, uma tentativa inglória de permanecer humano, quando na verdade o que ele deseja de fato é destruir o mundo que o rodeia.
Adorei um passagem do filme no qual Von Trier me fez lembrar de O auto da barca do inferno, de Gil Vicente (se a correlação não era essa, peço desculpas! nessas horas, eu sempre enxergo demais e de acordo com meus próprios gostos e referências).
Volta e meia chamam Lars de devasso, de polêmico, de mau caráter e aqui ele deu todos os motivos para que seus detratores bufassem de ódio. Realiza uma espécie de manual prático para entender psicopatas, mas sem cair nas armadilhas dos jargões psicanalíticos. Ele recorre às artes plásticas para nos mostrar o quanto o mundo anda impregnado de morte e violência até o talo, e acha tudo isso um tanto natural, às vezes até necessário.
Digo isso porque nunca falamos tanto em andarmos armados 24 horas por dia. Nunca se pediu tanto como nessa sociedade contemporânea por uma terceira guerra mundial (e tem quem se faça de desentendido, dizendo que "não é bem assim"). E não bastasse todo esse ódio, essa apologia à violência, tem quem exija a volta de muros, regimes totalitários e cultue ditadores e genocidas. Mas, no final, quem não prestam são os artistas. Esses sim precisam sumir do mapa. De vez.
Ó, Deus, perdoai-os! Eles não sabem de nada! Que dirá o que fazem...
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O VÍCIO, de Abel Ferrara, faz um interessante paralelo entre o universo vampiresco (embora seu filme não seja especificamente um projeto do gênero) e o mundo dos dependentes químicos. E talvez se tivesse optado por uma atriz do chamado primeiro escalão para sua protagonista, tivesse até conseguido arrebatar alguns prêmios em festivais independentes. Enfim... Vale a minha recomendação!
THE BEACH BUM me lembra muito a cagada que o Eddie Murphy fez quando, depois de ganhar o Globo de Ouro por DREAMGIRLS, foi fazer aquela porcaria cômica chamada NORBIT. Só que dessa vez quem esculhambou de vez foi o Matthew McCounaghey. Não dá pra entender esses artistas que depois que vencem um grande prêmio se associam a porcarias!
O marginal popstar (O bandido da luz vermelha, Rogério Sganzerla e o país que adora cultuar o errado)
O Brasil é um país que não muda porque não tem interesse em mudar, quer que tudo permaneça na mesma (de preferência, de acordo com os seus próprios interesses). Não bastasse isso, adora cultuar o errado, relativizar o que é crime e o que é boa ação. Bota tudo na conta do "veja bem...". E pensar que o diretor Rogério Sganzerla falava disso mais de 50 anos atrás e ninguém deu a menor bola. Nem naquela época, muito menos hoje!
É com uma enorme satisfação que sentei em frente ao meu aparelho de tv esta semana para assistir o dvd de O bandido da luz vermelha, de Sganzerla, clássico do chamado cinema marginal. E é também com uma enorme tristeza e um sentimento de impotência atroz que percebo que nada, absolutamente nada, mudou neste país que não consegue fugir da pecha de república de bananas. "Que país de merda!", dirão sem pestanejar aqueles que hoje migram em massa para Portugal.
O longa, que estreou por aqui às vésperas do ato institucional nº 5, é um marco do nosso cinema (mas vive sendo taxado por quem não conhece nada da sétima arte brasileira e da nossa cultura em geral de "mais um exemplar da apologia à violência"). Coitados deles! Não fazem a menor ideia do que estão falando!
Paulo Villaça (ator que merecia estar em evidência no país até os dias de hoje) entrega um luz vermelha que é a cara do Brasil de ontem, de hoje e provavelmente de amanhã. E Sganzerla, diretor que fez parte do grupo que fundou o cinema novo, mas também quis seguir por outros caminhos mais ácidos, entrega aquele que é, para mim, o filme derradeiro sobre a nossa nação controversa, que adora idolatrar criminosos de todos os tipos.
Luz vermelha é um marginal popstar, figura que volta e meia ganha os holofotes da mídia sensacionalista nessa terra ainda tupiniquinesca que chamamos equivocadamente de "país em desenvolvimento". É tão folgado que não só assalta casas, como dorme com as mulheres que rouba (e volta e meia elas se apaixonam por ele!) e ainda pede, de vez em quando, que elas façam um almoço para ele. Em outras palavras: é um artífice-mor dessa cara de pau que reina no Brasil há séculos.
Talvez a única, de todas as mulheres com quem dormiu, que pudesse entendê-lo na íntegra fosse Janete Jane (Helena Ignez, musa dessa geração cinematográfica). Mas ela estava tão preocupada com o seu próprio oportunismo, sua própria beleza, que preferiu traí-lo. E pagou caro por isso, como tantos outros que atravessaram o caminho dele.
Do outro lado da sede de status de Luz vermelha está o Delegado Cabeção (Luiz Linhares), que sofre do mesmo problema de Luz: ele busca também, a sua maneira, a notoriedade em primeiro lugar. Prender o bandido é apenas um detalhe perto do que representa ser reconhecido nas ruas como "o homem que prendeu Luz vermelha". E nesse momento Sganzerla realça um faceta típica de nossa sociedade que adoramos varrer para debaixo do tapete. Falo da eterna mania de fazermos péssimas escolhas baseadas em interesses escusos. Insira nesse contexto um pontada de fama e projeção e bum! eis aí o nosso exemplar ser humano de baixa categoria.
Contudo, me corrijam vocês, leitores, se eu estiver errado, mas acredito que os grandes protagonistas de O bandido da luz vermelha são os dois locutores de rádio que narram essa saga inglória, fadada logicamente ao insucesso. Digo mais: ambos remetem à uma espécie de consciência, aquela voz incômoda, que nunca queremos ouvir, pois nossa egolatria não permite, mas está sempre apontando os caminhos certos ou, ao menos, aqueles que deveríamos prestar mais atenção.
Mas vai explicar isso a uma nação que idolatra a ignorância desde a chegada de nossos patrícios em 1500?
Com seu filme-denúncia, quase manifesto de uma era que (ainda) não acabou, Sganzerla compõe uma tríade (junto com Terra em transe, de Glauber Rocha e A dama do lotação, de Neville d'Almeida) que optou por esmiuçar o Brasil ao invés de simplesmente deixá-lo para lá e vender belezas, fetiches e estereótipos. Aliás, tudo o que está acabando com o cinema da retomada.
Certa ocasião num vídeo do you tube vi Quentin Tarantino se dizendo fã do longa e é fácil entender o porquê. Sganzerla foi, à sua maneira, na sua época, um Tarantino. Mesclou referências e brincou com formatos do jeito que quis e quando quis. E não à toa ganhou, para mim, ao lado de Glauber, o rótulo de gênio do nosso cinema.
E é uma pena saber que a obra desse homem ande tão esquecida hoje em dia por parte de quem acha que sétima arte é sinônimo unicamente de efeitos especiais, super-heróis, CGI e mulheres masculinizadas interpretando vingadoras, assassinas de elite e caçadoras de recompensa!
Ah, Sganzerla! É sério que você teve de morrer? Que falta você está fazendo aqui embaixo, meu amigo!
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Eu vi o filme só por causa da Emilia Clarke. Mas confesso: não esperava aquela reviravolta na final. Para os casais de namorados que estão procurando aquele filme de fim de noite no domingo é a opção ideal.
O Império (do Besteirol) Contra-Ataca: Reboot, de Kevin Smith é o filme mais surtado sobre a hollywood surtada dos dias de hoje. E o diretor debocha mesmo de tudo e todos, sem pudor ou medo. A dupla Jay e Silent Bob continua afiadíssima e mais louca do que nunca. Conta ainda com a presença de antigos parceiros de seus filmes anteriores (Dogma, Procura-se Amy, O Balconista). Para fãs do nerdismo mais puro!
A ÚLTIMA COISA QUE ELE QUERIA é a parte do catálogo da Netflix que desperdiça dinheiro e erra feio. Tinha tudo para dar certo, elenco, motivação, mas... Ficou no mas. P.S: não adianta. Eu não consigo entender porque a Anne Hathaway faz tanto esforço para destruir a própria carreira.
CARCEREIROS - O FILME funciona melhor como veículo de ação do que como registro da vida dos funcionários de penitenciária. E é, inclusive, inferior à série global nesse sentido. Talvez um ator mais arrojado do que o Rodrigo Lombardi desse um outro tom â trama. Fiquei com aquela sensação de "está faltando alguma coisa, mas ele preferiram cobrir as lacunas com os velhos personagens clichês de sempre".
A primeira vez que ouvi falar de UM VIOLINISTA NO TELHADO, de Norman Jewison, foi numa chamada do Corujão na Rede Globo (era o final dos anos 1980) e não dei muita bola. Como fui tolo! Trata-se de um interessante projeto sobre as agruras de uma família de baixa renda tendo de lidar com as mudanças de costumes e tradições de sua comunidade (no caso, a rabínica). E Topol, ator que protagoniza o longa, dá um show à parte na pele do pai que precisa lidar a duras penas com a decisão de suas filhas de escolherem seus próprios maridos.
Histeria atroz (Uma reflexão pessoal sobre O grito, de Edvard Munch)
O mundo das artes plásticas é, no mínimo, um tanto irônico. E por vezes, é bom que se diga, eu o considero mórbido. Porém, não vejo a morbidez nesse caso como algo menor, um defeito, um deslize. Pelo contrário. Minha relação com esse mundo das artes volta e meia precisa gerar controvérsia e há uma legítima adoração de minha parte pelo amargor, pela rigidez, pelo exótico, por aquilo que outros podem chamar prematuramente de negativo.
Em outras palavras: gosto do mórbido como reflexão. Acho-a mais do que justa. E nesse sentido poucos quadros na história mundial das artes plásticas chamaram tanto a minha atenção quanto O grito, de Edvard Munch (1863-1944).
E é preciso confessar aqui logo de cara: minha relação com a pintura não começa exatamente com o quadro em si. E sim com uma imagem que, na minha cabeça, sempre fez alusão à pintura. Falo da imagem que vejo do homem gritando no filme Pink Floyd: the wall, do diretor de cinema Alan Parker. E desde já adianto: se não há nenhuma relação entre filme e pintura, então eu cheguei até esta adoração e por conseguinte este texto por mera coincidência e nada mais.
A cultura pop nos últimos anos fez uma correlação entre O grito, de Munch, e a máscara do antagonista da série de filmes de suspense Pânico. Contudo, não gosto dessa referência. Acho até que ela diminui o trabalho do pintor.
O grito faz parte de uma série de trabalhos de Munch que ficou conhecida como A frisa da vida (ou um poema sobre o amor, a vida e a morte). E ele expunha seus quadros à ação da neve e da chuva, com o intuito de perder um pouco o controle do resultado final plástico. Em suma, um visionário de sua própria era. Detalhe: enganam-se aqueles que pensam existir apenas uma versão da tela. Só de litogravuras - que serviam de base para a criação - ele imprimiu 45, sendo que algumas foram coloridas à mão.
Muitos estudiosos interpretam a reação do personagem na tela - o grito em si - como fruto da ansiedade daqueles tempos ou do desespero pessoal do autor. E não estão completamente errados, não!
E, além disso, acredito piamente que esse sentimento do quadro perdura até os dias de hoje. Digo mais: tenho minhas dúvidas se o autor não estaria se sentindo ainda pior nesse século XXI no qual estamos tendo de encarar muitas das piores resoluções humanas de toda a nossa história. Ou seja, vivemos na prática uma espécie de histeria atroz (e vejo a tela de Munch gritando também sobre isso!).
Quando tiverem um tempo livre, procurem pela versão online do quadro na internet. Diferentemente da exatidão pintada por Goya e Leonardo da Vinci, a obra de Munch tem imagens distorcidas, já vi gente chamando até de "quase um borrão" e isso é proposital. Isso dialoga abertamente com o momento que o pintor vinha passando.
Ele parece esmiuçar o desespero de forma nítida, sem fingir sentimentos.
E nesse momento me pego refletindo sobre aqueles tempos amargos, sem a comodidade oferecida pela tecnologia (que tanto tem lobotomizado as gerações atuais!), sobre a dificuldade de criar em qualquer esfera, não somente a pintura. Era uma época em que, muitas vezes, artistas eram sinônimo de demoníacos, malditos. Portanto, qualquer obra artística, mais do que a ótica da beleza, do entretenimento, do gerar prazer aos outros, era preciso ser enxergada como um ato de sobrevivência.
E como sobreviver hoje em dia após anos e anos de artistas fundamentais como Munch, quando tudo parece tão vazio, tão raso de significado, tão fácil para uma minoria elitista cada vez mais covarde e blasé?
A meu ver, Munch elevou tanto o padrão do seu tempo que acabou por nos tornar acomodados em excesso por medo de tentar atingi-lo ou entendê-lo. E isso é muito ruim. Entretanto, ele faz algo também tão pessoal, tão acima da média, que me parece quase obrigatório estudar a vida e a obra de homens fora de série como ele.
Para isso servem (ou deveriam servir, pelo menos) as artes. O problema é a falta de curiosidade do mundo contemporâneo, cada vez mais apegado ao óbvio, ao mais do mesmo. E não é à toa que a tela está gritando até hoje!
P.S atrasado: mais de duas semanas depois de escrever este artigo leio numa matéria do Estado de São Paulo que pesquisadores tentam explicar para os fãs de artes plásticas porque O grito está desbotando, perdendo suas cores originais. E me pego pensando: não será isso proposital numa época em que tudo parece ter perdido completamente o seu sentido original? Talvez seu autor esteja cansado de gritar em vão e prefira desaparecer. Ou talvez seja apenas eu, este projeto de autor, vendo demais e enlouquecendo novamente.
Intoxicados ao extremo (Midsommar: o mal não espera a noite é uma alegoria sobre a sociedade que busca a perfeição em todos os aspectos e só encontra contradição)
Neguem o quanto quiser os moralistas de plantão, mas a cruel verdade é que nos tornamos uma sociedade intoxicada. Por absolutamente tudo. Buscamos na realidade enfadonha do dia-a-dia razões para acreditar que o mundo pode ser perfeito, acima de qualquer suspeita. E há até quem viva de prometer isso aos outros à cifras milionárias (e como vive bem essa gente que engana os outros!). Nos acostumamos a fingir que não há razões para acreditar em derrotas, em perda de tempo, que tudo pode ser lindo, irretocável, para sempre. E mesmo os depressivos escondem de si mesmo e dos outros a triste realidade que são suas vidas miseráveis, pela metade, mesquinhando afetos.
E após terminar de assistir o fantástico Midsommar: o mal não espera a noite, de Ari Aster, só posso agradecer pelo fato de não ser o único disposto a falar sobre isso e sobre como o século XXI vem transformando seres humanos em máquinas insensíveis.
A história de Dani (Florence Pugh, fantástica) é sintomática para entendermos o que a sociedade se tornou nas últimas décadas. Ela chegou naquele ponto da vida em que nada mais parece fazer sentido. Seu relacionamento amoroso chegou àquele ponto da estrada em que é melhor sair do carro e refazer o trajeto (mas ela adia a decisão o máximo que pode!), mesmo seu convívio com os pais é delicado e ela decidiu se afastar, morar sozinha. Contudo, quando seus genitores falecem num incêndio mórbido, toda sua fortaleza interior rui e ela sente dentro de si que o pior ainda está por vir.
Diante de um quadro tão funesto, ela vê na possibilidade de viajar com o namorado e seus colegas de faculdade para uma comunidade religiosa chamada Haarga, um pequeno vilarejo no interior da Suécia, uma espécie de fuga. Mais do que isso: um motivo para recomeçar longe de tudo que até então lhe fazia mal.
O problema, como todas as pessoas que buscam um recomeço, uma vida linda, um emprego dos sonhos, etc, é a eterna mania de idealizarmos o lugar para onde vamos. E quando Dani se depara com as diretrizes e o estilo de vida da comunidade, ela percebe a duras penas que nada - realmente nada - vem fácil na vida.
E esse é exatamente o grande legado deixado pelo longa: Aster realiza uma interessante alegoria sobre a eterna busca humana por aquilo que, na maioria das vezes, só existe no papel. Pois na prática as regras do jogo são sempre outras.
Venho percebendo aqui no Brasil de uns dez anos para cá o crescimento de uma indústria do positivismo extremo. As matérias jornalísticas volta e meia chamam a atual sociedade de geração cristal e, honestamente, eles não estão errados. Vivemos em meio à uma humanidade que esconde sofrimentos, varre desavenças e derrotas para debaixo do tapete, para fingir que elas não existem. No entanto, essas mesmas pessoas se esquecem que tudo isso cobrará seu preço mais a frente.
Os colegas de Christian (Jack Reynor), namorado de Dani, que buscam realizar uma tese sobre a comunidade, também não entendem que a vida não se resume à obtenção de seus sonhos e a realização de seus projetos. Eles simplesmente bloqueiam de suas mentes, de sua torta realidade, o fato de a existência exigir deles uma contrapartida.
Em outras palavras: queremos dos outros, mas não queremos que os outros queiram nada da gente. A eterna mania de nos olharmos como superiores em relação à nossa própria espécie.
O diretor disse durante a realização do projeto ter alterado o rumo da história por conta do término amargo de um relacionamento amoroso. E a meu ver, saiu engrandecido dessa história toda. Vejo em seu filme sinais claros de amadurecimento (principalmente em comparação ao seu longa anterior, Hereditário, que não me causou grandes impressões na época em que foi lançado) e também de uma pessoa que percebeu, como eu, que a sociedade vem arruinando sua própria história por acreditar num mundo ilusório onde tudo é motivo de festa, vitória e celebração.
Ao final do filme (e o último take é extraordinário, na medida em que reflete exatamente esse lado egoísta da sociedade, que vê o outro como seu inferior, como alguém que deve "pagar a qualquer custo" por algo que lhe tenha feito) vejo estupefato a consequência dessa intoxicação extrema pela qual estamos passando nas últimas décadas.
Muito se fala em cura no século XXI. Entretanto, me pergunto quem será o curandeiro nesse mundo onde os próprios doentes escondem suas enfermidades.
P.S (na verdade, uma pequena sugestão): prestem atenção, fãs de terror, em como as cenas mais horrendas, mais incômodas de todo o filme, são apresentadas ao público com o dia claro, ao contrário do que se vê normalmente no gênero.
P.S: se você já viu A vila, de M. Night Shyamalan, e gostou não vai querer perder esse filme por nada no mundo.
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O dia em que eu não vi os Rolling Stones (Memórias de "infância" 16)
Memória é uma coisa engraçada. E essa aqui, especificamente, na verdade nem é uma memória de infância realmente (como costumam ser os textos dessa série), pois nessa ocasião eu já me encontrava com 29 anos. Mas mesmo assim volta e meia vem à tona em minha mente.
E eu precisei do auxílio do jornalista e apresentador da Rede Globo Zeca Camargo - que volta e meia faz uns vídeos curtos em sua página no facebook - para me lembrar que eu ainda não tinha falado dessa história por aqui.
Refiro-me ao show da banda de rock Rolling Stones na praia de Copacabana no dia 18 de fevereiro de 2006, um evento que marcou época (e marca até hoje) na vida de milhões de brasileiros. E segundo o público estimado pelas autoridades nacionais, foram mais de 1,3 milhão de pessoas inundando as areias de copa em frente ao Copacabana Palace Hotel.
Mas o registro em questão aqui é de como eu não consegui ver o show ao vivo, junto com a galera gritando em massa na praia.
E a grande saga começou ainda dentro do ônibus. Eu morava no Méier nessa ocasião e decidi encarar essa aventura junto com minha mãe e minha irmã. E digo mais: foi minha mãe, no auge dos seus 55 anos, a mais interessada na aventura. Meu pai disse que estávamos perdendo o nosso tempo, que era roubada aquilo, mas nada que ele nos dissesse nos demoveria de nossa decisão.
Pegamos o 457 lotado, os fãs berravam as canções do quarteto enquanto se empurravam emocionados. E a viagem até hoje me pareceu interminável, tamanha a lerdeza do motorista. Contudo, se vocês acham que demorar para chegar ao bairro foi uma luta inglória, pior ainda descobrir que precisávamos saltar do ônibus bem antes da orla. As ruas da zona sul já começavam a ser interditadas para o grande evento.
Não me lembro ao certo a rua em que descemos, mas de uma coisa eu tenho memória fotográfica: do enxame enlouquecido de pessoas, de todas as etnias, todas querendo ver Mick Jagger, Keith Richards, Ron Wood e Charlie Watts 0800 (daquelas façanhas que dificilmente se repetirão na história do país).
Roqueiros, roqueiros e mais roqueiros. Mulheres lindíssimas. Seres os mais exóticos possíveis. Gente que se achava sósia dos cantores dando pinta de pseudo celebridade. Havia uma mulata - nunca me esqueci dessa mulher - com um cabelo enorme preso a uma espécie de coque, que eu tenho certeza que se ela estivesse com as madeixas soltas elas arrastariam pelo chão. E ela cantava "Sympathy for the devil" a plenos pulmões.
Minha mãe olhava a todo momento para os lados, procurando minha irmã. Para não perdê-la de vista. Mas quando sentiu o cheiro indistinguível da maconha rolando no ar, vinda de um grupo de motoqueiros na linha Hell's angels, ela parou no meio da rua (ainda estávamos bem longe da areia da praia) e nos disse: "vai dar merda isso aqui! temos que ir embora o quanto antes".
Minha irmã, estressada, concordou com ela na mesma hora. Ela odiava tumultos e gente se empurrando (tanto que sempre guardou com desalento a experiência de ter ido certa vez, com minha mãe e minhas tias, ao Cordão da Bola Preta, no centro da cidade). Eu custei um pouco mais a entender a situação, mas houve um momento em que pensei comigo: "na hora da voltar pra casa pode ser tarde demais e aí a tragédia já aconteceu".
Resultado dessa equação insólita: uma segunda saga para encontrarmos um ônibus e voltarmos para a casa. E quando chegamos em casa, meu pai nos olhou quase às gargalhadas e debochado disse: "eu falei pra vocês! onde tem coisa de graça, tem confusão".
Frustrado, espero a noite chegar para assistir o show, que foi televisionado pela Rede Globo. Foram duas horas de pedras rolando, "Jumping Jack flash", "It's only rock n' roll", "Honky tonk woman", "Start me up", "Brown sugar" e, claro, o desfecho arrasador, com "(I can't get no) Satisfaction" acompanhado de sacos de pipoca doce e de batatas Ruffles.
As panorâmicas que exibiam a multidão que tomou a praia deixaram a minha mãe ainda mais assustada e também aliviada por estar em casa. "Quero ver esse povo todo chegar em casa quando o show acabar!", ela disse. E eu acenei com a cabeça em concordância na mesma hora. Acho que até hoje eu não encaro as edições do Rock in Rio por causa dessa experiência caótica. Na boa... Não tenho mais pique, nem idade para isso!
Mas que no fundo, no fundo, eu queria ver os caras ao vivo, ah eu queria! Mas não deu. Ficou pra próxima encarnação, gente.
O efeito bumerangue (Joias brutas e esse mundo cretino em que tudo se baseia em lucro e apostas)
Vocês por acaso já viram garotos brincando com bumerangues? Pois eu já. No final dos anos 1990 eu costumava frequentar, aos domingos, um terreno que existe atrás da Cinemateca do MAM, no Aterro do Flamengo. Ali encontrei muita gente jogando frescobol, casais namorando, os fanáticos por aeromodelismo e a garotada que curtia bumerangues. E havia um garoto antipático de nome Rogério que se achava um grande mestre na arte de atirar bumerangues. Mais: ele volta e meia jogava na cara dos outros garotos que seus bumerangues eram importados e, por isso, mais difíceis de jogar.
Certa ocasião ele atirou seu bumerangue com uma força tão desmedida que quando o objeto regressou na sua direção atingiu em cheio o seu rosto. Várias pessoas ao redor correram para socorrê-lo, chegaram a levá-lo para o pronto-socorro e alguns dos garotos de quem ele debochou chegaram a sussurrar: "bem feito! assim ele para de contar vantagem!". Só tornei a rever Rogério mais uma vez, meses depois, e ele ficou com uma cicatriz feia no supercílio.
Por que estou contando tudo isso? Porque esta semana enfim consegui assistir Joias brutas, dos irmãos Benny e Josh Safdie, e me peguei refletindo sobre a mesma situação que envolveu o jovem Rogério 20 anos atrás: a daquelas pessoas que querem levar suas vidas até as últimas consequências, sem respeitar ninguém e se esquecem do ciclo natural da vida e do quanto ela é capaz de aprontar para nos pôr no nosso devido lugar.
Joias brutas nos traz a história de Howard Ratner (Adam Sandler, naquela que é talvez a melhor interpretação de sua carreira), o estereótipo clássico do oportunista e picareta profissional. Ele usa sua joalheria como mero disfarce de legitimidade para uma vida de mentiras e armações as mais variadas. Contudo, internamente, ele se encontra falido, às vésperas de um divórcio que ele quer evitar a qualquer custo, e mesmo seus familiares não acreditam 100% em seu juízo de valor. Em outras palavras: é um ser humano que caminha a passos largos rumo ao abismo (e nem se dá conta disso).
E quando ele acredita ver sua maré de azar ficando para trás com a chegada de um diamante etíope raro, a vida lhe prega mais uma peça - mostrando que nem sempre a realidade conspira a nosso favor - e ele se vê envolvido numa roubada de proporções estratosféricas, que envolve inclusive o astro da NBA Kevin Garnett.
O filme dos irmãos Safdie é um retrato nu e cru, sem rodeios, de nossa sociedade de valores deturpados, onde tudo é sinônimo de apostas, poder, status sociais e patrimônios elevadíssimos. Em suma: deixamos de ser homens e nos tornamos mercadorias sedentas por valor. E esse valor não pode ser baixo.
E desse misto de atletas profissionais viciados em superstições (a adoração de Garnett pelo diamante bruto é praticamente patológica!), cantores de hip-hop meia boca que se acreditam deuses revolucionários da indústria fonográfica contemporânea e que por conta disso se sentem no direito de pisar em quem for, por qualquer motivo e a eterna entourage de sanguessugas que volta e meia rodeiam aqueles que detém o dinheiro do mundo nasce praticamente um ensaio seco e realíssimo sobre a usura no século XXI.
Algumas pessoas nos portais de cinema e nas redes sociais ficaram um tanto quanto decepcionadas com a não-indicação de Sandler ao Oscar de melhor ator desse ano, mas cá entre nós, eu acredito que ele não tinha a menor chance, embora sua atuação seja realmente um ponto forte do filme. Se o Eddie Murphy (por Meu nome é Dolemite) e o Taron Egerton (por Rocketman) ficaram de fora, com Sandler não seria diferente. E olha que nem o De Niro (por O irlandês) conseguiu vaga esse ano!
Outra coisa: talvez eu tenha enxergado demais ou não tenha entendido o suficiente, mas achei que a interpretação de Sandler me lembrou um pouco o Al Pacino dos últimos anos. Aquele jeito de falar quase um esporro, como se estivesse brigando com todo mundo o tempo todo. Na boa... Ficou com cara de coisa copiada, que ele pegou de empréstimo. Mas como eu disse lá em cima: talvez eu tenha visto demais.
No final o que temos de concreto é mais um bom projeto da ótima produtora A24, que vem se destacando nos últimos anos com produções fora da chamada "zona de conforto" (e para quem está por fora e não ligou os pontos ainda, a produtora é responsável por longas como O farol, de Robert Eggers; Midsommar: o mal não espera a noite, de Ari Laster; Anos 90, de Jonah Hill; Gloria Bell, de Sebastián Lelio, entre outras pérolas).
P.S: seja Rogério ou Howard, o mundo anda cheio de babacas se achando indestrutíveis e acima de qualquer deslize ou derrota. O problema é que eles sempre se esquecem que o mundo tem suas próprias regras e nem sempre está apto a atender nossas expectativas ou sonhos.
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AVES DE RAPINA: ARLEQUINA E SUA EMANCIPAÇÃO FANTABULOSA é a DC voltando a ser a DC enjoativa que quer copiar a Marvel com suas piadinhas excessivas e cenas de ação estilosas, depois de realizar o fenômeno CORINGA (que, na verdade, nem é tão DC assim se levarmos em consideração o que a empresa tem feito nos últimos anos!). Espero que a atriz Margot Robbie tenha a sabedoria necessária para partir rumo a um novo caminho e abandone a Arlequina o quanto antes. Na boa... O personagem, para mim, já está esgotado. Esse é mais um dos inúmeros filmes que me fazem pensar o tempo todo no quanto hollywood precisa se reinventar urgentemente e perceber que o cinema de super-herói é um modismo como tantos outros que passaram pela meca do cinema e que também tem, como tantos outros, o seu prazo de validade. E esse prazo a meu ver já se expirou.
Marionete de si mesmo (Um lindo dia na vizinhança e a eterna dificuldade que nós, seres humanos, temos de crescer, de seguir em frente)
Eu me lembro, quando estava na casa dos meus 30 anos, de ouvir pela primeira vez sobre os escândalos que aconteciam nos bastidores dos programas infantis que eu assistia no fim dos anos 80 e início dos 90. Via declarações do tipo "a Xuxa belisca os seus baixinhos" até "crianças de cor são boicotadas nas gravações". E também me lembro das práticas ilícitas e sujas envolvendo grupos musicais compostos exclusivamente por crianças, como Trem da Alegria (vi há pouco tempo, inclusive, uma entrevista desabafo com a cantora Patricia Marx metendo a boca no trombone sobre aquela época). E me recordo que nem a Disney e o seu famigerado Clube do Mickey escaparam dos comentários maliciosos. Só para vocês terem uma ideia do nível que foi a coisa, procurem na internet pelo depoimento do ator Corey Feldman - de filmes como Os garotos perdidos e Os Goonies - a respeito dos assédios que sofreu em hollywood ainda criança.
Por que decidi escrever esse primeiro parágrafo tão extenso no começo desta crítica? Porque me senti revivendo tudo isso, todo esse sentimento, quando acabei de assistir esta semana nos cinemas o longa Um lindo dia na vizinhança, de Marielle Heller.
O filme de Heller aborda a amarga história do jornalista investigativo da revista Esquire Lloyd Vogel (Matthew Rhys), um homem que empurra a vida com a barriga por reviver constantemente a relação traumática que tem com o pai, Jerry (Chris Cooper), a quem culpa por deixar ele e sua irmã sozinhos no momento mais difícil de suas vidas. E sua melancolia o persegue por todos os setores de sua vida: no casamento, a esposa Andrea (Susan Kelechi Watson) já não sabe mais o que fazer para trazê-lo de volta à vida. E no trabalho, ele se tornou a pessoa difícil da redação, a persona non grata a quem ninguém quer dar entrevista.
Quando sua chefe na redação o delega a missão de entrevistar o maior ícone dos programas infantis de toda a América, o lendário Fred Rogers (Tom Hanks, como há muito tempo não via nos cinemas), ele pensa tratar-se de um trote, pois tal personagem não se encaixa no perfil do tipo de artista e celebridade com quem ele costuma trabalhar.
E Rogers é realmente o seu exato oposto: um homem extremamente positivo, que acredita na esperança e na recuperação de pessoas frágeis ou massacradas pelos deslizes da vida. Um homem que vê a dor, o sofrimento e a morte como ciclos da nossa existência e não como razões para simplesmente desistirmos. E isso de alguma maneira incomoda Lloyd.
Mais do que isso: Lloyd acredita que por ter vivido uma infância tão traumática não é capaz de ver a humanidade com outro olhar que não seja negativo. Ele é praticamente um marionete de si mesmo.
Vocês devem estar se perguntando: como assim? A pessoa real, o verdadeiro Lloyd Vogel, aquele que deveria seguir em frente, superar suas adversidades, saber perdoar o próximo, está escondido por trás de um personagem que ele próprio criou, amargo, sempre apontando os defeitos dos outros, sempre fugindo da responsabilidade de sentar e colocar os pingos nos is. E por isso, na sua visão deturpada de mundo, ele acredita piamente na impossibilidade de Fred Rogers ser um homem sem defeitos. Ele precisa encontrar algum fantasma escondido no armário que assombre a vida desse homem comum, que ganhou a fama de herói americano.
Ao final da projeção, vejo algumas pessoas intrigadas, talvez pensando se tudo aquilo era real de fato ou apenas mais uma versão bonitinha para agradar aos fãs de um ícone da televisão. E me pego pensando no quanto, muitas vezes, procuramos o inimigo no lugar errado só para satisfazer nosso próprio ego e nossa eterna mania de rotular os outros.
Com a idolatria ao que chamamos de globalização e esse século que mal começou e já está dando o que falar (de pior) em todos os sentidos, percebo o quanto nos tornamos uma sociedade stalker, que gosta de perseguir os outros, ver o pior nos demais, às vezes como forma de exaltar a si própria. E tudo isso é muito triste.
Algumas pessoas que escrevem sobre cinema na internet rotularam Um lindo dia na vizinhança de "cansativo" e "decepcionante". E eu discordo em gênero, número e grau. O filme de Marielle Heller me fez pensar no quanto temos dificuldade de amadurecer, de olhar para frente com outros olhos, de virar a página a respeito do que outras pessoas nos fizeram (e nos magoou tanto). Ninguém nunca nos prometeu que a vida seria fácil e pelo andar da carruagem, prevejo ainda mais relutância e desafios no futuro. E como sobreviver a isso sem levantar a cabeça e recomeçar do zero? Não sei vocês, mas parece-me à primeira vista impossível!
Ou em outras palavras (para quem prefere uma opinião mais curta do que a minha reflexão do parágrafo anterior): Um lindo dia na vizinhança é o filme mais humano - no sentido de investigador - que eu vi nessa temporada de prêmios. E acreditem: isso não é pouca coisa, não!
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Foi uma grata surpresa já nesse início de 2020. Mas é preciso que o espectador tenha paciência, dê tempo ao filme para que a narrativa se concretiza. Quem está acostumado à adrenalina e megalomania não vai curtir!
A última esperança (1917, de Sam Mendes, é um passeio brilhante pelo caos e o horror da guerra)
Se existe um gênero cinematográfico que tem tudo a ver com a temporada de prêmios (leia-se: Oscar, Globo de ouro, Guilds, etc) e volta e meia dá as caras com uma produção inovadora ou, ao menos, bem feita esse gênero é o filme de guerra. E muitas vezes eles são vítimas de grandes roubalheiras na história dos mesmos prêmios (Spielberg que o diga!).
Esse ano a bola de vez - e ela vendo sendo rotulada de forma ingrata como a "aposta anti-Netflix para vencer o Oscar de melhor filme" - é 1917, do diretor inglês Sam Mendes (que já faturou o prêmio em 2000 com Beleza americana).
1917 não possui um roteiro de deixar os críticos e os votantes da academia de queixo caído. Pelo contrário. É uma história mais do que simples sobre dois soldados, Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay, que muitos acreditavam que figuraria na lista de indicados a melhor ator por conta da força da ala britânica entre os votantes do Oscar e dos sindicatos) que precisam adentrar o território inimigo em plena primeira guerra mundial para entregar uma carta que pede aos superiores no front que cancelem uma ataque que poderá levar à morte 1600 soldados.
Em outras palavras: eles são a última esperança no intuito de evitar uma grande tragédia.
Contudo, quando o assunto é a parte técnica do longa, 1917 exibe todas as suas cartas na manga e entrega um espetáculo audiovisual digno das maiores produções já feitas no gênero. Montado de maneira a ser visto como um filme rodado num único plano-sequência (assim como aconteceu com Birdman, de Alejandro González Iñáttitú, outro longa mau visto em sua época que acabou calando a boca dos críticos e puristas e levando a estatueta de melhor filme), ele acaba por narrar uma espécie de "passeio rumo ao inferno".
Portanto, saibam segurar a respiração, meus caros leitores, pois este é daqueles projetos capazes de mexer com a sua cabeça e a sua capacidade de compreensão take a take, minuto a minuto. Enquanto os dois soldados atravessam os destroços do que um dia foi um país, vemos o retrato do horror, do caos, da ganância e da eterna mania dos homens de se acharem melhores do que a sua própria espécie naquilo que ele tem de mais vivo e cruel.
O filme a meu ver está repleto de citações diretas à outros filmes de guerra. Que o diga a própria carta a ser entregue pelos soldados que me remeteu a carta que passava de mão em mão entre os soldados do filme O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg. E nos instantes finais, quando Schofield está perto de entregar a mensagem à seu destinatário, talvez eu tenha enxergado demais, mas me remeteu ao clássico Gallipoli, do diretor Peter Weir, feito no início dos anos 1980, que tem como protagonista o ator Mel Gibson no início da carreira.
Vi alguns críticos da internet (sempre eles!) reclamando do final chocho do longa, em comparação aos outros competidores de melhor filme. Honestamente, vejo nessa mentalidade a eterna mania do público contemporâneo - viciado em remakes e franquias de ação - de querer que tudo acabe de forma espetacular, retumbante, avassaladora, à la Senhor dos Anéis e Game of Thrones. E não acredito que a sétima arte deva se render única e exclusivamente a isso.
Na verdade, ao desfecho do filme me peguei perguntando sobre o que o soldado, terminada a árdua missão, estava pensando. Talvez sobre o sentido da guerra, que no final das contas é praticamente nenhum? Ou se já havia passado da hora de lhe mandarem de volta para a casa e rever sua família? E cá entre nós: qualquer produção cinematográfica que termine me fazendo pensar, durante a volta para casa, num algo a mais já valeu o meu dia.
Segundo os resultados da temporada de prêmios até agora 1917 é o favorito absoluto ao Oscar de melhor filme desse ano. Tem quem diga até que já é barbada faz tempo. E não acredito que será injusto. Diferentemente do prêmio conferido ao insuportável Guerra ao terror, de Kathryn Bigelow, em 2010, último filme de guerra a ganhar a estatueta, o longa de Sam Mendes tem alma própria, diferentemente do filme de Bigelow que, na época, pegou carona no lobby político e na eterna mania dos norte-americanos de emularem o sofrimento decorrente da tragédia do 11 de setembro.
É, Netflix... Eu até queria torcer por vocês, mas não deu. De novo.
O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraA seleção natural
(O poço, de Galder Gaztelu-Urrutia, é uma alegoria doentia sobre a luta por um direito básico universal: o de sobreviver)
É... Não tá fácil, não! Na verdade está piorando...
Na tv, senadores confabulam (leia-se: guerreiam com unhas e dentes), sem chegar a um acordo, pelo chamado contrato verde-e-amarelo que, na prática, exclui diversos direitos trabalhistas outrora adquiridos. É uma terra de lobos comendo lobos a política partidária. Enquanto isso, a sociedade definha entre um aviso de morte por covid-19 e outro. É o agora, atingindo nossos olhos e consciências como um dardo envenenado.
E mediante toda essa insensatez e falta de escrúpulos achei extremamente enriquecedor - há quem certamente me chamará de maluco - assistir ao longa-metragem da Netflix O poço, do diretor Galder Gaztelu-Urrutia. E digo isso porque, mais do que nunca, precisamos entender (mesmo que vendo na marra) o mundo caótico que ajudamos a construir.
O poço traz uma plataforma (e nesse sentido, o título em inglês mostrado no IMDb faz bem mais sentido para mim) onde diferentes seres humanos, que se cadastraram para participar dessa suposta experiência, se intercalam, uma dupla por andar. Detalhe: o período em que cada dupla permanece no mesmo andar é de um mês. Após isso, eles vão para um outro, escolhido pelos administradores aleatoriamente. Parece simples de entender, mas o que realmente interessa não é o local, mas a mentalidade de seus moradores.
E é difícil classificar o novato Goreng (Ivan Massagué) como um protagonista desta trama. Pelo contrário. Ele me parece mais uma engrenagem de um indústria que trabalha com produção em série, como em Tempos Modernos, do sempre genial Charles Chaplin.
Aliás, qualquer correlação feita aqui com o mercado de trabalho de forma geral é muito bem-vinda. O filme expõe de forma lúcida (sem perder o seu percentual de enigmático) o eterno regime de castas no qual estamos amordaçados desde que o mundo é mundo.
Há de tudo no poço: homens e mulheres desesperançados por natureza, reféns de seu próprio niilismo; uma mãe desesperada que procura seu filho perdido no meio dos moradores; um fanático religioso que acredita piamente que somente Deus poderá tirá-lo daquele lugar miserável; canibais contemporâneos à espera de que qualquer pessoa morra a qualquer momento para que ele(a) não morra de fome; etc...
Quase ia me esquecendo: o elevador que traz a comida diária para os moradores do poço é o retrato do que existe de mais vil (e não menos verdadeiro) no que conhecemos como sociedade contemporânea. Ali se vê claramente a mentalidade egoísta do homem, incapaz de enxergar além de seu próprio umbigo e convicções. Quem comeu, comeu; quem não comeu, que reze, peça a Deus por dias melhores.
Neste momento a trama ganha uma conotação quase darwiniana, pois a seleção natural que se constrói diante de nossos olhos é sórdida, diria mesmo macabra (entendo perfeitamente os espectadores que classificam o longa dentro do gênero terror). Trata-se de uma luta inumana por aquele que deveria ser um direito básico universal garantido ao homem: o de sobreviver. E, no entanto, percebemos que nossa existência aqui não tem nada de garantido. Não há certezas no mundo dos homens. Apenas possibilidades e a maioria delas injustas.
Enquanto a sociedade procura por heróis de plástico e líderes tendenciosos a quem possam seguir inutilmente, como cachorrinhos de madame, o mundo real - aquele que nunca quisemos encarar de fato, frente a frente, pois é mais fácil ser covarde ou demagogo - nos coloca uns contra os outros e ainda disponibiliza as armas, para que nos matemos mais rápidos.
Eu já prevejo alguns leitores entediantes e repetitivos dizendo: "que crítico maquiavélico esse rapaz! não apresentou nenhuma notícia feliz ou sinal de esperança para o futuro" e eles podem se manifestar à vontade. Mas me parece à primeira vista impossível uma solução para o mundo enquanto empurrarmos o lado duro da vida para debaixo do tapete. O contrário disso sempre me soou como hipocrisia e dela, que conheço de cor e salteado, eu já ando cheio. Mesmo.
P.S: desde Mãe!, de Darren Aronofsky, um filme não mexia tanto com a minha cabeça como esse aqui. E a minha cabeça precisava de uma sacudida forte.
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Medo e Delírio
3.7 552 Assista AgoraCatarse alucinógena
(Medo e delírio em Las Vegas, Terry Gilliam e uma viagem psicodélica ao mundo perturbador das drogas)
Gosto de Hunther S.Thompson. Mesmo. Lembro-me da primeira vez que eu li um livro de sua autoria, comprado num sebo no Largo do Machado. O nome da obra em questão era Screw Jack e me deparei com um dos relatos literários mais alucinados que eu tinha lido até então. O tempo passou e eu corri atrás de outros exemplares de sua bibliografia. E acreditem: aqui no Rio de Janeiro, assim como o poeta americano Charles Bukowski, Thompson não é um autor fácil de ser encontrado. Mas achei outros. A duras penas, mas achei. Dentre eles, o mítico Medo e delírio em Las Vegas.
No ano seguinte à minha leitura do livro - era uma versão pocket da LPM - fico sabendo da existência da adaptação cinematográfica realizada pelo diretor Terry Gilliam (de quem sou fá há anos, desde os tempos do Monty Python!). E começa então uma nova corrida, desta vez para assistir o fatídico filme. E o tempo passou, passou, passou, e o filme entrou para minha lista sempre cheia de "filmes a serem assistidos um dia".
Passaram-se quase 12 anos e eis que, finalmente, e graças à quarentena do coronavírus, eu encontro o filme no catalógo do Now disponibilizado gratuitamente entre um montante de longas-metragens os mais diversos. E desde já adianto: valeu a pena esperar.
Medo e delírio em Las Vegas traz Raoul Duke (Johnny Depp, num dos muitos alter-egos de Thompson) acompanhado de seu advogado, o Dr. Gonzo (Benicio del Toro), numa viagem rumo à terra dos cassinos e da perdição para cobrir uma corrida de motocross. Mas essa, meus caros leitores, é a última coisa que Raoul e seu amigo farão nessa terra onde "o que acontece por ali, fica por ali mesmo".
O que Raoul e Gonzo apresentam para os espectadores - de preferência, os de mente mais aberta - é um dos retratos mais surreais que eu já vi até hoje da dependência química. E ambos são viciados no que quer que seja, da cocaína ao éter, passando por comprimidos e o que mais você puder imaginar. Eles enlouquecem literalmente, têm visões de todo tipo, volta e meia se dizem perseguidos por forças obscuras e por inimigos imaginários, na melhor faceta Gilliam de ser (afinal de contas, se trata de um mago das imagens - e quem quiser se inteirar mais pela carreira do diretor, procure por O mundo imaginário do Doutor Parnassus e 12 macacos).
E dessa grande catarse alucinógena, repleta de reviravoltas as mais inverossímeis, vemos como pano de fundo a verdadeira América. Aquela que gosta de se vender para o resto do mundo através de seus heróis - Lincoln, Kennedy, etc - e seu discurso de vencedora, mas que adora varrer para o tapete suas desilusões, seus vícios e seu verdadeiro modo de vida.
A dupla Depp/Del Toro funciona bem durante toda a jornada, e me peguei a todo momento perguntando o que foi que aconteceu com o ator de Edward mãos de tesoura e Piratas do Caribe nos últimos anos. Onde foi parar toda essa ousadia e coragem para interpretar personagens alucinados? Engraçado. E tem fãs que dizem que artistas não desaprendem a atuar. Às vezes, eu sinceramente tenho as minhas dúvidas.
A mistura Thompson + Gilliam + Depp não só fundiu a minha cabeça de forma permanente, à procura de referências as mais loucas e diversas, como também me deixou com saudades dessa velha hollywood (o filme é de 1998, logo do século passado).
Estamos tão viciados em tecnologias de última geração, óculos 3D enfiados na cara o tempo todo, o vício exorbitante por franquias excessivas e remakes e spinoffs vazios, que perdemos completamente a noção do que significa ser original nos dias de hoje. E até quando o quesito em questão é adaptação, perdemos o gosto por boas histórias, cheias de nuances e tramas rebuscadas, e nos rendemos ao gratuito dos quadrinhos e ao vazio da cultura pop superficial. Uma pena!
Em outras palavras: Medo e delírio em Las Vegas é cinema que vem desaparecendo com o tempo e ninguém dá a mínima, pois a alienação e a barbárie ditam as regras do mercado cinematográfico atual. Mas se você, como eu, cansou desse óbvio ululante, dessa zona de conforto incômoda e repetitiva, então, meu amigo e minha amiga, essa sétima arte aqui é pra você. E mais não digo.
Pois a decisão de descobri-la é sua, e somente sua...
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Enraivecida na Fúria do Sexo
3.2 95Meio que um precursor dos filmes de zumbi que andam tão em voga atualmente em hollywood. . Cronenberg destila todo o seu nonsense, marca registrada que o consagrou no início da carreira, levando-o posteriormente à obras-primas B como A mosca e Gêmeos - mórbida semelhança. Vale a conferida para que os cinéfilos conheçam o mestre ainda em formação!
Hunters (1ª Temporada)
3.9 235 Assista AgoraO quarto reich sempre esteve por aqui
(Hunters é sátira ao nazismo, mas também interessante reflexão sobre os fascistas que andam entre nós desde que o mundo é mundo)
Os puristas estudiosos de história volta e meia encrespam com certas liberdades poéticas presentes em adaptações cinematográficas e televisivas de momentos históricos específicos. E no caso da Segunda Guerra Mundial e o holocausto em particular, eles vão além, chegando a ficar de cabelos em pé. Na boa... O problema é única e exclusivamente deles. E, além disso, a sétima arte nunca se viu engessada unicamente a discursos literários e acadêmicos. Mais: ela se permite ousar toda vez que a situação se apresente.
Logo, foi com um enorme prazer que assisti a primeira temporada de Hunters, série de tv da Amazon criada por David Weil, e constatei se tratar de uma grande e divertida ousadia.
Hunters conta a história do jovem judeu Jonah Heidelbaum (Logan Lerman, da franquia Percy Jackson), que vê a avó ser assassinada diante de seus olhos, sem que ele esboce qualquer reação, e descobre que ela pertencia a um grupo de caçadores de nazistas, capitaneado pelo milionário Meyer Offerman (Al Pacino, em seu regresso à tv depois de 17 anos).
Eu sei... Parece simplista resumir a série num raso parágrafo de cinco linhas. E é. Contudo, Hunters está tão cheia de desdobramentos e reviravoltas que é difícil, à primeira vista, resumi-la em poucas palavras. Trata-se, no final das contas, de um grande ensaio sobre a América contemporânea - leia-se: pós eleição de Donald Trump - e o fascismo que nunca deixou de estar entre nós, embora a segunda guerra já tenha acabado há mais de 70 anos. E olha que a narrativa televisiva se passa em 1977!
O grupo que acompanha Jonah e Meyer é bastante eclético e reflete bem a estereotipia que convive a duras penas na terra do Tio Sam. Há o ator decadente, que sobrevive dos poucos fãs que ainda se lembram dos tempos em que ele era uma grande promessa de hollywood; uma versão um pouco mais engajada da musa da Blaxploitation, Cleópatra Jones; um ex-soldado da guerra do vietnã, ainda traumatizado pelos horrores que viu e perpetrou durante o conflito e até mesmo uma ex-noviça revoltada, bem na linha Grindhouse de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez.
E não bastasse tudo isso os produtores da série - dentre eles, o fenômeno da atualidade, Jordan Peele - ainda debocham de tudo o que podem e não perdem a chance de usar referências do universo quadrinhos e da cultura pop em geral. Fãs da Marvel, deem uma chance a esse programa! Vocês não vão se arrepender!
Para aqueles que esperam algo mais visceral e contundente, na linha A queda: as últimas horas de Hitler ou A lista de Schindler, procurem outro formato. O que está em jogo aqui é uma grande fabulação, um desejo de zoar também com a própria história passada (e os conservadores vão reclamar, como sempre!). Já se você curtiu a maneira como Tarantino recontou a jornada de Hilter em Bastardos inglórios, assistam até o último episódio pois o desfecho é avassalador.
Desde que li a respeito do projeto pela primeira vez, fiquei interessado na premissa (e, lógico, pela presença de Pacino, o eterno Michael Corleone) e ansioso pela estreia. E ratifico: Hunters é tudo aquilo que eu esperava. Contudo, é preciso ter mente aberta ao assisti-lo, já que a série não se prende a normatismos e discursos literais. Como disse no primeiro parágrafo, "ela se permite ousar". E ousadia é tudo o que o cinema americano não tem feito nos últimos anos. Por isso vem perdendo espaço dia a dia para a televisão.
O quarto reich proposto pela série sempre esteve por aqui. Não é algo que simplesmente desapareceu por conta da derrota dos nazistas. Não, meus caros leitores! O fascismo sempre se esconde e procura uma nova oportunidade de tomar o poder no futuro. E assim será também depois que a nossa geração não estiver mais por aqui, ad aeternum.
Logo, a decisão de ler essa história de maneira emburrada, enfadonha, resmungando de tudo o tempo todo ou sabendo rir da própria desgraça (e aprendendo com isso) é só sua. Então, pelo amor de Deus, escolham com sabedoria.
A vida, vocês sabem, é uma só e nunca dura o tempo que nós gostaríamos que durasse...
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Faça a Coisa Certa
4.2 398Territorialismos
(Faça a coisa certa, de Spike Lee, e a América dos excluídos que competem entre si com unhas e dentes pelo mínimo necessário)
Todas as vezes que me perguntaram o que é mais extraordinário na história da sétima arte eu sempre respondi: "a capacidade de certos cineastas fazerem o seu trabalho repercutir além da geração para quem o seu cinema foi realizado". E há sempre uma lista imensa de filmes que cabem como uma luva nessa categoria. E dentre os filmes que vêm à minha cabeça toda vez que eu penso na lista desses filmes que foram além de sua própria época, é impossível não me lembrar de Faça a coisa certa, do diretor Spike Lee.
Lá se foram mais de três décadas e o longa de Spike não envelheceu um segundo sequer. Pelo contrário. Parece até que foi realizado no mês passado, na semana passada, tamanha a atualidade de seu discurso. E antes que os espectadores mais tradicionais e viciados num resuminho básico me aporrinhem, é preciso adiantar: Faça a coisa certa é um filme sobre territorialismos, sobre disputar espaço, qualquer espaço, o mínimo que seja, como quem luta pela própria vida. E isso, meus caros leitores e fãs de cinema, é muito maior do que qualquer sinopse que eu vá narrar aqui.
Seus personagens buscam razões para lutar por sua própria identidade, mesmo quando tudo parece conspirar contra eles. E o pano de fundo para essas discussões e disputas de território, além da música forte e precisa do Public Enemy, é a câmera subjetiva do diretor que nos proporciona um grande passeio pela vizinhança numa América à anos-luz daquela que vemos todo dia nos tabloides e na programação da CNN ou da Fox News.
E a estereotipia do lugar, é claro, chama a atenção com gigantesca facilidade. Se é possível falar em protagonistas, fiquemos então - na superfície - com o duelo entre Sal (Danny Aiello, fantástico!), o dono da pizzaria, point de grande parte dos moradores do bairro, e Mookie (o próprio Spike Lee), seu entregador, que vive reclamando do pagamento atrasado. Mas como disse no início do parágrafo é um protagonismo superficial, pois eles dividem a atenção com uma série de figuras que flertam com tipos sociais, embora tenham revolta e atitude própria para dar e vender.
Radio Raheem (Bill Nunn), como diz o próprio nome, anda para cima e para baixo carregando seu rádio no mais alto volume e incomodando os outros moradores da região. E ai de quem mandá-lo abaixar o som! Da Mayor (Ossie Davis) é praticamente um zorba, o grego da rua, sempre sugerindo soluções para os outros e tentando manter a paz a qualquer custo. Mother Sister (Ruby Dee) vê a vida passar da janela de sua casa, mas não perde a chance - quando a oportunidade lhe aparece - de palpitar sobre o que quer que seja. Buggin (Giacarlo Esposito) é aquele revoltado que existe em qualquer subúrbio do mundo. Deseja boicotar a pizzaria do Sal simplesmente porque ele não possui em seu hall da fama - a parede onde constam fotografias de clientes famosos - um homem negro sequer. Smiley (Roger Guenveur Smith) é o gago que perambula pelas ruas vendendo seus folhetos e lutando contra o preconceito daqueles que acreditam que ele deveria parar de encher o saco ou simplesmente desaparecer de uma vez por todas. E Love Daddy (Samuel L. Jackson), com suas tiradas no programa de rádio que apresenta, faz as vezes de cronista do cotidiano daquelas ruas sofridas.
E isso porque eu fiquei somente nos moradores mais influentes. Mas uma dica aqui: prestem atenção no contexto geral.
Digo isso porque, lógico, há sempre espaço para discussões entre vizinhos, crianças quase sendo atropeladas porque decidiram atravessar a rua na hora errada, brigas entre irmãos, a eterna guerra entre os policiais brancos que rondam a área e os moradores (detalhe: há uma sequência em que são exibidos os mais diferentes tipos de insultos que, por si só, vale pelo filme todo!) e a convivência difícil entre a comunidade negra e os donos de estabelecimentos comerciais de outras etnias.
Embora Spike Lee tenha se consagrado por uma carreira cheia de sucessos, acredito piamente que seu estrelato esteja até hoje muito atrelado ao sucesso desse longa. Digo mais: acredito que foi aqui que começou a sua fama de ativista. E os fãs de sua gloriosa carreira têm muito a agradecer...
Até hoje me pergunto onde a Academia de artes e ciências cinematográficas estava com a cabeça quando premiou Conduzindo Miss Daisy com o Oscar e não esta pequena obra-prima, que gera reflexões valiosíssimas até hoje. A América contraditória que virou as costas para New Orleans após o furacão Katrina e que trouxe de volta à cena a Ku Klux Klan em plena era Trump tem aqui o seu embrião (embora muitos demagogos prefiram não enxergar dessa forma).
Em outras palavras: os moradores do Brooklyn de Faça a coisa certa estão, embora prefiram não lembrar e se preocupar com questões mais pertinentes e agradáveis, sentados num enorme barril de pólvora, pronto para explodir a qualquer momento. E o fósforo que promoverá essa tragédia está na intolerância e na incompreensão de certos discursos. Porque o ser humano, infelizmente, nunca perde a mania de se achar mais do que os outros ou contar vantagem de si. Logo, esperar pelo pior não é uma promessa e sim uma realidade a longo prazo.
Tenho (sempre tive) a curiosidade de ver a continuação desse filme com seus personagens mais velhos, digamos, 20 anos depois do incêndio que encerra o longa. Infelizmente o tempo passou e Danny Aiello não está mais entre nós (o que é uma perda irreparável). E não bastasse tudo isso Spike decidiu seguir um novo caminho, não menos denunciatório. Uma pena! Precisávamos - e muito - rediscutir o que foi iniciado aqui, principalmente depois do advento das novas tecnologias e a chegada das redes sociais. Como isso não aconteceu, que bom saber que pelo menos podemos revê-lo e repensarmos a sociedade quantas vezes quisermos!
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O Caso Richard Jewell
3.7 244 Assista AgoraO Cristo da vez
(O caso de Richard Jewell, de Clint Eastwood, na verdade é a América fabricando heróis e vilões ao sabor de seus próprios interesses escusos)
Os Estados Unidos, que certos brasileiros frustrados adoram chamar de "a maior nação do planeta", é um país no mínimo irônico. Vive de fabricar maniqueísmos os mais diversos com o intuito de se promover e, com isso, conseguir mais adeptos alienados, antenados com a sua "causa" aham patriótica. E o maior exemplo disso é a maneira como constrói para a opinião pública seus conceitos de herói e vilão.
Dito isso, confesso que foi uma grata surpresa assistir o último longa de Clint Eastwood, O caso de Richard Jewell. E digo surpresa porque antes mesmo do filme ser lançado em nossas salas de projeção, já aportou por aqui carregado de polêmica por conta da maneira como o diretor expôs o ponto de vista de uma das personagens principais da trama.
Contudo, o protagonista desta história, Richard (vivido de forma exuberante pelo ótimo Paul Walter Hauser) tem seu próprio calvário para enfrentar. Ele é um reles segurança, ex-agente policial, que busca melhorar de vida para poder pagar suas contas e ajudar a mãe, Bobi (Kathy Bates, também excelente!). Mas sua vida muda completamente quando decide trabalhar nas olimpíadas de Atlanta, em 1996.
Uma bomba é colocada no Centennial Park e Richard é o primeiro a localizá-la e informar as autoridades. A explosão causa graves sequelas no público presente, mas a maior delas certamente na vida do próprio segurança. E tudo por causa da personagem que rendeu polêmica (como citado no segundo parágrafo). Kathy Scruggs - vivida por Olivia Wilde - é uma jornalista ambiciosa à procura de um furo de reportagem que tire a sua carreira do tédio. E que vê numa informação tendenciosa obtida através de um agente do FBI razões suficientes para colocar sobre Jewell a culpa pelo atentado.
A razão por trás da suspeita: o passado de Richard advoga contra ele e, nesse momento, surge uma cultura muito comum na sociedade globalizada em que vivemos. A eterna mania de ver o pior nos outros e não acreditarmos que as pessoas mereçam uma segunda chance.
(Detalhe: a polêmica que engoliu as intenções do filme em conseguir indicações para as principais categorias do Oscar e da temporada de prêmios em geral tem a ver com o fato da jornalista, no filme, trocar sexo por informação privilegiada sobre o caso. E é nesse momento - em tempos de feminismo ganhando espaço nas redes sociais e na internet, Me Too, etc - que a coisa começa a feder.
E fazendo aqui um aparte em defesa das mulheres que chegaram a rotular Clint de misógino e cruel, acredito que Eastwood queimou seu filme de graça aqui, pois vende a imagem de Kathy desde o primeiro fotograma como uma mulher promíscua, capaz de qualquer coisa para se dar bem. E só por isso já temos motivo suficiente para tomarmos cuidado ao analisar o projeto.
No final das contas, o que salvou o filme do eterno Dirty Harry de não cair no ostracismo e virar alvo de ativistas é o grande painel que ele construiu sobre os EUA controverso de hoje. Há um pouco de tudo aqui: a eterna mídia sensacionalista, que volta e meia bagunça a vida dos outros e, quando erra, não pede desculpas; a cultura viciante da hierarquia policial, não por estar preocupada em fazer justiça e averiguar os fatos, mas porque quer assumir o caso visando a fama; e a indústria dos ressentidos que adoram pegar volta e meia alguém para Cristo.
E Richard Jewell funciona bem como o Cristo da vez. Ele não se encaixa no padrão do que a sociedade americana gosta de vender como correto, como modelo. É gordo, nunca é levado a sério, mora com a mãe - para muitos, o suficiente para ser rotulado como um perdedor - e está sempre disponível (para o senso comum: disponível em excesso).
O monólogo final do personagem, quando enfrenta cara a cara o agente do FBI que quase destruiu sua vida, é extraordinário e mostra uma realidade nua e crua. Não é à toa que tão poucos ajudam no mundo, e tantos prefiram fugir, se esconder, virar a cara para o outro lado. No final das contas, parece que bandido é "aquele que faz a sua parte, que se preocupa, que toma uma atitude".
Logo, que país é esse que se esconde atrás de super-heróis e presidentes machões, mas adora varrer para debaixo do tapete a verdade sobre certas histórias contadas ao povo? Richard Jewell nada mais é do que um Lee Harvey Oswald aprimorado. Aquele que deve herdar a culpa para que não precisemos ir longe descobrir a verdade.
Mas vai ter gente por aqui dizendo que "não é bem assim", pois não tem recursos para formar uma opinião melhor do que essa.
P.S (e numa era cheia de politicamente correto e demagogos religiosos no Brasil, eu não posso terminar essa crítica sem dizer isso): você, cristão chato e que chama tudo de blasfêmia, que se incomodou com o título do meu texto, na boa... O problema é seu e só seu. Eu tenho mais o que fazer do que esperar a sua benção sobre tudo o que eu penso, digo ou escrevo. Anotou?
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A Casa Que Jack Construiu
3.5 789 Assista AgoraManual prático para entender psicopatas
(A casa que Jack construiu, de Lars von Trier, é o resultado de uma sociedade que acredita na eficácia de guerras, armas e muita violência)
O mundo está cheio de Jacks, mas a humanidade (ah! a humanidade!) prefere o conforto da hipocrisia, e esconder suas mentiras preferidas atrás do discurso de que "fala sério! isso é mais uma invenção da cultura pop!". E por isso, defendo aqui o diretor Lars Von Trier. Ele matou a pau.
A casa que Jack construiu, último longa lançado pelo diretor (e que foi odiado de forma maciça pela crítica; teve até gente que abandonou a sessão no meio num dos festivais de cinema da Europa) é um grande ensaio sobre a hipocrisia latente que reina entre nós.
O Jack - interpretado pelo ator Matt Dillon, que depois de anos perdendo tempo com personagens inúteis, enfim faz uma boa escolha de carreira - proposto por Von Trier é o estereótipo máximo da psicopatia. Mata única e exclusivamente pelo prazer de matar. A ele não interessa nenhum juízo de valor ou moral ilibada. Ele é desse jeito porque decidiu ser assim. E suas vítimas são aquelas que aparecem diante de si quando a oportunidade se mostra. Ele não precisa de um motivo para caçá-las ou perseguí-las. Nada disso. Na prática, ele aprecia o momento e exerce "sua arte".
E é nesse momento que o filme se torna ainda mais interessante como reflexão (e essa, por sinal, deveria ser a principal abordagem dos cinéfilos, e não buscar algum tipo de adoração ou repulsa pela barbárie ou tentar catalogá-lo dentro do universo "filme de terror"). O diretor faz uma inteligente correlação entre os crimes de Jack e as obras de artistas clássicos da pintura.
Me peguei a todo momento pensando nessa geração de hoje que não sabe separar a obra artística de um indivíduo de seus delitos morais e perniciosos. Pior: boicotam suas carreiras, chegam a fazer campanha para que outros a boicotem também. Estão perdendo tempo, coitados! É praticamente impossível encontrar no mundo das artes alguém - e olha que eu já procurei por isso - que tenha uma vida acima de qualquer suspeita.
Parece fazer parte desse mundo a ideia de perversão, de incômodo. E isso é muito bem trabalhado em forma de telas, películas, livros, fotografias, músicas, ou seja lá que plataforma artística eles escolham. Não se trata - sinto muito aos moralistas que estiverem lendo esta crítica - de uma ciência exata, de uma realidade feita apenas de virtudes. Quem dera fosse fácil assim!
E Jack entende isso como poucos. Chega a descer ao seu último grau de indecência para provar às suas vítimas e perseguidores o quanto sua "arte" é pura, e não atrelada aos desejos de outros. Ele é, na melhor (ou pior, dependendo de como você enxergue a situação) expressão do termo, um sobrevivente do caos diário. E por isso não deve justificativas àqueles que nunca irão compreendê-lo como um todo. Porém, um todo fadado a destruir e não a construir o que quer seja.
E nesse sentido a casa que ele "supostamente construiu" é apenas uma dúvida, uma lamento, uma tentativa inglória de permanecer humano, quando na verdade o que ele deseja de fato é destruir o mundo que o rodeia.
Adorei um passagem do filme no qual Von Trier me fez lembrar de O auto da barca do inferno, de Gil Vicente (se a correlação não era essa, peço desculpas! nessas horas, eu sempre enxergo demais e de acordo com meus próprios gostos e referências).
Volta e meia chamam Lars de devasso, de polêmico, de mau caráter e aqui ele deu todos os motivos para que seus detratores bufassem de ódio. Realiza uma espécie de manual prático para entender psicopatas, mas sem cair nas armadilhas dos jargões psicanalíticos. Ele recorre às artes plásticas para nos mostrar o quanto o mundo anda impregnado de morte e violência até o talo, e acha tudo isso um tanto natural, às vezes até necessário.
Digo isso porque nunca falamos tanto em andarmos armados 24 horas por dia. Nunca se pediu tanto como nessa sociedade contemporânea por uma terceira guerra mundial (e tem quem se faça de desentendido, dizendo que "não é bem assim"). E não bastasse todo esse ódio, essa apologia à violência, tem quem exija a volta de muros, regimes totalitários e cultue ditadores e genocidas. Mas, no final, quem não prestam são os artistas. Esses sim precisam sumir do mapa. De vez.
Ó, Deus, perdoai-os! Eles não sabem de nada! Que dirá o que fazem...
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O Vício
3.8 59 Assista AgoraO VÍCIO, de Abel Ferrara, faz um interessante paralelo entre o universo vampiresco (embora seu filme não seja especificamente um projeto do gênero) e o mundo dos dependentes químicos. E talvez se tivesse optado por uma atriz do chamado primeiro escalão para sua protagonista, tivesse até conseguido arrebatar alguns prêmios em festivais independentes. Enfim... Vale a minha recomendação!
The Beach Bum: Levando a Vida Numa Boa
2.9 47THE BEACH BUM me lembra muito a cagada que o Eddie Murphy fez quando, depois de ganhar o Globo de Ouro por DREAMGIRLS, foi fazer aquela porcaria cômica chamada NORBIT. Só que dessa vez quem esculhambou de vez foi o Matthew McCounaghey. Não dá pra entender esses artistas que depois que vencem um grande prêmio se associam a porcarias!
O Bandido da Luz Vermelha
3.9 269O marginal popstar
(O bandido da luz vermelha, Rogério Sganzerla e o país que adora cultuar o errado)
O Brasil é um país que não muda porque não tem interesse em mudar, quer que tudo permaneça na mesma (de preferência, de acordo com os seus próprios interesses). Não bastasse isso, adora cultuar o errado, relativizar o que é crime e o que é boa ação. Bota tudo na conta do "veja bem...". E pensar que o diretor Rogério Sganzerla falava disso mais de 50 anos atrás e ninguém deu a menor bola. Nem naquela época, muito menos hoje!
É com uma enorme satisfação que sentei em frente ao meu aparelho de tv esta semana para assistir o dvd de O bandido da luz vermelha, de Sganzerla, clássico do chamado cinema marginal. E é também com uma enorme tristeza e um sentimento de impotência atroz que percebo que nada, absolutamente nada, mudou neste país que não consegue fugir da pecha de república de bananas. "Que país de merda!", dirão sem pestanejar aqueles que hoje migram em massa para Portugal.
O longa, que estreou por aqui às vésperas do ato institucional nº 5, é um marco do nosso cinema (mas vive sendo taxado por quem não conhece nada da sétima arte brasileira e da nossa cultura em geral de "mais um exemplar da apologia à violência"). Coitados deles! Não fazem a menor ideia do que estão falando!
Paulo Villaça (ator que merecia estar em evidência no país até os dias de hoje) entrega um luz vermelha que é a cara do Brasil de ontem, de hoje e provavelmente de amanhã. E Sganzerla, diretor que fez parte do grupo que fundou o cinema novo, mas também quis seguir por outros caminhos mais ácidos, entrega aquele que é, para mim, o filme derradeiro sobre a nossa nação controversa, que adora idolatrar criminosos de todos os tipos.
Luz vermelha é um marginal popstar, figura que volta e meia ganha os holofotes da mídia sensacionalista nessa terra ainda tupiniquinesca que chamamos equivocadamente de "país em desenvolvimento". É tão folgado que não só assalta casas, como dorme com as mulheres que rouba (e volta e meia elas se apaixonam por ele!) e ainda pede, de vez em quando, que elas façam um almoço para ele. Em outras palavras: é um artífice-mor dessa cara de pau que reina no Brasil há séculos.
Talvez a única, de todas as mulheres com quem dormiu, que pudesse entendê-lo na íntegra fosse Janete Jane (Helena Ignez, musa dessa geração cinematográfica). Mas ela estava tão preocupada com o seu próprio oportunismo, sua própria beleza, que preferiu traí-lo. E pagou caro por isso, como tantos outros que atravessaram o caminho dele.
Do outro lado da sede de status de Luz vermelha está o Delegado Cabeção (Luiz Linhares), que sofre do mesmo problema de Luz: ele busca também, a sua maneira, a notoriedade em primeiro lugar. Prender o bandido é apenas um detalhe perto do que representa ser reconhecido nas ruas como "o homem que prendeu Luz vermelha". E nesse momento Sganzerla realça um faceta típica de nossa sociedade que adoramos varrer para debaixo do tapete. Falo da eterna mania de fazermos péssimas escolhas baseadas em interesses escusos. Insira nesse contexto um pontada de fama e projeção e bum! eis aí o nosso exemplar ser humano de baixa categoria.
Contudo, me corrijam vocês, leitores, se eu estiver errado, mas acredito que os grandes protagonistas de O bandido da luz vermelha são os dois locutores de rádio que narram essa saga inglória, fadada logicamente ao insucesso. Digo mais: ambos remetem à uma espécie de consciência, aquela voz incômoda, que nunca queremos ouvir, pois nossa egolatria não permite, mas está sempre apontando os caminhos certos ou, ao menos, aqueles que deveríamos prestar mais atenção.
Mas vai explicar isso a uma nação que idolatra a ignorância desde a chegada de nossos patrícios em 1500?
Com seu filme-denúncia, quase manifesto de uma era que (ainda) não acabou, Sganzerla compõe uma tríade (junto com Terra em transe, de Glauber Rocha e A dama do lotação, de Neville d'Almeida) que optou por esmiuçar o Brasil ao invés de simplesmente deixá-lo para lá e vender belezas, fetiches e estereótipos. Aliás, tudo o que está acabando com o cinema da retomada.
Certa ocasião num vídeo do you tube vi Quentin Tarantino se dizendo fã do longa e é fácil entender o porquê. Sganzerla foi, à sua maneira, na sua época, um Tarantino. Mesclou referências e brincou com formatos do jeito que quis e quando quis. E não à toa ganhou, para mim, ao lado de Glauber, o rótulo de gênio do nosso cinema.
E é uma pena saber que a obra desse homem ande tão esquecida hoje em dia por parte de quem acha que sétima arte é sinônimo unicamente de efeitos especiais, super-heróis, CGI e mulheres masculinizadas interpretando vingadoras, assassinas de elite e caçadoras de recompensa!
Ah, Sganzerla! É sério que você teve de morrer? Que falta você está fazendo aqui embaixo, meu amigo!
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Uma Segunda Chance para Amar
3.5 477 Assista AgoraEu vi o filme só por causa da Emilia Clarke. Mas confesso: não esperava aquela reviravolta na final. Para os casais de namorados que estão procurando aquele filme de fim de noite no domingo é a opção ideal.
O Império (do Besteirol) Contra-Ataca: Reboot
2.9 49 Assista AgoraO Império (do Besteirol) Contra-Ataca: Reboot, de Kevin Smith é o filme mais surtado sobre a hollywood surtada dos dias de hoje. E o diretor debocha mesmo de tudo e todos, sem pudor ou medo. A dupla Jay e Silent Bob continua afiadíssima e mais louca do que nunca. Conta ainda com a presença de antigos parceiros de seus filmes anteriores (Dogma, Procura-se Amy, O Balconista). Para fãs do nerdismo mais puro!
A Última Coisa que Ele Queria
2.1 163 Assista AgoraA ÚLTIMA COISA QUE ELE QUERIA é a parte do catálogo da Netflix que desperdiça dinheiro e erra feio. Tinha tudo para dar certo, elenco, motivação, mas... Ficou no mas. P.S: não adianta. Eu não consigo entender porque a Anne Hathaway faz tanto esforço para destruir a própria carreira.
Carcereiros: O Filme
3.0 50CARCEREIROS - O FILME funciona melhor como veículo de ação do que como registro da vida dos funcionários de penitenciária. E é, inclusive, inferior à série global nesse sentido. Talvez um ator mais arrojado do que o Rodrigo Lombardi desse um outro tom â trama. Fiquei com aquela sensação de "está faltando alguma coisa, mas ele preferiram cobrir as lacunas com os velhos personagens clichês de sempre".
Um Violinista no Telhado
4.2 134 Assista AgoraA primeira vez que ouvi falar de UM VIOLINISTA NO TELHADO, de Norman Jewison, foi numa chamada do Corujão na Rede Globo (era o final dos anos 1980) e não dei muita bola. Como fui tolo! Trata-se de um interessante projeto sobre as agruras de uma família de baixa renda tendo de lidar com as mudanças de costumes e tradições de sua comunidade (no caso, a rabínica). E Topol, ator que protagoniza o longa, dá um show à parte na pele do pai que precisa lidar a duras penas com a decisão de suas filhas de escolherem seus próprios maridos.
Uma pena que essa hollywood não exista mais!!!
Edvard Munch
4.4 13Histeria atroz
(Uma reflexão pessoal sobre O grito, de Edvard Munch)
O mundo das artes plásticas é, no mínimo, um tanto irônico. E por vezes, é bom que se diga, eu o considero mórbido. Porém, não vejo a morbidez nesse caso como algo menor, um defeito, um deslize. Pelo contrário. Minha relação com esse mundo das artes volta e meia precisa gerar controvérsia e há uma legítima adoração de minha parte pelo amargor, pela rigidez, pelo exótico, por aquilo que outros podem chamar prematuramente de negativo.
Em outras palavras: gosto do mórbido como reflexão. Acho-a mais do que justa. E nesse sentido poucos quadros na história mundial das artes plásticas chamaram tanto a minha atenção quanto O grito, de Edvard Munch (1863-1944).
E é preciso confessar aqui logo de cara: minha relação com a pintura não começa exatamente com o quadro em si. E sim com uma imagem que, na minha cabeça, sempre fez alusão à pintura. Falo da imagem que vejo do homem gritando no filme Pink Floyd: the wall, do diretor de cinema Alan Parker. E desde já adianto: se não há nenhuma relação entre filme e pintura, então eu cheguei até esta adoração e por conseguinte este texto por mera coincidência e nada mais.
A cultura pop nos últimos anos fez uma correlação entre O grito, de Munch, e a máscara do antagonista da série de filmes de suspense Pânico. Contudo, não gosto dessa referência. Acho até que ela diminui o trabalho do pintor.
O grito faz parte de uma série de trabalhos de Munch que ficou conhecida como A frisa da vida (ou um poema sobre o amor, a vida e a morte). E ele expunha seus quadros à ação da neve e da chuva, com o intuito de perder um pouco o controle do resultado final plástico. Em suma, um visionário de sua própria era. Detalhe: enganam-se aqueles que pensam existir apenas uma versão da tela. Só de litogravuras - que serviam de base para a criação - ele imprimiu 45, sendo que algumas foram coloridas à mão.
Muitos estudiosos interpretam a reação do personagem na tela - o grito em si - como fruto da ansiedade daqueles tempos ou do desespero pessoal do autor. E não estão completamente errados, não!
E, além disso, acredito piamente que esse sentimento do quadro perdura até os dias de hoje. Digo mais: tenho minhas dúvidas se o autor não estaria se sentindo ainda pior nesse século XXI no qual estamos tendo de encarar muitas das piores resoluções humanas de toda a nossa história. Ou seja, vivemos na prática uma espécie de histeria atroz (e vejo a tela de Munch gritando também sobre isso!).
Quando tiverem um tempo livre, procurem pela versão online do quadro na internet. Diferentemente da exatidão pintada por Goya e Leonardo da Vinci, a obra de Munch tem imagens distorcidas, já vi gente chamando até de "quase um borrão" e isso é proposital. Isso dialoga abertamente com o momento que o pintor vinha passando.
Ele parece esmiuçar o desespero de forma nítida, sem fingir sentimentos.
E nesse momento me pego refletindo sobre aqueles tempos amargos, sem a comodidade oferecida pela tecnologia (que tanto tem lobotomizado as gerações atuais!), sobre a dificuldade de criar em qualquer esfera, não somente a pintura. Era uma época em que, muitas vezes, artistas eram sinônimo de demoníacos, malditos. Portanto, qualquer obra artística, mais do que a ótica da beleza, do entretenimento, do gerar prazer aos outros, era preciso ser enxergada como um ato de sobrevivência.
E como sobreviver hoje em dia após anos e anos de artistas fundamentais como Munch, quando tudo parece tão vazio, tão raso de significado, tão fácil para uma minoria elitista cada vez mais covarde e blasé?
A meu ver, Munch elevou tanto o padrão do seu tempo que acabou por nos tornar acomodados em excesso por medo de tentar atingi-lo ou entendê-lo. E isso é muito ruim. Entretanto, ele faz algo também tão pessoal, tão acima da média, que me parece quase obrigatório estudar a vida e a obra de homens fora de série como ele.
Para isso servem (ou deveriam servir, pelo menos) as artes. O problema é a falta de curiosidade do mundo contemporâneo, cada vez mais apegado ao óbvio, ao mais do mesmo. E não é à toa que a tela está gritando até hoje!
P.S atrasado: mais de duas semanas depois de escrever este artigo leio numa matéria do Estado de São Paulo que pesquisadores tentam explicar para os fãs de artes plásticas porque O grito está desbotando, perdendo suas cores originais. E me pego pensando: não será isso proposital numa época em que tudo parece ter perdido completamente o seu sentido original? Talvez seu autor esteja cansado de gritar em vão e prefira desaparecer. Ou talvez seja apenas eu, este projeto de autor, vendo demais e enlouquecendo novamente.
Midsommar: O Mal Não Espera a Noite
3.6 2,8K Assista AgoraIntoxicados ao extremo
(Midsommar: o mal não espera a noite é uma alegoria sobre a sociedade que busca a perfeição em todos os aspectos e só encontra contradição)
Neguem o quanto quiser os moralistas de plantão, mas a cruel verdade é que nos tornamos uma sociedade intoxicada. Por absolutamente tudo. Buscamos na realidade enfadonha do dia-a-dia razões para acreditar que o mundo pode ser perfeito, acima de qualquer suspeita. E há até quem viva de prometer isso aos outros à cifras milionárias (e como vive bem essa gente que engana os outros!). Nos acostumamos a fingir que não há razões para acreditar em derrotas, em perda de tempo, que tudo pode ser lindo, irretocável, para sempre. E mesmo os depressivos escondem de si mesmo e dos outros a triste realidade que são suas vidas miseráveis, pela metade, mesquinhando afetos.
E após terminar de assistir o fantástico Midsommar: o mal não espera a noite, de Ari Aster, só posso agradecer pelo fato de não ser o único disposto a falar sobre isso e sobre como o século XXI vem transformando seres humanos em máquinas insensíveis.
A história de Dani (Florence Pugh, fantástica) é sintomática para entendermos o que a sociedade se tornou nas últimas décadas. Ela chegou naquele ponto da vida em que nada mais parece fazer sentido. Seu relacionamento amoroso chegou àquele ponto da estrada em que é melhor sair do carro e refazer o trajeto (mas ela adia a decisão o máximo que pode!), mesmo seu convívio com os pais é delicado e ela decidiu se afastar, morar sozinha. Contudo, quando seus genitores falecem num incêndio mórbido, toda sua fortaleza interior rui e ela sente dentro de si que o pior ainda está por vir.
Diante de um quadro tão funesto, ela vê na possibilidade de viajar com o namorado e seus colegas de faculdade para uma comunidade religiosa chamada Haarga, um pequeno vilarejo no interior da Suécia, uma espécie de fuga. Mais do que isso: um motivo para recomeçar longe de tudo que até então lhe fazia mal.
O problema, como todas as pessoas que buscam um recomeço, uma vida linda, um emprego dos sonhos, etc, é a eterna mania de idealizarmos o lugar para onde vamos. E quando Dani se depara com as diretrizes e o estilo de vida da comunidade, ela percebe a duras penas que nada - realmente nada - vem fácil na vida.
E esse é exatamente o grande legado deixado pelo longa: Aster realiza uma interessante alegoria sobre a eterna busca humana por aquilo que, na maioria das vezes, só existe no papel. Pois na prática as regras do jogo são sempre outras.
Venho percebendo aqui no Brasil de uns dez anos para cá o crescimento de uma indústria do positivismo extremo. As matérias jornalísticas volta e meia chamam a atual sociedade de geração cristal e, honestamente, eles não estão errados. Vivemos em meio à uma humanidade que esconde sofrimentos, varre desavenças e derrotas para debaixo do tapete, para fingir que elas não existem. No entanto, essas mesmas pessoas se esquecem que tudo isso cobrará seu preço mais a frente.
Os colegas de Christian (Jack Reynor), namorado de Dani, que buscam realizar uma tese sobre a comunidade, também não entendem que a vida não se resume à obtenção de seus sonhos e a realização de seus projetos. Eles simplesmente bloqueiam de suas mentes, de sua torta realidade, o fato de a existência exigir deles uma contrapartida.
Em outras palavras: queremos dos outros, mas não queremos que os outros queiram nada da gente. A eterna mania de nos olharmos como superiores em relação à nossa própria espécie.
O diretor disse durante a realização do projeto ter alterado o rumo da história por conta do término amargo de um relacionamento amoroso. E a meu ver, saiu engrandecido dessa história toda. Vejo em seu filme sinais claros de amadurecimento (principalmente em comparação ao seu longa anterior, Hereditário, que não me causou grandes impressões na época em que foi lançado) e também de uma pessoa que percebeu, como eu, que a sociedade vem arruinando sua própria história por acreditar num mundo ilusório onde tudo é motivo de festa, vitória e celebração.
Ao final do filme (e o último take é extraordinário, na medida em que reflete exatamente esse lado egoísta da sociedade, que vê o outro como seu inferior, como alguém que deve "pagar a qualquer custo" por algo que lhe tenha feito) vejo estupefato a consequência dessa intoxicação extrema pela qual estamos passando nas últimas décadas.
Muito se fala em cura no século XXI. Entretanto, me pergunto quem será o curandeiro nesse mundo onde os próprios doentes escondem suas enfermidades.
P.S (na verdade, uma pequena sugestão): prestem atenção, fãs de terror, em como as cenas mais horrendas, mais incômodas de todo o filme, são apresentadas ao público com o dia claro, ao contrário do que se vê normalmente no gênero.
P.S: se você já viu A vila, de M. Night Shyamalan, e gostou não vai querer perder esse filme por nada no mundo.
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Rolling Stones - A Bigger Bang Tour Brazil 2006
4.3 1O dia em que eu não vi os Rolling Stones
(Memórias de "infância" 16)
Memória é uma coisa engraçada. E essa aqui, especificamente, na verdade nem é uma memória de infância realmente (como costumam ser os textos dessa série), pois nessa ocasião eu já me encontrava com 29 anos. Mas mesmo assim volta e meia vem à tona em minha mente.
E eu precisei do auxílio do jornalista e apresentador da Rede Globo Zeca Camargo - que volta e meia faz uns vídeos curtos em sua página no facebook - para me lembrar que eu ainda não tinha falado dessa história por aqui.
Refiro-me ao show da banda de rock Rolling Stones na praia de Copacabana no dia 18 de fevereiro de 2006, um evento que marcou época (e marca até hoje) na vida de milhões de brasileiros. E segundo o público estimado pelas autoridades nacionais, foram mais de 1,3 milhão de pessoas inundando as areias de copa em frente ao Copacabana Palace Hotel.
Mas o registro em questão aqui é de como eu não consegui ver o show ao vivo, junto com a galera gritando em massa na praia.
E a grande saga começou ainda dentro do ônibus. Eu morava no Méier nessa ocasião e decidi encarar essa aventura junto com minha mãe e minha irmã. E digo mais: foi minha mãe, no auge dos seus 55 anos, a mais interessada na aventura. Meu pai disse que estávamos perdendo o nosso tempo, que era roubada aquilo, mas nada que ele nos dissesse nos demoveria de nossa decisão.
Pegamos o 457 lotado, os fãs berravam as canções do quarteto enquanto se empurravam emocionados. E a viagem até hoje me pareceu interminável, tamanha a lerdeza do motorista. Contudo, se vocês acham que demorar para chegar ao bairro foi uma luta inglória, pior ainda descobrir que precisávamos saltar do ônibus bem antes da orla. As ruas da zona sul já começavam a ser interditadas para o grande evento.
Não me lembro ao certo a rua em que descemos, mas de uma coisa eu tenho memória fotográfica: do enxame enlouquecido de pessoas, de todas as etnias, todas querendo ver Mick Jagger, Keith Richards, Ron Wood e Charlie Watts 0800 (daquelas façanhas que dificilmente se repetirão na história do país).
Roqueiros, roqueiros e mais roqueiros. Mulheres lindíssimas. Seres os mais exóticos possíveis. Gente que se achava sósia dos cantores dando pinta de pseudo celebridade. Havia uma mulata - nunca me esqueci dessa mulher - com um cabelo enorme preso a uma espécie de coque, que eu tenho certeza que se ela estivesse com as madeixas soltas elas arrastariam pelo chão. E ela cantava "Sympathy for the devil" a plenos pulmões.
Minha mãe olhava a todo momento para os lados, procurando minha irmã. Para não perdê-la de vista. Mas quando sentiu o cheiro indistinguível da maconha rolando no ar, vinda de um grupo de motoqueiros na linha Hell's angels, ela parou no meio da rua (ainda estávamos bem longe da areia da praia) e nos disse: "vai dar merda isso aqui! temos que ir embora o quanto antes".
Minha irmã, estressada, concordou com ela na mesma hora. Ela odiava tumultos e gente se empurrando (tanto que sempre guardou com desalento a experiência de ter ido certa vez, com minha mãe e minhas tias, ao Cordão da Bola Preta, no centro da cidade). Eu custei um pouco mais a entender a situação, mas houve um momento em que pensei comigo: "na hora da voltar pra casa pode ser tarde demais e aí a tragédia já aconteceu".
Resultado dessa equação insólita: uma segunda saga para encontrarmos um ônibus e voltarmos para a casa. E quando chegamos em casa, meu pai nos olhou quase às gargalhadas e debochado disse: "eu falei pra vocês! onde tem coisa de graça, tem confusão".
Frustrado, espero a noite chegar para assistir o show, que foi televisionado pela Rede Globo. Foram duas horas de pedras rolando, "Jumping Jack flash", "It's only rock n' roll", "Honky tonk woman", "Start me up", "Brown sugar" e, claro, o desfecho arrasador, com "(I can't get no) Satisfaction" acompanhado de sacos de pipoca doce e de batatas Ruffles.
As panorâmicas que exibiam a multidão que tomou a praia deixaram a minha mãe ainda mais assustada e também aliviada por estar em casa. "Quero ver esse povo todo chegar em casa quando o show acabar!", ela disse. E eu acenei com a cabeça em concordância na mesma hora. Acho que até hoje eu não encaro as edições do Rock in Rio por causa dessa experiência caótica. Na boa... Não tenho mais pique, nem idade para isso!
Mas que no fundo, no fundo, eu queria ver os caras ao vivo, ah eu queria! Mas não deu. Ficou pra próxima encarnação, gente.
Joias Brutas
3.7 1,1K Assista AgoraO efeito bumerangue
(Joias brutas e esse mundo cretino em que tudo se baseia em lucro e apostas)
Vocês por acaso já viram garotos brincando com bumerangues? Pois eu já. No final dos anos 1990 eu costumava frequentar, aos domingos, um terreno que existe atrás da Cinemateca do MAM, no Aterro do Flamengo. Ali encontrei muita gente jogando frescobol, casais namorando, os fanáticos por aeromodelismo e a garotada que curtia bumerangues. E havia um garoto antipático de nome Rogério que se achava um grande mestre na arte de atirar bumerangues. Mais: ele volta e meia jogava na cara dos outros garotos que seus bumerangues eram importados e, por isso, mais difíceis de jogar.
Certa ocasião ele atirou seu bumerangue com uma força tão desmedida que quando o objeto regressou na sua direção atingiu em cheio o seu rosto. Várias pessoas ao redor correram para socorrê-lo, chegaram a levá-lo para o pronto-socorro e alguns dos garotos de quem ele debochou chegaram a sussurrar: "bem feito! assim ele para de contar vantagem!". Só tornei a rever Rogério mais uma vez, meses depois, e ele ficou com uma cicatriz feia no supercílio.
Por que estou contando tudo isso? Porque esta semana enfim consegui assistir Joias brutas, dos irmãos Benny e Josh Safdie, e me peguei refletindo sobre a mesma situação que envolveu o jovem Rogério 20 anos atrás: a daquelas pessoas que querem levar suas vidas até as últimas consequências, sem respeitar ninguém e se esquecem do ciclo natural da vida e do quanto ela é capaz de aprontar para nos pôr no nosso devido lugar.
Joias brutas nos traz a história de Howard Ratner (Adam Sandler, naquela que é talvez a melhor interpretação de sua carreira), o estereótipo clássico do oportunista e picareta profissional. Ele usa sua joalheria como mero disfarce de legitimidade para uma vida de mentiras e armações as mais variadas. Contudo, internamente, ele se encontra falido, às vésperas de um divórcio que ele quer evitar a qualquer custo, e mesmo seus familiares não acreditam 100% em seu juízo de valor. Em outras palavras: é um ser humano que caminha a passos largos rumo ao abismo (e nem se dá conta disso).
E quando ele acredita ver sua maré de azar ficando para trás com a chegada de um diamante etíope raro, a vida lhe prega mais uma peça - mostrando que nem sempre a realidade conspira a nosso favor - e ele se vê envolvido numa roubada de proporções estratosféricas, que envolve inclusive o astro da NBA Kevin Garnett.
O filme dos irmãos Safdie é um retrato nu e cru, sem rodeios, de nossa sociedade de valores deturpados, onde tudo é sinônimo de apostas, poder, status sociais e patrimônios elevadíssimos. Em suma: deixamos de ser homens e nos tornamos mercadorias sedentas por valor. E esse valor não pode ser baixo.
E desse misto de atletas profissionais viciados em superstições (a adoração de Garnett pelo diamante bruto é praticamente patológica!), cantores de hip-hop meia boca que se acreditam deuses revolucionários da indústria fonográfica contemporânea e que por conta disso se sentem no direito de pisar em quem for, por qualquer motivo e a eterna entourage de sanguessugas que volta e meia rodeiam aqueles que detém o dinheiro do mundo nasce praticamente um ensaio seco e realíssimo sobre a usura no século XXI.
Algumas pessoas nos portais de cinema e nas redes sociais ficaram um tanto quanto decepcionadas com a não-indicação de Sandler ao Oscar de melhor ator desse ano, mas cá entre nós, eu acredito que ele não tinha a menor chance, embora sua atuação seja realmente um ponto forte do filme. Se o Eddie Murphy (por Meu nome é Dolemite) e o Taron Egerton (por Rocketman) ficaram de fora, com Sandler não seria diferente. E olha que nem o De Niro (por O irlandês) conseguiu vaga esse ano!
Outra coisa: talvez eu tenha enxergado demais ou não tenha entendido o suficiente, mas achei que a interpretação de Sandler me lembrou um pouco o Al Pacino dos últimos anos. Aquele jeito de falar quase um esporro, como se estivesse brigando com todo mundo o tempo todo. Na boa... Ficou com cara de coisa copiada, que ele pegou de empréstimo. Mas como eu disse lá em cima: talvez eu tenha visto demais.
No final o que temos de concreto é mais um bom projeto da ótima produtora A24, que vem se destacando nos últimos anos com produções fora da chamada "zona de conforto" (e para quem está por fora e não ligou os pontos ainda, a produtora é responsável por longas como O farol, de Robert Eggers; Midsommar: o mal não espera a noite, de Ari Laster; Anos 90, de Jonah Hill; Gloria Bell, de Sebastián Lelio, entre outras pérolas).
P.S: seja Rogério ou Howard, o mundo anda cheio de babacas se achando indestrutíveis e acima de qualquer deslize ou derrota. O problema é que eles sempre se esquecem que o mundo tem suas próprias regras e nem sempre está apto a atender nossas expectativas ou sonhos.
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Instinto Predador
1.9 29 Assista AgoraNicolas Cage fazendo aquilo que ele sabe de melhor nos últimos tempos: sendo canastrão (e com direito a trilha sonora brasileira e tudo!).
Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa
3.4 1,4KAVES DE RAPINA: ARLEQUINA E SUA EMANCIPAÇÃO FANTABULOSA é a DC voltando a ser a DC enjoativa que quer copiar a Marvel com suas piadinhas excessivas e cenas de ação estilosas, depois de realizar o fenômeno CORINGA (que, na verdade, nem é tão DC assim se levarmos em consideração o que a empresa tem feito nos últimos anos!). Espero que a atriz Margot Robbie tenha a sabedoria necessária para partir rumo a um novo caminho e abandone a Arlequina o quanto antes. Na boa... O personagem, para mim, já está esgotado. Esse é mais um dos inúmeros filmes que me fazem pensar o tempo todo no quanto hollywood precisa se reinventar urgentemente e perceber que o cinema de super-herói é um modismo como tantos outros que passaram pela meca do cinema e que também tem, como tantos outros, o seu prazo de validade. E esse prazo a meu ver já se expirou.
Um Lindo Dia Na Vizinhança
3.5 274 Assista AgoraMarionete de si mesmo
(Um lindo dia na vizinhança e a eterna dificuldade que nós, seres humanos, temos de crescer, de seguir em frente)
Eu me lembro, quando estava na casa dos meus 30 anos, de ouvir pela primeira vez sobre os escândalos que aconteciam nos bastidores dos programas infantis que eu assistia no fim dos anos 80 e início dos 90. Via declarações do tipo "a Xuxa belisca os seus baixinhos" até "crianças de cor são boicotadas nas gravações". E também me lembro das práticas ilícitas e sujas envolvendo grupos musicais compostos exclusivamente por crianças, como Trem da Alegria (vi há pouco tempo, inclusive, uma entrevista desabafo com a cantora Patricia Marx metendo a boca no trombone sobre aquela época). E me recordo que nem a Disney e o seu famigerado Clube do Mickey escaparam dos comentários maliciosos. Só para vocês terem uma ideia do nível que foi a coisa, procurem na internet pelo depoimento do ator Corey Feldman - de filmes como Os garotos perdidos e Os Goonies - a respeito dos assédios que sofreu em hollywood ainda criança.
Por que decidi escrever esse primeiro parágrafo tão extenso no começo desta crítica? Porque me senti revivendo tudo isso, todo esse sentimento, quando acabei de assistir esta semana nos cinemas o longa Um lindo dia na vizinhança, de Marielle Heller.
O filme de Heller aborda a amarga história do jornalista investigativo da revista Esquire Lloyd Vogel (Matthew Rhys), um homem que empurra a vida com a barriga por reviver constantemente a relação traumática que tem com o pai, Jerry (Chris Cooper), a quem culpa por deixar ele e sua irmã sozinhos no momento mais difícil de suas vidas. E sua melancolia o persegue por todos os setores de sua vida: no casamento, a esposa Andrea (Susan Kelechi Watson) já não sabe mais o que fazer para trazê-lo de volta à vida. E no trabalho, ele se tornou a pessoa difícil da redação, a persona non grata a quem ninguém quer dar entrevista.
Quando sua chefe na redação o delega a missão de entrevistar o maior ícone dos programas infantis de toda a América, o lendário Fred Rogers (Tom Hanks, como há muito tempo não via nos cinemas), ele pensa tratar-se de um trote, pois tal personagem não se encaixa no perfil do tipo de artista e celebridade com quem ele costuma trabalhar.
E Rogers é realmente o seu exato oposto: um homem extremamente positivo, que acredita na esperança e na recuperação de pessoas frágeis ou massacradas pelos deslizes da vida. Um homem que vê a dor, o sofrimento e a morte como ciclos da nossa existência e não como razões para simplesmente desistirmos. E isso de alguma maneira incomoda Lloyd.
Mais do que isso: Lloyd acredita que por ter vivido uma infância tão traumática não é capaz de ver a humanidade com outro olhar que não seja negativo. Ele é praticamente um marionete de si mesmo.
Vocês devem estar se perguntando: como assim? A pessoa real, o verdadeiro Lloyd Vogel, aquele que deveria seguir em frente, superar suas adversidades, saber perdoar o próximo, está escondido por trás de um personagem que ele próprio criou, amargo, sempre apontando os defeitos dos outros, sempre fugindo da responsabilidade de sentar e colocar os pingos nos is. E por isso, na sua visão deturpada de mundo, ele acredita piamente na impossibilidade de Fred Rogers ser um homem sem defeitos. Ele precisa encontrar algum fantasma escondido no armário que assombre a vida desse homem comum, que ganhou a fama de herói americano.
Ao final da projeção, vejo algumas pessoas intrigadas, talvez pensando se tudo aquilo era real de fato ou apenas mais uma versão bonitinha para agradar aos fãs de um ícone da televisão. E me pego pensando no quanto, muitas vezes, procuramos o inimigo no lugar errado só para satisfazer nosso próprio ego e nossa eterna mania de rotular os outros.
Com a idolatria ao que chamamos de globalização e esse século que mal começou e já está dando o que falar (de pior) em todos os sentidos, percebo o quanto nos tornamos uma sociedade stalker, que gosta de perseguir os outros, ver o pior nos demais, às vezes como forma de exaltar a si própria. E tudo isso é muito triste.
Algumas pessoas que escrevem sobre cinema na internet rotularam Um lindo dia na vizinhança de "cansativo" e "decepcionante". E eu discordo em gênero, número e grau. O filme de Marielle Heller me fez pensar no quanto temos dificuldade de amadurecer, de olhar para frente com outros olhos, de virar a página a respeito do que outras pessoas nos fizeram (e nos magoou tanto). Ninguém nunca nos prometeu que a vida seria fácil e pelo andar da carruagem, prevejo ainda mais relutância e desafios no futuro. E como sobreviver a isso sem levantar a cabeça e recomeçar do zero? Não sei vocês, mas parece-me à primeira vista impossível!
Ou em outras palavras (para quem prefere uma opinião mais curta do que a minha reflexão do parágrafo anterior): Um lindo dia na vizinhança é o filme mais humano - no sentido de investigador - que eu vi nessa temporada de prêmios. E acreditem: isso não é pouca coisa, não!
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A Grande Mentira
3.4 126Foi uma grata surpresa já nesse início de 2020. Mas é preciso que o espectador tenha paciência, dê tempo ao filme para que a narrativa se concretiza. Quem está acostumado à adrenalina e megalomania não vai curtir!
1917
4.2 1,8K Assista AgoraA última esperança
(1917, de Sam Mendes, é um passeio brilhante pelo caos e o horror da guerra)
Se existe um gênero cinematográfico que tem tudo a ver com a temporada de prêmios (leia-se: Oscar, Globo de ouro, Guilds, etc) e volta e meia dá as caras com uma produção inovadora ou, ao menos, bem feita esse gênero é o filme de guerra. E muitas vezes eles são vítimas de grandes roubalheiras na história dos mesmos prêmios (Spielberg que o diga!).
Esse ano a bola de vez - e ela vendo sendo rotulada de forma ingrata como a "aposta anti-Netflix para vencer o Oscar de melhor filme" - é 1917, do diretor inglês Sam Mendes (que já faturou o prêmio em 2000 com Beleza americana).
1917 não possui um roteiro de deixar os críticos e os votantes da academia de queixo caído. Pelo contrário. É uma história mais do que simples sobre dois soldados, Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay, que muitos acreditavam que figuraria na lista de indicados a melhor ator por conta da força da ala britânica entre os votantes do Oscar e dos sindicatos) que precisam adentrar o território inimigo em plena primeira guerra mundial para entregar uma carta que pede aos superiores no front que cancelem uma ataque que poderá levar à morte 1600 soldados.
Em outras palavras: eles são a última esperança no intuito de evitar uma grande tragédia.
Contudo, quando o assunto é a parte técnica do longa, 1917 exibe todas as suas cartas na manga e entrega um espetáculo audiovisual digno das maiores produções já feitas no gênero. Montado de maneira a ser visto como um filme rodado num único plano-sequência (assim como aconteceu com Birdman, de Alejandro González Iñáttitú, outro longa mau visto em sua época que acabou calando a boca dos críticos e puristas e levando a estatueta de melhor filme), ele acaba por narrar uma espécie de "passeio rumo ao inferno".
Portanto, saibam segurar a respiração, meus caros leitores, pois este é daqueles projetos capazes de mexer com a sua cabeça e a sua capacidade de compreensão take a take, minuto a minuto. Enquanto os dois soldados atravessam os destroços do que um dia foi um país, vemos o retrato do horror, do caos, da ganância e da eterna mania dos homens de se acharem melhores do que a sua própria espécie naquilo que ele tem de mais vivo e cruel.
O filme a meu ver está repleto de citações diretas à outros filmes de guerra. Que o diga a própria carta a ser entregue pelos soldados que me remeteu a carta que passava de mão em mão entre os soldados do filme O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg. E nos instantes finais, quando Schofield está perto de entregar a mensagem à seu destinatário, talvez eu tenha enxergado demais, mas me remeteu ao clássico Gallipoli, do diretor Peter Weir, feito no início dos anos 1980, que tem como protagonista o ator Mel Gibson no início da carreira.
Vi alguns críticos da internet (sempre eles!) reclamando do final chocho do longa, em comparação aos outros competidores de melhor filme. Honestamente, vejo nessa mentalidade a eterna mania do público contemporâneo - viciado em remakes e franquias de ação - de querer que tudo acabe de forma espetacular, retumbante, avassaladora, à la Senhor dos Anéis e Game of Thrones. E não acredito que a sétima arte deva se render única e exclusivamente a isso.
Na verdade, ao desfecho do filme me peguei perguntando sobre o que o soldado, terminada a árdua missão, estava pensando. Talvez sobre o sentido da guerra, que no final das contas é praticamente nenhum? Ou se já havia passado da hora de lhe mandarem de volta para a casa e rever sua família? E cá entre nós: qualquer produção cinematográfica que termine me fazendo pensar, durante a volta para casa, num algo a mais já valeu o meu dia.
Segundo os resultados da temporada de prêmios até agora 1917 é o favorito absoluto ao Oscar de melhor filme desse ano. Tem quem diga até que já é barbada faz tempo. E não acredito que será injusto. Diferentemente do prêmio conferido ao insuportável Guerra ao terror, de Kathryn Bigelow, em 2010, último filme de guerra a ganhar a estatueta, o longa de Sam Mendes tem alma própria, diferentemente do filme de Bigelow que, na época, pegou carona no lobby político e na eterna mania dos norte-americanos de emularem o sofrimento decorrente da tragédia do 11 de setembro.
É, Netflix... Eu até queria torcer por vocês, mas não deu. De novo.