Chayenne! Nele reside todo o interesse do filme. Sean Penn, numa atuação iluminada, mesclando a aparência do Robert Smith (The Cure) com os trejeitos do Ozzy Osbourne, consegue dar vida a um roqueiro recluso e imaturo que, apesar do estranhamento inicial, é bastante crível e carismático.
Mas, à exceção do excêntrico protagonista, os interessantes coadjuvantes são desperdiçados na mesma proporção com que questões e conflitos levantados aleatoriamente são abandonados em meio a metáforas grosseiras.
Como em qualquer road movie, o arco dramático do protagonista consiste numa jornada de autoconhecimento onde o mesmo busca algum sentimento legítimo que preencha o vazio cultivado como forma de autopreservação, permitindo assim que ele se reconcilie consigo mesmo e siga adiante.
Por trás da câmera, o trabalho de Paolo Sorrentino peca pelo maneirismo e soa demasiadamente pretensioso diante de uma trama com pouca substância que, não obstante a abordagem pouco convencional, carece de novidades em seu cerne.
Até mesmo os gênios tem suas limitações... E apesar de ter produzido, dirigido, fotografado e editado esse filme com competência, conceber histórias originais não era o forte de Kubrick. Mas ele demonstrou que o discernimento também é uma das virtudes dos gênios, pois a partir de "O Grande Golpe", seu próximo trabalho, ciente das suas deficiências e dispondo de mais recursos, optou sempre por trabalhar com histórias de terceiros. No entanto, é inegável que a experiência adquirida ao acumular diversas funções nesses primeiros filmes foi fundamental para a formação do diretor que viemos a conhecer posteriormente. Inclusive, se comparado a "Medo e Desejo", a evolução alcançada na mise en scène deste noir é nítida e brutal.
Contrapondo-se a simplicidade da trama, a construção das cenas se revela tão rica quanto impecável. No clímax, toda a sequência que envolve a perseguição pelos telhados de Manhattan e o embate em meio aos manequins, tem, definitivamente, a assinatura de um mestre. Outro exemplo notório é o da luta de boxe que, com tomadas oriundas do curta "Day of the Fight", e trabalhando com ângulos de câmera inusitados junto a uma montagem de vanguarda, viria a influenciar Martin Scorsese na realização do excelente "Touro Indomável".
Suas origens como fotógrafo também se tornam claras quando observamos o cuidado empreendido na iluminação das cenas e na composição dos quadros. Há um plano onde se focaliza o pôr do sol - obviamente em P&B - que, além de antecipar o destino dos protagonistas, é simplesmente deslumbrante. E o que falar do momento em que vemos o boxeador ao telefone ao mesmo tempo em que acompanhamos as ações da vizinha no apartamento em frente através do reflexo do espelho...
Para além do gênio literário, Oscar Wilde tornou-se, ele próprio, o mais complexo dos personagens. E o filme peca exatamente por não conseguir contemplar essa complexidade, acabando por suavizar uma das figuras mais intensas da história da arte. Pois, como se quisesse conferir dignidade ao retrato póstumo, adota um tom quase solene em detrimento da conhecida extravagância e dos conturbados relacionamentos. Traços de personalidade que de forma alguma reduziriam a sua importância artística ou a corajosa e incansável luta contra a hipocrisia da sociedade vitoriana. Ao contrário, engrandeceriam-no ao humanizá-lo.
Também senti falta de ver retratada a sua infância e o relacionamento com a mãe, que acredito terem sido fundamentais na formação da personalidade dessa figura que estava anos-luz à frente do seu tempo. Mas é compreensível a opção pelo recorte de um momento chave nessa trajetória, evitando assim incorrer no erro comum a muitas cinebiografias que pretendem expor uma vida do berço ao túmulo.
Contudo, ainda que apresente a história de forma burocrática, quase como numa aula de literatura, o diretor consegue fazer o filme interessante de muitas formas. As diversas citações que permeiam os diálogos conquistam por apresentar o biografado pelas suas próprias palavras, dotando a narrativa de certa poesia. E a analogia com o conto d'O Gigante Egoísta, narrado em off, também foi uma bela sacada.
No entanto, é inegável que a força propulsora do filme esteja no seu elenco. Stephen Fry (Gosford Park), em adição a incrível semelhança física, compõe o dândi de uma maneira possível somente a um legítimo inglês. Seu monólogo diante do tribunal, onde discursa sobre o "amor que não ousa dizer o nome", é absolutamente comovente. Enquanto Jude Law, com carisma e sensualidade, rouba a cena como aquele que é considerado o maior responsável pela ruína de Wilde. Michael Sheen (Frost/Nixon), como o amigo fiel, e Jennifer Ehle (Orgulho e Preconceito), como a esposa resignada, também são dignos de nota.
Se em 1967 filmes como "Bonnie & Clyde" e "The Graduate" abalaram os pilares do moribundo studio system, em 1969 "Easy Rider" o implodiu definitivamente, abrindo caminho para a transgressão na Hollywood dos anos 70. Com baixo orçamento, mas espelhando a realidade do seu contexto sociocultural, o filme obteve um excelente retorno financeiro, levando a indústria cinematográfica a importantes mudanças de paradigma. No entanto seu maior mérito foi ter captado com perfeição os anseios e frustrações de toda uma geração, convertendo-se no seu testamento definitivo.
Mas os realizadores extrapolaram as limitações de uma simples história, elaborando um verdadeiro ensaio sobre a liberdade, abarcando-a em suas diversas possibilidades. Cada um dos personagens representa uma forma distinta de vivenciar a própria liberdade. Desde o pacato fazendeiro com sua família, passando pelos integrantes de uma comunidade alternativa, até o inconformado advogado vivido brilhantemente por Jack Nicholson. Inclusive há uma dicotomia no modo como os protagonistas vividos por Peter Fonda e Dennis Hopper enxergam o movimento de contracultura. Enquanto o primeiro busca autoconhecimento e tende a coletividade, o segundo se fecha numa postura hedonista.
A influência das vanguardas européias é notada tanto na crueza da fotografia, que se apóia na luz natural das locações, como na montagem agressivamente criativa. Sequências como a do pernoite no Monument Valley, ou a que ilustra uma experiência com LSD, são exemplares nesse sentido. Todavia não renega a tradição do cinema clássico americano, e concebe a sua narrativa como um tipo de western moderno. Em dado momento, o paralelismo entre as trocas da ferradura do cavalo e do pneu da motocicleta nos indica essa intenção. O fato dos protagonistas chamarem-se Billy (The Kid) e Wyatt (Earp) também não me parece aleatório...
E pensar que um filme ainda hoje relevante teve uma produção tão conturbada, passando por diversos contratempos, que felizmente foram superados através de ótimas soluções. A icônica trilha sonora talvez seja o melhor exemplo, pois tomou forma a partir de problemas que inviabilizaram uma composição original, levando à inclusão de obras de artistas contemporâneos, que mais tarde se tornariam lendas. Fato que impressiona ainda mais quando percebemos a correlação existente entre as músicas e o que é visto na tela.
Em uma palavra: anárquico! Tanto na forma como no discurso.
Na forma porque, não delineando conflitos nem objetivos, ignora completamente qualquer padrão narrativo; compondo-se através de esquetes isoladas que, por mérito da montagem, resultam numa peça coesa. Também inova ao fazer intervenções metalinguísticas através do locutor do acampamento e ao permitir que falas sobreponham-se numa mesma cena.
No discurso porque, no contexto da contracultura, busca contestar os valores vigentes através da sátira altamente corrosiva. Homofobia, machismo e preconceito racial, assuntos pertinentes naquele período de ebulição da luta pelos direitos civis, e ainda hoje polêmicos, são contemplados com maior ou menor contundência. Por isso, ainda que a leviandade dos personagens represente um posicionamento moral em relação à guerra - esvaziando e banalizando sua importância -, defini-lo como um libelo pacifista acaba limitando a sua proposta.
Penso que o filme poderia se passar tranquilamente num acampamento de férias, sem prejuízo algum ao seu discurso. Pois a guerra não é mais do que mero pano de fundo, e mesmo assim de maneira indireta. Tanto que as cenas mais violentas do filme ocorrem durante uma partida de futebol.
Contudo, como fã desse tipo de humor a la Monty Python, digo com pesar que não consegui me conectar ao filme.
Mr. Carpenter é um dos grandes mestres na arte da construção do suspense. E aqui podemos vislumbrar uma ponta do que viria a culminar no "Enigma de Outro Mundo", sua obra-prima. O plano-sequência inicial está entre as melhores aberturas da história do cinema.
É surpreendente o resultado obtido com tão poucos recursos. Mas, infelizmente, o roteiro, um legítimo queijo suíço, prejudica bastante a experiência. E, à excessão de alguns poucos momentos hilários, como no cosplay de Gasparzinho, também falta criatividade aos ataques - algo importante num slasher.
Talvez o que sustente o filme seja mesmo a poderosa trilha sonora que, aliada a um eficiente trabalho de câmera, brinca com a onipresença do mal e reforça a sensação de exposição.
Fico me perguntando o que teria feito deste filme um clássico... É fato que seja uma referência para todo o subgênero slasher, com praticamente tudo que o sucedeu consistindo numa repetição da fórmula com maior ou menor grau de criatividade. Contudo, não foi inovador nem na forma nem no conteúdo, pois antes dele haviam os interessantes giallos italianos, de mestres como Mario Bava e Dario Argento. Assim, me parece que enquanto precursor de todo um subgênero, seu maior estímulo foi o sucesso alcançado nas bilheterias por uma produção de baixíssimo custo.
A construção do personagem é tão impressionante quanto a desconstrução do homem que o inspirou. Acompanhamos todo o arco da transformação de um cidadão comum, dedicado e carismático, num policial bruto e amargurado, típico do cinema americano - algo como o Dirty Harry, pra ficar na mesma época.
É desnecessário elogiar o Al Pacino, mas vale mencionar uma curiosidade: depois de aceitar o papel principal, ele teria convidado o verdadeiro Frank Serpico para passar um tempo na sua casa em Nova York.
A instigante montagem da Dede Allen (Bonnie e Clyde, Um Dia de Cão, Reds) gera uma expectativa absurda ao fazer com que passemos todo o filme na iminência de um atentado contra a vida do protagonista. Só pecou ao se repetir na exposição de algumas passagens burocráticas e desinteressantes, que até ajudam a compor o inferno vivido pelo personagem-título, mas cansam um pouco ao prolongar a duração mais do que deveria.
O experiente diretor - anterior à Nova Hollywood, mas que incorporou como poucos o espírito da geração - também acerta ao trabalhar a passagem do tempo de forma sutil e objetiva. Além de alternar planos abertos e fechados para ilustrar o isolamento e a pressão experimentada pelo personagem.
Repleto de excelentes diálogos, a última fala do filme não poderia ter sido mais significativa...
"Por que eles me deram um distintivo? Por ser um policial honesto, ou por ser imbecil o suficiente pra levar um tiro na cara?"
Sendo através dessa desolação, e da sensação de impotência diante de um sistema muito maior do que um homem sozinho seria capaz de enfrentar, que Frank Serpico se aproxima do Capitão Nascimento, ou vice-versa. Mas entre se omitir, se corromper ou ir à luta, sabemos qual é a única escolha possível a qualquer pessoa digna de portar um distintivo.
Amor, ciúme, inveja e traição elevados a enésima potência. Uma típica tragédia rodriguiana.
Infelizmente o filme não aprofunda seus conflitos além da própria sinopse, e ao ficar entre o suspense e o drama, não alcança a plenitude em nenhum dos gêneros. A atmosfera soturna, apesar de contagiante, ao ser adotada desde o início acaba desvelando precocemente os caminhos a serem percorridos.
Muito se falou da atuação da Fernanda Torres - eficiente, mas esquemática -, porém foi o Cuoco quem realmente me tocou com o seu amargurado personagem.
Considero a trilha sonora o ponto alto do filme, sendo responsável por sustentar as passagens mais impactantes, e estando perfeitamente orquestrada com a ambientação gótica. O melancólico desfecho não seria o mesmo sem a poderosa versão de Arnaldo Antunes para o clássico Bandeira Branca.
A mão do Almodóvar no projeto é inegável, mas Damián Szifrón tem personalidade e demonstra grande domínio da mise en scène, conseguindo manter o equilíbrio entre as histórias, ainda que, como em toda narrativa em episódios, algumas acabem sendo mais efetivas que outras.
Tamanha é a segurança no seu discurso que presenciamos, já nos créditos iniciais, uma aproximação com as nossas origens animais. Como se quisesse deixar claro que a violência é latente e constitutiva da nossa natureza, estando acima de quaisquer fatores sociais. E na sequência, com "Las ratas", esbanja maturidade e conhecimento da complexidade humana, quando mostra uma pessoa, com todas as razões para se vingar, mantendo-se imune aos instintos violentos, enquanto outra, sem nenhuma relação com o caso em questão, se revela bestial.
"Pasternak", o episódio de abertura, flertando com o absurdo, procura estabelecer imediatamente um pacto de aceitação do espectador para com as histórias que, apesar de plausíveis, extrapolam a realidade; num exagero que enfatiza a mensagem e traz uma bem-vinda camada de humor negro.
Já "Bombita", apesar de previsível, ao tratar da impotência do cidadão comum diante de um sistema burocrático, ecoa a obra de Franz Kafka e tem grande potencial de identificação junto aos brasileiros.
Enquanto "La propuesta", em meio a uma radiografia das estruturas de corrupção da sociedade, surpreende ao deixar o seu verdadeiro protagonista em segundo plano na maior parte do tempo.
"Lo màs fuerte" e "Hasta que la muerte nos separe", o terceiro e o último episódio, respectivamente, são antagônicos e complementares, pois mostram como a escolha entre a ponderação e a impulsão - aquilo que nos difere como seres humanos e a nossa natureza primitiva -, pode nos salvar ou não de um trágico círculo vicioso.
O último episódio, por sua vez, também se aproxima de "Bombita" no ponto em que seus protagonistas precisam chegar ao extremo, numa catártica ruptura com o bom senso para, somente então, alcançarem a serenidade.
No fundo, o filme é apenas uma comédia que brinca com o exagero nosso de cada dia, explorando a fragilidade da linha que separa a barbárie da civilidade. Mas causa perplexidade, e até inveja, perceber que uma comédia argentina consegue conciliar sucesso de público e qualidade cinematográfica, enquanto em terras tupiniquins, entre os grandes êxitos do gênero, reina a mediocridade em termos de forma e conteúdo.
Favorece ao filme o fato de que a adaptação do material original tenha sido realizada pela própria autora, que transpôs sua história entre os meios sem perdas significativas. Mantendo o mistério, e parte da ambiguidade, ao construí-la a partir de pontos de vista distintos - o do marido e o da esposa - que convergem na primeira reviravolta do filme.
Tendo este excelente material como base, David Fincher conduz o filme com a elegância habitual, mas é Kirk Baxter quem faz a complexa narrativa funcionar através da sua precisa montagem. Conseguindo manter a tensão ao mesmo tempo que desenvolve os personagens.
Entretanto, embora sua conhecida impassibilidade pudesse ter favorecido a ambiguidade do personagem, Ben Affleck não convence como alguém que possa ter cometido qualquer ato violento. Deficiência que se agrava sob a luz do assombroso desempenho da Rosamund Pike.
O diferencial desse filme perante seus pares do gênero é que aqui o imbróglio criminal consiste apenas na superfície, pois no fundo pretende-se discutir as consequências de criarmos personagens para nós e para os outros diariamente, abstraindo as pessoas reais por detrás da fachada. O advogado vivivo pelo Tyler Perry se destaca exatamente por ter consciência desse jogo de aparências. Tanto que, diante do circo midiático armado em torno do drama pessoal do seu cliente, preocupa-se mais com a recuperação da empatia do mesmo junto a opinião pública do que com os aspectos jurídicos do caso.
Apesar das críticas, o título nacional me pareceu bastante coerente, pois se relaciona diretamente com a semi-biográfica série de livros escrita pelos pais da Amy. Livros esses que moldaram o caráter da personagem ao mantê-la sempre no centro das atenções e, principalmente, ao estabelecer parâmetros de perfeição intangíveis que, de certa forma, levaram-na a se perder em meio a incessante busca por ser exemplar.
Um roteiro sensível e atores inspirados, conduzidos por um diretor que dispensa pirotecnias, ocupando-se somente de contar uma boa história, e que reafirma seu talento para extrair reflexões profundas do cotidiano aparentemente banal.
Não há maniqueísmo, os personagens transpiram verdade, sendo mesquinhos em alguns momentos e admiráveis em outros. Enquanto acompanhamos o complexo arco dramático da família Grant, percebemos que até mesmo os coadjuvantes possuem certo relevo.
Pai e filho sabem quase nada sobre os sentimentos um do outro.
Se a princípio a jornada é creditada a teimosia e a senilidade do pai septuagenário, mais tarde seus anseios se tornam mais claros, sendo traduzidos numa frase: "Eu só queria deixar algo para os meus filhos"
Enquanto o filho, ao travar contato com o passado, aos poucos se despe de todo ressentimento, e promove uma espécie de catarse familiar. Inclusive, há uma inversão de papeis na última sequência, onde o filho se coloca como provedor do pai, remetendo a infância, quando somos encorajados por nossos pais na busca por autonomia. Momento esse que anteriormente já havia sido sintetizado com perfeição por Renato Russo na bela canção Pais e Filhos.
É evidente que as questões familiares, especialmente a relação entre o pai e seu filho caçula, estão no cerne do roteiro, mas gravitam em seu entorno temas como as dificuldades enfrentadas no ocaso da vida e a falência do sonho americano. Particularmente, vejo o personagem vivido pelo Bruce Dern como a personificação de um povo que se deslumbrou diante da ampla oferta de crédito e, logo em seguida, acabou mergulhado na profunda recessão econômica do início do século XXI.
Alexander Payne e seu elenco encontram o exato equilíbrio entre a melancolia e o humor. O casal Grant (Bruce Dern e June Squibb) é um espetáculo à parte. Ele, ingênuo e rabugento, cativa com facilidade. Ela, sincera e espirituosa, rouba a cena a cada aparição.
A fotografia, para além do elegante P&B, justificado pela desbotada realidade retratada, busca uma horizontalização nas cenas externas, valorizando a arquitetura das cidades interioranas e a vastidão das suas paisagens típicas.
Sam e Suzy, cada um a sua maneira, são carentes do convívio familiar e encontram-se deslocados do meio em que vivem. E Wes Anderson só precisa de duas sequências magistrais para nos mostrar isso!
Eles se aproximam a partir dessa inadequação em comum e, num misto de rebeldia e romantismo, decidem embarcar numa aventura que causa alvoroço na pequena e resignada comunidade, aprofundando a singela relação. Todo esse ato, que consiste na fuga do jovem casal, nos remete a clássicos como Conta Comigo e Meu Primeiro Amor, e contém os melhores momentos do filme.
A sequência do primeiro beijo e a subsequente descoberta da sexualidade, ao som de Le Temps de l'Amour, é simplesmente maravilhosa, conseguindo ser delicada e irônica ao mesmo tempo.
Uma pena que após o resgate das crianças o filme perca gradualmente seu brilhantismo, chegando a parecer um tanto atabalhoado durante a tempestade.
Interessantemente, essa derradeira tempestade rima com o momento no qual os protagonistas se conheceram, durante uma encenação teatral da Arca de Noé. Sinalizando a superação das adversidades pelo casal e a perspectiva de um futuro melhor.
Com um elenco homogêneo, Moonrise Kingdom representa uma visita nostálgica aos nossos primeiros esbarrões com o amor, quando descobrimos que éramos capazes de suspirar por outra pessoa, ficando extasiados ou arrasados em função de nossas interações com ela.
E para aqueles que sobreviverem ao dilúvio, vale à pena aguardar os créditos finais, onde o maestro Alexandre Desplat, numa brincadeira com a abertura do filme, apresenta os instrumentos utilizados na belíssima suíte "The Heroic Weather Conditions of the Universe", composta especialmente para o filme.
Wes Anderson, que fez dos enquadramentos simétricos e travellings ortogonais sua marca registrada, impõe à sua direção uma precisão quase matemática. E é inegável que esse apuro estético às vezes distrai mais do que deveria, acabando por impossibilitar um maior envolvimento com os personagens, contudo condiz perfeitamente com o tom fabulesco do universo cinematográfico do diretor.
Sequências como a perseguição no museu e a fuga da prisão são puro deleite, levando-nos a imaginar que ele realmente se divirta fazendo seus filmes... Explicando também a facilidade com que recruta atores renomados, mesmo que para pequenas pontas, uma vez que todos parecem colaborar por puro prazer.
E o elenco em questão, uma verdadeira constelação, não se presta a nada menos que brilhar. Chegando a compensar alguns personagens que, à exceção do concierge interpretado por Ralph Fiennes, não passam de mera representação de tipos. Outro destaque é a impecável caracterização da Tilda Swinton como uma excêntrica senhora. Foi difícil acreditar que ela estava no filme até ver o seu nome nos créditos.
A trama, em sua essência, não tem nada de excepcional - e tem consciência disso, conforme assinala no desfecho -, mas a narrativa metalinguística, algo como uma boneca russa em seus níveis de abstração, que apresenta alguém contando a história de quando outrem lhe contou uma história, é prova da sofisticação e da maturidade alcançadas pelo cineasta.
Assim, embora seus maneirismos incomodem a muitos, não reconhecê-lo como um dos diretores mais autênticos e criativos em atividade seria uma injustiça.
Durante a sequência de abertura somos introduzidos ao momento vivido na África do Sul, e tomamos dimensão da difícil tarefa que seria liderar um país dividido pelo preconceito e pela miséria. Onde, diante do clima hostil entre a minoria dos outrora algozes e a maioria composta por vítimas tomadas pelo ressentimento, uma simples inversão da opressão seria o esperado. Mas, dotado de cautela e inteligência, Nelson Mandela fez do esporte um importante instrumento de reconciliação.
E o grande mérito deste filme está em conseguir transparecer a grandeza de um homem que foi a própria mudança que gostaria de ver no mundo, e se transformou numa das figuras mais importantes e inspiradoras do século XX.
Contudo, percebemos certa ingenuidade política na conclusão do filme. Em que os desavisados são levados a crer que um problema profundamente enraizado na sociedade sulafricana teria sido milagrosamente superado, quando, na verdade, sabemos que aquele episódio representa menos uma solução do que um marco da virada rumo a uma sociedade mais unida e igualitária. Essa distorção é perfeitamente exemplificada por uma das cenas derradeiras, onde um menino negro é carregado por policiais brancos enquanto todos comemoram a vitória. Cena essa que, em virtude da apelação emocional, chega a tornar patética a até então competente direção.
Ainda sobre a direção de Clint Eastwood, vale mencionar a forma como ele nos coloca dentro de campo durante as cenas dos jogos de rugby. Fazendo com que o espectador sinta-se como mais um elemento entre os Springboks.
Morgan Freeman, habituado a interpretar personagens de tamanha envergadura, corresponde às expectativas. Enquanto Matt Damon, que passou por uma impressionante transformação física, extrai o possível de um Pienar mal explorado pelo roteiro.
Ao adotar um tom burlesco na construção e no desenvolvimento da relação entre os militares, Park Chan-wook acabou tornando-a pouco cativante.
Se optasse por privilegiar a investigação talvez tivesse rendido um thriller mais consistente. Já que a forma como ela transcorre, através de flashbacks, alternando variadas versões para uma mesma situação, mostrou-se bastante intrigante. Ainda que a certa altura tenha parecido que o diretor estava mais interessado em confundir do que em explicar, algo pouco apreciável em filmes de suspense.
Mas o humor inusitado funcionou perfeitamente naquela cena onde dois soldados de lados opostos, separados apenas por uma marcação no chão, trocam cusparadas. Assumindo a forma de uma corrosiva crítica a postura dos regimes do Norte e do Sul da Coréia.
É certo que minha experiência foi prejudicada pela alta expectativa mas, sem dúvida, o filme tem suas qualidades e vale pela coragem do diretor em enveredar pela delicada seara da divisão da Coréia.
A realidade cruel de uma guerra nem tão fria assim... Onde seres humanos eram reduzidos a peças facilmente descartáveis nas mãos de Estados que não passavam de meros fantoches num mundo polarizado entre EUA e URSS.
Através de uma humilde e batalhadora família tomamos ciência das mazelas as quais a população foi submetida, incluindo as atrocidades perpetradas por ambos os lados do conflito. E é justamente na perspectiva daqueles que foram as grandes vítimas do conflito - cidadãos comuns obrigados a defender ideologias das quais não faziam o menor juízo - que reside o ponto de maior interesse no filme.
Excelente, a primeira parte intercala cenas impactantes do cotidiano da guerra com o desenvolvimento dos seus personagens principais. Porém, conforme o filme caminha para seu desfecho, acaba se perdendo num melodrama desnecessário que culmina numa sequência piegas e inverossímil.
Se comparado a produções como O Resgate do Soldado Ryan e Band of Brothers as cenas de ação, repetitivas em certos momentos, podem decepcionar. Mas o resultado alcançado surpreende quando pensamos que a película foi orçada em "míseros" 13 milhões.
Como neófito que sou em relação a carreira do Oswaldo Montenegro me surpreendi diante desta realização. Especialmente pela sensibilidade esbanjada na encenação de cenas cotidianas, e ainda mais pelas inteligentes sacadas nos diálogos e nas letras das músicas. Tudo transborda poesia.
Infelizmente, apesar dos momentos inspirados, que isolados renderiam curtas interessantíssimos, enquanto longa o filme restringe-se a estilhaços avulsos que não chegam a compor um mosaico.
Mesclando comédia e terror, algo comum na década de 80, esta fascinante obra do Joe Dante (Piranha, Grito de Horror e Matinee) tem espaço garantido entre clássicos como Evil Dead e A Volta dos Mortos Vivos. A estética trash também é típica dos filmes oitentistas, contudo não a subestime, pois Chris Walas (A Mosca) - combinando marionetes, animatrônica e stop-motion - realizou um trabalho primoroso com as criaturinhas, dando personalidade a cada uma delas, especialmente o adorável Gizmo e o espevitado Stripe.
Enquanto Jerry Goldsmith (Star Trek) nos arrebata com a sua inesquecível, e agora nostálgica, trilha sonora.
No argumento de Chris Columbus (Goonies, Esqueceram de Mim e Harry Potter), originado no mito onde pequenas criaturas causariam avarias em aeronaves na Segunda Guerra, ainda é possível notar uma sutil parábola sobre a responsabilidade de se criar e educar alguém num mundo como o nosso.
O filme não empolga pela história, mas conquista pela habilidade com que recria o ambiente e a ação da Segunda Guerra de forma brutalmente realista, num momento em que os Aliados faziam sua incursão final pela Europa. Entretanto sua maior qualidade está mesmo no elenco que compõe a tripulação do tanque de forma absolutamente convincente enquanto homens que foram soterrados ao assumir seus papeis no campo de batalha.
Ingrata seria a tarefa de ser minimamente original trabalhando com um gênero revisitado desde os primórdios do cinema. Mas, despretensiosamente, David Ayer constrói sua consistente trama abusando de todos os clichês possíveis... Estão aqui as incertezas, a desumanização, os sofrimentos, a amizade, a bravura e a honra. Ainda assim, seu grande pecado foi a resolução improvável que deu a história, mesmo que surpreenda se pensarmos que a mesma é contada pela perspectiva dos americanos.
Pode não ser um filme memorável, mas sendo autêntico e competente naquilo que se propõe, certamente agradará aos fãs de batalhas.
Com uma vida e obra tão ricas, qualquer um que se disponha a biografar o velho Tião da Tijuca já tem parte do jogo ganho... Sendo a escolha de quais elementos colocar em campo a maior dificuldade. Assim, optando por uma síntese geral da vida e da carreira do Síndico do Brasil, ao invés de um recorte específico, e consciente de que as lacunas seriam inevitáveis, Mauro Lima consegue transpor para as telas algo da intensidade de uma trajetória pautada pelo excesso, divertindo e emocionando o público. E graças à omissões pontuais e às elipses temporais o filme mantém o vigor narrativo por quase duas horas e meia, ainda que perca a fluidez em momentos específicos.
Mas no geral, embora o filme não decepcione, também não surpreende. Seguindo uma fórmula recorrente ele acaba sendo apenas correto, talvez até mesmo protocolar. Limitando-se ao mito e suas polêmicas, entregando muito pouco do ser humano por trás de tudo, e nada do gênio artístico e sua importância para a música brasileira.
Em verdade, o filme agrada enquanto ficção, sustentando-se nas belas músicas e na personalidade irreverente do Tim. Porém, como biografia de um dos maiores artistas do país, não é mais que superficial.
A narração em off também poderia ter sido evitada com alguma lapidação no roteiro.
O elenco, a despeito de algumas escolhas equivocadas, não compromete, e tem sua maior força nos dois atores responsáveis por encarnar o personagem título. Especialmente o Babu Santana que, provavelmente no papel da sua vida, aproveita-se da semelhança física e nos faz acreditar que estamos diante do próprio Tim Maia. Chegando a se arriscar cantando algumas músicas. Robson Nunes, mesmo com menos espaço e uma composição mais contida, também convence, apesar do seu Tim destoar daquele interpretado pelo Babu. Mas isso é mais um problema da direção do que da atuação. O que nos remete ao Roberto Carlos vivido pelo George Sauma que, proposital ou não, soa demasiadamente caricato, destoando do conjunto.
A fotografia é simplesmente impecável, das mais belas que já vi, sendo impossível adjetivá-la sem que se perca algo. Cada plano consiste numa pictórica e cuidadosa composição.
Outra grande qualidade do filme reside na dupla de protagonistas, que estabelece um interessante jogo interpretativo. De um lado a fascinante Agata Trzebuchowska, interpretando uma noviça de origem judia, consegue expressar tanto sentimento com tão poucas palavras. No outro extremo, a surpreendente Agata Kulesza (Sala do Suicídio) compõe, sem cair na armadilha da apatia, a amargurada tia que estimula a jovem sobrinha a questionar as próprias certezas, e acaba descobrindo a si mesma.
Ao final, logo após um breve contato com as coisas mundanas, e instigada pelo diálogo abaixo, vemos Ida renunciar conscientemente a própria liberdade, numa espécie de paradoxo do livre-arbítrio, retornando ao único lugar que ela poderia chamar de lar. Nos levando a pensar que talvez o destino tenha talhado sua vida de tal forma que realmente não houvesse outra escolha possível.
- Você já viu o mar? - Nunca estive em lugar nenhum. - Venha com a gente. Você nos ouve tocar, nós caminhamos na praia. - E então? - Então vamos comprar um cachorro, casar, ter crianças, uma casa. - E então? - Os aborrecimentos de sempre. Vida.
Inclusive a fotografia sinaliza metaforicamente essa impotência quando a expõe como uma peça ínfima diante da vastidão da paisagem. Com o fundo histórico completando o quadro ao trazer à tona horrores do Holocausto que exerceram inexorável influência sobre toda uma geração de órfãos sobreviventes.
Mas acredito que o roteiro tenha falhado ao retratar de forma apressada e superficial o momento em que Ida trava contato direto com os prazeres carnais, antes apenas tangenciados através da vivência alheia. Fica parecendo que a história não extrapola a própria sinopse. A direção também perde a mão em alguns momentos, fazendo com que sequências importantes para a trama tornem-se frias e tenham seu impacto diluído.
Ainda que a investigação se desdobre de forma minuciosa, o roteiro procura focar mais na humanidade dos personagens, inclusive dos criminosos - uma influência do Georges Simenon -, diferindo dos filmes policiais ocidentais, que costumam privilegiar a ação.
Há também um interessante contraponto entre este filme e o Anjo Embriagado, ambos ambientados durante o pós-guerra e afins ao neorrealismo. Se naquele acompanhamos um criminoso em seu auge e decadência, neste vemos um policial confuso quanto as suas responsabilidades e atormentado por dilemas éticos inerentes ao ofício.
O sempre competente Takashi Shimura se destaca na pele do veterano investigador Sato que, dotado de uma serenidade que só a experiência pode proporcionar, conduz o novato e impulsivo Murakami por uma turbulenta jornada de amadurecimento. E essa relação entre mestre e pupilo é devidamente evidenciada por inteligentes diálogos e cenas excelentes como a do interrogatório da meretriz ou a da perseguição durante o jogo de basebol.
Talvez tenha faltado somente um rigor maior durante a edição, pois o filme realmente me pareceu arrastado em alguns momentos.
Ao meu ver o filme versa particularmente sobre a nossa disposição em engajar-se na busca de sentido e justificação do inusitado e do absurdo. O que acaba gerando distorções na realidade que variam entre o trágico e o cômico.
E o velho Caravana não parecia preocupado em nos entregar mais do que uma despretensiosa comédia de costumes. Mas o material adaptado a partir da espirituosa crônica do Fernando Sabino se revela lacônico demais quando vertido num longa metragem, não oferecendo mais do que um par de cenas realmente interessantes.
O cinema naturalista de Cláudio Assis irrompe numa encruzilhada de bestas humanas onde a civilização parece ser uma possibilidade distante.
E demonstra sensibilidade ao captar habilmente a estagnação da região, fazendo com que a melancólica atmosfera incomode mais que as pretensas cenas impactantes que, mesmo absolutamente grotescas, não passam de um pueril choque de realidade, e em nada agregam ao debate.
Sendo a inércia dos personagens diante daquelas condições precárias e desumanas que realmente suscita questionamentos... Por que eles não reagem? Seria o determinismo? Os agroboys também seriam vítimas/frutos do meio?
Mas é exatamente nesse ponto que notamos a fragilidade do filme, quando, sem uma base ideológica consistente, e com diálogos que se restringem a frases de efeito, ele se revela vazio, e até ingênuo. Ficando restrito à denúncia da exploração dos camponeses e da misoginia arraigada na sociedade patriarcal. O que, convenhamos, em pleno século XXI já não é mais novidade.
Entretanto, a despeito de seu ralo conteúdo, o filme tem um inegável valor estético. O diretor trabalha ângulos e movimentos de câmera de forma criativa e pouco vista no cinema nacional. Tudo devidamente capturado pela cuidadosa lente de Walter Carvalho. O problema é que em alguns momentos essa plasticidade acaba se opondo a proposta orgânica e realista do filme, tornando-o asséptico e causando certo distanciamento do público.
Já o elenco, em geral, é competente em extrair alguma verdade dos esquemáticos personagens. Demonstrando o que talvez seja a maior qualidade de Cláudio Assis: a condução dos atores.
Aqui é o Meu Lugar
3.6 580 Assista AgoraChayenne! Nele reside todo o interesse do filme. Sean Penn, numa atuação iluminada, mesclando a aparência do Robert Smith (The Cure) com os trejeitos do Ozzy Osbourne, consegue dar vida a um roqueiro recluso e imaturo que, apesar do estranhamento inicial, é bastante crível e carismático.
Mas, à exceção do excêntrico protagonista, os interessantes coadjuvantes são desperdiçados na mesma proporção com que questões e conflitos levantados aleatoriamente são abandonados em meio a metáforas grosseiras.
Como em qualquer road movie, o arco dramático do protagonista consiste numa jornada de autoconhecimento onde o mesmo busca algum sentimento legítimo que preencha o vazio cultivado como forma de autopreservação, permitindo assim que ele se reconcilie consigo mesmo e siga adiante.
Por trás da câmera, o trabalho de Paolo Sorrentino peca pelo maneirismo e soa demasiadamente pretensioso diante de uma trama com pouca substância que, não obstante a abordagem pouco convencional, carece de novidades em seu cerne.
A Morte Passou por Perto
3.3 142Até mesmo os gênios tem suas limitações... E apesar de ter produzido, dirigido, fotografado e editado esse filme com competência, conceber histórias originais não era o forte de Kubrick.
Mas ele demonstrou que o discernimento também é uma das virtudes dos gênios, pois a partir de "O Grande Golpe", seu próximo trabalho, ciente das suas deficiências e dispondo de mais recursos, optou sempre por trabalhar com histórias de terceiros.
No entanto, é inegável que a experiência adquirida ao acumular diversas funções nesses primeiros filmes foi fundamental para a formação do diretor que viemos a conhecer posteriormente. Inclusive, se comparado a "Medo e Desejo", a evolução alcançada na mise en scène deste noir é nítida e brutal.
Contrapondo-se a simplicidade da trama, a construção das cenas se revela tão rica quanto impecável. No clímax, toda a sequência que envolve a perseguição pelos telhados de Manhattan e o embate em meio aos manequins, tem, definitivamente, a assinatura de um mestre.
Outro exemplo notório é o da luta de boxe que, com tomadas oriundas do curta "Day of the Fight", e trabalhando com ângulos de câmera inusitados junto a uma montagem de vanguarda, viria a influenciar Martin Scorsese na realização do excelente "Touro Indomável".
Suas origens como fotógrafo também se tornam claras quando observamos o cuidado empreendido na iluminação das cenas e na composição dos quadros.
Há um plano onde se focaliza o pôr do sol - obviamente em P&B - que, além de antecipar o destino dos protagonistas, é simplesmente deslumbrante.
E o que falar do momento em que vemos o boxeador ao telefone ao mesmo tempo em que acompanhamos as ações da vizinha no apartamento em frente através do reflexo do espelho...
Wilde – O Primeiro Homem Moderno
3.7 91Para além do gênio literário, Oscar Wilde tornou-se, ele próprio, o mais complexo dos personagens. E o filme peca exatamente por não conseguir contemplar essa complexidade, acabando por suavizar uma das figuras mais intensas da história da arte. Pois, como se quisesse conferir dignidade ao retrato póstumo, adota um tom quase solene em detrimento da conhecida extravagância e dos conturbados relacionamentos. Traços de personalidade que de forma alguma reduziriam a sua importância artística ou a corajosa e incansável luta contra a hipocrisia da sociedade vitoriana. Ao contrário, engrandeceriam-no ao humanizá-lo.
Também senti falta de ver retratada a sua infância e o relacionamento com a mãe, que acredito terem sido fundamentais na formação da personalidade dessa figura que estava anos-luz à frente do seu tempo. Mas é compreensível a opção pelo recorte de um momento chave nessa trajetória, evitando assim incorrer no erro comum a muitas cinebiografias que pretendem expor uma vida do berço ao túmulo.
Contudo, ainda que apresente a história de forma burocrática, quase como numa aula de literatura, o diretor consegue fazer o filme interessante de muitas formas.
As diversas citações que permeiam os diálogos conquistam por apresentar o biografado pelas suas próprias palavras, dotando a narrativa de certa poesia. E a analogia com o conto d'O Gigante Egoísta, narrado em off, também foi uma bela sacada.
No entanto, é inegável que a força propulsora do filme esteja no seu elenco.
Stephen Fry (Gosford Park), em adição a incrível semelhança física, compõe o dândi de uma maneira possível somente a um legítimo inglês. Seu monólogo diante do tribunal, onde discursa sobre o "amor que não ousa dizer o nome", é absolutamente comovente. Enquanto Jude Law, com carisma e sensualidade, rouba a cena como aquele que é considerado o maior responsável pela ruína de Wilde. Michael Sheen (Frost/Nixon), como o amigo fiel, e Jennifer Ehle (Orgulho e Preconceito), como a esposa resignada, também são dignos de nota.
Sem Destino
4.0 580 Assista AgoraSe em 1967 filmes como "Bonnie & Clyde" e "The Graduate" abalaram os pilares do moribundo studio system, em 1969 "Easy Rider" o implodiu definitivamente, abrindo caminho para a transgressão na Hollywood dos anos 70.
Com baixo orçamento, mas espelhando a realidade do seu contexto sociocultural, o filme obteve um excelente retorno financeiro, levando a indústria cinematográfica a importantes mudanças de paradigma.
No entanto seu maior mérito foi ter captado com perfeição os anseios e frustrações de toda uma geração, convertendo-se no seu testamento definitivo.
Mas os realizadores extrapolaram as limitações de uma simples história, elaborando um verdadeiro ensaio sobre a liberdade, abarcando-a em suas diversas possibilidades.
Cada um dos personagens representa uma forma distinta de vivenciar a própria liberdade. Desde o pacato fazendeiro com sua família, passando pelos integrantes de uma comunidade alternativa, até o inconformado advogado vivido brilhantemente por Jack Nicholson.
Inclusive há uma dicotomia no modo como os protagonistas vividos por Peter Fonda e Dennis Hopper enxergam o movimento de contracultura. Enquanto o primeiro busca autoconhecimento e tende a coletividade, o segundo se fecha numa postura hedonista.
A influência das vanguardas européias é notada tanto na crueza da fotografia, que se apóia na luz natural das locações, como na montagem agressivamente criativa. Sequências como a do pernoite no Monument Valley, ou a que ilustra uma experiência com LSD, são exemplares nesse sentido.
Todavia não renega a tradição do cinema clássico americano, e concebe a sua narrativa como um tipo de western moderno. Em dado momento, o paralelismo entre as trocas da ferradura do cavalo e do pneu da motocicleta nos indica essa intenção. O fato dos protagonistas chamarem-se Billy (The Kid) e Wyatt (Earp) também não me parece aleatório...
E pensar que um filme ainda hoje relevante teve uma produção tão conturbada, passando por diversos contratempos, que felizmente foram superados através de ótimas soluções. A icônica trilha sonora talvez seja o melhor exemplo, pois tomou forma a partir de problemas que inviabilizaram uma composição original, levando à inclusão de obras de artistas contemporâneos, que mais tarde se tornariam lendas. Fato que impressiona ainda mais quando percebemos a correlação existente entre as músicas e o que é visto na tela.
M.A.S.H.
3.5 147 Assista AgoraEm uma palavra: anárquico! Tanto na forma como no discurso.
Na forma porque, não delineando conflitos nem objetivos, ignora completamente qualquer padrão narrativo; compondo-se através de esquetes isoladas que, por mérito da montagem, resultam numa peça coesa.
Também inova ao fazer intervenções metalinguísticas através do locutor do acampamento e ao permitir que falas sobreponham-se numa mesma cena.
No discurso porque, no contexto da contracultura, busca contestar os valores vigentes através da sátira altamente corrosiva. Homofobia, machismo e preconceito racial, assuntos pertinentes naquele período de ebulição da luta pelos direitos civis, e ainda hoje polêmicos, são contemplados com maior ou menor contundência.
Por isso, ainda que a leviandade dos personagens represente um posicionamento moral em relação à guerra - esvaziando e banalizando sua importância -, defini-lo como um libelo pacifista acaba limitando a sua proposta.
Penso que o filme poderia se passar tranquilamente num acampamento de férias, sem prejuízo algum ao seu discurso. Pois a guerra não é mais do que mero pano de fundo, e mesmo assim de maneira indireta. Tanto que as cenas mais violentas do filme ocorrem durante uma partida de futebol.
Contudo, como fã desse tipo de humor a la Monty Python, digo com pesar que não consegui me conectar ao filme.
Halloween: A Noite do Terror
3.7 1,2K Assista AgoraMr. Carpenter é um dos grandes mestres na arte da construção do suspense. E aqui podemos vislumbrar uma ponta do que viria a culminar no "Enigma de Outro Mundo", sua obra-prima.
O plano-sequência inicial está entre as melhores aberturas da história do cinema.
É surpreendente o resultado obtido com tão poucos recursos. Mas, infelizmente, o roteiro, um legítimo queijo suíço, prejudica bastante a experiência. E, à excessão de alguns poucos momentos hilários, como no cosplay de Gasparzinho, também falta criatividade aos ataques - algo importante num slasher.
Talvez o que sustente o filme seja mesmo a poderosa trilha sonora que, aliada a um eficiente trabalho de câmera, brinca com a onipresença do mal e reforça a sensação de exposição.
Fico me perguntando o que teria feito deste filme um clássico...
É fato que seja uma referência para todo o subgênero slasher, com praticamente tudo que o sucedeu consistindo numa repetição da fórmula com maior ou menor grau de criatividade. Contudo, não foi inovador nem na forma nem no conteúdo, pois antes dele haviam os interessantes giallos italianos, de mestres como Mario Bava e Dario Argento.
Assim, me parece que enquanto precursor de todo um subgênero, seu maior estímulo foi o sucesso alcançado nas bilheterias por uma produção de baixíssimo custo.
Serpico
4.1 275 Assista AgoraA construção do personagem é tão impressionante quanto a desconstrução do homem que o inspirou. Acompanhamos todo o arco da transformação de um cidadão comum, dedicado e carismático, num policial bruto e amargurado, típico do cinema americano - algo como o Dirty Harry, pra ficar na mesma época.
É desnecessário elogiar o Al Pacino, mas vale mencionar uma curiosidade: depois de aceitar o papel principal, ele teria convidado o verdadeiro Frank Serpico para passar um tempo na sua casa em Nova York.
A instigante montagem da Dede Allen (Bonnie e Clyde, Um Dia de Cão, Reds) gera uma expectativa absurda ao fazer com que passemos todo o filme na iminência de um atentado contra a vida do protagonista.
Só pecou ao se repetir na exposição de algumas passagens burocráticas e desinteressantes, que até ajudam a compor o inferno vivido pelo personagem-título, mas cansam um pouco ao prolongar a duração mais do que deveria.
O experiente diretor - anterior à Nova Hollywood, mas que incorporou como poucos o espírito da geração - também acerta ao trabalhar a passagem do tempo de forma sutil e objetiva. Além de alternar planos abertos e fechados para ilustrar o isolamento e a pressão experimentada pelo personagem.
Repleto de excelentes diálogos, a última fala do filme não poderia ter sido mais significativa...
"Por que eles me deram um distintivo? Por ser um policial honesto, ou por ser imbecil o suficiente pra levar um tiro na cara?"
Sendo através dessa desolação, e da sensação de impotência diante de um sistema muito maior do que um homem sozinho seria capaz de enfrentar, que Frank Serpico se aproxima do Capitão Nascimento, ou vice-versa.
Mas entre se omitir, se corromper ou ir à luta, sabemos qual é a única escolha possível a qualquer pessoa digna de portar um distintivo.
Gêmeas
3.3 54Amor, ciúme, inveja e traição elevados a enésima potência. Uma típica tragédia rodriguiana.
Infelizmente o filme não aprofunda seus conflitos além da própria sinopse, e ao ficar entre o suspense e o drama, não alcança a plenitude em nenhum dos gêneros. A atmosfera soturna, apesar de contagiante, ao ser adotada desde o início acaba desvelando precocemente os caminhos a serem percorridos.
Muito se falou da atuação da Fernanda Torres - eficiente, mas esquemática -, porém foi o Cuoco quem realmente me tocou com o seu amargurado personagem.
Considero a trilha sonora o ponto alto do filme, sendo responsável por sustentar as passagens mais impactantes, e estando perfeitamente orquestrada com a ambientação gótica. O melancólico desfecho não seria o mesmo sem a poderosa versão de Arnaldo Antunes para o clássico Bandeira Branca.
Relatos Selvagens
4.4 2,9K Assista AgoraA mão do Almodóvar no projeto é inegável, mas Damián Szifrón tem personalidade e demonstra grande domínio da mise en scène, conseguindo manter o equilíbrio entre as histórias, ainda que, como em toda narrativa em episódios, algumas acabem sendo mais efetivas que outras.
Tamanha é a segurança no seu discurso que presenciamos, já nos créditos iniciais, uma aproximação com as nossas origens animais. Como se quisesse deixar claro que a violência é latente e constitutiva da nossa natureza, estando acima de quaisquer fatores sociais.
E na sequência, com "Las ratas", esbanja maturidade e conhecimento da complexidade humana, quando mostra uma pessoa, com todas as razões para se vingar, mantendo-se imune aos instintos violentos, enquanto outra, sem nenhuma relação com o caso em questão, se revela bestial.
"Pasternak", o episódio de abertura, flertando com o absurdo, procura estabelecer imediatamente um pacto de aceitação do espectador para com as histórias que, apesar de plausíveis, extrapolam a realidade; num exagero que enfatiza a mensagem e traz uma bem-vinda camada de humor negro.
Já "Bombita", apesar de previsível, ao tratar da impotência do cidadão comum diante de um sistema burocrático, ecoa a obra de Franz Kafka e tem grande potencial de identificação junto aos brasileiros.
Enquanto "La propuesta", em meio a uma radiografia das estruturas de corrupção da sociedade, surpreende ao deixar o seu verdadeiro protagonista em segundo plano na maior parte do tempo.
"Lo màs fuerte" e "Hasta que la muerte nos separe", o terceiro e o último episódio, respectivamente, são antagônicos e complementares, pois mostram como a escolha entre a ponderação e a impulsão - aquilo que nos difere como seres humanos e a nossa natureza primitiva -, pode nos salvar ou não de um trágico círculo vicioso.
O último episódio, por sua vez, também se aproxima de "Bombita" no ponto em que seus protagonistas precisam chegar ao extremo, numa catártica ruptura com o bom senso para, somente então, alcançarem a serenidade.
No fundo, o filme é apenas uma comédia que brinca com o exagero nosso de cada dia, explorando a fragilidade da linha que separa a barbárie da civilidade. Mas causa perplexidade, e até inveja, perceber que uma comédia argentina consegue conciliar sucesso de público e qualidade cinematográfica, enquanto em terras tupiniquins, entre os grandes êxitos do gênero, reina a mediocridade em termos de forma e conteúdo.
Garota Exemplar
4.2 5,0K Assista AgoraFavorece ao filme o fato de que a adaptação do material original tenha sido realizada pela própria autora, que transpôs sua história entre os meios sem perdas significativas. Mantendo o mistério, e parte da ambiguidade, ao construí-la a partir de pontos de vista distintos - o do marido e o da esposa - que convergem na primeira reviravolta do filme.
Tendo este excelente material como base, David Fincher conduz o filme com a elegância habitual, mas é Kirk Baxter quem faz a complexa narrativa funcionar através da sua precisa montagem. Conseguindo manter a tensão ao mesmo tempo que desenvolve os personagens.
Entretanto, embora sua conhecida impassibilidade pudesse ter favorecido a ambiguidade do personagem, Ben Affleck não convence como alguém que possa ter cometido qualquer ato violento. Deficiência que se agrava sob a luz do assombroso desempenho da Rosamund Pike.
O diferencial desse filme perante seus pares do gênero é que aqui o imbróglio criminal consiste apenas na superfície, pois no fundo pretende-se discutir as consequências de criarmos personagens para nós e para os outros diariamente, abstraindo as pessoas reais por detrás da fachada.
O advogado vivivo pelo Tyler Perry se destaca exatamente por ter consciência desse jogo de aparências. Tanto que, diante do circo midiático armado em torno do drama pessoal do seu cliente, preocupa-se mais com a recuperação da empatia do mesmo junto a opinião pública do que com os aspectos jurídicos do caso.
Apesar das críticas, o título nacional me pareceu bastante coerente, pois se relaciona diretamente com a semi-biográfica série de livros escrita pelos pais da Amy. Livros esses que moldaram o caráter da personagem ao mantê-la sempre no centro das atenções e, principalmente, ao estabelecer parâmetros de perfeição intangíveis que, de certa forma, levaram-na a se perder em meio a incessante busca por ser exemplar.
Nebraska
4.1 1,0K Assista AgoraUm roteiro sensível e atores inspirados, conduzidos por um diretor que dispensa pirotecnias, ocupando-se somente de contar uma boa história, e que reafirma seu talento para extrair reflexões profundas do cotidiano aparentemente banal.
Não há maniqueísmo, os personagens transpiram verdade, sendo mesquinhos em alguns momentos e admiráveis em outros.
Enquanto acompanhamos o complexo arco dramático da família Grant, percebemos que até mesmo os coadjuvantes possuem certo relevo.
Pai e filho sabem quase nada sobre os sentimentos um do outro.
Se a princípio a jornada é creditada a teimosia e a senilidade do pai septuagenário, mais tarde seus anseios se tornam mais claros, sendo traduzidos numa frase: "Eu só queria deixar algo para os meus filhos"
Enquanto o filho, ao travar contato com o passado, aos poucos se despe de todo ressentimento, e promove uma espécie de catarse familiar.
Inclusive, há uma inversão de papeis na última sequência, onde o filho se coloca como provedor do pai, remetendo a infância, quando somos encorajados por nossos pais na busca por autonomia. Momento esse que anteriormente já havia sido sintetizado com perfeição por Renato Russo na bela canção Pais e Filhos.
É evidente que as questões familiares, especialmente a relação entre o pai e seu filho caçula, estão no cerne do roteiro, mas gravitam em seu entorno temas como as dificuldades enfrentadas no ocaso da vida e a falência do sonho americano.
Particularmente, vejo o personagem vivido pelo Bruce Dern como a personificação de um povo que se deslumbrou diante da ampla oferta de crédito e, logo em seguida, acabou mergulhado na profunda recessão econômica do início do século XXI.
Alexander Payne e seu elenco encontram o exato equilíbrio entre a melancolia e o humor. O casal Grant (Bruce Dern e June Squibb) é um espetáculo à parte. Ele, ingênuo e rabugento, cativa com facilidade. Ela, sincera e espirituosa, rouba a cena a cada aparição.
A fotografia, para além do elegante P&B, justificado pela desbotada realidade retratada, busca uma horizontalização nas cenas externas, valorizando a arquitetura das cidades interioranas e a vastidão das suas paisagens típicas.
Moonrise Kingdom
4.2 2,1K Assista AgoraSam e Suzy, cada um a sua maneira, são carentes do convívio familiar e encontram-se deslocados do meio em que vivem. E Wes Anderson só precisa de duas sequências magistrais para nos mostrar isso!
Eles se aproximam a partir dessa inadequação em comum e, num misto de rebeldia e romantismo, decidem embarcar numa aventura que causa alvoroço na pequena e resignada comunidade, aprofundando a singela relação.
Todo esse ato, que consiste na fuga do jovem casal, nos remete a clássicos como Conta Comigo e Meu Primeiro Amor, e contém os melhores momentos do filme.
A sequência do primeiro beijo e a subsequente descoberta da sexualidade, ao som de Le Temps de l'Amour, é simplesmente maravilhosa, conseguindo ser delicada e irônica ao mesmo tempo.
Uma pena que após o resgate das crianças o filme perca gradualmente seu brilhantismo, chegando a parecer um tanto atabalhoado durante a tempestade.
Interessantemente, essa derradeira tempestade rima com o momento no qual os protagonistas se conheceram, durante uma encenação teatral da Arca de Noé. Sinalizando a superação das adversidades pelo casal e a perspectiva de um futuro melhor.
Com um elenco homogêneo, Moonrise Kingdom representa uma visita nostálgica aos nossos primeiros esbarrões com o amor, quando descobrimos que éramos capazes de suspirar por outra pessoa, ficando extasiados ou arrasados em função de nossas interações com ela.
E para aqueles que sobreviverem ao dilúvio, vale à pena aguardar os créditos finais, onde o maestro Alexandre Desplat, numa brincadeira com a abertura do filme, apresenta os instrumentos utilizados na belíssima suíte "The Heroic Weather Conditions of the Universe", composta especialmente para o filme.
O Grande Hotel Budapeste
4.2 3,0KWes Anderson, que fez dos enquadramentos simétricos e travellings ortogonais sua marca registrada, impõe à sua direção uma precisão quase matemática. E é inegável que esse apuro estético às vezes distrai mais do que deveria, acabando por impossibilitar um maior envolvimento com os personagens, contudo condiz perfeitamente com o tom fabulesco do universo cinematográfico do diretor.
Sequências como a perseguição no museu e a fuga da prisão são puro deleite, levando-nos a imaginar que ele realmente se divirta fazendo seus filmes... Explicando também a facilidade com que recruta atores renomados, mesmo que para pequenas pontas, uma vez que todos parecem colaborar por puro prazer.
E o elenco em questão, uma verdadeira constelação, não se presta a nada menos que brilhar. Chegando a compensar alguns personagens que, à exceção do concierge interpretado por Ralph Fiennes, não passam de mera representação de tipos.
Outro destaque é a impecável caracterização da Tilda Swinton como uma excêntrica senhora. Foi difícil acreditar que ela estava no filme até ver o seu nome nos créditos.
A trama, em sua essência, não tem nada de excepcional - e tem consciência disso, conforme assinala no desfecho -, mas a narrativa metalinguística, algo como uma boneca russa em seus níveis de abstração, que apresenta alguém contando a história de quando outrem lhe contou uma história, é prova da sofisticação e da maturidade alcançadas pelo cineasta.
Assim, embora seus maneirismos incomodem a muitos, não reconhecê-lo como um dos diretores mais autênticos e criativos em atividade seria uma injustiça.
Invictus
3.8 805 Assista AgoraDurante a sequência de abertura somos introduzidos ao momento vivido na África do Sul, e tomamos dimensão da difícil tarefa que seria liderar um país dividido pelo preconceito e pela miséria. Onde, diante do clima hostil entre a minoria dos outrora algozes e a maioria composta por vítimas tomadas pelo ressentimento, uma simples inversão da opressão seria o esperado.
Mas, dotado de cautela e inteligência, Nelson Mandela fez do esporte um importante instrumento de reconciliação.
E o grande mérito deste filme está em conseguir transparecer a grandeza de um homem que foi a própria mudança que gostaria de ver no mundo, e se transformou numa das figuras mais importantes e inspiradoras do século XX.
Contudo, percebemos certa ingenuidade política na conclusão do filme. Em que os desavisados são levados a crer que um problema profundamente enraizado na sociedade sulafricana teria sido milagrosamente superado, quando, na verdade, sabemos que aquele episódio representa menos uma solução do que um marco da virada rumo a uma sociedade mais unida e igualitária.
Essa distorção é perfeitamente exemplificada por uma das cenas derradeiras, onde um menino negro é carregado por policiais brancos enquanto todos comemoram a vitória. Cena essa que, em virtude da apelação emocional, chega a tornar patética a até então competente direção.
Ainda sobre a direção de Clint Eastwood, vale mencionar a forma como ele nos coloca dentro de campo durante as cenas dos jogos de rugby. Fazendo com que o espectador sinta-se como mais um elemento entre os Springboks.
Morgan Freeman, habituado a interpretar personagens de tamanha envergadura, corresponde às expectativas. Enquanto Matt Damon, que passou por uma impressionante transformação física, extrai o possível de um Pienar mal explorado pelo roteiro.
Zona de Risco
4.1 82 Assista AgoraAo adotar um tom burlesco na construção e no desenvolvimento da relação entre os militares, Park Chan-wook acabou tornando-a pouco cativante.
Se optasse por privilegiar a investigação talvez tivesse rendido um thriller mais consistente. Já que a forma como ela transcorre, através de flashbacks, alternando variadas versões para uma mesma situação, mostrou-se bastante intrigante. Ainda que a certa altura tenha parecido que o diretor estava mais interessado em confundir do que em explicar, algo pouco apreciável em filmes de suspense.
Mas o humor inusitado funcionou perfeitamente naquela cena onde dois soldados de lados opostos, separados apenas por uma marcação no chão, trocam cusparadas. Assumindo a forma de uma corrosiva crítica a postura dos regimes do Norte e do Sul da Coréia.
É certo que minha experiência foi prejudicada pela alta expectativa mas, sem dúvida, o filme tem suas qualidades e vale pela coragem do diretor em enveredar pela delicada seara da divisão da Coréia.
A Irmandade da Guerra
4.1 106A realidade cruel de uma guerra nem tão fria assim... Onde seres humanos eram reduzidos a peças facilmente descartáveis nas mãos de Estados que não passavam de meros fantoches num mundo polarizado entre EUA e URSS.
Através de uma humilde e batalhadora família tomamos ciência das mazelas as quais a população foi submetida, incluindo as atrocidades perpetradas por ambos os lados do conflito.
E é justamente na perspectiva daqueles que foram as grandes vítimas do conflito - cidadãos comuns obrigados a defender ideologias das quais não faziam o menor juízo - que reside o ponto de maior interesse no filme.
Excelente, a primeira parte intercala cenas impactantes do cotidiano da guerra com o desenvolvimento dos seus personagens principais. Porém, conforme o filme caminha para seu desfecho, acaba se perdendo num melodrama desnecessário que culmina numa sequência piegas e inverossímil.
Se comparado a produções como O Resgate do Soldado Ryan e Band of Brothers as cenas de ação, repetitivas em certos momentos, podem decepcionar. Mas o resultado alcançado surpreende quando pensamos que a película foi orçada em "míseros" 13 milhões.
Solidões
4.1 46Como neófito que sou em relação a carreira do Oswaldo Montenegro me surpreendi diante desta realização. Especialmente pela sensibilidade esbanjada na encenação de cenas cotidianas, e ainda mais pelas inteligentes sacadas nos diálogos e nas letras das músicas. Tudo transborda poesia.
Infelizmente, apesar dos momentos inspirados, que isolados renderiam curtas interessantíssimos, enquanto longa o filme restringe-se a estilhaços avulsos que não chegam a compor um mosaico.
Gremlins
3.5 861 Assista AgoraMesclando comédia e terror, algo comum na década de 80, esta fascinante obra do Joe Dante (Piranha, Grito de Horror e Matinee) tem espaço garantido entre clássicos como Evil Dead e A Volta dos Mortos Vivos. A estética trash também é típica dos filmes oitentistas, contudo não a subestime, pois Chris Walas (A Mosca) - combinando marionetes, animatrônica e stop-motion - realizou um trabalho primoroso com as criaturinhas, dando personalidade a cada uma delas, especialmente o adorável Gizmo e o espevitado Stripe.
Enquanto Jerry Goldsmith (Star Trek) nos arrebata com a sua inesquecível, e agora nostálgica, trilha sonora.
No argumento de Chris Columbus (Goonies, Esqueceram de Mim e Harry Potter), originado no mito onde pequenas criaturas causariam avarias em aeronaves na Segunda Guerra, ainda é possível notar uma sutil parábola sobre a responsabilidade de se criar e educar alguém num mundo como o nosso.
Corações de Ferro
3.9 1,4K Assista AgoraO filme não empolga pela história, mas conquista pela habilidade com que recria o ambiente e a ação da Segunda Guerra de forma brutalmente realista, num momento em que os Aliados faziam sua incursão final pela Europa.
Entretanto sua maior qualidade está mesmo no elenco que compõe a tripulação do tanque de forma absolutamente convincente enquanto homens que foram soterrados ao assumir seus papeis no campo de batalha.
Ingrata seria a tarefa de ser minimamente original trabalhando com um gênero revisitado desde os primórdios do cinema. Mas, despretensiosamente, David Ayer constrói sua consistente trama abusando de todos os clichês possíveis... Estão aqui as incertezas, a desumanização, os sofrimentos, a amizade, a bravura e a honra.
Ainda assim, seu grande pecado foi a resolução improvável que deu a história, mesmo que surpreenda se pensarmos que a mesma é contada pela perspectiva dos americanos.
Pode não ser um filme memorável, mas sendo autêntico e competente naquilo que se propõe, certamente agradará aos fãs de batalhas.
Tim Maia - Não Há Nada Igual
3.6 593 Assista AgoraCom uma vida e obra tão ricas, qualquer um que se disponha a biografar o velho Tião da Tijuca já tem parte do jogo ganho... Sendo a escolha de quais elementos colocar em campo a maior dificuldade.
Assim, optando por uma síntese geral da vida e da carreira do Síndico do Brasil, ao invés de um recorte específico, e consciente de que as lacunas seriam inevitáveis, Mauro Lima consegue transpor para as telas algo da intensidade de uma trajetória pautada pelo excesso, divertindo e emocionando o público.
E graças à omissões pontuais e às elipses temporais o filme mantém o vigor narrativo por quase duas horas e meia, ainda que perca a fluidez em momentos específicos.
Mas no geral, embora o filme não decepcione, também não surpreende. Seguindo uma fórmula recorrente ele acaba sendo apenas correto, talvez até mesmo protocolar. Limitando-se ao mito e suas polêmicas, entregando muito pouco do ser humano por trás de tudo, e nada do gênio artístico e sua importância para a música brasileira.
Em verdade, o filme agrada enquanto ficção, sustentando-se nas belas músicas e na personalidade irreverente do Tim. Porém, como biografia de um dos maiores artistas do país, não é mais que superficial.
A narração em off também poderia ter sido evitada com alguma lapidação no roteiro.
O elenco, a despeito de algumas escolhas equivocadas, não compromete, e tem sua maior força nos dois atores responsáveis por encarnar o personagem título. Especialmente o Babu Santana que, provavelmente no papel da sua vida, aproveita-se da semelhança física e nos faz acreditar que estamos diante do próprio Tim Maia. Chegando a se arriscar cantando algumas músicas.
Robson Nunes, mesmo com menos espaço e uma composição mais contida, também convence, apesar do seu Tim destoar daquele interpretado pelo Babu. Mas isso é mais um problema da direção do que da atuação. O que nos remete ao Roberto Carlos vivido pelo George Sauma que, proposital ou não, soa demasiadamente caricato, destoando do conjunto.
Ida
3.7 439A fotografia é simplesmente impecável, das mais belas que já vi, sendo impossível adjetivá-la sem que se perca algo. Cada plano consiste numa pictórica e cuidadosa composição.
Outra grande qualidade do filme reside na dupla de protagonistas, que estabelece um interessante jogo interpretativo. De um lado a fascinante Agata Trzebuchowska, interpretando uma noviça de origem judia, consegue expressar tanto sentimento com tão poucas palavras. No outro extremo, a surpreendente Agata Kulesza (Sala do Suicídio) compõe, sem cair na armadilha da apatia, a amargurada tia que estimula a jovem sobrinha a questionar as próprias certezas, e acaba descobrindo a si mesma.
Ao final, logo após um breve contato com as coisas mundanas, e instigada pelo diálogo abaixo, vemos Ida renunciar conscientemente a própria liberdade, numa espécie de paradoxo do livre-arbítrio, retornando ao único lugar que ela poderia chamar de lar. Nos levando a pensar que talvez o destino tenha talhado sua vida de tal forma que realmente não houvesse outra escolha possível.
- Você já viu o mar?
- Nunca estive em lugar nenhum.
- Venha com a gente. Você nos ouve tocar, nós caminhamos na praia.
- E então?
- Então vamos comprar um cachorro, casar, ter crianças, uma casa.
- E então?
- Os aborrecimentos de sempre. Vida.
Inclusive a fotografia sinaliza metaforicamente essa impotência quando a expõe como uma peça ínfima diante da vastidão da paisagem. Com o fundo histórico completando o quadro ao trazer à tona horrores do Holocausto que exerceram inexorável influência sobre toda uma geração de órfãos sobreviventes.
Mas acredito que o roteiro tenha falhado ao retratar de forma apressada e superficial o momento em que Ida trava contato direto com os prazeres carnais, antes apenas tangenciados através da vivência alheia. Fica parecendo que a história não extrapola a própria sinopse.
A direção também perde a mão em alguns momentos, fazendo com que sequências importantes para a trama tornem-se frias e tenham seu impacto diluído.
Cão Danado
4.0 43 Assista AgoraAinda que a investigação se desdobre de forma minuciosa, o roteiro procura focar mais na humanidade dos personagens, inclusive dos criminosos - uma influência do Georges Simenon -, diferindo dos filmes policiais ocidentais, que costumam privilegiar a ação.
Há também um interessante contraponto entre este filme e o Anjo Embriagado, ambos ambientados durante o pós-guerra e afins ao neorrealismo. Se naquele acompanhamos um criminoso em seu auge e decadência, neste vemos um policial confuso quanto as suas responsabilidades e atormentado por dilemas éticos inerentes ao ofício.
O sempre competente Takashi Shimura se destaca na pele do veterano investigador Sato que, dotado de uma serenidade que só a experiência pode proporcionar, conduz o novato e impulsivo Murakami por uma turbulenta jornada de amadurecimento.
E essa relação entre mestre e pupilo é devidamente evidenciada por inteligentes diálogos e cenas excelentes como a do interrogatório da meretriz ou a da perseguição durante o jogo de basebol.
Talvez tenha faltado somente um rigor maior durante a edição, pois o filme realmente me pareceu arrastado em alguns momentos.
O Homem Nu
2.8 82Ao meu ver o filme versa particularmente sobre a nossa disposição em engajar-se na busca de sentido e justificação do inusitado e do absurdo. O que acaba gerando distorções na realidade que variam entre o trágico e o cômico.
E o velho Caravana não parecia preocupado em nos entregar mais do que uma despretensiosa comédia de costumes. Mas o material adaptado a partir da espirituosa crônica do Fernando Sabino se revela lacônico demais quando vertido num longa metragem, não oferecendo mais do que um par de cenas realmente interessantes.
Baixio das Bestas
3.5 397O cinema naturalista de Cláudio Assis irrompe numa encruzilhada de bestas humanas onde a civilização parece ser uma possibilidade distante.
E demonstra sensibilidade ao captar habilmente a estagnação da região, fazendo com que a melancólica atmosfera incomode mais que as pretensas cenas impactantes que, mesmo absolutamente grotescas, não passam de um pueril choque de realidade, e em nada agregam ao debate.
Sendo a inércia dos personagens diante daquelas condições precárias e desumanas que realmente suscita questionamentos... Por que eles não reagem? Seria o determinismo? Os agroboys também seriam vítimas/frutos do meio?
Mas é exatamente nesse ponto que notamos a fragilidade do filme, quando, sem uma base ideológica consistente, e com diálogos que se restringem a frases de efeito, ele se revela vazio, e até ingênuo. Ficando restrito à denúncia da exploração dos camponeses e da misoginia arraigada na sociedade patriarcal. O que, convenhamos, em pleno século XXI já não é mais novidade.
Entretanto, a despeito de seu ralo conteúdo, o filme tem um inegável valor estético.
O diretor trabalha ângulos e movimentos de câmera de forma criativa e pouco vista no cinema nacional. Tudo devidamente capturado pela cuidadosa lente de Walter Carvalho.
O problema é que em alguns momentos essa plasticidade acaba se opondo a proposta orgânica e realista do filme, tornando-o asséptico e causando certo distanciamento do público.
Já o elenco, em geral, é competente em extrair alguma verdade dos esquemáticos personagens. Demonstrando o que talvez seja a maior qualidade de Cláudio Assis: a condução dos atores.