Assim como multiplicou as perspectivas do problema, optar por uma escala global também impediu a exploração de nuances dos personagens, enfraquecendo seus dramas.
No entanto, embora não seja mais que mediano como filme, denota uma pesquisa criteriosa, sendo quase documental em suas observações. Certamente torna-se mais relevante ao ser ressignificado pela conjuntura diante da COVID-19.
Justiça seja feita à montagem, que jamais deixa o ritmo da narrativa cair.
O discurso dos cineastas articula uma miríade de metáforas e referências para entregar algo pulsante e genuíno. Foi realmente interessante acompanhar os personagens e a dinâmica dessa vila pitoresca: uma utopia dentro da distopia.
A trama, contudo, me pareceu mal ajambrada. Apesar dos momentos marcantes e significativos, excluído o viés político, o filme talvez não se sustentasse como obra de gênero - algo que o citado John Carpenter fazia com maestria. Eu diria que, ao trazer o subtexto para o primeiro plano, acaba funcionando menos como filme do que como panfleto.
E como panfleto, conquanto produza certa catarse, não provoca mudanças. Pior, aproxima-se daquilo que critica ao abordar o imperialismo de forma tão maniqueísta. Desumanizando os inimigos, age exatamente como os americanos quando justificam suas ofensivas externas. Não se deve confundir a reação do oprimido com a ação do opressor, porém, privando-se de uma reflexão aprofundada, corremos o risco do oprimido de hoje tornar-se o opressor de amanhã.
Seu revisionismo também remete à ingenuidade de Tarantino em filmes como "Bastardos Inglórios" e "Django Livre". Afinal, embora o cangaço permaneça como símbolo de resistência no imaginário popular, a realidade é que foi subjugado e as mazelas e estruturas de dominação continuam as mesmas.
Na esteira do sucesso de "O Exorcista", o produtor de pornochanchadas Aníbal Massaini resolve investir numa produção nacional com a mesma temática. José Mojica, por sua vez, aproveita para confrontar Zé do Caixão, que tornara-se maior que ele próprio.
A solução metalinguística do roteiro gera uma expectativa pelo embate entre criador e criatura que jamais cumpre, apesar da força imagética do ritual ocultista. Mas o filme cresce pra mim quando penso que o Zé do Caixão, aqui como entidade sobrenatural, pelas mãos dos seus lacaios, realiza o projeto de "continuidade do sangue" através da Betinha, a criança interpretada pela própria filha do cineasta, Merisol Marins.
O elenco, outro ponto positivo, conta com renomados atores da TV, algo incomum na obra do Mojica. Destaco os trabalhos de Wanda Kosmo, como a feiticeira aliada das forças do mal, e Geórgia Gomide, como a mãe atormentada por escolhas do passado.
A trama não poderia ser mais básica: uma jornada em que obstáculos são superados até que se atinja o objetivo proposto. E ao jamais nos fazer duvidar do seu êxito, o filme falha justamente em transmitir o senso de aventura. Algo agravado pela ação em tempo real e a movimentação constante, que dificultam o aprofundamento dos personagens e a consequente identificação do espectador.
Contudo, ao realçar o sublime em meio ao grotesco, o diretor supera o mero espetáculo e extrai o drama potencial num filme sobre o mais desumano dos feitos humanos.
Após a cena no caminhão, por exemplo, quando se atém ao olhar desolado de um soldado que acabara de perder um companheiro, enquanto contam piadas ao redor, nada mais precisa ser dito. Noutro momento marcante, um soldado entoa "Wayfaring Stranger" perante seu pelotão quase como uma oração, pouco antes de partirem pro combate.
Para além do inquestionável mérito da fotografia, a escolha pelo plano contínuo, narrativamente, me pareceu contribuir mais para algumas sequências do que para outras. Naquela em que a dupla atravessa o labirinto das trincheiras e o apocalíptico campo de batalha, o espectador sente-se como o terceiro homem da missão, compartilhando da confusão e da ansiedade dos protagonistas. No entanto as restrições oriundas dessa escolha implicaram facilidades no roteiro em prol do ritmo.
Por também propor uma experiência imersiva, foi comparado ao contemporâneo Dunkirk, mas se difere bastante pela estratégia. Se Nolan investe na ação, trabalhando a angústia mediante situações de completa impotência, Sam Mendes, em seus melhores momentos, foca no ambiente devastado e tomado pela desesperança; nos piores se perde entre as aspirações a um realismo intimista e a pirotecnia grandiloquente.
Retomando o aspecto poético-emotivo, num desfecho tão belo quanto singelo, um personagem contempla a foto da família aos pés de uma árvore como a do início, fechando o ciclo e podendo finalmente voltar a ser ele mesmo depois de todas as provações, ainda que momentaneamente.
o filete d'água que entalha seu caminho na rocha a planta que rompe o solo em busca do sol o pássaro aprendiz que se atira ao vazio a luz cambaleante da vela numa noite sem fim és tu, Cabíria
Ao dar espaço à subjetividade de uma partícula da massa explorada e excluída, através de um relato sensível e sincero, este filme pode mobilizar as pessoas, levando-as a enxergar os trabalhadores para além "do braço forte e da disposição para acordar cedo". Mais do que político, Arábia é humanista.
Mal havia começado o filme e já estava eu perdidamente hipnotizado pela Goldie Hawn. Incorporando uma personagem de personalidade forte com ares de ingenuidade, é impossível imaginar outrem em seu lugar. Vibrante e luminosa em sua estreia no cinema, ela estabelece um interessante contraponto a Ingrid Bergman.
Inicialmente causa estranheza ver a sueca, em seu retorno a Hollywood, no papel de uma coadjuvante desenxabida e reservada. Mas sua personagem traça um percurso de resgate da autoestima rumo à liberdade que é representativo da revolução feminina empreendida naqueles fervilhantes anos 60. Um desabrochar que remete poeticamente ao título do filme. Pouco mais de uma década depois, Cyndi Lauper cantaria "Girls Just Want To Have Fun".
Como é prazeroso ver uma comédia romântica em que as mulheres tomam a iniciativa e costumes machistas são ridicularizados. O roteiro de I.A.L. Diamond, colaborador habitual de Billy Wilder, só pecou pela ingenuidade no desfecho do personagem do Walter Matthau, contradizendo um pouco a minha perspectiva empoderadora do filme.
O roteiro é forte, a direção raivosa e a interpretação antológica, mas não se pode esquecer da montagem e da fotografia, ambas premiadas, como outras grandes virtudes componentes desta experiência. Nenhum outro filme, e obras-primas já foram feitas sobre o pugilismo, nos colocou dentro do ringue com tamanha intensidade.
Enquanto os créditos sobem a tela, fica a pergunta: seria Jake LaMotta o Dom Casmurro do Bronx? Resta a certeza de que se Touro Indomável pode ser visto como o maior Scorsese, é por nos proporcionar um mergulho na mente conturbada de um homem que toma suas escolhas com os punhos
Numa tragédia moderna, o personagem de Colin Farrell é submetido a um tormento que o destrói moralmente. Ainda que inspirado por Eurípides, a forma como Yorgos Lanthimos conduz a narrativa lembra mais o teatro de Ionesco. Não por acaso, o diretor insistiu em entrevistas que o filme é uma comédia, apesar de toda a carga de terror e sofrimento.
No fundo ele parece querer ironizar a relação do homem com o divino através da releitura do mito grego em que Agamenon é coagido pela deusa Ártemis a sacrificar sua filha Ifigênia. Algo que me remete também à mitologia judaico-cristã e suas ofertas a Deus. Em suma, o conhecido ciclo no qual o homem pratica uma imolação para obter benesses ou cobrir pecados diante da divindade.
Martin encarnaria a divindade, numa suposta onipotência. No entanto não vejo nele a figura de um demiurgo subjugando os outros personagens, punindo ações ou expiando culpas. Particularmente entendo os fatos do filme como uma elaboração sobre a impossibilidade de justificar as aleatoriedades do cotidiano, sem relação de causa e efeito, naturalmente absurdas. Restaria a meros mortais apenas a resignação, sob pena de tomar atitudes mais ilógicas que os próprios fatos na tentativa de lidar com eles.
É notória a falta que a lapidação da Sally Menke faz ao Tarantino, ele parece incapaz de dispensar qualquer linha que tenha escrito. Isso se evidencia quando seus diálogos não se revelam tão inspirados. Aqui, embora sempre mordazes, eles soam muitas vezes desinteressantes, o que naturalmente acaba se estendendo a alguns personagens.
Por mais que eu aprecie a tentativa de resolver a encenação pelos diálogos, a tensão está a anos-luz das principais referências: “No Tempo das Diligências” e “Enigma de Outro Mundo”. Até mesmo de Bastardos Inglórios, pra ficar na própria obra. Infelizmente, após esticar o quanto podia o fio do suspense, com este prestes a se romper, ele abdica do clímax por um flashback que realça detalhes já subentendidos. Ao retomar a linha narrativa, tomado pelo habitual rompante histriônico, entre o gore e o cartunesco, não causa o impacto esperado nem resta muito a dizer.
No entanto, apesar das expectativas frustradas, nem tudo foi perdido. Com este roteiro Tarantino demonstra uma maturidade em sua visão de mundo só vista antes em Jackie Brown, única adaptação da carreira. Para além do caráter metalinguístico, a mim interessa especialmente a dimensão política na relação entre o domínio da narrativa e o poder de forjar a realidade. Cientes de que relatos verossímeis valem mais que fatos, os personagens se expressam sobretudo pela mentira.
Algo pontuado magistralmente na última cena, relacionado ao pensamento do filósofo René Girard, é que a união não se deu pela afinidade, mas pelos inimigos em comum, como na própria história da formação dos Estados Unidos.
Jorge Furtado é dos cineastas brasileiros mais interessantes. Consegue ser engajado sem proselitismo, explora como poucos a interseção do afeto com o humor e tem ousadia em meio ao apelo popular.
Aqui, numa competente adaptação da peça homônima de Vianninha, entre as ilusões da juventude e a resignação da maturidade, discute o eterno ciclo de utopias que se renovam e problemas que persistem.
No fim, "ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais".
Este é considerado o contraponto natural à 'Onde Começa o Inferno', de Howard Hawks. Ambos, clássicos indiscutíveis, representariam visões dicotômicas da sociedade americana, tendo aquele surgido como resposta ideológica de republicanos. John Wayne, por exemplo, considerou inadmissível a representação do xerife amedrontado em busca de ajuda. No entanto, o propósito de Fred Zinnemann, uma vítima do nazismo, era mais traçar uma alegoria do que taxar um povo, numa tentativa de mostrar como a omissão dos indivíduos os tornava cúmplices de movimentos opressores, especificamente o macarthismo naquela época.
O roteiro de Carl Foreman também lança um olhar irônico sobre o herói mítico, aqui relutante e impelido ao papel pelas circunstâncias. Somente com a falência da comunidade é que erige essa figura individualizada, paradoxalmente representando um modelo de virtude e tendo sua existência condicionada aos vícios dos outros.
E embora tenha entrado pra história como uma espécie de manifesto político, o que nos envolve ainda hoje é a hábil construção do suspense. Com a narrativa transcorrendo em tempo real, transformando o relógio num elemento ameaçador, explora-se a angústia do protagonista na iminência de um confronto de vida ou morte.
Se algo depõe em desfavor do filme, é o seu vilão, intimidador nos relatos dos outros personagens, mas decepcionante ao surgir em tela numa sequência aquém da expectativa gerada.
"Barbarella ajudou a consolidar uma mudança no papel da mulher nas HQs. Quando surgiu, em 1962, os quadrinhos ainda viviam a onda conservadora que se fortaleceu nos anos 1950. A personagem de Jean-Claude Forest encarava suas aventuras de ficção científica combinando um ar meio trash e uma sensualidade até então sem igual.
A heroína não tinha o menor pudor de usar o seu corpo escultural para se livrar dos problemas. Dormia com aliados e inimigos, tomava a iniciativa sem cerimônia, estava no comando de si."
Na forma, almeja ser o Cidadão Kane brasileiro, mas se assenta numa miríade de cacoetes televisivos. E seu conteúdo, infelizmente, não é menos decepcionante que qualquer biografia produzida pela Globo Filmes.
Viajar, conhecer, conhecer-se, perder-se: a complexa jornada de um homem comum que encontrou seu trágico fim no Malawi, após passar por vários países em dois continentes visando "se preparar para um estudo envolvendo políticas públicas voltadas para nações pobres".
Como qualquer um, Gabriel Buchmann tem suas contradições. Entre nobres aspirações intercalam-se momentos de egoísmo e até machismo com a namorada. Ora é respeitoso e interessado pelo próximo, ora é tomado pela soberba e arrogância. Não quer ser visto como o turista típico, mas carrega um guia da Lonely Planet a tira colo. Evidentemente há uma preocupação do cineasta em equilibrar vícios e virtudes, em não canonizar seu protagonista, contudo talvez tenha faltado sutileza nalguns momentos, trabalhar mais com as áreas cinzentas.
Tanto quanto a honestidade com que retrata o amigo, surpreende na abordagem de Fellipe Barbosa a sensibilidade com que olha para as figuras humanas, ressaltando o abismo sociocultural sem explorar a miséria. É nítido o esforço de representar aqueles povos que estão a um oceano de distância de nós em toda sua diversidade. E contribui muito para isso a decisão de trabalhar com não-atores, pessoas que conviveram com o próprio biografado ao longo de sua estadia na África.
Os depoimentos, embora prejudiquem a imersão, oferecem um contraponto interessante entre o rapaz simpático e bondoso do voice over e aquele da egotrip autoilusória. Borram-se as fronteiras do espaço diegético e assim a história narrada ganha outra dimensão.
Após iniciar de forma constrangedora, retratando seu protagonista por um viés tão piegas que mal consegue defini-lo, é no segundo ato que Mel Gibson mostra a que veio, depois de um longo hiato. No campo de treinamento, o conflito do filme se estabelece ao vermos a própria sociedade autodeclarada cristã se impor como barreira aos preceitos de Cristo.
Mas, para além dessa alegoria do Cristianismo e das dificuldade da sua prática, o que mais me interessa são as contradições de uma nação que se lança à Guerra pretensamente para defender o estilo de vida e a liberdade de seu povo, mas tem dificuldades para absorver a liberdade do indivíduo.
No último ato, contudo, embora a eficiente direção proporcione alguns bons momentos, prevalecem a ação e a violência, favorecendo a tantas vezes vista narrativa de heroísmo sob a perspectiva norte-americana.
O filme que despertou acaloradas discussões no Festival de Brasília não é o carrossel de horrores pintado por um lado nem a obra-prima plasticamente instigante defendida pelo outro. Seus problemas advêm mais da fragilidade estrutural do que da "não postura política".
John David Washington como protagonista cativa desde a primeira cena, valorizando cada linha de um roteiro esculpido entre o mais puro entretenimento e um estudo sobre a identidade de grupo frente a princípios individuais.
Como filme de gênero, pintado com as tintas da charge, está entre o que de mais interessante vi recentemente. Como discurso político, não obstante certa condescendência com a autoridade policial, foi tão veemente quanto o melhor do engajado diretor. Num exercício de metalinguagem, a extensão da sua crítica vai de Griffith ao Blaxploitation.
Há que se mencionar também o ritmo da narrativa, que não se perde por um minuto sequer. Barry Alexander Brown sela seu impecável trabalho na montagem com uma incrível sequência em que dispõe paralelamente uma cerimônia de iniciação da KKK, que culmina na exibição de "O Nascimento de uma Nação", e o próprio Harry Belafonte narrando linchamentos incitados pelo filme, numa reunião da resistência negra.
Simplesmente catártico. Após muitas sinceras e ingênuas risadas, terminei o filme chorando... Talvez um mea culpa subconsciente.
Evitar comparações com o "amigão da vizinhança" do Tobey Maguire permite que se desfrute melhor da atual proposta: um coming of age com o herói completamente integrado ao universo cinematográfico da Marvel. Foi um acerto ter poupado o espectador de ver uma vez mais a origem do Cabeça de Teia, optando por focar na jornada de erros e aprendizados de um Peter Parker alinhado à geração millennials.
Não estou entre aqueles que acreditam que o Tony Stark tenha roubado o protagonismo, o último ato por si próprio contradiz esse pensamento. Sua presença como mentor de um moleque órfão em busca de referência paterna soou bastante crível pra mim. Contudo, a necessidade de contextualizar a história numa saga maior acaba ofuscando os coadjuvantes, embora revele um vilão humano e realista, nascido nos escombros da Batalha de Nova Iorque.
No geral, infelizmente a ação não empolga, falta aquela cena memorável. Mas Tom Holland revela-se promissor ao encarnar o herói entre a empolgação típica da idade e a ansiedade diante das novas demandas, divertindo dentro da fórmula estabelecida pelo estúdio.
Donny Correia para Agência Estado: "Derivado da linguagem documentária, os filmes-ensaios tornaram-se instrumento de compreensão e expressão em torno dos assuntos relacionados a grandes eventos coletivos. O soviético Dziga Vertov já havia chamado a atenção para o potencial que o cinema apresenta em se tratando de fazer e discutir política. Os “Kinocs”, nome que Vertov dava aos cineastas de sua vanguarda, deveriam estar alinhados com seu tempo e a política em torno dele, ratificando o sistema socialista da União Soviética e incitando o espectador a fazer reflexões sobre aquilo que via na tela. Não à toa que Jean-Luc Godard batizou seu coletivo de cinema político Groupe Dziga Vertov, logo após maio de 68.
O filme é o mais ambicioso projeto do coletivo, já que contou com investimento da poderosa Gaumont, o que possibilitou Jane Fonda e Yves Montand, ambos engajados na luta contra a Guerra do Vietnã, as revoluções da classe operária e a renovação da classe política. Aqui, Fonda vive uma jornalista americana correspondente em Paris. Montand vive seu marido, um veterano cineasta da nouvelle vague que não consegue financiamento para seus trabalhos autorais e precisa viver de inconvenientes comerciais para a TV.
No início do filme, ao tentar uma entrevista com um executivo de um frigorífico cujos funcionários se rebelaram e tomaram todo o local, a jornalista e seu marido acabam reféns dos manifestantes e passam a assistir didaticamente uma sorte de contradições da esquerda revolucionária. Logo, os próprios rebelados passam a agir com o autoritarismo contra o qual pensam lutar. Godard se vale de um humor ácido em cenas didáticas, como no momento em que o diretor apreendido precisa urinar com urgência, mas seus algozes o impedem de usar o banheiro para pagarem na mesma moeda o fato de que aliviar as necessidades naturais durante a jornada de trabalho era, ali, considerado um ato de procrastinação. Na realidade, os revolucionários transparecem uma imensa falta de organização, de unidade ideológica e moral, e os diretores do filme nos mostram este detalhe crucial nas várias discussões partidárias que quase colocam a perder o projeto verdadeiro da ocupação.
Godard pertence a um espectro de cineastas de vanguarda em que a prepotência estética muitas vezes foi tomada por uma genialidade aferida. Em Tudo Vai Bem, no entanto, sua lucidez analítica o fez, junto de Gorin, realizar uma autocrítica da esquerda, uma psicanálise – a verborragia do filme parece mirar o divã do espectador – às vezes fria, às vezes sarcástica e violenta. A cena final, um longo e esmerado plano-sequência que passeia pelos caixas de um supermercado multinacional é a síntese da adesão compulsória à economia do mercado e do consumo em massa. Um filósofo de esquerda faz um discurso diante de uma gôndola em que estão vários exemplares de seu livro e é criticado por uma cliente, já que tenta vender ideias libertárias como se fossem frutas numa barraca de feira. Um grupo de jovens invade o local e começa a praticar um saque de mercadorias, sem encontrar maiores resistências. Godard pinta o episódio como algo ingênuo e inútil, algo abatido pela ressaca dos anos seguintes.
O diretor também não poupa o próprio meio cinematográfico. A metalinguagem examina falácias comuns nas grandes indústrias sobretudo no que diz respeito a soluções fáceis, como ter vedetes no elenco para garantir o sucesso da fita, ou uma história de amor ser suficiente para fazer uma trama caminhar por si só."
Contágio
3.2 1,8K Assista AgoraAssim como multiplicou as perspectivas do problema, optar por uma escala global também impediu a exploração de nuances dos personagens, enfraquecendo seus dramas.
No entanto, embora não seja mais que mediano como filme, denota uma pesquisa criteriosa, sendo quase documental em suas observações. Certamente torna-se mais relevante ao ser ressignificado pela conjuntura diante da COVID-19.
Justiça seja feita à montagem, que jamais deixa o ritmo da narrativa cair.
Bacurau
4.3 2,7K Assista AgoraO discurso dos cineastas articula uma miríade de metáforas e referências para entregar algo pulsante e genuíno. Foi realmente interessante acompanhar os personagens e a dinâmica dessa vila pitoresca: uma utopia dentro da distopia.
A trama, contudo, me pareceu mal ajambrada. Apesar dos momentos marcantes e significativos, excluído o viés político, o filme talvez não se sustentasse como obra de gênero - algo que o citado John Carpenter fazia com maestria. Eu diria que, ao trazer o subtexto para o primeiro plano, acaba funcionando menos como filme do que como panfleto.
E como panfleto, conquanto produza certa catarse, não provoca mudanças. Pior, aproxima-se daquilo que critica ao abordar o imperialismo de forma tão maniqueísta. Desumanizando os inimigos, age exatamente como os americanos quando justificam suas ofensivas externas. Não se deve confundir a reação do oprimido com a ação do opressor, porém, privando-se de uma reflexão aprofundada, corremos o risco do oprimido de hoje tornar-se o opressor de amanhã.
Seu revisionismo também remete à ingenuidade de Tarantino em filmes como "Bastardos Inglórios" e "Django Livre". Afinal, embora o cangaço permaneça como símbolo de resistência no imaginário popular, a realidade é que foi subjugado e as mazelas e estruturas de dominação continuam as mesmas.
Exorcismo Negro
3.6 39Na esteira do sucesso de "O Exorcista", o produtor de pornochanchadas Aníbal Massaini resolve investir numa produção nacional com a mesma temática. José Mojica, por sua vez, aproveita para confrontar Zé do Caixão, que tornara-se maior que ele próprio.
A solução metalinguística do roteiro gera uma expectativa pelo embate entre criador e criatura que jamais cumpre, apesar da força imagética do ritual ocultista. Mas o filme cresce pra mim quando penso que o Zé do Caixão, aqui como entidade sobrenatural, pelas mãos dos seus lacaios, realiza o projeto de "continuidade do sangue" através da Betinha, a criança interpretada pela própria filha do cineasta, Merisol Marins.
O elenco, outro ponto positivo, conta com renomados atores da TV, algo incomum na obra do Mojica. Destaco os trabalhos de Wanda Kosmo, como a feiticeira aliada das forças do mal, e Geórgia Gomide, como a mãe atormentada por escolhas do passado.
O Pecado Mora ao Lado
3.7 422 Assista AgoraMarilyn Monroe.
1917
4.2 1,8K Assista AgoraA trama não poderia ser mais básica: uma jornada em que obstáculos são superados até que se atinja o objetivo proposto. E ao jamais nos fazer duvidar do seu êxito, o filme falha justamente em transmitir o senso de aventura. Algo agravado pela ação em tempo real e a movimentação constante, que dificultam o aprofundamento dos personagens e a consequente identificação do espectador.
Contudo, ao realçar o sublime em meio ao grotesco, o diretor supera o mero espetáculo e extrai o drama potencial num filme sobre o mais desumano dos feitos humanos.
Após a cena no caminhão, por exemplo, quando se atém ao olhar desolado de um soldado que acabara de perder um companheiro, enquanto contam piadas ao redor, nada mais precisa ser dito. Noutro momento marcante, um soldado entoa "Wayfaring Stranger" perante seu pelotão quase como uma oração, pouco antes de partirem pro combate.
Para além do inquestionável mérito da fotografia, a escolha pelo plano contínuo, narrativamente, me pareceu contribuir mais para algumas sequências do que para outras. Naquela em que a dupla atravessa o labirinto das trincheiras e o apocalíptico campo de batalha, o espectador sente-se como o terceiro homem da missão, compartilhando da confusão e da ansiedade dos protagonistas. No entanto as restrições oriundas dessa escolha implicaram facilidades no roteiro em prol do ritmo.
Por também propor uma experiência imersiva, foi comparado ao contemporâneo Dunkirk, mas se difere bastante pela estratégia. Se Nolan investe na ação, trabalhando a angústia mediante situações de completa impotência, Sam Mendes, em seus melhores momentos, foca no ambiente devastado e tomado pela desesperança; nos piores se perde entre as aspirações a um realismo intimista e a pirotecnia grandiloquente.
Retomando o aspecto poético-emotivo, num desfecho tão belo quanto singelo, um personagem contempla a foto da família aos pés de uma árvore como a do início, fechando o ciclo e podendo finalmente voltar a ser ele mesmo depois de todas as provações, ainda que momentaneamente.
Noites de Cabíria
4.5 381 Assista Agorao filete d'água que entalha seu caminho na rocha
a planta que rompe o solo em busca do sol
o pássaro aprendiz que se atira ao vazio
a luz cambaleante da vela numa noite sem fim
és tu, Cabíria
Arábia
4.2 167 Assista AgoraAo dar espaço à subjetividade de uma partícula da massa explorada e excluída, através de um relato sensível e sincero, este filme pode mobilizar as pessoas, levando-as a enxergar os trabalhadores para além "do braço forte e da disposição para acordar cedo". Mais do que político, Arábia é humanista.
Central do Brasil
4.1 1,8K Assista AgoraUma odisseia pelas entranhas do Brasil...
Ele busca suas raízes. Ela, a própria humanidade.
A comunhão entre eles, a alma do filme.
Flor de Cacto
3.8 26Mal havia começado o filme e já estava eu perdidamente hipnotizado pela Goldie Hawn. Incorporando uma personagem de personalidade forte com ares de ingenuidade, é impossível imaginar outrem em seu lugar. Vibrante e luminosa em sua estreia no cinema, ela estabelece um interessante contraponto a Ingrid Bergman.
Inicialmente causa estranheza ver a sueca, em seu retorno a Hollywood, no papel de uma coadjuvante desenxabida e reservada. Mas sua personagem traça um percurso de resgate da autoestima rumo à liberdade que é representativo da revolução feminina empreendida naqueles fervilhantes anos 60. Um desabrochar que remete poeticamente ao título do filme. Pouco mais de uma década depois, Cyndi Lauper cantaria "Girls Just Want To Have Fun".
Como é prazeroso ver uma comédia romântica em que as mulheres tomam a iniciativa e costumes machistas são ridicularizados. O roteiro de I.A.L. Diamond, colaborador habitual de Billy Wilder, só pecou pela ingenuidade no desfecho do personagem do Walter Matthau, contradizendo um pouco a minha perspectiva empoderadora do filme.
Touro Indomável
4.2 708 Assista AgoraO roteiro é forte, a direção raivosa e a interpretação antológica, mas não se pode esquecer da montagem e da fotografia, ambas premiadas, como outras grandes virtudes componentes desta experiência. Nenhum outro filme, e obras-primas já foram feitas sobre o pugilismo, nos colocou dentro do ringue com tamanha intensidade.
Enquanto os créditos sobem a tela, fica a pergunta: seria Jake LaMotta o Dom Casmurro do Bronx? Resta a certeza de que se Touro Indomável pode ser visto como o maior Scorsese, é por nos proporcionar um mergulho na mente conturbada de um homem que toma suas escolhas com os punhos
O Sacrifício do Cervo Sagrado
3.7 1,2K Assista AgoraNuma tragédia moderna, o personagem de Colin Farrell é submetido a um tormento que o destrói moralmente. Ainda que inspirado por Eurípides, a forma como Yorgos Lanthimos conduz a narrativa lembra mais o teatro de Ionesco. Não por acaso, o diretor insistiu em entrevistas que o filme é uma comédia, apesar de toda a carga de terror e sofrimento.
No fundo ele parece querer ironizar a relação do homem com o divino através da releitura do mito grego em que Agamenon é coagido pela deusa Ártemis a sacrificar sua filha Ifigênia. Algo que me remete também à mitologia judaico-cristã e suas ofertas a Deus. Em suma, o conhecido ciclo no qual o homem pratica uma imolação para obter benesses ou cobrir pecados diante da divindade.
Martin encarnaria a divindade, numa suposta onipotência. No entanto não vejo nele a figura de um demiurgo subjugando os outros personagens, punindo ações ou expiando culpas. Particularmente entendo os fatos do filme como uma elaboração sobre a impossibilidade de justificar as aleatoriedades do cotidiano, sem relação de causa e efeito, naturalmente absurdas. Restaria a meros mortais apenas a resignação, sob pena de tomar atitudes mais ilógicas que os próprios fatos na tentativa de lidar com eles.
Os Oito Odiados
4.1 2,4K Assista AgoraÉ notória a falta que a lapidação da Sally Menke faz ao Tarantino, ele parece incapaz de dispensar qualquer linha que tenha escrito. Isso se evidencia quando seus diálogos não se revelam tão inspirados. Aqui, embora sempre mordazes, eles soam muitas vezes desinteressantes, o que naturalmente acaba se estendendo a alguns personagens.
Por mais que eu aprecie a tentativa de resolver a encenação pelos diálogos, a tensão está a anos-luz das principais referências: “No Tempo das Diligências” e “Enigma de Outro Mundo”. Até mesmo de Bastardos Inglórios, pra ficar na própria obra. Infelizmente, após esticar o quanto podia o fio do suspense, com este prestes a se romper, ele abdica do clímax por um flashback que realça detalhes já subentendidos. Ao retomar a linha narrativa, tomado pelo habitual rompante histriônico, entre o gore e o cartunesco, não causa o impacto esperado nem resta muito a dizer.
No entanto, apesar das expectativas frustradas, nem tudo foi perdido. Com este roteiro Tarantino demonstra uma maturidade em sua visão de mundo só vista antes em Jackie Brown, única adaptação da carreira. Para além do caráter metalinguístico, a mim interessa especialmente a dimensão política na relação entre o domínio da narrativa e o poder de forjar a realidade. Cientes de que relatos verossímeis valem mais que fatos, os personagens se expressam sobretudo pela mentira.
Algo pontuado magistralmente na última cena, relacionado ao pensamento do filósofo René Girard, é que a união não se deu pela afinidade, mas pelos inimigos em comum, como na própria história da formação dos Estados Unidos.
Rasga Coração
3.5 54Jorge Furtado é dos cineastas brasileiros mais interessantes. Consegue ser engajado sem proselitismo, explora como poucos a interseção do afeto com o humor e tem ousadia em meio ao apelo popular.
Aqui, numa competente adaptação da peça homônima de Vianninha, entre as ilusões da juventude e a resignação da maturidade, discute o eterno ciclo de utopias que se renovam e problemas que persistem.
No fim, "ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais".
Matar ou Morrer
4.1 205 Assista AgoraEste é considerado o contraponto natural à 'Onde Começa o Inferno', de Howard Hawks. Ambos, clássicos indiscutíveis, representariam visões dicotômicas da sociedade americana, tendo aquele surgido como resposta ideológica de republicanos. John Wayne, por exemplo, considerou inadmissível a representação do xerife amedrontado em busca de ajuda. No entanto, o propósito de Fred Zinnemann, uma vítima do nazismo, era mais traçar uma alegoria do que taxar um povo, numa tentativa de mostrar como a omissão dos indivíduos os tornava cúmplices de movimentos opressores, especificamente o macarthismo naquela época.
O roteiro de Carl Foreman também lança um olhar irônico sobre o herói mítico, aqui relutante e impelido ao papel pelas circunstâncias. Somente com a falência da comunidade é que erige essa figura individualizada, paradoxalmente representando um modelo de virtude e tendo sua existência condicionada aos vícios dos outros.
E embora tenha entrado pra história como uma espécie de manifesto político, o que nos envolve ainda hoje é a hábil construção do suspense. Com a narrativa transcorrendo em tempo real, transformando o relógio num elemento ameaçador, explora-se a angústia do protagonista na iminência de um confronto de vida ou morte.
Se algo depõe em desfavor do filme, é o seu vilão, intimidador nos relatos dos outros personagens, mas decepcionante ao surgir em tela numa sequência aquém da expectativa gerada.
Barbarella
3.2 277 Assista Agora"Barbarella ajudou a consolidar uma mudança no papel da mulher nas HQs. Quando surgiu, em 1962, os quadrinhos ainda viviam a onda conservadora que se fortaleceu nos anos 1950. A personagem de Jean-Claude Forest encarava suas aventuras de ficção científica combinando um ar meio trash e uma sensualidade até então sem igual.
A heroína não tinha o menor pudor de usar o seu corpo escultural para se livrar dos problemas. Dormia com aliados e inimigos, tomava a iniciativa sem cerimônia, estava no comando de si."
Chatô - O Rei do Brasil
2.8 182 Assista AgoraNa forma, almeja ser o Cidadão Kane brasileiro, mas se assenta numa miríade de cacoetes televisivos. E seu conteúdo, infelizmente, não é menos decepcionante que qualquer biografia produzida pela Globo Filmes.
Gabriel e a Montanha
3.7 141 Assista AgoraViajar, conhecer, conhecer-se, perder-se: a complexa jornada de um homem comum que encontrou seu trágico fim no Malawi, após passar por vários países em dois continentes visando "se preparar para um estudo envolvendo políticas públicas voltadas para nações pobres".
Como qualquer um, Gabriel Buchmann tem suas contradições. Entre nobres aspirações intercalam-se momentos de egoísmo e até machismo com a namorada. Ora é respeitoso e interessado pelo próximo, ora é tomado pela soberba e arrogância. Não quer ser visto como o turista típico, mas carrega um guia da Lonely Planet a tira colo. Evidentemente há uma preocupação do cineasta em equilibrar vícios e virtudes, em não canonizar seu protagonista, contudo talvez tenha faltado sutileza nalguns momentos, trabalhar mais com as áreas cinzentas.
Tanto quanto a honestidade com que retrata o amigo, surpreende na abordagem de Fellipe Barbosa a sensibilidade com que olha para as figuras humanas, ressaltando o abismo sociocultural sem explorar a miséria. É nítido o esforço de representar aqueles povos que estão a um oceano de distância de nós em toda sua diversidade. E contribui muito para isso a decisão de trabalhar com não-atores, pessoas que conviveram com o próprio biografado ao longo de sua estadia na África.
Os depoimentos, embora prejudiquem a imersão, oferecem um contraponto interessante entre o rapaz simpático e bondoso do voice over e aquele da egotrip autoilusória. Borram-se as fronteiras do espaço diegético e assim a história narrada ganha outra dimensão.
Até o Último Homem
4.2 2,0K Assista AgoraApós iniciar de forma constrangedora, retratando seu protagonista por um viés tão piegas que mal consegue defini-lo, é no segundo ato que Mel Gibson mostra a que veio, depois de um longo hiato. No campo de treinamento, o conflito do filme se estabelece ao vermos a própria sociedade autodeclarada cristã se impor como barreira aos preceitos de Cristo.
Mas, para além dessa alegoria do Cristianismo e das dificuldade da sua prática, o que mais me interessa são as contradições de uma nação que se lança à Guerra pretensamente para defender o estilo de vida e a liberdade de seu povo, mas tem dificuldades para absorver a liberdade do indivíduo.
No último ato, contudo, embora a eficiente direção proporcione alguns bons momentos, prevalecem a ação e a violência, favorecendo a tantas vezes vista narrativa de heroísmo sob a perspectiva norte-americana.
Vazante
3.2 46 Assista AgoraO filme que despertou acaloradas discussões no Festival de Brasília não é o carrossel de horrores pintado por um lado nem a obra-prima plasticamente instigante defendida pelo outro. Seus problemas advêm mais da fragilidade estrutural do que da "não postura política".
Infiltrado na Klan
4.3 1,9K Assista AgoraJohn David Washington como protagonista cativa desde a primeira cena, valorizando cada linha de um roteiro esculpido entre o mais puro entretenimento e um estudo sobre a identidade de grupo frente a princípios individuais.
Como filme de gênero, pintado com as tintas da charge, está entre o que de mais interessante vi recentemente. Como discurso político, não obstante certa condescendência com a autoridade policial, foi tão veemente quanto o melhor do engajado diretor. Num exercício de metalinguagem, a extensão da sua crítica vai de Griffith ao Blaxploitation.
Há que se mencionar também o ritmo da narrativa, que não se perde por um minuto sequer. Barry Alexander Brown sela seu impecável trabalho na montagem com uma incrível sequência em que dispõe paralelamente uma cerimônia de iniciação da KKK, que culmina na exibição de "O Nascimento de uma Nação", e o próprio Harry Belafonte narrando linchamentos incitados pelo filme, numa reunião da resistência negra.
Simplesmente catártico. Após muitas sinceras e ingênuas risadas, terminei o filme chorando... Talvez um mea culpa subconsciente.
O Presidente
4.0 33 Assista AgoraLer a sinopse nos remete à peça Papa Highirte, de Vianinha. Prova de que o homem e as dinâmicas do poder não variam tanto no tempo e no espaço.
Homem-Aranha: De Volta ao Lar
3.8 1,9K Assista AgoraEvitar comparações com o "amigão da vizinhança" do Tobey Maguire permite que se desfrute melhor da atual proposta: um coming of age com o herói completamente integrado ao universo cinematográfico da Marvel. Foi um acerto ter poupado o espectador de ver uma vez mais a origem do Cabeça de Teia, optando por focar na jornada de erros e aprendizados de um Peter Parker alinhado à geração millennials.
Não estou entre aqueles que acreditam que o Tony Stark tenha roubado o protagonismo, o último ato por si próprio contradiz esse pensamento. Sua presença como mentor de um moleque órfão em busca de referência paterna soou bastante crível pra mim. Contudo, a necessidade de contextualizar a história numa saga maior acaba ofuscando os coadjuvantes, embora revele um vilão humano e realista, nascido nos escombros da Batalha de Nova Iorque.
No geral, infelizmente a ação não empolga, falta aquela cena memorável. Mas Tom Holland revela-se promissor ao encarnar o herói entre a empolgação típica da idade e a ansiedade diante das novas demandas, divertindo dentro da fórmula estabelecida pelo estúdio.
Amantes Constantes
3.6 135Branco e preto. Excitação e cansaço. 1968 e 1969.
Tudo Vai Bem
3.9 15Donny Correia para Agência Estado: "Derivado da linguagem documentária, os filmes-ensaios tornaram-se instrumento de compreensão e expressão em torno dos assuntos relacionados a grandes eventos coletivos. O soviético Dziga Vertov já havia chamado a atenção para o potencial que o cinema apresenta em se tratando de fazer e discutir política. Os “Kinocs”, nome que Vertov dava aos cineastas de sua vanguarda, deveriam estar alinhados com seu tempo e a política em torno dele, ratificando o sistema socialista da União Soviética e incitando o espectador a fazer reflexões sobre aquilo que via na tela. Não à toa que Jean-Luc Godard batizou seu coletivo de cinema político Groupe Dziga Vertov, logo após maio de 68.
O filme é o mais ambicioso projeto do coletivo, já que contou com investimento da poderosa Gaumont, o que possibilitou Jane Fonda e Yves Montand, ambos engajados na luta contra a Guerra do Vietnã, as revoluções da classe operária e a renovação da classe política. Aqui, Fonda vive uma jornalista americana correspondente em Paris. Montand vive seu marido, um veterano cineasta da nouvelle vague que não consegue financiamento para seus trabalhos autorais e precisa viver de inconvenientes comerciais para a TV.
No início do filme, ao tentar uma entrevista com um executivo de um frigorífico cujos funcionários se rebelaram e tomaram todo o local, a jornalista e seu marido acabam reféns dos manifestantes e passam a assistir didaticamente uma sorte de contradições da esquerda revolucionária. Logo, os próprios rebelados passam a agir com o autoritarismo contra o qual pensam lutar. Godard se vale de um humor ácido em cenas didáticas, como no momento em que o diretor apreendido precisa urinar com urgência, mas seus algozes o impedem de usar o banheiro para pagarem na mesma moeda o fato de que aliviar as necessidades naturais durante a jornada de trabalho era, ali, considerado um ato de procrastinação. Na realidade, os revolucionários transparecem uma imensa falta de organização, de unidade ideológica e moral, e os diretores do filme nos mostram este detalhe crucial nas várias discussões partidárias que quase colocam a perder o projeto verdadeiro da ocupação.
Godard pertence a um espectro de cineastas de vanguarda em que a prepotência estética muitas vezes foi tomada por uma genialidade aferida. Em Tudo Vai Bem, no entanto, sua lucidez analítica o fez, junto de Gorin, realizar uma autocrítica da esquerda, uma psicanálise – a verborragia do filme parece mirar o divã do espectador – às vezes fria, às vezes sarcástica e violenta. A cena final, um longo e esmerado plano-sequência que passeia pelos caixas de um supermercado multinacional é a síntese da adesão compulsória à economia do mercado e do consumo em massa. Um filósofo de esquerda faz um discurso diante de uma gôndola em que estão vários exemplares de seu livro e é criticado por uma cliente, já que tenta vender ideias libertárias como se fossem frutas numa barraca de feira. Um grupo de jovens invade o local e começa a praticar um saque de mercadorias, sem encontrar maiores resistências. Godard pinta o episódio como algo ingênuo e inútil, algo abatido pela ressaca dos anos seguintes.
O diretor também não poupa o próprio meio cinematográfico. A metalinguagem examina falácias comuns nas grandes indústrias sobretudo no que diz respeito a soluções fáceis, como ter vedetes no elenco para garantir o sucesso da fita, ou uma história de amor ser suficiente para fazer uma trama caminhar por si só."