A proposta era explorar a história de pessoas corrompidas pela ambição desenfreada numa terra sem lei. Um drama inspirado na realidade e pontuado por cenas de ação. Um interessante - e inusitado - filme de gângster numa ambientação típica dos westerns.
Contudo o roteiro preguiçoso somado a problemática montagem colocou quase tudo a perder... Até mesmo o coeso e comprometido elenco foi prejudicado pela trama artificial e mal estruturada, que em momento algum favoreceu a aproximação do público junto aos personagens, especialmente dos protagonistas. Salvam-se poucas cenas realmente boas. A maioria delas envolvendo o impagável personagem do Wagner Moura.
Um ponto curioso do filme, ainda que nem sempre funcione, é sua trilha sonora, composta por sucessos da música brega regional, proporcionando uma verdadeira imersão na "Las Vegas da Amazônia".
Talvez a reconstituição do garimpo e do seu entorno seja mesmo o grande destaque do filme. Os incríveis cenários são capturados por uma fotografia extremamente plástica que, numa paleta multicolorida, acentua elementos essenciais à história: a terra, o ouro e o sangue.
Contraditoriamente, diante do empenho do elenco e da equipe técnica, a decepção somente se acentua. Pois, com todo esse potencial, acompanhamos o filme passivamente, sem nos envolver, com a certeza de que ao se acenderem as luzes o filme não será mais do que uma lembrança descartável.
Este filme, inegavelmente, proporciona uma experiência deveras peculiar para os espectadores. Entretanto não me parece muito mais do que um exercício estético do diretor junto ao seu premiado fotógrafo. Ainda que isso se preste a representar o desmoronamento psicológico do protagonista ante a pressão constante, algo como o já visto em Cisne Negro.
É interessante notar como as pretensões autorais soam tão autorreferentes num filme que chega a ser ingênuo enquanto discussão das idiossincrasias da indústria cultural - do egocentrismo dos realizadores à arrogância dos críticos, passando pela alienação do público.
Concordo com o crítico Luiz Carlos Merten quando ele propala que o que há de bacana em diretores como Joss Whedon, Christopher Nolan e Zach Snyder é a forma como fragilizam os super-heróis, num paralelo com os semideuses da mitologia grega. Similar ao que se vê em Birdman, para desgosto de Iñárritu, onde um protagonista dotado de certos poderes, após todas as desventuras, morre metaforicamente para renascer como pássaro, através do olhar da filha.
Emma Stone, combinando fragilidade e atitude, poderia ter levado o Oscar de coadjuvante tranquilamente, sem que isso desmerecesse o competente trabalho da Patricia Arquette em Boyhood. Muito mais justo do que seria ter visto Michael Keaton premiado após um lobby criado em função de um possível reconhecimento da carreira. Não deixa de ser curioso acompanhar algumas pessoas definirem sua atuação - corajosa, mas apenas correta - como o grande papel de toda uma carreira (Beetlejuice?), como se corroborassem a trivialidade da mesma.
No fim, o filme não arrebata nem intelectual nem emocionalmente. Portanto, ao menos pra mim, como diria Domingos Oliveira, é um filme inútil.
Aquilo que inicialmente parecia um grande delírio se converte nalgo visionário à medida que ganha forma. E Jodorowsky passa de reles megalomaníaco a um verdadeiro maestro, capaz de reunir artistas ímpares em suas respectivas áreas, extraindo todo o potencial de cada um deles através do constante estímulo a transcendência criativa.
É emocionante, e ao mesmo tempo definidor de toda a jornada, o momento no qual o filho, num exercício de metalinguagem, refere-se ao projeto como uma alegoria de si próprio, ressaltando a irradiação das ideias oriundas daquela experiência por todos os filmes de ficção científica posteriores.
Cães de Aluguel e Pulp Fiction eram quase como irmãos siameses, sendo o segundo uma lapidação do que já havia sido feito no primeiro. Então, depois da aclamação de Pulp Fiction, tanto pelo público quanto pela crítica, qualquer coisa que fugisse ao estilo estabelecido anteriormente teria grande probabilidade de rejeição. Assim, independente do resultado alcançado, Tarantino merece todo o respeito por ter saído da sua zona de conforto em Jackie Brown.
Como apreciador do estilo tarantinesco, quase um gênero, sinto-me à vontade para classificar esta obra como a mais madura dentre as que ele nos ofereceu até hoje. Estão presentes os diálogos afiados, os contra-plongées, a indefectível podolatria, além do cuidado com a trilha sonora, todas marcas registradas do diretor, mas utilizadas com rara moderação. A violência, por exemplo, é trabalhada de maneira mais comedida, menos explícita. E nos diálogos o apelo pop cede lugar a uma maior significação, definidora dos seus interlocutores, o que facilita a empatia.
Diferente do habitual, a trama é construída de forma linear até chegar ao seu clímax, que nos é apresentado por diversas perspectivas, dando ao espectador a onisciência que os personagens não têm. Uma solução inteligente, mas que dilui o seu impacto. Não obstante a falta de tensão o mirabolante desfecho é bastante convincente.
A influência do noir americano e do neorrealismo italiano são evidentes nesse début do Godard, que alcança uma organicidade pulsante. É como se os personagens fossem autônomos, e o diretor se limitasse a captar suas histórias, ao invés de manipulá-los como marionetes.
Mas, particularmente para mim, o que torna o filme cativante ainda hoje é sua dupla de protagonistas. Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg exalam carisma por cada poro do corpo, e ocupam lugar de destaque entre os casais mais encantadores do cinema. A sequência no quarto é simplesmente antológica.
Não menos importante foi a abordagem libertária da personagem feminina, antenada com a nova realidade do pós guerra, algo como o que Roger Vadim havia feito com Brigitte Bardot anos antes.
A proposta era interessante: trazer Macbeth para a atualidade numa roupagem de gênero. Mas, infelizmente, sofreu com problemas de execução. Especialmente a mão pesada do diretor que, apesar de algumas cenas dignas de antologia, carece de sutileza na construção dos personagens. Tudo avança rápido demais, às vezes beirando a pieguice. Para além disso, a trama policial é de uma obviedade comprometedora.
Como mérito eu citaria o roteiro que torna os versos de Shakespeare bastante naturais na boca dos atores, a despeito de algumas atuações constrangedoras. Justiça feita à Ana Paula Arósio e ao Emiliano Queiroz. Ela, tão bela quanto intensa neste aguardado retorno. Ele, numa breve participação, protagonizando uma das melhores cenas do filme.
No fim das contas, com todos os problemas, ainda vale como exercício de gênero numa cinematografia sufocada pela sombra do Cinema Novo e pelo monopólio da Globo Filmes.
Deveras interessante a forma como o filme se apropria do atual cenário da cidade do Rio, um verdadeiro canteiro de obras, para refletir a paisagem interna dos seus personagens, em profunda transformação. A ideia, segundo a diretora, foi ocasional, tendo surgido durante o processo de escolha das locações.
Também chama a atenção a abordagem do lar, habitualmente nosso porto seguro, como algo instável e transitório. Seja na sua representação física ou afetiva. E é justamente a partir disso que a diretora aproxima dois mundos aparentemente tão distintos como Ipanema e Campo Grande.
Cabe aqui destacar a honestidade e a sensibilidade com que Sandra Kogut trata personagens e ambientes, fugindo dos arquétipos e esteriótipos habituais, respeitando toda a sua riqueza e complexidade.
Campo Grande é um filme de camadas, que se desenrola nas entrelinhas, sempre respeitando a inteligência do seu espectador. A cena em que a mãe divide um sanduíche com a filha talvez explique o que quero dizer melhor do que qualquer texto seria capaz.
Visualmente bem resolvido em certos momentos, infelizmente o filme acaba se rendendo ao padrão da Globo Filmes. Inclusive no próprio roteiro, que tem um desfecho típico dos folhetins televisivos.
O diretor, forjado nos estúdios do Projac, não esconde seu DNA, transparecendo uma exarcebada preocupação em tornar sua obra palatável ao grande público. Todavia, apesar de construir sua história sobre fiados daquela concebida por Guimarães Rosa, é feliz ao resgatar a ingenuidade das comédias protagonizadas por caipiras veacos, gênero eternizado por Mazzaropi, e entrega um filme bastante simpático.
O elenco também convence dentro do universo farsesco proposto pelo diretor.
À exceção do paralelo religioso, sobra CGI na mesma medida em que falta imaginação.
Contudo, tanto Kevin Costner, em suas breves aparições, quanto Amy Adams e Henry Cavill, como Lois Lane e Superman, acabaram me conquistando.
A opção por afastar o herói da invulnerabilidade habitual, dotando-o de certo conflito existencial, também me agradou. Assim como o fato de a DC ter fugido da linha humorística da qual a Marvel tem abusado.
Mais sensorial do que informativo, o filme proporciona uma bela imersão naquele ambiente. Mérito do excelente trabalho na captura do som, e da trilha sonora que vai da música clássica aos sons tribais, dando um acento épico a disputa. Mas convenhamos que pouco acrescenta àqueles que já tenham vivido a experiência in loco.
Como leitura da realidade retratada me agrada a relação estabelecida entre o futebol profissional e o amador. A Copa do Mundo, que naquele instante se realizava no Maracanã com toda a pompa, é sutilmente contraposta a Copa das Favelas, disputada no precário campo da Vila Olímpica de Sampaio, vizinha do Templo do Futebol.
Em tempos assombrados pelo traumático 7x1, em que questionamos a mediocridade recente do outrora fabuloso futebol arte brasileiro, a resposta talvez esteja na mecanização dos jogadores, atualmente forjados nas linhas de produção europeias, cujo único intento é formar de máquinas voltadas ao resultado. Contrastando com os infinitos campos de várzea espalhados pelo Brasil, berçários naturais de craques anônimos, movidos pela paixão e pela alegria.
Poderia ter sido somente um filme sobre a inevitabilidade das transformações e a resistência natural a elas. Ou mesmo uma simplória comédia de tipos e situações peculiares. Mas, estruturando seu roteiro a partir da referência aos lados de um vinil, mudando radicalmente o tom no meio do filme, Anna Muylaert articula ambas as vertentes para construir um estudo de personagens ao melhor estilo dos irmãos Coen.
Iniciando como uma comédia, o filme se desdobra num drama que resvala no suspense. E é bastante competente como comédia de costumes, talvez até mesmo como drama familiar, mas acaba se perdendo um pouco enquanto suspense.
Contudo a cena do quarto é uma das mais impressionantes já vistas no cinema brasileiro: valendo-se do surrealismo, ela resume a completa incapacidade dos personagens lidarem com imprevistos e mudanças. O filme poderia ter se encerrado ali.
Devido às limitações do meio a adaptação do original fez-se necessária, mas as supressões e liberdades tomadas pelo diretor afetaram negativamente os personagens, tornando-os pouco convincentes. Essa percepção ainda se agrava diante de problemas estruturais que tornam difícil acompanhar o filme, originados especialmente da montagem, que não dá tempo suficiente para que o público digira os versos do bardo inglês. Assim como também pela falta de sutileza do intérprete do Iago, personagem que é o catalisador da história.
As dificuldades constantes da produção fizeram com que momentos belíssimos se alternassem com outros esquecíveis, mas o talentoso cineasta de Cidadão Kane se revelaria através de poderosas composições de inspiração expressionista, como a do cortejo fúnebre que abre e encerra o filme.
Essa valorização da imagem consiste num importante diferencial perante grande parte das adaptações de Shakespeare que tende a enfatizar a palavra, aproximando-se em demasia da linguagem teatral. No caso de Othello porém, uma tragédia baseada em palavras que levam a mal-entendidos, tal opção acabou por diluir a força da obra de Shakespeare.
Ainda sobre a produção, houve uma situação que talvez sintetize a capacidade de improviso de Orson Welles: enquanto filmava o assassinato de Cassio, os figurinos ainda não haviam sido disponibilizados, então o diretor optou por envolver seus atores em toalhas e ambientar a sequência durante um banho turco, resultando num dos momentos mais tensos do filme.
Inspirado nas Aventuras de Tintin - especialmente na história d'O Ídolo Roubado -, parece uma amálgama entre Indiana Jones e Os Trapalhões. Arrisco-me até a dizer que a obra de Philippe de Broca definiu uma fórmula para os filmes de aventura posteriores, particularmente aqueles da linhagem do Mr. Jones.
Além da representação caricatural do Brasil, reflexo da imagem exótica que os europeus sempre tiveram de nós, em alguns momentos o filme soou como um panfleto publicitário do governo, enfatizando o progresso através da construção de Brasília e da Transamazônica - que ironicamente ainda não foi concluída e provavelmente nunca será, corroborando o slogan de eterno país do futuro.
Talvez o grande mérito do filme seja mesmo a sua montagem, que o salva das falhas do roteiro, conseguindo sustentar uma aventura divertida e descompromissada. Também deve ser valorizada a execução das cenas de ação que, numa época em que CGI estava longe de ser realidade, alcançou excelentes resultados utilizando-se massivamente de efeitos práticos.
Até então apenas um pupilo do Roger Corman, foi a partir desse trabalho, quase sempre esquecido numa filmografia repleta de obras-primas, que Coppola alcançou reconhecimento como autor dentre aqueles cineastas que despontavam no fim dos anos 60.
Um legítimo produto de sua época, ele dialoga intimamente com filmes como "Easy Riders", do mesmo ano, e "Five Easy Pieces", do ano seguinte. Em comum, além da produção fora dos padrões hollywoodianos, todos eles lidam com a possibilidade de libertação do indivíduo frente à sociedade. E "Caminhos Mal Traçados" situa-se exatamente naquele momento de transição, entre a ruptura de um e o desbunde de outro.
Sendo a divisão da protagonista entre a rejeição aos papéis que lhe foram impostos e suas necessidades como mulher - ironicamente expressas através da sua relação com o personagem do James Caan - o que move o filme. Num conflito ilustrado pelas recorrentes ligações para casa, pelo carro tipicamente familiar e, evidentemente, pela gravidez. Signos que representam a impossibilidade dela desvencilhar-se do lar.
Além de fugir das facilidades de uma hagiografia, Andrés Wood - do aclamado Machuca - consegue a façanha de acomodar toda a inquietude e intensidade de Violeta Parra num filme de pouco menos de duas horas.
A abordagem memorialística, que preserva a carga sentimental de uma trajetória pautada pelos anseios e amarguras do coração, deve seu sucesso à excelente montagem que costura os momentos cruciais dessa trajetória através de uma entrevista que parece revisá-la com o discernimento e a segurança que só a maturidade permite.
Francisca Gavilán, num trabalho quase mediúnico, dá corpo a uma personalidade tão forte de forma tão verdadeira sem jamais pender ao exagero. E ainda nos surpreende ao interpretar as canções apresentadas no filme.
Compondo, cantando, esculpindo e pintando, Violeta foi uma artista plena. Fez da própria arte a expressão de si mesma, daquilo que sentiu e pensou. Por isso foi comovente perceber que quando seus sentimentos suplantaram sua arte, impossibilitada de se expressar, ela sucumbiu ante a própria dor.
Para qualquer um que as tenha ouvido, torna-se desnecessário discorrer sobre a força e a beleza das suas composições. Mas me sinto impelido a citar os versos abaixo que, fechando o filme, soam como uma oração, e resumem a sua percepção dos altos e baixos da vida.
...Gracias a la vida que me ha dado tanto Me ha dado la risa y me ha dado el llanto Así yo distingo dicha de quebranto Los dos materiales que forman mi canto...
O tom etnográfico e quase documental da narrativa confere uma organicidade interessante ao filme, mas faltou lapidar o roteiro. A inserção do pesquisador, por exemplo, que me parece essencial à trama, soou como um exercício vazio de metalinguagem. E no geral foi difícil criar empatia por qualquer um dos personagens.
Contudo, mesmo que isoladamente, o diretor consegue construir algumas cenas tão fortes quanto belas. É admirável a carga dramática embutida em momentos como o do exótico velório ao som de música pop, ou a ida até o deserto distrito policial. Essa última sequência inclusive, apesar de cômica, expressa de forma contundente o desamparo daquele vilarejo pelo Estado. Noutro momento significante, quando a precária jangada e uma embarcação cheia de turistas dividem o mesmo quadro, são contrapostas as diferentes perspectivas que as diferentes pessoas têm sobre um mesmo lugar. Enquanto os turistas veem um paraíso que permite a fuga de suas estressantes rotinas, o morador busca superar a escassez de recursos e dar um fim digno ao corpo do desconhecido. Sendo justamente essa abordagem sincera e livre de proselitismo da dimensão social o que mais me agradou no filme.
Ao ouvir o jovem dizer que mora "na quarta curva depois da boca do rio quebrando à esquerda" me fica a impressão de que essa é a linha mais significativa do roteiro, pois ilustra perfeitamente a situação daquela comunidade desconectada do mundo, que em seu primitivismo precisa lidar com as questões da vida e da morte por conta própria.
Ao contrário do contemporâneo Corpos Ardentes, que decai consideravelmente após estabelecer o seu conflito, aqui ocorre exatamente o contrário, e a narrativa ganha fôlego após uma reviravolta quando o filme parecia caminhar para o seu desfecho.
Jack Nicholson e Jessica Lange funcionam isoladamente, mas não me convenceram como amantes. Muito embora eu acredite que isso se deva mais aos diálogos ruins e à edição truncada do que às suas atuações propriamente ditas.
A assinatura de Sven Nykvist na fotografia atesta a qualidade por si só. Mas aquela sequência inicial, na qual Frank caminha solitário à beira da estrada numa completa penumbra, é digna de menção. A manipulação do contraste e da textura é trabalho de um verdadeiro mestre.
Abdellatif Kechiche filma suas atrizes como se por elas nutrisse algum fetiche. Inicialmente essa predileção pelos closes e planos fechados incomoda um pouco, mas acaba se revelando um eficiente recurso, pois nos impõe certa intimidade, expressando através da câmera o desejo pelo toque.
Essa estratégia exigiu bastante das protagonistas, que por sua vez corresponderam com uma química simplesmente perfeita. Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, nuas e entrelaçadas, são como o yin e o yang.
Talvez haja algum exagero nas cenas de sexo... Entretanto elas são condizentes com o processo de autodescoberta de Adèle, no qual vivencia pela primeira vez uma paixão avassaladora e as possibilidades do seu corpo.
Tal como a vida, é um filme imperfeito, mas não creio que fosse possível alterá-lo sem descaracterizá-lo.
Certo é que o abismo social existente entre as personagens é determinante na relação. Emma se exaspera lentamente com a falta de cultura de Adèle, nitidamente aquém às suas expectativas, como se percebe nos encontros com os amigos. A ruptura parecia inevitável antes mesmo de haver um motivo.
Também me impressiona perceber que apesar de tratar-se de uma relação homossexual os papéis impostos pela sociedade patriarcal ainda são preservados.
O roteiro, extremamente carinhoso com seus personagens, ganha forma através da sensível direção do estreante Phillipe Barcinski, que com sutileza traduz em imagens os sentimentos desses personagens.
Ainda sobre a direção, impressiona a maneira como consegue captar a cidade de São Paulo, fazendo-a parecer um organismo vivo cuja pulsação origina-se no vai e vem dos seus habitantes.
E tratando da convergência dessas vidas que evoluem paralelamente modificando-se ao acaso, a premiada montagem de Marcio Canella soa como uma belíssima sinfonia do cotidiano.
Com uma trama policial mal-ajambrada o filme soa imperfeito como exercício de gênero, mas torna-se notável como estudo de personagens diversos reféns de uma mesma situação. Pois parecem ser as questões que gravitam em torno do desaparecimento das meninas o que mais interessa ao diretor e seu roteirista.
Por trás do crime há todo um subtexto que enriquece bastante o filme. A tensão entre o personagem do Hugh Jackman - pai de uma das meninas - e o detetive Loki - Jake Gyllenhaal numa cuidadosa composição - remete ao eterno embate entre a fé e a razão. Ambos perseguem um objetivo comum, porém por caminhos absolutamente adversos.
Já entre os pais evidencia-se o desespero e a angústia de pessoas divididas entre as necessidades individuais e a retidão moral. Esse dilema se expressa especialmente em dois momentos: num deles, no auge da tortura que vinha infligindo ao seu refém, Keller Dover toma consciência da sua hipocrisia ao perceber-se incapaz de pronunciar o trecho "assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido" enquanto reza o Pai Nosso. Noutro, o casal Birch, visivelmente desconfortável e descordando dos métodos empregados pelo amigo, decide não colaborar, mas tampouco intervém na situação.
Mas esse complexo roteiro, que flerta com a literatura de Georges Simenon no ponto em que busca focar o lado humano em detrimento do crime, peca justamente na exposição das motivações do vilão, banalizando-as e impedindo que o espectador entenda a repercussão das suas ações sobre as vítimas.
Também me desagrada a tentativa de manipulação do público através do personagem de Paul Dano. Seja nas palavras sussurradas em momentos chaves ou na exibição gratuita de maus tratos a animais. O personagem acaba reduzido a mera peça a disposição do roteirista.
Ao meu ver as maiores qualidades do filme residem na espontaneidade do roteiro e na força das atuações. Benefícios possivelmente advindos da adesão ao Dogma 95, que, ao preterir os artificialismos do cinema comercial, permite focar naquilo que é essencial: contar uma boa história.
Entretanto, nada mais natural que algumas dessas restrições tornem-se empecilhos. A inserção de coadjuvantes sem um diálogo sequer, por exemplo, denota que essa presença é mera desculpa para sustentar uma música diegética.
Já noutro caso, ainda que a observação da sexta regra do manifesto supracitado permita antever alguns desdobramentos, não deixa de ser interessante a forma como o cineasta brinca com o espectador, criando expectativas para logo em seguida subvertê-las, flertando com o trágico mas atendo-se a comédia.
Mas, diante de personagens tão ricos, penso que talvez tenha faltado um pouco mais de tensão e profundidade no relacionamento entre eles. Aquele desfecho também acabou enfraquecendo a dramaturgia com elipses e devaneios desnecessários.
Inspirado em Pacto de Sangue, este neo noir está anos-luz do clássico de 1944, contudo, realizado na década de 80, sem as amarras do Código Hays, aproveita-se da liberdade e utiliza a libido como combustível da sua trama.
Lawrence Kasdan, até então um roteirista de sucesso (Star Wars e Indiana Jones), estreia na direção com um argumento próprio encenado com muita elegância. Como deixa claro a metáfora do título, há uma profusão de cenas de sexo tórrido, mas conduzidas com tamanha habilidade que jamais se tornam explícitas ou ofensivas.
Os diálogos também merecem destaque, principalmente aqueles do primeiro ato, onde os protagonistas estabelecem um interessante jogo de sedução. Imagino que qualquer escritor sentiria orgulho daquelas linhas que ancoram o primeiro encontro entre eles, ou mesmo o flerte posterior na taberna.
Aliás, William Hurt e Kathleen Turner, iniciando na carreira, alcançam uma química invejável. Ela dá vida a uma personagem atraente e enigmática que tem lugar garantido entre as grandes femme fatales do cinema.
No entanto, a partir do ponto em que o conflito é estabelecido, o roteiro revela-se terrivelmente previsível. Um espectador mais atento pode antecipar facilmente cada desdobramento da trama, com exceção, talvez, de uma única cena no final. Final esse que abandona toda a elegância inicial para se entregar a um didatismo típico de literatura policial de banca de jornal. Felizmente, ainda preserva a ambiguidade no seu último plano.
A necessidade de filmar o sertão sempre esteve presente no imaginário dos cineastas brasileiros, desde os tempos do Cinema Novo. Mas se lá a miséria e as revoltas sociais eram o foco, aqui o que interessa são os dramas individuais. Utiliza-se o sertão menos como tema do que como ambiente.
Acompanhamos três histórias entrelaçadas. Histórias femininas, basicamente. Pois embora os homens estejam sempre presentes, são as mulheres que dão o tom através de seus próprios tormentos: Querência se entrega ao luto após mais uma perda; Das Dores sofre com a distância dos familiares; Alfonsina sente-se aprisionada pela falta de perspectivas.
No entanto, se essas mulheres são o centro das histórias, será a presença marcante de homens na vida de cada uma que despertará nelas sentimentos transformadores. Num olhar mais atento também perceberemos a influência do sertão projetada sobre as mesmas, afetando-as de diferentes formas.
Aliás, o diretor - que acumula a função de roteirista - constrói toda a narrativa sob uma perspectiva mítica, fazendo com que os personagens correspondam a arquétipos sertanejos. Assim como cada quadro da fotografia de Beto Martins também ajuda na composição desse mural da vida interiorana, no chamado Brasil Profundo.
O excelente elenco está acima de qualquer discussão, mas cabe aqui uma menção especial a Irandhir Santos. Um dos melhores atores da nossa atual safra, e protagonista dos momentos mais marcantes do filme: um onde nos extasia com uma vibrante performance ao som da banda Secos & Molhados, e outro, simplesmente sublime, onde faz aflorar toda a poesia latente no roteiro ao apresentar à sobrinha o mar de possibilidades proporcionado pela imaginação. E é no núcleo dele que reside a força motriz do filme, já que a relação entre a mulher e o sanfoneiro acaba sendo bastante simplória, e o desfecho da velha senhora soa exagerado e pouco convincente. Ainda que o diretor articule todos esses núcleos com rara destreza.
Ambos, Alfonsina e Joãzinho, somam-se ao Cego Aderaldo na lista de personagens que nos fazem divagar sobre a importância do sonho e da esperança em meio à dureza da realidade. Estabelece-se, inclusive, uma interessante dicotomia entre a religião e a arte, apresentadas como meios de superação das adversidades.
Já na bela e derradeira cena, contrapondo-se ao fatalismo da história, o diretor declara seu carinho pelas três personagens principais ao curar Querência, confortar Das Dores e libertar Alfonsina.
Dividir a história em três atos com diferentes protagonistas foi uma opção audaciosa e criativa que conferiu a ela um caráter de saga familiar. Mas teve um custo, pois, diferente do primeiro ato, com sua história forte e um protagonista cativante, os demais apresentaram um desgaste crescente quando o segundo se perdeu em meio a conflitos secundários e o último levou o filme em direção ao lugar comum. Talvez se fosse divida em dois atos somente, um focado no pai (Ryan Gosling) e outro no filho (Dane DeHaan), a história se tornasse mais coesa.
Contudo, ainda que seja problemático, o filme tem seus méritos. Especialmente o de nos fazer pensar sobre como as nossas escolhas moldam o mundo em que vivemos. Pois, embora sejamos soberanos sobre nossas próprias vidas, nossos atos sempre irão reverberar sobre a vida de outras pessoas, podendo gerar consequências irremediáveis. Como bem disse John Donne: "Nenhum homem é uma ilha."
A trilha sonora composta pelo ex-vocalista do Faith No More também funciona muito bem. Delicada e envolvente ela consegue transmitir as intenções do cineasta sem sobrepô-las.
Serra Pelada
3.6 353 Assista AgoraA proposta era explorar a história de pessoas corrompidas pela ambição desenfreada numa terra sem lei. Um drama inspirado na realidade e pontuado por cenas de ação. Um interessante - e inusitado - filme de gângster numa ambientação típica dos westerns.
Contudo o roteiro preguiçoso somado a problemática montagem colocou quase tudo a perder... Até mesmo o coeso e comprometido elenco foi prejudicado pela trama artificial e mal estruturada, que em momento algum favoreceu a aproximação do público junto aos personagens, especialmente dos protagonistas.
Salvam-se poucas cenas realmente boas. A maioria delas envolvendo o impagável personagem do Wagner Moura.
Um ponto curioso do filme, ainda que nem sempre funcione, é sua trilha sonora, composta por sucessos da música brega regional, proporcionando uma verdadeira imersão na "Las Vegas da Amazônia".
Talvez a reconstituição do garimpo e do seu entorno seja mesmo o grande destaque do filme. Os incríveis cenários são capturados por uma fotografia extremamente plástica que, numa paleta multicolorida, acentua elementos essenciais à história: a terra, o ouro e o sangue.
Contraditoriamente, diante do empenho do elenco e da equipe técnica, a decepção somente se acentua. Pois, com todo esse potencial, acompanhamos o filme passivamente, sem nos envolver, com a certeza de que ao se acenderem as luzes o filme não será mais do que uma lembrança descartável.
Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)
3.8 3,4K Assista AgoraEste filme, inegavelmente, proporciona uma experiência deveras peculiar para os espectadores. Entretanto não me parece muito mais do que um exercício estético do diretor junto ao seu premiado fotógrafo. Ainda que isso se preste a representar o desmoronamento psicológico do protagonista ante a pressão constante, algo como o já visto em Cisne Negro.
É interessante notar como as pretensões autorais soam tão autorreferentes num filme que chega a ser ingênuo enquanto discussão das idiossincrasias da indústria cultural - do egocentrismo dos realizadores à arrogância dos críticos, passando pela alienação do público.
Concordo com o crítico Luiz Carlos Merten quando ele propala que o que há de bacana em diretores como Joss Whedon, Christopher Nolan e Zach Snyder é a forma como fragilizam os super-heróis, num paralelo com os semideuses da mitologia grega. Similar ao que se vê em Birdman, para desgosto de Iñárritu, onde um protagonista dotado de certos poderes, após todas as desventuras, morre metaforicamente para renascer como pássaro, através do olhar da filha.
Emma Stone, combinando fragilidade e atitude, poderia ter levado o Oscar de coadjuvante tranquilamente, sem que isso desmerecesse o competente trabalho da Patricia Arquette em Boyhood. Muito mais justo do que seria ter visto Michael Keaton premiado após um lobby criado em função de um possível reconhecimento da carreira.
Não deixa de ser curioso acompanhar algumas pessoas definirem sua atuação - corajosa, mas apenas correta - como o grande papel de toda uma carreira (Beetlejuice?), como se corroborassem a trivialidade da mesma.
No fim, o filme não arrebata nem intelectual nem emocionalmente. Portanto, ao menos pra mim, como diria Domingos Oliveira, é um filme inútil.
Duna de Jodorowsky
4.5 143Aquilo que inicialmente parecia um grande delírio se converte nalgo visionário à medida que ganha forma. E Jodorowsky passa de reles megalomaníaco a um verdadeiro maestro, capaz de reunir artistas ímpares em suas respectivas áreas, extraindo todo o potencial de cada um deles através do constante estímulo a transcendência criativa.
É emocionante, e ao mesmo tempo definidor de toda a jornada, o momento no qual o filho, num exercício de metalinguagem, refere-se ao projeto como uma alegoria de si próprio, ressaltando a irradiação das ideias oriundas daquela experiência por todos os filmes de ficção científica posteriores.
Jackie Brown
3.8 739 Assista AgoraCães de Aluguel e Pulp Fiction eram quase como irmãos siameses, sendo o segundo uma lapidação do que já havia sido feito no primeiro. Então, depois da aclamação de Pulp Fiction, tanto pelo público quanto pela crítica, qualquer coisa que fugisse ao estilo estabelecido anteriormente teria grande probabilidade de rejeição. Assim, independente do resultado alcançado, Tarantino merece todo o respeito por ter saído da sua zona de conforto em Jackie Brown.
Como apreciador do estilo tarantinesco, quase um gênero, sinto-me à vontade para classificar esta obra como a mais madura dentre as que ele nos ofereceu até hoje. Estão presentes os diálogos afiados, os contra-plongées, a indefectível podolatria, além do cuidado com a trilha sonora, todas marcas registradas do diretor, mas utilizadas com rara moderação.
A violência, por exemplo, é trabalhada de maneira mais comedida, menos explícita. E nos diálogos o apelo pop cede lugar a uma maior significação, definidora dos seus interlocutores, o que facilita a empatia.
Diferente do habitual, a trama é construída de forma linear até chegar ao seu clímax, que nos é apresentado por diversas perspectivas, dando ao espectador a onisciência que os personagens não têm. Uma solução inteligente, mas que dilui o seu impacto. Não obstante a falta de tensão o mirabolante desfecho é bastante convincente.
Acossado
4.1 510 Assista AgoraA influência do noir americano e do neorrealismo italiano são evidentes nesse début do Godard, que alcança uma organicidade pulsante. É como se os personagens fossem autônomos, e o diretor se limitasse a captar suas histórias, ao invés de manipulá-los como marionetes.
Mas, particularmente para mim, o que torna o filme cativante ainda hoje é sua dupla de protagonistas. Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg exalam carisma por cada poro do corpo, e ocupam lugar de destaque entre os casais mais encantadores do cinema. A sequência no quarto é simplesmente antológica.
Não menos importante foi a abordagem libertária da personagem feminina, antenada com a nova realidade do pós guerra, algo como o que Roger Vadim havia feito com Brigitte Bardot anos antes.
A Floresta Que se Move
3.1 99A proposta era interessante: trazer Macbeth para a atualidade numa roupagem de gênero. Mas, infelizmente, sofreu com problemas de execução. Especialmente a mão pesada do diretor que, apesar de algumas cenas dignas de antologia, carece de sutileza na construção dos personagens. Tudo avança rápido demais, às vezes beirando a pieguice. Para além disso, a trama policial é de uma obviedade comprometedora.
Como mérito eu citaria o roteiro que torna os versos de Shakespeare bastante naturais na boca dos atores, a despeito de algumas atuações constrangedoras.
Justiça feita à Ana Paula Arósio e ao Emiliano Queiroz. Ela, tão bela quanto intensa neste aguardado retorno. Ele, numa breve participação, protagonizando uma das melhores cenas do filme.
No fim das contas, com todos os problemas, ainda vale como exercício de gênero numa cinematografia sufocada pela sombra do Cinema Novo e pelo monopólio da Globo Filmes.
Campo Grande
3.4 45Deveras interessante a forma como o filme se apropria do atual cenário da cidade do Rio, um verdadeiro canteiro de obras, para refletir a paisagem interna dos seus personagens, em profunda transformação. A ideia, segundo a diretora, foi ocasional, tendo surgido durante o processo de escolha das locações.
Também chama a atenção a abordagem do lar, habitualmente nosso porto seguro, como algo instável e transitório. Seja na sua representação física ou afetiva. E é justamente a partir disso que a diretora aproxima dois mundos aparentemente tão distintos como Ipanema e Campo Grande.
Cabe aqui destacar a honestidade e a sensibilidade com que Sandra Kogut trata personagens e ambientes, fugindo dos arquétipos e esteriótipos habituais, respeitando toda a sua riqueza e complexidade.
Campo Grande é um filme de camadas, que se desenrola nas entrelinhas, sempre respeitando a inteligência do seu espectador. A cena em que a mãe divide um sanduíche com a filha talvez explique o que quero dizer melhor do que qualquer texto seria capaz.
Meus Dois Amores
2.7 31Visualmente bem resolvido em certos momentos, infelizmente o filme acaba se rendendo ao padrão da Globo Filmes. Inclusive no próprio roteiro, que tem um desfecho típico dos folhetins televisivos.
O diretor, forjado nos estúdios do Projac, não esconde seu DNA, transparecendo uma exarcebada preocupação em tornar sua obra palatável ao grande público. Todavia, apesar de construir sua história sobre fiados daquela concebida por Guimarães Rosa, é feliz ao resgatar a ingenuidade das comédias protagonizadas por caipiras veacos, gênero eternizado por Mazzaropi, e entrega um filme bastante simpático.
O elenco também convence dentro do universo farsesco proposto pelo diretor.
O Homem de Aço
3.6 3,9K Assista AgoraÀ exceção do paralelo religioso, sobra CGI na mesma medida em que falta imaginação.
Contudo, tanto Kevin Costner, em suas breves aparições, quanto Amy Adams e Henry Cavill, como Lois Lane e Superman, acabaram me conquistando.
A opção por afastar o herói da invulnerabilidade habitual, dotando-o de certo conflito existencial, também me agradou. Assim como o fato de a DC ter fugido da linha humorística da qual a Marvel tem abusado.
Campo de Jogo
3.2 10Mais sensorial do que informativo, o filme proporciona uma bela imersão naquele ambiente. Mérito do excelente trabalho na captura do som, e da trilha sonora que vai da música clássica aos sons tribais, dando um acento épico a disputa.
Mas convenhamos que pouco acrescenta àqueles que já tenham vivido a experiência in loco.
Como leitura da realidade retratada me agrada a relação estabelecida entre o futebol profissional e o amador.
A Copa do Mundo, que naquele instante se realizava no Maracanã com toda a pompa, é sutilmente contraposta a Copa das Favelas, disputada no precário campo da Vila Olímpica de Sampaio, vizinha do Templo do Futebol.
Em tempos assombrados pelo traumático 7x1, em que questionamos a mediocridade recente do outrora fabuloso futebol arte brasileiro, a resposta talvez esteja na mecanização dos jogadores, atualmente forjados nas linhas de produção europeias, cujo único intento é formar de máquinas voltadas ao resultado. Contrastando com os infinitos campos de várzea espalhados pelo Brasil, berçários naturais de craques anônimos, movidos pela paixão e pela alegria.
Durval Discos
3.7 335 Assista AgoraPoderia ter sido somente um filme sobre a inevitabilidade das transformações e a resistência natural a elas. Ou mesmo uma simplória comédia de tipos e situações peculiares. Mas, estruturando seu roteiro a partir da referência aos lados de um vinil, mudando radicalmente o tom no meio do filme, Anna Muylaert articula ambas as vertentes para construir um estudo de personagens ao melhor estilo dos irmãos Coen.
Iniciando como uma comédia, o filme se desdobra num drama que resvala no suspense. E é bastante competente como comédia de costumes, talvez até mesmo como drama familiar, mas acaba se perdendo um pouco enquanto suspense.
Contudo a cena do quarto é uma das mais impressionantes já vistas no cinema brasileiro: valendo-se do surrealismo, ela resume a completa incapacidade dos personagens lidarem com imprevistos e mudanças. O filme poderia ter se encerrado ali.
Otelo
3.9 26 Assista AgoraDevido às limitações do meio a adaptação do original fez-se necessária, mas as supressões e liberdades tomadas pelo diretor afetaram negativamente os personagens, tornando-os pouco convincentes.
Essa percepção ainda se agrava diante de problemas estruturais que tornam difícil acompanhar o filme, originados especialmente da montagem, que não dá tempo suficiente para que o público digira os versos do bardo inglês. Assim como também pela falta de sutileza do intérprete do Iago, personagem que é o catalisador da história.
As dificuldades constantes da produção fizeram com que momentos belíssimos se alternassem com outros esquecíveis, mas o talentoso cineasta de Cidadão Kane se revelaria através de poderosas composições de inspiração expressionista, como a do cortejo fúnebre que abre e encerra o filme.
Essa valorização da imagem consiste num importante diferencial perante grande parte das adaptações de Shakespeare que tende a enfatizar a palavra, aproximando-se em demasia da linguagem teatral. No caso de Othello porém, uma tragédia baseada em palavras que levam a mal-entendidos, tal opção acabou por diluir a força da obra de Shakespeare.
Ainda sobre a produção, houve uma situação que talvez sintetize a capacidade de improviso de Orson Welles: enquanto filmava o assassinato de Cassio, os figurinos ainda não haviam sido disponibilizados, então o diretor optou por envolver seus atores em toalhas e ambientar a sequência durante um banho turco, resultando num dos momentos mais tensos do filme.
O Homem do Rio
3.5 22Inspirado nas Aventuras de Tintin - especialmente na história d'O Ídolo Roubado -, parece uma amálgama entre Indiana Jones e Os Trapalhões. Arrisco-me até a dizer que a obra de Philippe de Broca definiu uma fórmula para os filmes de aventura posteriores, particularmente aqueles da linhagem do Mr. Jones.
Além da representação caricatural do Brasil, reflexo da imagem exótica que os europeus sempre tiveram de nós, em alguns momentos o filme soou como um panfleto publicitário do governo, enfatizando o progresso através da construção de Brasília e da Transamazônica - que ironicamente ainda não foi concluída e provavelmente nunca será, corroborando o slogan de eterno país do futuro.
Talvez o grande mérito do filme seja mesmo a sua montagem, que o salva das falhas do roteiro, conseguindo sustentar uma aventura divertida e descompromissada. Também deve ser valorizada a execução das cenas de ação que, numa época em que CGI estava longe de ser realidade, alcançou excelentes resultados utilizando-se massivamente de efeitos práticos.
Caminhos Mal Traçados
3.7 11Até então apenas um pupilo do Roger Corman, foi a partir desse trabalho, quase sempre esquecido numa filmografia repleta de obras-primas, que Coppola alcançou reconhecimento como autor dentre aqueles cineastas que despontavam no fim dos anos 60.
Um legítimo produto de sua época, ele dialoga intimamente com filmes como "Easy Riders", do mesmo ano, e "Five Easy Pieces", do ano seguinte.
Em comum, além da produção fora dos padrões hollywoodianos, todos eles lidam com a possibilidade de libertação do indivíduo frente à sociedade. E "Caminhos Mal Traçados" situa-se exatamente naquele momento de transição, entre a ruptura de um e o desbunde de outro.
Sendo a divisão da protagonista entre a rejeição aos papéis que lhe foram impostos e suas necessidades como mulher - ironicamente expressas através da sua relação com o personagem do James Caan - o que move o filme. Num conflito ilustrado pelas recorrentes ligações para casa, pelo carro tipicamente familiar e, evidentemente, pela gravidez. Signos que representam a impossibilidade dela desvencilhar-se do lar.
Violeta Foi para o Céu
4.0 107 Assista AgoraAlém de fugir das facilidades de uma hagiografia, Andrés Wood - do aclamado Machuca - consegue a façanha de acomodar toda a inquietude e intensidade de Violeta Parra num filme de pouco menos de duas horas.
A abordagem memorialística, que preserva a carga sentimental de uma trajetória pautada pelos anseios e amarguras do coração, deve seu sucesso à excelente montagem que costura os momentos cruciais dessa trajetória através de uma entrevista que parece revisá-la com o discernimento e a segurança que só a maturidade permite.
Francisca Gavilán, num trabalho quase mediúnico, dá corpo a uma personalidade tão forte de forma tão verdadeira sem jamais pender ao exagero. E ainda nos surpreende ao interpretar as canções apresentadas no filme.
Compondo, cantando, esculpindo e pintando, Violeta foi uma artista plena. Fez da própria arte a expressão de si mesma, daquilo que sentiu e pensou. Por isso foi comovente perceber que quando seus sentimentos suplantaram sua arte, impossibilitada de se expressar, ela sucumbiu ante a própria dor.
Para qualquer um que as tenha ouvido, torna-se desnecessário discorrer sobre a força e a beleza das suas composições. Mas me sinto impelido a citar os versos abaixo que, fechando o filme, soam como uma oração, e resumem a sua percepção dos altos e baixos da vida.
...Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto...
Ventos de Agosto
3.3 73 Assista AgoraO tom etnográfico e quase documental da narrativa confere uma organicidade interessante ao filme, mas faltou lapidar o roteiro.
A inserção do pesquisador, por exemplo, que me parece essencial à trama, soou como um exercício vazio de metalinguagem. E no geral foi difícil criar empatia por qualquer um dos personagens.
Contudo, mesmo que isoladamente, o diretor consegue construir algumas cenas tão fortes quanto belas. É admirável a carga dramática embutida em momentos como o do exótico velório ao som de música pop, ou a ida até o deserto distrito policial. Essa última sequência inclusive, apesar de cômica, expressa de forma contundente o desamparo daquele vilarejo pelo Estado.
Noutro momento significante, quando a precária jangada e uma embarcação cheia de turistas dividem o mesmo quadro, são contrapostas as diferentes perspectivas que as diferentes pessoas têm sobre um mesmo lugar. Enquanto os turistas veem um paraíso que permite a fuga de suas estressantes rotinas, o morador busca superar a escassez de recursos e dar um fim digno ao corpo do desconhecido.
Sendo justamente essa abordagem sincera e livre de proselitismo da dimensão social o que mais me agradou no filme.
Ao ouvir o jovem dizer que mora "na quarta curva depois da boca do rio quebrando à esquerda" me fica a impressão de que essa é a linha mais significativa do roteiro, pois ilustra perfeitamente a situação daquela comunidade desconectada do mundo, que em seu primitivismo precisa lidar com as questões da vida e da morte por conta própria.
O Destino Bate à Sua Porta
3.6 52 Assista AgoraAo contrário do contemporâneo Corpos Ardentes, que decai consideravelmente após estabelecer o seu conflito, aqui ocorre exatamente o contrário, e a narrativa ganha fôlego após uma reviravolta quando o filme parecia caminhar para o seu desfecho.
Jack Nicholson e Jessica Lange funcionam isoladamente, mas não me convenceram como amantes. Muito embora eu acredite que isso se deva mais aos diálogos ruins e à edição truncada do que às suas atuações propriamente ditas.
A assinatura de Sven Nykvist na fotografia atesta a qualidade por si só. Mas aquela sequência inicial, na qual Frank caminha solitário à beira da estrada numa completa penumbra, é digna de menção. A manipulação do contraste e da textura é trabalho de um verdadeiro mestre.
Azul é a Cor Mais Quente
3.7 4,3K Assista AgoraAbdellatif Kechiche filma suas atrizes como se por elas nutrisse algum fetiche. Inicialmente essa predileção pelos closes e planos fechados incomoda um pouco, mas acaba se revelando um eficiente recurso, pois nos impõe certa intimidade, expressando através da câmera o desejo pelo toque.
Essa estratégia exigiu bastante das protagonistas, que por sua vez corresponderam com uma química simplesmente perfeita. Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, nuas e entrelaçadas, são como o yin e o yang.
Talvez haja algum exagero nas cenas de sexo... Entretanto elas são condizentes com o processo de autodescoberta de Adèle, no qual vivencia pela primeira vez uma paixão avassaladora e as possibilidades do seu corpo.
Tal como a vida, é um filme imperfeito, mas não creio que fosse possível alterá-lo sem descaracterizá-lo.
Certo é que o abismo social existente entre as personagens é determinante na relação. Emma se exaspera lentamente com a falta de cultura de Adèle, nitidamente aquém às suas expectativas, como se percebe nos encontros com os amigos. A ruptura parecia inevitável antes mesmo de haver um motivo.
Também me impressiona perceber que apesar de tratar-se de uma relação homossexual os papéis impostos pela sociedade patriarcal ainda são preservados.
Não Por Acaso
3.5 155O roteiro, extremamente carinhoso com seus personagens, ganha forma através da sensível direção do estreante Phillipe Barcinski, que com sutileza traduz em imagens os sentimentos desses personagens.
Ainda sobre a direção, impressiona a maneira como consegue captar a cidade de São Paulo, fazendo-a parecer um organismo vivo cuja pulsação origina-se no vai e vem dos seus habitantes.
E tratando da convergência dessas vidas que evoluem paralelamente modificando-se ao acaso, a premiada montagem de Marcio Canella soa como uma belíssima sinfonia do cotidiano.
Os Suspeitos
4.1 2,7K Assista AgoraCom uma trama policial mal-ajambrada o filme soa imperfeito como exercício de gênero, mas torna-se notável como estudo de personagens diversos reféns de uma mesma situação. Pois parecem ser as questões que gravitam em torno do desaparecimento das meninas o que mais interessa ao diretor e seu roteirista.
Por trás do crime há todo um subtexto que enriquece bastante o filme. A tensão entre o personagem do Hugh Jackman - pai de uma das meninas - e o detetive Loki - Jake Gyllenhaal numa cuidadosa composição - remete ao eterno embate entre a fé e a razão. Ambos perseguem um objetivo comum, porém por caminhos absolutamente adversos.
Já entre os pais evidencia-se o desespero e a angústia de pessoas divididas entre as necessidades individuais e a retidão moral. Esse dilema se expressa especialmente em dois momentos: num deles, no auge da tortura que vinha infligindo ao seu refém, Keller Dover toma consciência da sua hipocrisia ao perceber-se incapaz de pronunciar o trecho "assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido" enquanto reza o Pai Nosso. Noutro, o casal Birch, visivelmente desconfortável e descordando dos métodos empregados pelo amigo, decide não colaborar, mas tampouco intervém na situação.
Mas esse complexo roteiro, que flerta com a literatura de Georges Simenon no ponto em que busca focar o lado humano em detrimento do crime, peca justamente na exposição das motivações do vilão, banalizando-as e impedindo que o espectador entenda a repercussão das suas ações sobre as vítimas.
Também me desagrada a tentativa de manipulação do público através do personagem de Paul Dano. Seja nas palavras sussurradas em momentos chaves ou na exibição gratuita de maus tratos a animais. O personagem acaba reduzido a mera peça a disposição do roteirista.
Mifune
3.6 17Ao meu ver as maiores qualidades do filme residem na espontaneidade do roteiro e na força das atuações. Benefícios possivelmente advindos da adesão ao Dogma 95, que, ao preterir os artificialismos do cinema comercial, permite focar naquilo que é essencial: contar uma boa história.
Entretanto, nada mais natural que algumas dessas restrições tornem-se empecilhos. A inserção de coadjuvantes sem um diálogo sequer, por exemplo, denota que essa presença é mera desculpa para sustentar uma música diegética.
Já noutro caso, ainda que a observação da sexta regra do manifesto supracitado permita antever alguns desdobramentos, não deixa de ser interessante a forma como o cineasta brinca com o espectador, criando expectativas para logo em seguida subvertê-las, flertando com o trágico mas atendo-se a comédia.
Mas, diante de personagens tão ricos, penso que talvez tenha faltado um pouco mais de tensão e profundidade no relacionamento entre eles. Aquele desfecho também acabou enfraquecendo a dramaturgia com elipses e devaneios desnecessários.
Corpos Ardentes
3.7 109 Assista AgoraInspirado em Pacto de Sangue, este neo noir está anos-luz do clássico de 1944, contudo, realizado na década de 80, sem as amarras do Código Hays, aproveita-se da liberdade e utiliza a libido como combustível da sua trama.
Lawrence Kasdan, até então um roteirista de sucesso (Star Wars e Indiana Jones), estreia na direção com um argumento próprio encenado com muita elegância.
Como deixa claro a metáfora do título, há uma profusão de cenas de sexo tórrido, mas conduzidas com tamanha habilidade que jamais se tornam explícitas ou ofensivas.
Os diálogos também merecem destaque, principalmente aqueles do primeiro ato, onde os protagonistas estabelecem um interessante jogo de sedução. Imagino que qualquer escritor sentiria orgulho daquelas linhas que ancoram o primeiro encontro entre eles, ou mesmo o flerte posterior na taberna.
Aliás, William Hurt e Kathleen Turner, iniciando na carreira, alcançam uma química invejável. Ela dá vida a uma personagem atraente e enigmática que tem lugar garantido entre as grandes femme fatales do cinema.
No entanto, a partir do ponto em que o conflito é estabelecido, o roteiro revela-se terrivelmente previsível. Um espectador mais atento pode antecipar facilmente cada desdobramento da trama, com exceção, talvez, de uma única cena no final. Final esse que abandona toda a elegância inicial para se entregar a um didatismo típico de literatura policial de banca de jornal. Felizmente, ainda preserva a ambiguidade no seu último plano.
A História da Eternidade
4.3 448A necessidade de filmar o sertão sempre esteve presente no imaginário dos cineastas brasileiros, desde os tempos do Cinema Novo. Mas se lá a miséria e as revoltas sociais eram o foco, aqui o que interessa são os dramas individuais. Utiliza-se o sertão menos como tema do que como ambiente.
Acompanhamos três histórias entrelaçadas. Histórias femininas, basicamente. Pois embora os homens estejam sempre presentes, são as mulheres que dão o tom através de seus próprios tormentos: Querência se entrega ao luto após mais uma perda; Das Dores sofre com a distância dos familiares; Alfonsina sente-se aprisionada pela falta de perspectivas.
No entanto, se essas mulheres são o centro das histórias, será a presença marcante de homens na vida de cada uma que despertará nelas sentimentos transformadores.
Num olhar mais atento também perceberemos a influência do sertão projetada sobre as mesmas, afetando-as de diferentes formas.
Aliás, o diretor - que acumula a função de roteirista - constrói toda a narrativa sob uma perspectiva mítica, fazendo com que os personagens correspondam a arquétipos sertanejos. Assim como cada quadro da fotografia de Beto Martins também ajuda na composição desse mural da vida interiorana, no chamado Brasil Profundo.
O excelente elenco está acima de qualquer discussão, mas cabe aqui uma menção especial a Irandhir Santos. Um dos melhores atores da nossa atual safra, e protagonista dos momentos mais marcantes do filme: um onde nos extasia com uma vibrante performance ao som da banda Secos & Molhados, e outro, simplesmente sublime, onde faz aflorar toda a poesia latente no roteiro ao apresentar à sobrinha o mar de possibilidades proporcionado pela imaginação.
E é no núcleo dele que reside a força motriz do filme, já que a relação entre a mulher e o sanfoneiro acaba sendo bastante simplória, e o desfecho da velha senhora soa exagerado e pouco convincente. Ainda que o diretor articule todos esses núcleos com rara destreza.
Ambos, Alfonsina e Joãzinho, somam-se ao Cego Aderaldo na lista de personagens que nos fazem divagar sobre a importância do sonho e da esperança em meio à dureza da realidade. Estabelece-se, inclusive, uma interessante dicotomia entre a religião e a arte, apresentadas como meios de superação das adversidades.
Já na bela e derradeira cena, contrapondo-se ao fatalismo da história, o diretor declara seu carinho pelas três personagens principais ao curar Querência, confortar Das Dores e libertar Alfonsina.
O Lugar Onde Tudo Termina
3.7 857 Assista AgoraDividir a história em três atos com diferentes protagonistas foi uma opção audaciosa e criativa que conferiu a ela um caráter de saga familiar. Mas teve um custo, pois, diferente do primeiro ato, com sua história forte e um protagonista cativante, os demais apresentaram um desgaste crescente quando o segundo se perdeu em meio a conflitos secundários e o último levou o filme em direção ao lugar comum.
Talvez se fosse divida em dois atos somente, um focado no pai (Ryan Gosling) e outro no filho (Dane DeHaan), a história se tornasse mais coesa.
Contudo, ainda que seja problemático, o filme tem seus méritos. Especialmente o de nos fazer pensar sobre como as nossas escolhas moldam o mundo em que vivemos. Pois, embora sejamos soberanos sobre nossas próprias vidas, nossos atos sempre irão reverberar sobre a vida de outras pessoas, podendo gerar consequências irremediáveis.
Como bem disse John Donne: "Nenhum homem é uma ilha."
A trilha sonora composta pelo ex-vocalista do Faith No More também funciona muito bem. Delicada e envolvente ela consegue transmitir as intenções do cineasta sem sobrepô-las.