Mais um longa soviético legendado, com boa qualidade de vídeo, por obra e graça do canal CPC-UMES.
Pra um filme fantasioso infantojuvenil de 1967, envelheceu até que bem e esbanja criatividade na parte técnica, sobretudo cenografia, mas também figurino e efeitos visuais orgânicos e sem o abuso de CGI genérico e desgastado que vemos no cinema hollywoodiano atual.
Tem suas limitações graves, principalmente o personagem bobo e afetado do czar, mas no geral é uma diversão bacaninha.
Único longa metragem citado no excelente livro REALISMO CAPITALISTA, de Mark Fisher, que eu não tinha assistido de todos os muitos que o teórico inglês cita naquele livro. Valeu demais a pena e novamente a perspectiva do filme conforme descrito por Fisher o torno ainda mais pertinente.
A década de setenta (o filme é de 1974) é uma etapa rica cultural e artisticamente nos EUA, inclusive na cultura de massa, mas ali já se fazia sentir uma desconfiança do neoliberalismo que se avizinhava a partir da década seguinte. O enredo envolvendo o personagem de Warren Beatty é uma espécie de PREMONIÇÃO - aquele terror de adolescente de shopping - só que mais adulto e politizado, dirigido pelo mesmo cineasta que pouco depois faria TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE. Beatty é perseguido por uma corporação sem rosto, fora do Estado e suas instituições (mas que afeta diretamente a política institucional), uma versão mais "profissa" do que costumam dizer sobre a maçonaria.
Durante várias ocasiões do excelente e pouco divulgado GARRA DE FERRO lembrei do clássico Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Ali está o peso implacável da hierarquia familiar engessada, sob o tacão de uma figura paterna canalha e individualista, que invariavelmente vai expiar os fantasmas dos natais futuros do que ele não aceita não ter vivido quando mais novo nos filhos.
Como no romance de Dostoievski, ao que parece de fato atemporal, aqui temos uma história eminentemente masculina: o arcabouço da moral e da ambição se dá pelos vários homens, numa família cujos espermatozóides parecem só passar o cromossomo Y adiante. As mulheres são linhas auxiliares dos personagens que polarizam o dilema moral daqui e acabam por ajudar a entender como seus cônjuges lidam com afeto: no caso, a mãe e a esposa do irmãos mais velho vivo, brilhantemente interpretado por Zack Efron em performance que, de todas as lançadas no ano passado, só perde pra Emma Stone em POBRES CRIATURAS.
Efron vive o filho que tem algum juízo e tenta como pode sair da estrutura duríssima criada pelo Fiódor Karamazov da luta livre, que passa como um moedor de carne detonando filhos que vão, querendo ou não, colher os frutos físicos e mentais da imparável sede de glória do pai. Sigmund Freud e Mark Fisher adorariam esse longa. O personagem de Efron é assombrado pelos fantasmas do que os irmãos poderiam ter sido, mas a castração cultural (na figura sobretudo do pai, com a omissão cúmplice da mãe) vetou.
Tal como GUERREIRO (2011), é um filme de luta na embalagem e um drama familiar no conteúdo. A embalagem aqui se vale espertamente do mise en scene espalhafatoso e carnavalesco da luta livre, com toda a parafernália midiática feita pra vender audiência, com "provocações" em cima da desgraça da família alheia e todos os riscos do contato físico - o filme é incisivo em nós lembrar como a saúde de todo mundo aqui está em risco, mas ainda tem a inteligência de incluir especificamente a saúde mental no pacote.
Ainda poderia rasgar mais um milhão de elogios para o longa aqui, cujas limitações são pontuais: faltou mais tempo de tela para os pais de Efron, para ampliar a polarização e sua densidade dramática e moral, por exemplo. Mas no todo é um filmaço que está entrando no radar de pouca gente. Como cinéfilo, faço aqui minha parte de divulgá-lo. Você merece assistir - e GARRA DE FERRO merece ser mais visto.
Quando eu achava que já tinha visto o pior possível no tratamento hollywoodiano ao gênero oriental kaiju, esse aqui mostra que eu estava errado.
GODZILLA 2 - REI DOS MONSTROS é ainda pior que GODZILLA VERSUS KONG! O roteiro fica submerso num drama familiar do núcleo humano, com a atriz da Eleven de STRANGER THINGS à frente, que é um pé no saco e a gente nunca se importa. coloca uns atores japoneses pra fazer demagogia com a origem do Godzilla, que foi assimilada e rapinada pelo cinema estadunidense - ainda hoje há versões boas do monstrão filmadas em sua terra natal, como SHIN GODZILLA e sobretudo o recente GODZILLA MINUS ONE, que surpreendeu todo mundo pela qualidade dos efeitos visuais com pouca grana.
Aqui, no entanto, as lutas de titãs estão mergulhadas em tudo quanto é nuvem, chuva, névoa, estilhaços e etc que é pra gente nem ver direito a deficiência dos (d)efeitos visuais que já estão datados.
Uma pena, porque o GODZILLA de 2014 era bem diferente desse aqui e eu gostei bastante.
Filme soviético visto no canal CPC-UMES, mais um daqueles sessão da tarde do Leonid Gayday que vendiam ingresso como água no deserto entre os tomadores de vodka.
A premissa é legal: há diamantes escondidos em uma de doze cadeiras espalhadas por aí e três sujeitos gananciosos estão topando qualquer parada pra achar. A verve cômica pra lidar com o assunto é espertamente escolhida, muito embora uma reviravolta envolvendo morte lá pro final acabe ficando deslocada e invasiva por isso.
Enfim, é uma comediazinha esquecível, mas que dá pro gasto, o que é típico da filmografia do Gayday.
É daquela safra de ação mais John Wick que Paul Greegrass, embora não tenha a exuberância de planos longos do ATÔMICA, por exemplo.
A seu favor, um ótimo ator à frente de tudo: Denzel Washington esbanja confiança e determinação, dando uma roupagem mais intensa para um papel que depois de tantos similares (NOBODY, por exemplo) é clichezaço.
Atrapalha um pouco a falta de desafio real ao protagonista, mesmo no finalzinho quando tentam. Se seguisse mais a linha DRIVE de vez, apostando forte na direção e pouco nas palavras, seria ainda mais interessante.
Adaptação de uma excelente HQ redigida por Mark Millar (de OS SUPREMOS), aqui bastante alterada em elementos substanciais sobretudo dos personagens coadjuvantes - a relação sexualmente reprimida da Mulher Maravilha com o Superman não existe mais, idem sobre Louis Lane, Stalin teve outro desfecho e seu filho não existe na adaptação, etc.
Se na obra de Millar o anticomunismo que existe acaba sendo mais sutil e o elseworld no qual o Super é soviético fica é exibido em sua glória, aqui os produtores e roteiristas não resistiram em sucumbir à propaganda mais rastaquera, digna de olavetes. Chama a atenção, contudo, como até aqui as características demodé e inverossímeis do Super - o altruísmo, a generosidade, etc - ficam muito mais convincentes quando ele é soviético.
E que dureza pra quem for minion de bilionário ter que torcer pra Lex Luthor e sua Big Tech contra o "malvado mundo alternativo" no qual todo mundo - exceto os estadunidenses - tem a base da pirâmide de Maslow plenamente resolvida!
Roteiro inteligente e excelente performance, contida na medida certa e com sutilezas espertas, de Jeffrey Wright, compondo um personagem irascível e principalmente irônico debaixo da camada de discrição social. O destaque pra atuação dele está nas cenas de telefone, em que o editor vê ele mas os contratantes do outro lado, não.
A história sobre cooptação comercial e caricatura do negro estadunidense como fetiche da mercadoria é muito pertinente. Pena que as subtramas familiares do protagonista Monk, envolvendo o irmão gay e a mãe com alzheimer, são bem menos interessantes que o enredo central do livro que ele escreve sob pseudônimo.
O longa soviético ESTAÇÃO DE TREM PARA DOIS, visto no canal do Youtube CPC-UMES, é um exemplo de roteiro bom e boas interpretações se valendo de montagem e ideias corretas.
Começa como uma comédia boa entre um presidiário e uma garçonete, transitando daí para um romance bastante melancólico entre dois f*did*s na vida de modo que facilmente sentimos empatia por eles.
Há ainda a participação breve e marcante de Nikita Mikhalkov, além de ator também bom cineasta (embora aqui ele só seja ator).
Normalmente não gosto da filmografia de Matteo Garrone, cineasta que não se decide entre ser brutalista ou fantasioso - e tenta colar esses dois elementos de modo, a meu ver, pouco coeso. Vide sua adaptação de PINÓQUIO, por exemplo.
Seu novo longa, porém, me fisgou em cheio. Indicado ao Oscar de melhor filme internacional pela Itália EU, CAPITÃO se passa inteiro na África (um pouco no mar mediterrâneo), não tendo nada de europeu - exceto uma miragem distante para onde os senegaleses querem migrar pra fugir da miséria. Tem poucas e acertadas inclusões de elementos fantasiosos, vindos na hora certa, se aproximando bem mais do drama base da pirâmide de Maslow de um CAFARNAUM.
Elenco excelente e protagonista cativante, com destaque para o ator juvenil aludido no título, principalmente no desfecho de arrepiar. Garrone não se furta de mostrar a quantidade de agruras pelas quais os personagens tem que passar e coloca alguns elementos de humor espertamente para não deixar tudo carregado demais nas tintas dramáticas, com cenas de tortura em masmorras e gente morta de sede no deserto do Saara.
As lentes de Garrone nos guiam por uma travessia muito parecida com o longa (se bem me recordo guatemalteco) JAULA DE OURO e não é por acaso: tanto lá quanto cá, o que vemos é a fatura de séculos de colonização europeia e/ou estadunidense chegando pra gente que agora vive na miséria e se quiser alguma chance de ter condições dignas para migrar da senzala geopolítica par a casa grande, terá que passar por todo tipo de privação e humilhações.
Vai ser minha torcida pra levar o careca, embora sei perfeitamente que tem poucas chances de vitória. Mas merecia muito!
Com estreia adiada por conta da (emblemática, reveladora) greve dos atores e roteiristas em 2023, a segunda parte de DUNA foi lançada só agora nos cinemas mundiais.
A imensa maioria das adaptações do diretor canadense Denis Villeneuve - um dos melhores da geração atual - foi acertada no trânsito muito arriscado entre a obra profundamente imersa no formato literário de Frank Herbert e a linguagem audiovisual cinematográfica, conduzindo uma obra super densa para os limites dessa outra linguagem e sem apelar, como fez David Lynch, para o voice over.
Foi correto introduzir Feyd Rautha (Austin Butler, excelente) e suprimir a presença da pequena Alia Atreides dessa adaptação, além de ter uma ambientação agora muito mais focada em Arrakis e um pouco, só com a narrativa avançada, em Giedi Primo. Com isso, Villeneuve pode condensar e focar sua trama em ótimas diferenças adaptativas com o livro, dentre as quais destaca-se o dilema político e sobretudo religioso entre Stilgar e Chani, inexistente na obra base.
Há erros de adaptação (precisava mesmo limar totalmente o arco de Thufir e mudar o desfecho de Rabban, que era super marcante no livro?), porém no geral ele acerta muito. Parte técnica excelente, sobretudo a maquiagem e o figurino, muito embora eu ainda fique um pouco reticente com esse negócio de cobrir os vermos gigantes em névoa e areia - estratégia que todo mundo sabe ser pra economizar na resolução de CGI.
Por fim, chama ainda a atenção como esse épico involuntariamente vem lançado no momento da chacina sionista em Gaza e, claro, o paralelo dos fremen com os islâmicos que resistem a esse ataque (caso do Hamas) só torna a obra de Herbert ainda mais pertinente e atual, mais de meio século após sua publicação.
O filme espanhol sobre o acidente do vôo urugaio na cordilheira dos Andes não é o primeiro que assisto sobre o evento. Há um documentário, também da Netflix, sobre o mesmo assunto.
Tanto em um longa quanto no outro, confesso, há pra mim duas dificuldades: a superficialidade de como são retratados os personagens (reais) retratados, de modo que sequer sentimos a morte de pessoas que realmente pereceram na tragédia (são só cadáveres que vão se acumulando) e, principalmente, a estúpida "polêmica" envolvendo o canibalismo, às vezes me fazendo pensar que os passageiros do avião foram até meio burros de demorar tanto pra ingerirem carne pra sobreviver! Era óbvio que aquela era uma escolha etica e logicamente justificável, caramba, qual é a "dúvida"?
Felizmente, o filme melhora na segunda metade, com momentos de resiliência e superação realmente admiráveis. Mas vamos e convenhamos, o filme não é nada demais.
Longa novo do alemão Wim Wenders, que seria um documentário sobre banheiros japoneses high tech (?!) e que acabou guinando, por iniciativa do diretor, num longa de ficção.
Wenders claramente se projeta na figura do faxineiro Hirayama, um sujeito velho, disciplinado e muito apegado à beleza das coisas simples, tendo particular afeição por vegetais - escolha narrativa que vai se provar certeira com o que será explicado sobre o personagem.
Hirayama se torna de facílima empatia e identificação para nós desde os primeiros minutos em cena, fruto de uma interpretação carismática de Kōji Yakusho. Pena que o elenco secundário não acompanhe o ótimo nível do protagonista e os personagens mais jovens - dois deles são decisivos aqui - sejam rasos e até meio abobados.
É evidente que Wenders hoje fica mais à vontade para falar da velhice, se identifica ele mesmo com a figura de Hirayama, principalmente na relação com a arte - fotografia e música à frente, incluindo uso excelente, bem integrado e nada intrusivo de música ocidental que o velhinho batuta vivido por Yakusho ouve em... fitas K7!
E no fim das contas, não deixa de ser também um documentário sobre os tais banheiros ultra modernos - fazendo uma propaganda deles muito mais inteligente do que se fosse um documentário, em que pese Wenders ter se mostrado um excelente documentarista em obras como PINA, BUENA VIDA SOCIAL CLUB e principalmente no belíssimo O SAL DA TERRA, sobre o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.
Recomendado pra ir sem sede ao pote e apreciar nos detalhes. Longa singelo e cativante.
O provável vencedor do Oscar de melhor filme internacional (porque a França fez besteira de não inscrever ANATOMIA DE UMA QUEDA), dirigido pelo meu xará Jonathan Glazer, é um longa que tem na universalidade de seu tema sobre o conceito de "banalidade do mal" sua força e, no recorte histórico escolhido, sua limitação.
Glazer acerta numa abordagem fria, quase naturalista, de envolver seus personagens num enredo sobre disputas mesquinhas e estúpidas por carguinhos militares e subir o "padrão de vida" enquanto o pessoal (no caso os judeus do campo de concentração) - que a gente nunca vê - se f*de do outro lado do muro. Destaca-se no elenco a mulher meio dinheirista vivida por Sandra Huller (do já citado ANATOMIA DE UMA QUEDA, num grande ano para sua carreira).
O cineasta acerta também em conseguir arejar esse subgênero muito prolífico de "filmes sobre o holocausto" sem mostrar uma única vítima dos nazistas. Só ouvimos gritos distantes e sabemos o que acontece do outro lado do muro, um tapume que bloqueia para os soldados o fruto coletivo de sua ação política. Encerra ainda de um modo forte, sem apelação melodramática nem desfecho bobo-alegre catártico, com a emblemática descida nas escadas rumo ao subsolo da História (de onde pode re-emergir).
Pena que a limitação do filme, ainda mais dado o momento que vivemos geopoliticamente, reside justamente em seu recorte sobre holocausto judeu, um tema hiper-explorado pelo cinema (inclusive pelos premiados do Oscar, ao longe de quase cem anos de história da premiação), num tema que é aplicável para vários outros contextos. Se o campo de concentração aqui fosse a faixa de Gaza na Palestina e os soldados fossem do exército sionista, por exemplo - mas replicando o mesmíssimo enredo - Glazer teria feito de seu longa uma investida corajosa e atinada com o momento atual. E que tal esse enredo se passar em algum condomínio de luxo nos arredores da favela brasileira de Paraisópolis, trocando os soldados por "empreendedores" de classe média alta?
Em que pese essa falta de culhão para um recorte menos parafrástico sobre o tema do holocausto judeu, pela trocentésima vez alardeado pela premiação dos sionistas de Los Angeles por ser facilmente cooptável por essa ideologia, ZONA DE INTERESSE pode ser lido dessa forma mais universalizada como filme sobre o quanto um tapume na frente da desgraça alheia pode facilitar, talvez de modo decisivo, o arrivismo de classe média em cima da desgraça da coletividade.
Bradley Cooper quer obsessivamente uma estatueta do careca dourado. Pra gente ter uma ideia de como essa premiação influencia o cinema de massa, há até um termo pra definir os clichês cinematográficos pra isso: "Oscar bait".
MAESTRO, tal qual seu remake de NASCE UMA ESTRELA, é mais um "Oscar bait" do Bradley. Não vai dar certo, exceto no máximo talvez em melhor maquiagem.
Seu filme é mais uma cinebiografia que, não fosse o fator da bissexualidade (rasamente explorada) do músico biografado, não teria absolutamente nada demais. Basta comparar com o claramente superior OPPENHEIMER.
Performances corretas, com Carey Mulligan claramente roubando a cena e se mostrando a melhor do elenco. Sendo generoso, longa mediano.
À frente de um elenco secundário competente, Emma Stone tem aqui a melhor interpretação de toda a sua carreira como a infantilizada e amoral Bella.
Também é o melhor longa até o momento do diretor grego meio "surrealista" que tem sempre essa temática do cativeiro pela fantasia, caso também do bom A FAVORITA e do filme que fez sua carreira ainda na Grécia, DENTES CANINOS.
Retrato do "id" feminino, a personagem de Stone faz uma travessia que vai da infância em cativeiro (na passagem em preto e branco) até a descoberta da filosofia, do prazer (princípio norteador da personagem) e da política de mercado. A sequência no navio é particularmente boa.
Há todavia um terceiro ano meio truncado, a meu ver com pontas soltas demais e até meio abupto pelo que foi apresentado antes disso.
Excelente cenografia que flerta abertamente com o estilo steampunk e dá um certo ar de atemporalidade que caiu bem aqui.
Animação espanhola sem diálogos indicada ao Oscar de melhor animação. De vez em quando aparece um longa fora do eixo nessas indicações e foi assim que descobri, por exemplo, o arrebatador O MENINO E O MUNDO.
Este é mais um que vale a conferida, ainda que sua técnica de animação a meu ver seja muito convencional (basta comparar com o longa brasileiro já citado), parecendo desenho de TV. O roteiro sem falas, no entanto, é bem melhor que eu pensava e traz uma história madura sobre persistência e luta em relações estabelecidas que devem acabar para dar lugar a outras.
Dentro de sua proposta simples, vale o quanto pesa e acerta o alvo.
A sétima arte talvez esteja com certo esgotamento criativo, principalmente na Hollywood sequestrada pela Disney/Marvel, mas felizmente ainda há espaço para acréscimo e boas provocações, principalmente no cinema produzido fora de Los Angeles. Mesmo não sendo a reinvenção da roda, ANATOMIA DE UMA QUEDA, de Justine Triet, tem um escopo temático inusitado e atrevido o suficiente pra fazer suas duas horas e meia passarem muito bem.
Triet, segura e ciente do quanto o olhar dela mesma dialoga com (e enviesa) o tema - que é a nossa fatídica necessidade, consciente ou não, de julgar os demais e tomar decisões com base nisso - se vale de uma espécie de subgênero que eu particularmente tenho afinidade: o "filme de tribunal". De JULGAMENTO EM NUREMBERG até TEMPO DE MATAR, passando também por 12 HOMENS E UMA SENTENÇA e TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO, tem um monte de longas desse subgênero que eu adoro e imergi fácil no enredo. ANATOMIA DE UMA QUEDA é mais um bom exemplar do gênero, mesmo não sendo genial.
Há falhas principalmente na concepção de personagens secundários, às vezes mais rasos e menos intrigantes que a protagonista bem interpretada pela alemã Sandra Huller. Ficou uma vontade maior de saber da figura do marido morto e qual era, afinal, a do advogado de defesa. É certo que essa postura fragmentada e eclipsada do roteiro é deliberada justamente para mostrar que vamos julgar com base em visões só parciais e incompletas, sempre, mas fica um certo gosto de que a provocação poderia ser ainda maior se esses personagens tivessem mais densidade e tempo de tela.
No fim, como diria Antonio Gramsci: "viver significa tomar partido". Nós vamos julgar os demais querendo ou não, gostando ou não, até mesmo entendendo conscientemente ou não. E nem sempre teremos a necessária (e desejada) riqueza de informações pra bater esse martelo.
Apesar da louvação toda, VIDAS PASSADAS é só mais um daqueles filmes do subgênero que eu costumo classificar como "romance sem sexo" (normalmente falta uma verve mais Paul Verhoeven pra esse gênero), com diálogos um pouco mais elaborados que uma sessão da tarde de comédia romântica e só.
O que ainda dá um certo tempero ao filme e acaba o tornando razoável é a interpretação que sai dos personagens centrais e vai pra cultural/geopolítica: a cultura confucionista da Coreia do Sul está em choque com a enorme influência que recebeu por décadas da cultura estadunidense - e agora flerta com um possível retorno para casa. Vendo por essa ótica, vai ficar um pouco mais pertinente.
De resto, principalmente o personagem do marido da asiática é raso e aborrecido, o que impede mais complexidade e densidade ao dilema emocional (e político-cultural) da protagonista.
Visto no último sábado, quando foi postado pelo canal CPC-UMES junto com outros dois longas que eu já tinha visto para comemorar os cem anos de fundação da Mosfilm.
O livro de Tolstoi é um dos raríssimos casos na minha vida toda de leitura que interrompi no meio (pretendo futuramente retomar), porque tem muita descrição inútil de hábitos da aristocracia russa do século XIX.
Esse lenga-lenga todo, que já é um problema no material-base e aparece aqui o filme também, acaba soterrando o drama da personagem-título que - sejamos francos -nada mais é que uma _socialite_ russa, daí fica numa patricinhagem de não saber se c@g@ ou desocupa a moita entre o marido e o amante. Até é interessante pelo que ela tem de Capitu do Oriente, sem o mistério sobre ter ou não acontecido a traição (como na obra de Machado), mas sim sobre seus anseios e principalmente o que foi o fator catalisador para o desfecho trágico.
O filme tem méritos estéticos e narrativos sobre a hipocrisia da sociedade aristocrática da época. Erra pelo estelionato de apresentar como se fosse ser uma "versão do amante" do que aconteceu, quando na real e só mais uma adaptação focada nela com um monte de eventos que ele não teria como ter presenciado.
Badalado pela mídia paga pra fazer propaganda como longa de performances arrasadoras de Natalie Portman e Julianne Moore, SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO é só um filme razoável muito abaixo do que foi dito e com atuações de fato boas de ambas, porém nem de longe essa última coca-cola no deserto que estão alardeando.
Ambas tem performances bem superiores a essas na carreira. E o resto do elenco é inferior, principalmente o marido da Julianne que é mala pra caramba, feito por um ator que pesa a mão nos traços de "ingenuidade" do sujeito.
O roteiro é legal mesmo e tem boas ambiguidades, principalmente sobre o quanto os bastidores do filme mexeram com o núcleo familiar "pesquisado" pela atriz. No geral, mediano com momentos legais ilhados.
Akira Kurosawa, em seu maravilhoso RASHOMON, foi parteiro não só de um novo jeito de contar histórias, como quase um subgênero. Tem vários longas bons nessa pegada das versões do que aconteceram em determinado momento, dos quais se inclui um raro caso de filme bom de Ridley Scott neste século: o subestimado e pouco conhecido O ÚLTIMO DUELO, pra ficar num exemplo só.
De volta ao Japão, esse pequeno novo RASHOMON que Kore-eda Hirokazu (do também bom ASSUNTO DE FAMÍLIA) nos entregou recentemente, é mais um exemplar dessa safra que só tende a ganhar relevância em tempos de subjetividade muito fragmentada pelas redes sociais e pelo neoliberalismo como estes nos quais vivemos.
Sua trama sobre o aluno supostamente problemático, a inaptidão do Estado (professor) e da família (a mãe solteira) em alcançá-lo, é uma espécie de versão daquele filme belga CLOSE acrescido de um toque a mais de base da Pirâmide de Maslow (principalmente na figura da mãe). Tudo vivido por bom elenco.
Passo longe de admirar o cinema meio Woody Allen, meio Fellini dirigido pelo italiano Nani Moretti, do insosso HABEMUS PAPAM, entre outros um pouco melhores.
Esse aqui é mais um que fica abaixo da média, com um ou outro momento bom (o plano do protagonista caminhando enquanto o filme sendo rodado tem seu último take concluído, por exemplo).
No geral é uma comédia sem timing, que se arrasta demaaaaais nas mesmas piadas e tendo aquela patuscada de "tributo ao cinema" com um milhão de referências de novo. É pastiche do tributo da homenagem toda hora. Ninguém aguenta mais. Costura essas homenagens pra fazer algo novo, então, pra ousar minimamente e ter algo a dizer - como faz o Tarantino, último cineasta autoral de Hollywood.
Já o diretor claramente trotskista vivido pelo próprio Moretti aqui parece ser só um exercício de auto-referência "despojada" que não vai a lugar nenhum.
Nunca fui um grande admirador do badalado Alexander Payne, cujo melhor filme até hoje é ELEIÇÃO, com a melhor performance da carreira de Reese Witherspoon. Seu novo filme, OS REJEITADOS, tem várias das características - e limitações - de Payne: concentração em interação dos personagens e como a relação os afeta e transforma, ênfase e chance para o elenco brilhar, etc.
É um diretor muito mais raso emocional e artisticamente do que quer parecer que é, embora dê pro gasto. Assim sendo, OS REJEITADOS acaba se revelando, pra mim sem surpresas, não mais que uma "sessão da tarde" um pouquinho mais encorpada e polida no roteiro.
Da' Vine Joy Randolph bem (embora não tanto quanto estão dizendo) e Paul Giamatti excelente, com merecida chance de Oscar - e são também os personagens mais cativantes e identificáveis pra mim, ainda mais com o professor de História vivido por Giamatti se revelando logo na primeira cena que não é corruptível pelo dinheiro. Infelizmente, há também o núcleo adolescente, mala pra caramba.
O Conto do Czar Saltan
3.5 3Mais um longa soviético legendado, com boa qualidade de vídeo, por obra e graça do canal CPC-UMES.
Pra um filme fantasioso infantojuvenil de 1967, envelheceu até que bem e esbanja criatividade na parte técnica, sobretudo cenografia, mas também figurino e efeitos visuais orgânicos e sem o abuso de CGI genérico e desgastado que vemos no cinema hollywoodiano atual.
Tem suas limitações graves, principalmente o personagem bobo e afetado do czar, mas no geral é uma diversão bacaninha.
A Trama
3.3 26Único longa metragem citado no excelente livro REALISMO CAPITALISTA, de Mark Fisher, que eu não tinha assistido de todos os muitos que o teórico inglês cita naquele livro. Valeu demais a pena e novamente a perspectiva do filme conforme descrito por Fisher o torno ainda mais pertinente.
A década de setenta (o filme é de 1974) é uma etapa rica cultural e artisticamente nos EUA, inclusive na cultura de massa, mas ali já se fazia sentir uma desconfiança do neoliberalismo que se avizinhava a partir da década seguinte. O enredo envolvendo o personagem de Warren Beatty é uma espécie de PREMONIÇÃO - aquele terror de adolescente de shopping - só que mais adulto e politizado, dirigido pelo mesmo cineasta que pouco depois faria TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE. Beatty é perseguido por uma corporação sem rosto, fora do Estado e suas instituições (mas que afeta diretamente a política institucional), uma versão mais "profissa" do que costumam dizer sobre a maçonaria.
O final é sem passada de pano.
Garra de Ferro
3.9 96IRMÃOS KARAMAZOV NOS ANOS OITENTA
Durante várias ocasiões do excelente e pouco divulgado GARRA DE FERRO lembrei do clássico Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Ali está o peso implacável da hierarquia familiar engessada, sob o tacão de uma figura paterna canalha e individualista, que invariavelmente vai expiar os fantasmas dos natais futuros do que ele não aceita não ter vivido quando mais novo nos filhos.
Como no romance de Dostoievski, ao que parece de fato atemporal, aqui temos uma história eminentemente masculina: o arcabouço da moral e da ambição se dá pelos vários homens, numa família cujos espermatozóides parecem só passar o cromossomo Y adiante. As mulheres são linhas auxiliares dos personagens que polarizam o dilema moral daqui e acabam por ajudar a entender como seus cônjuges lidam com afeto: no caso, a mãe e a esposa do irmãos mais velho vivo, brilhantemente interpretado por Zack Efron em performance que, de todas as lançadas no ano passado, só perde pra Emma Stone em POBRES CRIATURAS.
Efron vive o filho que tem algum juízo e tenta como pode sair da estrutura duríssima criada pelo Fiódor Karamazov da luta livre, que passa como um moedor de carne detonando filhos que vão, querendo ou não, colher os frutos físicos e mentais da imparável sede de glória do pai. Sigmund Freud e Mark Fisher adorariam esse longa. O personagem de Efron é assombrado pelos fantasmas do que os irmãos poderiam ter sido, mas a castração cultural (na figura sobretudo do pai, com a omissão cúmplice da mãe) vetou.
Tal como GUERREIRO (2011), é um filme de luta na embalagem e um drama familiar no conteúdo. A embalagem aqui se vale espertamente do mise en scene espalhafatoso e carnavalesco da luta livre, com toda a parafernália midiática feita pra vender audiência, com "provocações" em cima da desgraça da família alheia e todos os riscos do contato físico - o filme é incisivo em nós lembrar como a saúde de todo mundo aqui está em risco, mas ainda tem a inteligência de incluir especificamente a saúde mental no pacote.
Ainda poderia rasgar mais um milhão de elogios para o longa aqui, cujas limitações são pontuais: faltou mais tempo de tela para os pais de Efron, para ampliar a polarização e sua densidade dramática e moral, por exemplo. Mas no todo é um filmaço que está entrando no radar de pouca gente. Como cinéfilo, faço aqui minha parte de divulgá-lo. Você merece assistir - e GARRA DE FERRO merece ser mais visto.
Godzilla II: Rei dos Monstros
3.2 650 Assista AgoraNÉVOA DAQUI, CHUVA DALI, ESTILHAÇO ACOLÁ
Quando eu achava que já tinha visto o pior possível no tratamento hollywoodiano ao gênero oriental kaiju, esse aqui mostra que eu estava errado.
GODZILLA 2 - REI DOS MONSTROS é ainda pior que GODZILLA VERSUS KONG! O roteiro fica submerso num drama familiar do núcleo humano, com a atriz da Eleven de STRANGER THINGS à frente, que é um pé no saco e a gente nunca se importa. coloca uns atores japoneses pra fazer demagogia com a origem do Godzilla, que foi assimilada e rapinada pelo cinema estadunidense - ainda hoje há versões boas do monstrão filmadas em sua terra natal, como SHIN GODZILLA e sobretudo o recente GODZILLA MINUS ONE, que surpreendeu todo mundo pela qualidade dos efeitos visuais com pouca grana.
Aqui, no entanto, as lutas de titãs estão mergulhadas em tudo quanto é nuvem, chuva, névoa, estilhaços e etc que é pra gente nem ver direito a deficiência dos (d)efeitos visuais que já estão datados.
Uma pena, porque o GODZILLA de 2014 era bem diferente desse aqui e eu gostei bastante.
Doze Cadeiras
3.3 4Filme soviético visto no canal CPC-UMES, mais um daqueles sessão da tarde do Leonid Gayday que vendiam ingresso como água no deserto entre os tomadores de vodka.
A premissa é legal: há diamantes escondidos em uma de doze cadeiras espalhadas por aí e três sujeitos gananciosos estão topando qualquer parada pra achar. A verve cômica pra lidar com o assunto é espertamente escolhida, muito embora uma reviravolta envolvendo morte lá pro final acabe ficando deslocada e invasiva por isso.
Enfim, é uma comediazinha esquecível, mas que dá pro gasto, o que é típico da filmografia do Gayday.
O Protetor
3.6 919 Assista AgoraÉ daquela safra de ação mais John Wick que Paul Greegrass, embora não tenha a exuberância de planos longos do ATÔMICA, por exemplo.
A seu favor, um ótimo ator à frente de tudo: Denzel Washington esbanja confiança e determinação, dando uma roupagem mais intensa para um papel que depois de tantos similares (NOBODY, por exemplo) é clichezaço.
Atrapalha um pouco a falta de desafio real ao protagonista, mesmo no finalzinho quando tentam. Se seguisse mais a linha DRIVE de vez, apostando forte na direção e pouco nas palavras, seria ainda mais interessante.
Superman: Entre a Foice e o Martelo
3.3 162 Assista AgoraPIRÂMIDE DE MASLOW PRA QUÊ?
Adaptação de uma excelente HQ redigida por Mark Millar (de OS SUPREMOS), aqui bastante alterada em elementos substanciais sobretudo dos personagens coadjuvantes - a relação sexualmente reprimida da Mulher Maravilha com o Superman não existe mais, idem sobre Louis Lane, Stalin teve outro desfecho e seu filho não existe na adaptação, etc.
Se na obra de Millar o anticomunismo que existe acaba sendo mais sutil e o elseworld no qual o Super é soviético fica é exibido em sua glória, aqui os produtores e roteiristas não resistiram em sucumbir à propaganda mais rastaquera, digna de olavetes. Chama a atenção, contudo, como até aqui as características demodé e inverossímeis do Super - o altruísmo, a generosidade, etc - ficam muito mais convincentes quando ele é soviético.
E que dureza pra quem for minion de bilionário ter que torcer pra Lex Luthor e sua Big Tech contra o "malvado mundo alternativo" no qual todo mundo - exceto os estadunidenses - tem a base da pirâmide de Maslow plenamente resolvida!
Ficção Americana
3.8 357 Assista AgoraRoteiro inteligente e excelente performance, contida na medida certa e com sutilezas espertas, de Jeffrey Wright, compondo um personagem irascível e principalmente irônico debaixo da camada de discrição social. O destaque pra atuação dele está nas cenas de telefone, em que o editor vê ele mas os contratantes do outro lado, não.
A história sobre cooptação comercial e caricatura do negro estadunidense como fetiche da mercadoria é muito pertinente. Pena que as subtramas familiares do protagonista Monk, envolvendo o irmão gay e a mãe com alzheimer, são bem menos interessantes que o enredo central do livro que ele escreve sob pseudônimo.
Estação de Trem Para Dois
3.4 1O longa soviético ESTAÇÃO DE TREM PARA DOIS, visto no canal do Youtube CPC-UMES, é um exemplo de roteiro bom e boas interpretações se valendo de montagem e ideias corretas.
Começa como uma comédia boa entre um presidiário e uma garçonete, transitando daí para um romance bastante melancólico entre dois f*did*s na vida de modo que facilmente sentimos empatia por eles.
Há ainda a participação breve e marcante de Nikita Mikhalkov, além de ator também bom cineasta (embora aqui ele só seja ator).
Eu, Capitão
4.0 68FATURA DA COLONIZAÇÃO
Normalmente não gosto da filmografia de Matteo Garrone, cineasta que não se decide entre ser brutalista ou fantasioso - e tenta colar esses dois elementos de modo, a meu ver, pouco coeso. Vide sua adaptação de PINÓQUIO, por exemplo.
Seu novo longa, porém, me fisgou em cheio. Indicado ao Oscar de melhor filme internacional pela Itália EU, CAPITÃO se passa inteiro na África (um pouco no mar mediterrâneo), não tendo nada de europeu - exceto uma miragem distante para onde os senegaleses querem migrar pra fugir da miséria. Tem poucas e acertadas inclusões de elementos fantasiosos, vindos na hora certa, se aproximando bem mais do drama base da pirâmide de Maslow de um CAFARNAUM.
Elenco excelente e protagonista cativante, com destaque para o ator juvenil aludido no título, principalmente no desfecho de arrepiar. Garrone não se furta de mostrar a quantidade de agruras pelas quais os personagens tem que passar e coloca alguns elementos de humor espertamente para não deixar tudo carregado demais nas tintas dramáticas, com cenas de tortura em masmorras e gente morta de sede no deserto do Saara.
As lentes de Garrone nos guiam por uma travessia muito parecida com o longa (se bem me recordo guatemalteco) JAULA DE OURO e não é por acaso: tanto lá quanto cá, o que vemos é a fatura de séculos de colonização europeia e/ou estadunidense chegando pra gente que agora vive na miséria e se quiser alguma chance de ter condições dignas para migrar da senzala geopolítica par a casa grande, terá que passar por todo tipo de privação e humilhações.
Vai ser minha torcida pra levar o careca, embora sei perfeitamente que tem poucas chances de vitória. Mas merecia muito!
Duna: Parte 2
4.4 577FÉ E POLÍTICA NO MOTOR DA HISTÓRIA
Com estreia adiada por conta da (emblemática, reveladora) greve dos atores e roteiristas em 2023, a segunda parte de DUNA foi lançada só agora nos cinemas mundiais.
A imensa maioria das adaptações do diretor canadense Denis Villeneuve - um dos melhores da geração atual - foi acertada no trânsito muito arriscado entre a obra profundamente imersa no formato literário de Frank Herbert e a linguagem audiovisual cinematográfica, conduzindo uma obra super densa para os limites dessa outra linguagem e sem apelar, como fez David Lynch, para o voice over.
Foi correto introduzir Feyd Rautha (Austin Butler, excelente) e suprimir a presença da pequena Alia Atreides dessa adaptação, além de ter uma ambientação agora muito mais focada em Arrakis e um pouco, só com a narrativa avançada, em Giedi Primo. Com isso, Villeneuve pode condensar e focar sua trama em ótimas diferenças adaptativas com o livro, dentre as quais destaca-se o dilema político e sobretudo religioso entre Stilgar e Chani, inexistente na obra base.
Há erros de adaptação (precisava mesmo limar totalmente o arco de Thufir e mudar o desfecho de Rabban, que era super marcante no livro?), porém no geral ele acerta muito. Parte técnica excelente, sobretudo a maquiagem e o figurino, muito embora eu ainda fique um pouco reticente com esse negócio de cobrir os vermos gigantes em névoa e areia - estratégia que todo mundo sabe ser pra economizar na resolução de CGI.
Por fim, chama ainda a atenção como esse épico involuntariamente vem lançado no momento da chacina sionista em Gaza e, claro, o paralelo dos fremen com os islâmicos que resistem a esse ataque (caso do Hamas) só torna a obra de Herbert ainda mais pertinente e atual, mais de meio século após sua publicação.
A Sociedade da Neve
4.2 706 Assista AgoraO filme espanhol sobre o acidente do vôo urugaio na cordilheira dos Andes não é o primeiro que assisto sobre o evento. Há um documentário, também da Netflix, sobre o mesmo assunto.
Tanto em um longa quanto no outro, confesso, há pra mim duas dificuldades: a superficialidade de como são retratados os personagens (reais) retratados, de modo que sequer sentimos a morte de pessoas que realmente pereceram na tragédia (são só cadáveres que vão se acumulando) e, principalmente, a estúpida "polêmica" envolvendo o canibalismo, às vezes me fazendo pensar que os passageiros do avião foram até meio burros de demorar tanto pra ingerirem carne pra sobreviver! Era óbvio que aquela era uma escolha etica e logicamente justificável, caramba, qual é a "dúvida"?
Felizmente, o filme melhora na segunda metade, com momentos de resiliência e superação realmente admiráveis. Mas vamos e convenhamos, o filme não é nada demais.
Dias Perfeitos
4.2 231 Assista AgoraVELHINHO BATUTA
Longa novo do alemão Wim Wenders, que seria um documentário sobre banheiros japoneses high tech (?!) e que acabou guinando, por iniciativa do diretor, num longa de ficção.
Wenders claramente se projeta na figura do faxineiro Hirayama, um sujeito velho, disciplinado e muito apegado à beleza das coisas simples, tendo particular afeição por vegetais - escolha narrativa que vai se provar certeira com o que será explicado sobre o personagem.
Hirayama se torna de facílima empatia e identificação para nós desde os primeiros minutos em cena, fruto de uma interpretação carismática de Kōji Yakusho. Pena que o elenco secundário não acompanhe o ótimo nível do protagonista e os personagens mais jovens - dois deles são decisivos aqui - sejam rasos e até meio abobados.
É evidente que Wenders hoje fica mais à vontade para falar da velhice, se identifica ele mesmo com a figura de Hirayama, principalmente na relação com a arte - fotografia e música à frente, incluindo uso excelente, bem integrado e nada intrusivo de música ocidental que o velhinho batuta vivido por Yakusho ouve em... fitas K7!
E no fim das contas, não deixa de ser também um documentário sobre os tais banheiros ultra modernos - fazendo uma propaganda deles muito mais inteligente do que se fosse um documentário, em que pese Wenders ter se mostrado um excelente documentarista em obras como PINA, BUENA VIDA SOCIAL CLUB e principalmente no belíssimo O SAL DA TERRA, sobre o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.
Recomendado pra ir sem sede ao pote e apreciar nos detalhes. Longa singelo e cativante.
Zona de Interesse
3.6 563 Assista AgoraBANALIDADE DO MAL
O provável vencedor do Oscar de melhor filme internacional (porque a França fez besteira de não inscrever ANATOMIA DE UMA QUEDA), dirigido pelo meu xará Jonathan Glazer, é um longa que tem na universalidade de seu tema sobre o conceito de "banalidade do mal" sua força e, no recorte histórico escolhido, sua limitação.
Glazer acerta numa abordagem fria, quase naturalista, de envolver seus personagens num enredo sobre disputas mesquinhas e estúpidas por carguinhos militares e subir o "padrão de vida" enquanto o pessoal (no caso os judeus do campo de concentração) - que a gente nunca vê - se f*de do outro lado do muro. Destaca-se no elenco a mulher meio dinheirista vivida por Sandra Huller (do já citado ANATOMIA DE UMA QUEDA, num grande ano para sua carreira).
O cineasta acerta também em conseguir arejar esse subgênero muito prolífico de "filmes sobre o holocausto" sem mostrar uma única vítima dos nazistas. Só ouvimos gritos distantes e sabemos o que acontece do outro lado do muro, um tapume que bloqueia para os soldados o fruto coletivo de sua ação política. Encerra ainda de um modo forte, sem apelação melodramática nem desfecho bobo-alegre catártico, com a emblemática descida nas escadas rumo ao subsolo da História (de onde pode re-emergir).
Pena que a limitação do filme, ainda mais dado o momento que vivemos geopoliticamente, reside justamente em seu recorte sobre holocausto judeu, um tema hiper-explorado pelo cinema (inclusive pelos premiados do Oscar, ao longe de quase cem anos de história da premiação), num tema que é aplicável para vários outros contextos. Se o campo de concentração aqui fosse a faixa de Gaza na Palestina e os soldados fossem do exército sionista, por exemplo - mas replicando o mesmíssimo enredo - Glazer teria feito de seu longa uma investida corajosa e atinada com o momento atual. E que tal esse enredo se passar em algum condomínio de luxo nos arredores da favela brasileira de Paraisópolis, trocando os soldados por "empreendedores" de classe média alta?
Em que pese essa falta de culhão para um recorte menos parafrástico sobre o tema do holocausto judeu, pela trocentésima vez alardeado pela premiação dos sionistas de Los Angeles por ser facilmente cooptável por essa ideologia, ZONA DE INTERESSE pode ser lido dessa forma mais universalizada como filme sobre o quanto um tapume na frente da desgraça alheia pode facilitar, talvez de modo decisivo, o arrivismo de classe média em cima da desgraça da coletividade.
Maestro
3.1 259OSCAR BAIT CINEBIOGRÁFICO
Bradley Cooper quer obsessivamente uma estatueta do careca dourado. Pra gente ter uma ideia de como essa premiação influencia o cinema de massa, há até um termo pra definir os clichês cinematográficos pra isso: "Oscar bait".
MAESTRO, tal qual seu remake de NASCE UMA ESTRELA, é mais um "Oscar bait" do Bradley. Não vai dar certo, exceto no máximo talvez em melhor maquiagem.
Seu filme é mais uma cinebiografia que, não fosse o fator da bissexualidade (rasamente explorada) do músico biografado, não teria absolutamente nada demais. Basta comparar com o claramente superior OPPENHEIMER.
Performances corretas, com Carey Mulligan claramente roubando a cena e se mostrando a melhor do elenco. Sendo generoso, longa mediano.
Pobres Criaturas
4.2 1,1K Assista AgoraÀ frente de um elenco secundário competente, Emma Stone tem aqui a melhor interpretação de toda a sua carreira como a infantilizada e amoral Bella.
Também é o melhor longa até o momento do diretor grego meio "surrealista" que tem sempre essa temática do cativeiro pela fantasia, caso também do bom A FAVORITA e do filme que fez sua carreira ainda na Grécia, DENTES CANINOS.
Retrato do "id" feminino, a personagem de Stone faz uma travessia que vai da infância em cativeiro (na passagem em preto e branco) até a descoberta da filosofia, do prazer (princípio norteador da personagem) e da política de mercado. A sequência no navio é particularmente boa.
Há todavia um terceiro ano meio truncado, a meu ver com pontas soltas demais e até meio abupto pelo que foi apresentado antes disso.
Excelente cenografia que flerta abertamente com o estilo steampunk e dá um certo ar de atemporalidade que caiu bem aqui.
Meu Amigo Robô
4.0 84Animação espanhola sem diálogos indicada ao Oscar de melhor animação. De vez em quando aparece um longa fora do eixo nessas indicações e foi assim que descobri, por exemplo, o arrebatador O MENINO E O MUNDO.
Este é mais um que vale a conferida, ainda que sua técnica de animação a meu ver seja muito convencional (basta comparar com o longa brasileiro já citado), parecendo desenho de TV. O roteiro sem falas, no entanto, é bem melhor que eu pensava e traz uma história madura sobre persistência e luta em relações estabelecidas que devem acabar para dar lugar a outras.
Dentro de sua proposta simples, vale o quanto pesa e acerta o alvo.
Anatomia de uma Queda
4.0 768 Assista AgoraVIVER SIGNIFICA TOMAR PARTIDO
A sétima arte talvez esteja com certo esgotamento criativo, principalmente na Hollywood sequestrada pela Disney/Marvel, mas felizmente ainda há espaço para acréscimo e boas provocações, principalmente no cinema produzido fora de Los Angeles. Mesmo não sendo a reinvenção da roda, ANATOMIA DE UMA QUEDA, de Justine Triet, tem um escopo temático inusitado e atrevido o suficiente pra fazer suas duas horas e meia passarem muito bem.
Triet, segura e ciente do quanto o olhar dela mesma dialoga com (e enviesa) o tema - que é a nossa fatídica necessidade, consciente ou não, de julgar os demais e tomar decisões com base nisso - se vale de uma espécie de subgênero que eu particularmente tenho afinidade: o "filme de tribunal". De JULGAMENTO EM NUREMBERG até TEMPO DE MATAR, passando também por 12 HOMENS E UMA SENTENÇA e TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO, tem um monte de longas desse subgênero que eu adoro e imergi fácil no enredo. ANATOMIA DE UMA QUEDA é mais um bom exemplar do gênero, mesmo não sendo genial.
Há falhas principalmente na concepção de personagens secundários, às vezes mais rasos e menos intrigantes que a protagonista bem interpretada pela alemã Sandra Huller. Ficou uma vontade maior de saber da figura do marido morto e qual era, afinal, a do advogado de defesa. É certo que essa postura fragmentada e eclipsada do roteiro é deliberada justamente para mostrar que vamos julgar com base em visões só parciais e incompletas, sempre, mas fica um certo gosto de que a provocação poderia ser ainda maior se esses personagens tivessem mais densidade e tempo de tela.
No fim, como diria Antonio Gramsci: "viver significa tomar partido". Nós vamos julgar os demais querendo ou não, gostando ou não, até mesmo entendendo conscientemente ou não. E nem sempre teremos a necessária (e desejada) riqueza de informações pra bater esse martelo.
Vidas Passadas
4.2 717 Assista AgoraApesar da louvação toda, VIDAS PASSADAS é só mais um daqueles filmes do subgênero que eu costumo classificar como "romance sem sexo" (normalmente falta uma verve mais Paul Verhoeven pra esse gênero), com diálogos um pouco mais elaborados que uma sessão da tarde de comédia romântica e só.
O que ainda dá um certo tempero ao filme e acaba o tornando razoável é a interpretação que sai dos personagens centrais e vai pra cultural/geopolítica: a cultura confucionista da Coreia do Sul está em choque com a enorme influência que recebeu por décadas da cultura estadunidense - e agora flerta com um possível retorno para casa. Vendo por essa ótica, vai ficar um pouco mais pertinente.
De resto, principalmente o personagem do marido da asiática é raso e aborrecido, o que impede mais complexidade e densidade ao dilema emocional (e político-cultural) da protagonista.
Anna Karenina - A História de Vronsky
3.1 16Visto no último sábado, quando foi postado pelo canal CPC-UMES junto com outros dois longas que eu já tinha visto para comemorar os cem anos de fundação da Mosfilm.
O livro de Tolstoi é um dos raríssimos casos na minha vida toda de leitura que interrompi no meio (pretendo futuramente retomar), porque tem muita descrição inútil de hábitos da aristocracia russa do século XIX.
Esse lenga-lenga todo, que já é um problema no material-base e aparece aqui o filme também, acaba soterrando o drama da personagem-título que - sejamos francos -nada mais é que uma _socialite_ russa, daí fica numa patricinhagem de não saber se c@g@ ou desocupa a moita entre o marido e o amante. Até é interessante pelo que ela tem de Capitu do Oriente, sem o mistério sobre ter ou não acontecido a traição (como na obra de Machado), mas sim sobre seus anseios e principalmente o que foi o fator catalisador para o desfecho trágico.
O filme tem méritos estéticos e narrativos sobre a hipocrisia da sociedade aristocrática da época. Erra pelo estelionato de apresentar como se fosse ser uma "versão do amante" do que aconteceu, quando na real e só mais uma adaptação focada nela com um monte de eventos que ele não teria como ter presenciado.
Segredos de um Escândalo
3.6 263 Assista AgoraBadalado pela mídia paga pra fazer propaganda como longa de performances arrasadoras de Natalie Portman e Julianne Moore, SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO é só um filme razoável muito abaixo do que foi dito e com atuações de fato boas de ambas, porém nem de longe essa última coca-cola no deserto que estão alardeando.
Ambas tem performances bem superiores a essas na carreira. E o resto do elenco é inferior, principalmente o marido da Julianne que é mala pra caramba, feito por um ator que pesa a mão nos traços de "ingenuidade" do sujeito.
O roteiro é legal mesmo e tem boas ambiguidades, principalmente sobre o quanto os bastidores do filme mexeram com o núcleo familiar "pesquisado" pela atriz. No geral, mediano com momentos legais ilhados.
Monstro
4.3 258 Assista AgoraAkira Kurosawa, em seu maravilhoso RASHOMON, foi parteiro não só de um novo jeito de contar histórias, como quase um subgênero. Tem vários longas bons nessa pegada das versões do que aconteceram em determinado momento, dos quais se inclui um raro caso de filme bom de Ridley Scott neste século: o subestimado e pouco conhecido O ÚLTIMO DUELO, pra ficar num exemplo só.
De volta ao Japão, esse pequeno novo RASHOMON que Kore-eda Hirokazu (do também bom ASSUNTO DE FAMÍLIA) nos entregou recentemente, é mais um exemplar dessa safra que só tende a ganhar relevância em tempos de subjetividade muito fragmentada pelas redes sociais e pelo neoliberalismo como estes nos quais vivemos.
Sua trama sobre o aluno supostamente problemático, a inaptidão do Estado (professor) e da família (a mãe solteira) em alcançá-lo, é uma espécie de versão daquele filme belga CLOSE acrescido de um toque a mais de base da Pirâmide de Maslow (principalmente na figura da mãe). Tudo vivido por bom elenco.
O Melhor Está Por Vir
3.5 13 Assista AgoraPasso longe de admirar o cinema meio Woody Allen, meio Fellini dirigido pelo italiano Nani Moretti, do insosso HABEMUS PAPAM, entre outros um pouco melhores.
Esse aqui é mais um que fica abaixo da média, com um ou outro momento bom (o plano do protagonista caminhando enquanto o filme sendo rodado tem seu último take concluído, por exemplo).
No geral é uma comédia sem timing, que se arrasta demaaaaais nas mesmas piadas e tendo aquela patuscada de "tributo ao cinema" com um milhão de referências de novo. É pastiche do tributo da homenagem toda hora. Ninguém aguenta mais. Costura essas homenagens pra fazer algo novo, então, pra ousar minimamente e ter algo a dizer - como faz o Tarantino, último cineasta autoral de Hollywood.
Já o diretor claramente trotskista vivido pelo próprio Moretti aqui parece ser só um exercício de auto-referência "despojada" que não vai a lugar nenhum.
Os Rejeitados
4.0 315JOVENS, ENVELHEÇAM!
Nunca fui um grande admirador do badalado Alexander Payne, cujo melhor filme até hoje é ELEIÇÃO, com a melhor performance da carreira de Reese Witherspoon. Seu novo filme, OS REJEITADOS, tem várias das características - e limitações - de Payne: concentração em interação dos personagens e como a relação os afeta e transforma, ênfase e chance para o elenco brilhar, etc.
É um diretor muito mais raso emocional e artisticamente do que quer parecer que é, embora dê pro gasto. Assim sendo, OS REJEITADOS acaba se revelando, pra mim sem surpresas, não mais que uma "sessão da tarde" um pouquinho mais encorpada e polida no roteiro.
Da' Vine Joy Randolph bem (embora não tanto quanto estão dizendo) e Paul Giamatti excelente, com merecida chance de Oscar - e são também os personagens mais cativantes e identificáveis pra mim, ainda mais com o professor de História vivido por Giamatti se revelando logo na primeira cena que não é corruptível pelo dinheiro. Infelizmente, há também o núcleo adolescente, mala pra caramba.