Quando se começa a acompanhar uma história, seja ela contada em livro, filme, série, música ou até mesmo oralmente, o mínimo que se espera é que ela tenha um começo, um meio e um fim. É claro que esse conceito precisa ser adaptável, principalmente no contexto de produções televisivas, afinal, o meio e o fim da maioria delas não dependem exatamente da vontade de seus idealizadores. Quantas vezes vimos shows que foram cancelados antes de alcançar sua conclusão desejada, ou até o contrário, shows que se estenderam para além do que foram pensados (estou falando com você, Supernatural)? Depois de cem episódios divididos de forma incomum em cinco temporadas, dá para dizer que Gotham é uma exceção. Ela tinha um ponto de partida claro, mas nunca soube onde (e consequentemente, como) queria chegar.
E quando não se sabe aonde quer chegar... qualquer caminho serve.
Apesar do gosto ruim que a temporada final deixou na boca e da falta de uma ‘conexão espiritual’ entre as temporadas, Gotham teve sim seus ótimos momentos. A maioria deles ligados a construção de personagem e ao trabalho de seus intérpretes. As várias ascensões e quedas que construíram a persona de Oswald Cobblepot, muito bem interpretado por Robin Lord Taylor, merecem destaque. A evolução de personagens que começaram discretos como Alfred (Sean Pertwee), Edward Nygma (Cory Michael Smith) e Lee Thompkins (Morena Baccarin), além dos personagens que tiveram vida curta, mas marcante graças ao talento de Michael Chiklis, John Doman e Jada Pinkett Smith. Mas um caso que merece uma atenção especial é o de Cameron Monaghan. Ele foi escalado para uma participação que seria quase um easter egg na primeira temporada, interpretando um personagem que poderia vir a ser num futuro distante ele, o Joker, o Palhaço, o Coringa. No entanto, sua performance foi tão forte que rendeu não apenas um retorno, mas a transformação de um coadjuvante irrelevante na figura que movimentou a trama nas três últimas temporadas. Cameron foi a cara de uma reformulação na origem de um dos personagens mais icônicos dos quadrinhos e do cinema, e simplesmente deu um show.
Ainda que a trama tenha levado seu(s) personagem(ns) para lugares não muito legais e o texto muitas vezes bobo e super expositivo não tenha ajudado muito, Monaghan criou versões distintas e convincentes de Coringa ao longo dos anos. Facilmente está entre as melhores encarnações do personagem, ainda que seu nome jamais tenha sido citado de verdade.
Em última análise, Gotham foi uma verdadeira metamorfose ambulante nesses cinco anos de exibição. Seu primeiro ano foi um procedural policial dos mais genéricos em estrutura, com casos da semana se destacando, enquanto a investigação da morte dos Wayne por parte de um novato e quase puro James Gordon, se desenrolava ao fundo. Muito pouco para diferenciá-la de outras dezenas de séries policias que estão televisão afora há muitos anos.
A partir do segundo ano as coisas mudaram, os casos da semana dão lugar a uma trama mais longa, que ocupa a primeira metade da temporada. A relação de Gordon com o assassinato que está ligado a origem do herói da cidade sai de cena, surge a relação de Gordon com o submundo do crime e o passado da cidade, além dos constantes testes a moralidade do protagonista. Até ali dava para chamar Gordon de protagonista, pelo menos.
A decisão de dividir a temporada ao meio e ocupar cada metade com um arco dramático próprio foi muito inteligente e esses arcos funcionavam em si mesmos, como boas graphic novels, mas a falta de “coesão artística” sempre esteve no encalço do show. Gotham que começou no limite de um realismo bizarro, mas com uma emulação noir muito clara, foi se transformando numa fantasia quadrinhesca gótica e se encerrou quase tão camp quanto a série do Adam West.
Essa transformação também foi sentida esteticamente, mas não de forma natural, e sim como um descuido na continuidade. A cidade cinza, nublada, fotografada em tons de sépia foi ficando mais escura e com mais neon e depois ficou clara, com ares de metrópole comum. É quase como se saíssemos da Gotham de Zack Snyder pra Gotham de Tim Burton e acabássemos na Gotham de Christopher Nolan, em sua versão de O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Para além da mudança de estrutura narrativa e de visual, hoje é difícil dizer sobre o que foi a série Gotham, afinal. No começo era sobre um iniciante James Gordon e o Departamento de Polícia da Cidade; depois passou a ser sobre Gotham e seus demônios, ou quão bizarra a cidade era a ponto de precisar de um vigilante vestido de morcego; em seus momentos mais frágeis foi sobre um jovem Bruce Wayne, num atrapalhado begins do begins; e em sua última temporada foi sobre coisa alguma, foi um pretexto para amontoar fan services e focar excessivamente na criação de uma mitologia que jamais seria abordada, com um episódio final praticamente desconectado do que foi construído até então, com cara de piloto rejeitado pelo canal CW.
Com um conjunto da obra pouco memorável, Gotham encerra sua jornada de altos e baixos de uma forma decepcionante e que não deixará saudades.
Há 80 anos, o engenheiro elétrico Semyon Davidovich Kirlian descobriu, por acidente, um método de capturar fotograficamente a aura das pessoas, usando uma placa fotográfica conectada a certa voltagem de energia elétrica, projetando assim uma luminescência curiosa no contorno de seus corpos. Bom, pelo menos essa é a forma que alguns entusiastas da parapsicologia e do esoterismo encaram o fenômeno.
Padre Quevedo diria enfaticamente que isso non ecziste, que o contorno luminoso capturado pelo fotograma de Kirlian nada mais é do que a ionização dos gases e vapores exalados pelo corpo, através dos poros da pele. Nesse caso não importa muito se você é adepto do viés cientifico ou místico, basta entender que o fenômeno capturado pelo fotograma existe e rodeia todos os corpos e objetos, ainda que não possamos vê-lo.
La Frecuencia Kirlian é uma daquelas pérolas que se escondem nos confins do catálogo do Netflix. Uma série animada com episódios de aproximadamente dez minutos, criada por Cristian Ponce. Cada episódio traz um conto de terror independente, mantendo apenas o cenário em comum: Um não-lugar, fora dos mapas e registros, quase inalcançável por pessoas comuns.
Num programa de rádio que vai ao ar todas as noites, a noite toda, um apresentador recebe ligações e conta histórias sombrias que acontecem na cidade de Kirlian, remota e desconhecida em algum lugar da Argentina. Quem é o apresentador ou os personagens das histórias não importa muito, sejam moradores ou visitantes do lugarejo, afinal, sequer conseguimos ver seus rostos. Apenas contornos escuros e olhos brilhantes.
A Cidade de Kirlian é a protagonista aqui, uma protagonista estranha e perturbadora. A gente nunca sabe ao certo o que envolve essa cidade e nem se os cidadãos têm consciência do que acontece em suas ruas, praças e casas. Alguns parecem ser pegos de surpresa pelas loucuras, outros soam bastante familiarizados com o horror que está à espreita. Sabemos apenas que forasteiros não são bem-vindos.
Tem ecos de Edgar Allan Poe, H.P. Lovecraft e Stephen King (o último citado nominalmente) e uma técnica de animação bastante característica, concentrada em sombras, contraste e cores escuras, lembrando um pouco o estilo utilizado no conto das Relíquias da Morte, em Harry Potter, mas com uma pegada mais neon, emulando o próprio efeito das fotografias Kirlian que eu citei no início.
Como o narrador é um locutor de rádio, a narrativa lembra um pouco esse estilo, se assemelhando também a alguns podcasts no formato story telling, principalmente Welcome to Night Vale, um dos mais populares e cultuados podcasts da atualidade. Nesse contexto, fica o elogio ao elenco de dubladores brasileiros que trabalhou na adaptação, não sei dizer se por algum bug, mas a versão com áudio original não estava disponível na Netflix.
Se você é um adepto das narrativas curtas de terror, gosta de séries como Além da Imaginação, Visões Noturnas ou Contos da Cripta, A Frequência Kirlian é uma boa escolha. Um esforço criativo bem original e carismático.
Existe entre os especialistas em criminologia um semi consenso do que define um assassino em série ou serial killer, se preferir: mais do que três vítimas com perfil semelhante e um método especifico de atuação em suas mortes. Mas esse não é o único tipo de “matador por atacado”, segundo a escritora Ilana Casoy temos também o assassino impulsivo (ou spree killer), que mata de maneira aleatória, movido por uma necessidade de matar, quase por esporte, sem necessariamente fantasiar com as vítimas. Ou o assassino em massa, que faz de seu crime um evento, com várias vítimas em um único local de uma única vez. São várias formas de catalisar o desejo e a necessidade pela violência.
Mas essas categorias não definem o protagonista de O Nome da Morte, talvez por que num país onde 60 mil pessoas são assassinadas num ano, a violência não é um desejo ou um hobby, é um oficio. Oficio no qual Julio Santana foi funcionário do mês todos os meses por mais de trinta anos, contabilizando quase 500 mortes em seu portfólio. Julio não matava por esporte, fetiche ou necessidade, matava por dinheiro e assim se tornou um expoente de uma profissão ainda muito popular nos rincões do Brasil: a Pistolagem.
O filme dirigido por Henrique Goldman é baseado livremente no livro de mesmo nome, escrito por Klester Cavalcanti, e não é exatamente uma biografia, nos moldes que nos acostumamos a ver no cinema nacional, que elenca cronologicamente acontecimentos da vida de seu protagonista para que o público saiba o que aconteceu e como aconteceu. Tampouco é um estudo de personagem que entra na cabeça do biografado tentando entender os porquês de suas atitudes (ainda que flerte com isso em alguns momentos). É mais como um estudo de situação, que tenta apresentar as circunstancias que levam uma pessoa a escolher a vida do crime em nosso país.
Mas tenta – com certo sucesso – fazer isso sem o uso de filosofismo, sem tomar partido sobre a pureza do homem perante a sociedade corrompida e vice e versa. Ele apenas expõe as coisas, a miséria de alguns lugares do país e a falta de perspectivas que ela gera, a insignificância da vida, a sanha por prosperidade acima de tudo de algumas religiões, a banalização completa da violência e principalmente a impunidade que reina por aqui. Ele também trabalha em humanizar cautelosamente a figura monstruosa do matador, expondo-o como a pessoa comum que pode estar bem perto de você.
Como filme, O Nome da Morte tem um quê de western brasileiro, junto de uma aura de filme de gangster, construindo um vilão de forma que não pareça totalmente odioso. Trabalha com um senso de atemporalidade, sem datar os acontecimentos e usando o número de vítimas como marcador de tempo. A trilha sonora, apesar de bem feita, é muito óbvia. Músicas tristes para momentos tristes, músicas tensas para momentos tensos, como se precisássemos de instrução do que devemos sentir em cada cena, mas nada que comprometa a experiência.
No quesito atuação a obra tem seu ponto mais alto. Marco Pigossi representa bem um homem introspectivo, de poucas palavras, que começa bastante emocional e vai ganhando frieza no decorrer do filme. Os coadjuvantes Fabíula Nascimento e André Mattos também entregam personagens sólidos, mesmo com pouco tempo de tela.
O Nome da Morte é um filme nacional interessante, que dá um viés autoral a uma biografia cem por cento brasileira, falando da tragédia marginal que assola o país sem tirar a responsabilidade do indivíduo, nem amenizar a influência da sociedade. Vale o tempo investido.
Se você chegou aqui por acaso, talvez não saiba, mas existe um submundo dos filmes de luta. É um submundo muito produtivo, onde se escondem promissores dublês e artistas marciais, ex lutadores de MMA e membros da WWE que não tem o mesmo carisma do The Rock. Um submundo onde dezenas de películas são lançadas todos os anos, geralmente direto em home vídeo. De onde submergiu um atlético Jean Claude Van Damme lá nos anos 80, por exemplo, na época em que alguns desses filmes de luta iam parar nas tardes da tv aberta. O que não acontece mais, infelizmente, no máximo esses filmes passam nas noites da Band, privando assim nossas crianças da boa e velha pancadaria desenfreada. Privando também Scott Adkins, astro maior desse submundo na atualidade, de seu devido reconhecimento.
Scott Adkins e Jesse V. Johnson, astro e diretor de Accident Man, respectivamente, dão aqui o chamado passo maior do que a perna, o famoso morder mais do que pode mastigar, ou qualquer outra variação desse ditado. Tentam entregar um filme um pouco mais ambicioso do que seus portfólios no submundo dos filmes de luta recomenda e acaba faltando substância para isso. As situações e informações fornecidas no início do filme vem tão redondinhas, tão ajeitadinhas, que fica bem evidente a forma que elas se encaixarão no desenrolar da trama. E não tem reviravolta ou subversão, as coisas acontecem exatamente como elas aparentam que vão acontecer. Mas ok, talvez não devamos exigir tanto de Adkins em sua primeira aventura como escritor.
Accident Man tem um senso de estilo familiar, combinando-o com a trama do filme podemos analisar que é como se o Guy Ritchie tentasse dirigir a sua versão de John Wick, mas sofresse um derrame no processo. A violência estilizada, o sotaque carregado e os humores britânico e politicamente incorreto estão aqui, mas numa versão meio “lesada”, principalmente no que diz respeito ao humor agressivo. As piadas que tentam ser mais ácidas, envolvendo o patriotismo e a fleuma britânica ou pautas como ambientalismo e sexualidade não conseguem fazer rir, na verdade elas não conseguem sequer ofender, só soam meio patéticas.
Mas então o filme é ruim, é isso? Não exatamente, caro leitor. Por incrível que pareça, a experiência de assistir Accident Man é boa no contexto correto. Se você é capaz de acessar aquele espirito de quando via O Grande Dragão Branco na tarde de sábado, da época em que você achava que “tijolo não revida” era um exemplo de diálogo bem escrito e que a cena do Van Damme lutando cego era a expressão máxima da sétima arte, digna de uma indicação ao Oscar, você vai curtir esse filme também. Tem arquétipos de personagens fáceis de simpatizar, um protagonista canastrão bad ass, vários coadjuvantes canastrões e bad ass, cenas de ação limpas e bem executadas e o que importa no fim das contas, uma porradaria honesta, bem coreografada e divertida de se ver.
Não é o filme que transformará Scott Adkins no Jean Claude Van Damme dessa geração, mas com um pouco mais de dedicação e sorte ele pode se tornar pelo menos um novo Jason Statham.
Grant Morrison é um maluco. Qualquer um que tenha lido um quadrinho escrito pelo escocês sabe disso. Mesmo nos seus momentos de sobriedade com a Liga da Justiça, a insanidade conceitual do roteirista estava presente. Não é de se surpreender que uma história que tenha como protagonistas um ex-policial degenerado e um unicórnio azul imaginário tenha saído da sua mente genial e doentia. Não é de se surpreender também que a adaptação de uma obra assim saia do canal SyFy. O que talvez surpreenda é que resultado seja uma das séries mais divertidas da atualidade.
Se a sinopse da série já foi longe demais pra você, melhor nem tentar continuar. É só o começo da total loucura que foi essa primeira temporada de Happy! Enquanto nas entrelinhas acontece uma trama policial convencional, digna de qualquer filme meia boca do Domingo Maior, na sua cara estão sendo jogados personagens que vão de um Papai Noel do Inferno (e não são todos?), até um assassino com fantasias sexuais peculiares e um apresentador de programas infantis com sérios desvios de personalidade. É claro, sem esquecer o unicórnio azul imaginário.
Mas não vamos creditar toda a insanidade ao material fonte, é preciso um diretor tão maluco quanto para dar vida a certas ideias, e aí entra o ótimo trabalho de Brian Taylor, que tem no seu portfólio passagens como Jason Statham transando no meio de um pista de corrida de cavalos, ou ligando uma bateria de carro aos mamilos em Adrenalina 1 e 2, ou Nicolas Cage mijando fogo em Motoqueiro Fantasma: Espirito de Vingança, ou o Nicolas Cage tentando matar os próprios filhos com uma serra tico-tico ao lado de Selma Blair no recente Mom and Dad. E isso não tá nem próximo do que ele “executa” nos cinco episódios que dirige.
Mas para além de uma trama policial e um exercício de degeneração, Happy! conta uma história de redenção natalina. Sim, como se fosse um encontro entre Um Homem de Família e Vicio Frenético, dois filmes com o Nicolas Cage, temos um homem numa espiral de drogas, álcool e autodestruição, mas que no fundo tenta recuperar sua família. Nick Sax é um personagem para quem torcemos ao mesmo tempo em que apreciamos sua desgraça, fisicamente falando. Ele é uma mistura bizarra de John McLane com Wile Coyote, que apanha mais que boi ladrão mas sempre tenta de novo.
E claro, não podemos deixar de falar de Happy, o cavalo azul imaginário, inocente, cheio de boas intenções e até meio bocó, antes de ter contato com o submundo de mafiosos, traficantes e torturadores, é claro. Acredite, o personagem animado brilhantemente dublado por Patton Oswalt é a coisa mais normal que vemos em tela. São oito episódios em que você se pega constantemente pensando “que porra é essa que eu acabei de ver?”
Happy! é uma série agridoce, com um senso de humor bizarro e nenhuma moralidade. É extremamente violenta, mas uma violência caricata, típica dos quadrinhos. É a pedida certa para o fã de experiências estranhas.
Bing. Talvez você se lembre dele. Não, não é aquele buscador, um dos muitos googles genéricos que tem por aí. Bing é o protagonista de Fifteen Million Merits, aquele episódio das bicicletas lá na primeira temporada. É, já faz um tempo, mas talvez você se lembre da trajetória dele. Basicamente, ele cansou daquele ciclo onde tudo se resumia a coisas rasas, a pedalar para consumir, e resolveu botar o dedo na ferida. Subiu no palco e criticou tudo e todos, o sistema, a sociedade, as pessoas mesmo. Todo mundo amou. Mas a revolta genuína fez sucesso demais pra ser um ato isolado. Logo ele virou um produto, sua dose de crítica e revolta semanal. Perdeu toda sua substância, é verdade, mas as pessoas ainda amavam. Mesmo sendo só uma repetição.
Como algo tão marcante, que toca em temas profundos e nos mostra um lado nocivo da nossa vida, pode perder significado tão rapidamente? Virou um produto qualquer.
Netflix, you got to let me know Should I stay or should I go?
Acho que os irmãos Duffer não aguentaram a pressão. Achei a temporada fraquíssima. Vou listar alguns dos problemas dessa temporada pra mim. Um dos maiores méritos de Stranger Things na temporada anterior foi trabalhar bem com familiaridades. Os arquétipos de personagem repetidos exaustivamente desde os anos 80 receberam um bom tratamento, mesmo que sem tanta profundidade. E nessa temporada, os irmãos Duffer sequer se esforçaram em trazer arquétipos novos, eles apenas substituíram os personagens. Steve, o bad boy da temporada anterior, alcançou um tipo de “redenção” e foi substituído por Billy. Eleven, a garota “diferente” que foi abraçada pelo grupo de amigos foi se aventurar em outro núcleo, foi trocada por Max. Mudaram-se os nomes, mas o esqueleto é o mesmo. E esses personagens são apenas objetos pro roteiro, já que nenhum deles ganha desenvolvimento no decorrer dos episódios.
Outro erro foi particionar demais os arcos. Enquanto na temporada anterior tínhamos três arcos principais, o grupo das crianças, o trio Steve-Nancy-Jonathan e a dupla Joyce e Hopper, que convergiram no final, nessa temporada temos no mínimo seis mini arcos que não tem nada de relevante para contar. O grupo e a dinâmica entre as crianças, ponto forte do ano um, foi desmantelado, jogando um pra cada lado e tirando toda a importância das ações de cada um. Mike, até então protagonista, foi escanteado e virou nada mais que um papagaio de pirata de Joyce, na busca de ajudar o garoto Will. Esse excesso de mini-histórias acarretou na total quebra de ritmo da temporada. A fluidez que nos fez encarar Stranger Things como “um filme de oito horas” morreu. O excesso de pontos para focar fez a história ficar travada, cinco episódios se passaram e a trama simplesmente não saiu do lugar. E os produtores perceberam isso, tanto que apelaram para um artificio pouco utilizado até então, ao fim de cada capítulo um cliffhanger, para não deixar a atenção se perder e deixando a experiência, antes fluída, totalmente episódica.
Falemos de dois “personagens” inseridos nessa temporada. E as aspas nos personagens é por que eles não são personagens de fato, não tem profundidade ou desenvolvimento para tal. Eles são os famosos plot devices, que foram adicionados da forma mais safada possível. Bob Newby, que também atende a cota de arquétipos dos anos 80, o gordinho nerd bonachão que em algum momento vai se mostrar mais bad ass do que o esperado. Ele aparece do nada e desde o principio sabemos seu destino, sacrificar-se em um momento para que não se queime um protagonista. Dito e feito. A segunda é Kali, a irmã perdida, que ganha um episódio inteiro apenas para exercer sua função: mostrar a Eleven como canalizar seu poder. Apesar dos outros ganchos deixados, essa é sua função primordial.
Há outros pontos bastante questionáveis sobre essa temporada, por exemplo, como Nancy sabia que ao marcar um encontro com os pais da Barbs seria levada para o QG do mal e poderia gravar uma confissão? Por que o jornalista conspirólogo saiu da cidade no meio da investigação? O quão estranha é a relação de cárcere privado a qual Hopper submete Eleven? E não me venha falar de proteção, é só ver a reação dele ao saber que Eleven foi dar um passeio pra perceber que não é saudável a situação em que ela se encontra. Como a garota que mal sabe ver as horas vira caroneira e vai parar em outro estado sozinha? De onde surgiu a ligação maternal de Eleven? Por que os meninos não brincam mais, onde está o RPG (além dos comentários forçadíssimos no último episódio), os passeios de bike?
Os dois últimos episódios foram um pouco superiores aos demais, mesmo que de forma atabalhoada. Por que no fundo, os problemas que se construíram no início da temporada já vieram com uma sugestão de solução. E no fim, a solução foi exatamente aquela projetada no inicio. Os cinco episódios entre os dois primeiros e os dois últimos só serviram pra fazer os personagens rodarem por aí, sem grandes evoluções para a trama e nem para si mesmos. Não houve reviravolta, ou um novo obstáculo. O enredo seguiu exatamente o que se esperava dele, num molde bem parecido do que ocorreu no ano anterior, mas sem o fator novidade. E fica a pergunta, no que a história avançou de fato? A segunda temporada termina com os personagens em situação praticamente igual a anterior.
As referencias ainda estão lá, assim como o carisma do elenco, mas a impressão que ficou é que essa temporada só foi feita para não deixar as crianças espicharem demais, por que não havia nada de novo para mostrar. E também a conclusão de que é um padrão as séries do Netflix terem o dobro de episódios que o necessário. Quero ser otimista e pensar que essa temporada foi um ponto fora da curva, mas a verdade é que os Irmãos Duffer não parecem saber o que fazer com a série. E no momento também não sei o que fazer em relação a ela.
Rubem Alves tem um texto no qual diz que as pessoas são como donas de pensões, onde cada uma de nossas sub personalidades são hóspedes, que vez ou outra saem de seus quartos pra zoar no hall de entrada, deixando toda bagunça e responsabilidade pela algazarra nas costas de seu senhorio. David Haller não é como os outros, ou como nós. Ele não é dono de uma simples pensão com paredes brancas e janelas azuis, como diria Rubem Alves. Ele está mais para diretor de um manicômio projetado por Salvador Dalí, onde alguns quartos não tem porta e os internos caminham livremente pelos corredores.
Assistir Legion é como fazer um tour sem guia por esse manicômio, entrando e saindo de quartos bagunçados, passando por corredores com uma iluminação diferente e dando de cara com algumas salas trancadas. Salas onde encontraríamos as respostas, eu suponho, mas as quais ainda não temos acesso. Nesse tour encontramos alguns funcionários do local, pessoas que estão ali para ajudar o diretor a entender e controlar tudo o que acontece, mas que por vezes ficam tão perdidos quanto o próprio. Encontramos também os internos, que vivem tomando o controle e causando estragos sérios ao diretor, ao manicômio e até mesmo aos vizinhos que não tem nada a ver com situação.
Assistir Legion também é presenciar um espetáculo sensorial, que mistura inventividade narrativa com poesia visual. O conjunto de cores e sons cria todo um clima de psicodelia, com pitadas de surrealismo, sendo coerente com a construção da trama, que se passa e reflete, em sua maioria, uma mente perturbada e cheia de conflitos. Os trabalhos de iluminação, edição e mixagem de som ganham uma importância narrativa rara de se ver por aí, pois elas não trabalham apenas na construção das situações, mas são manifestações claras das atitudes e habilidades dos personagens.
Mas assim como nem todo mundo teria estrutura para fazer um tour por um manicômio, por motivos óbvios, nem todo mundo terá o desprendimento necessário para comprar a proposta de Legion, por motivos que ficam mais claros no decorrer dos episódios, mas que são sentidos logo de cara. Por exemplo, ao anunciar Legion como um spin-off dos X-Men, o show criado por Noah Hawley ganhou de presente o selo “série de super herói”, coisa que ela não é, pelo menos não nos moldes convencionais. Temos um ou outro conceito similar ao que vemos no universo dos X-Men, mas nada que conecte a série a esse universo. Até o termo mutante é utilizado com bastante cuidado aqui. Essa quebra de expectativas pode ser um dos fatores que tem mantido a audiência abaixo do esperado.
Outro fator que pode afastar o público é que Legion mantém um quê meio experimental, apesar de se adequar ao arquétipo de protagonista da moda, o cara mentalmente quebrado, com claros problemas psiquiátricos, seus caminhos narrativos, seu visual e até o fato de não estar posicionada em uma época especifica, são características não muito comuns na TV e com as quais o consumidor médio de séries pode não se conectar.
É inegável que Legion tem algo de diferente pra oferecer, e o faz com capricho na produção, com atores talentosíssimos e com bastante coragem em sua abordagem, mas é uma série que precisa tomar cuidado para não se perder na própria loucura, ou vai acabar trancada num quarto falando sozinha.
House MD é um exemplo de série cultuada e popular que não me pegou. O pouco que vi achei chatíssima, tanto a estrutura quanto o personagem principal. Nosso santo não bateu. Então quando li a sinopse básica de Chance, nova série do Hulu, fiquei com os dois pés atrás. Série cujo título é o nome do protagonista, que é médico aparentemente fodão e interpretado por Hugh Laurie. Já vi esse filme antes, lá vem mais uma mistura de drama médico com procedural de investigação. Nada de novo no front, certo?
Errado. Muito errado. Chance não é um drama médico e passa longe, mas muito longe mesmo de ser um procedural genérico. Na verdade se trata do melhor exemplo de um thriller noir que eu vi recentemente. Se houvesse uma cartilha de como fazer uma obra noir, Chance seria a transposição dela para a TV. Com exceção da fotografia em preto e branco – que não é exatamente uma regra – todos os elementos que fazem um noir estão aqui. O clima de pessimismo e desesperança, os personagens com uma ambiguidade moral que chega a dar medo, uma femme fatale, pessoas obcecadas, policiais corruptos, assassinatos.
E esses elementos não estão jogados aqui, como uma simples colagem de referências ou algo do tipo. Chance tem uma história interessante a contar. E essa história é contada de forma inteligente, cadenciada, dosando as informações e construindo seus personagens de forma que, por mais que nos identifiquemos com eles, sempre nos mantemos em estado de alerta. A qualquer momento uma nova informação pode mudar o que sabemos e isso acontece frequentemente. É uma série de temas complexos, com uma construção sombria que escancara o senso de decadência que nos rodeia.
A maior riqueza da série são seus personagens, especialmente os quatro que são os motores da trama, Chance, Jaclyn, D e Raymond. Eles apresentam uma complexidade inquietante desde o primeiro momento em que aparecem e essa complexidade não é apenas uma pista falsa, que faz você ficar desconfiado simplesmente para manter o interesse na série. Ela é bem fundamentada, todos os atos, por mais questionáveis que sejam, tem uma motivação real. A medida que a trama vai se desenvolvendo, nossa impressão sobre cada um deles vai mudando e quem é vitima se torna criminoso e vice-e-versa. É uma série que realmente mexe com nossa noção de moralidade, que realmente nos faz questionar se os fins justificam os meios.
O elenco também merece o devido destaque. Que ator fantástico é o Hugh Laurie, a construção de Eldon Chance é impecável, a “involução” do personagem é sentida no olhar, na postura, você percebe o homem definhando moralmente, você sente a sanidade abalada em cada reação, em cada movimento e em cada fio de cabelo que, aparentemente, vai desistindo no decorrer da série. Ethan Suplee interpreta o gigante D, que vai do adorável para o assustador em questão de segundos, mesmo mantendo uma expressão impassível na maior parte do tempo. Sua história é a mais intrigante da série, seu personagem tem muitas camadas e é bastante complicado entende-lo. Sabemos que o seu passado traumático é responsável por suas ações, mas é difícil conectar uma razão aos seus atos. Mesmo assim, D é o personagem mais carismático da série.
Ainda temos Gretchen Mol, que surge como vitima indefesa e passa a se revelar muito mais do que isso. É muito bom vê-la como alguém que está constantemente impersonando alguém, e que sempre parece estar sendo pega na mentira e ativando um gatilho de improvisação. Outra personagem cheia de camadas. E por fim, o policial corrupto Raymond, vivido por Paul Adelstein, um homem perigoso e assustador, que tem menos construção do que os outros três, mas que ainda sim consegue se fazer notar.
Enfim, Chance é uma grande série, inteligente, bem construída e que realmente mexe com quem assiste. Tem pessoas de gabarito na produção, como Lenny Abrahamson, diretor de O Quarto de Jack, que produz e dirige alguns episódios.
A primeira e a última cena do filme são bem legais, o problema são os oitenta minutos que estão entre esses dois momentos. Sendo muito gentil podemos tirar um ou outro conceito interessante, como o clima retro futurista. Mas a câmera subjetiva confusa, o jogo de luzes e cores exagerado, os personagens sem carisma, o ritmo arrastado e a história sem pé nem cabeça ferram com tudo. Muito ruim.
Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo, disse o escritor americano Ernest Hemingway em seu livro “Por quem os sinos dobram”, citanto o poeta inglês John Donne. E sabemos disso, o ser humano é o tal do animal social, cujos instintos obrigaram desde tempos primórdios a conviver em grupos, como uma forma de contornar e superar suas limitações e medos. E em tempos em que somos escravos de nossas próprias necessidades, sempre focados no eu, no sentido mais externo e superficial da expressão, acabamos nos esquecendo um pouco disso, pelo menos até estarmos correndo algum tipo de perigo.
The OA é a nova série original do Netflix, criada pela talentosissíma dupla Brit Marling e Zal Batmanglij, responsáveis pelos excelentes A Outra Terra, A Seita Misteriosa e O Sistema. E é bom que se fique claro por aqui, se você conhece e não gosta desses filmes, dificilmente The OA será uma série pra você, já que o show funciona como uma condensação dos conceitos e estruturas deles, especialmente os dois primeiros. O estilo, o desenvolvimento e até mesmo a base temática conversa bastante com esses outros projetos. Na trama, conhecemos Prairie Johnson (Brit), uma jovem que volta para casa sete anos após desaparecer misteriosamente. Para aumentar o mistério, ela que era cega quando sumiu, voltou enxergando. Ela não fala para ninguém sobre as circunstâncias de seu desaparecimento ou o que aconteceu nesses anos, exceto para um seleto e disfuncional grupo de cinco pessoas que acabara de conhecer e do qual subjetivamente passamos a fazer parte.
Há quem diga que a morte é o maior medo do ser humano. E é uma aposta bastante válida, essa. Mas sabendo de sua inevitabilidade, porque haveríamos de temer? Talvez o medo não seja da morte em si. Teorizamos, pesquisamos e inventamos diversas possibilidades do que pode acontecer depois da morte. Queremos que exista algo, que não seja realmente o fim, mas porquê? Talvez o nosso apego ao mundo material nos faça ter medo do fim, pois ele é vago, incerto e vazio. É como estar sozinho no escuro e não enxergar nada. Não fazer mais parte do mundo como conhecemos. No fundo talvez seja isso, as maiores dores humanas nascem do sentimento de não fazer parte. Não temos medo da morte, temos medo da solidão, do sentimento de não fazer parte de nada.
E voltamos ao tal do animal social, pertencer a um grupo é saudável para nós. Ter alguém com quem compartilhemos o minimo de afinidade, o menor interesse ou objetivo em comum, nos mantém vivos. E quando não encontramos isso em nossas famílias ou amigos, nós formamos novos grupos, nem que para isso tenhamos que nos forçar a acreditar nesse interesse em comum, seja um projeto, uma ideia ou até mesmo uma crença em um suposto ser angelical que faz belos passos de dança contemporânea.
Essa ideia de pertencimento nos ajuda em outros âmbitos também, por que nós seres humanos possuímos uma característica bastante nobre, que pode ser vista como um instinto grupal ou como um dom, nós sentimos a dor do outro. E somos – pelo menos alguns de nós – compelidos a deixar nosso próprio sofrimento de lado para tentar aliviar o sofrimento do próximo. Ajudar os outros nos ajuda. Veja o grupo que se forma ao redor de Prairie, pessoas com todos os tipos de sofrimento, luto, desamor, sacrifício, arrependimento, pessoas deslocadas e sozinhas, que se encontram nesse grupo, e que se esquecem por um momento de seus próprios problemas para ajudar o outro. E nesse momento nem importa quais são as intenções ocultas por trás do gesto.
A narrativa de The OA nos insere nesse contexto de pertencimento, afinal, estamos naquela roda ouvindo a história de Prairie junto com os demais. E compartilhamos de todas as sensações que eles vivem, a desconfiança, o encantamento, a credulidade e até a decepção em certo ponto dos episódios. E se você também acreditou e depois se decepcionou com o desenrolar dos fatos, talvez valha dizer que o desfecho brinca com a magia da simplicidade. Não é necessário um feixe de luz interdimensional, quando uma simples coreografia da Sia resolve o problema, e isso não torna a intervenção menos “milagrosa”, não é mesmo?
Enfim, The OA faz jus ao currículo e ao que este que vos escreve espera desses realizadores. Brinca com ficção cientifica e fantasia, se guia por um mistério, mas é só a capa para um drama que trata de forma cadenciada sobre o nosso senso de pertencimento e sobre a nossa relação com aquele mal irremediável que é a morte, voltando a nos lembrar que é por nós que os sinos dobram.
Em algum momento Charlie Brooker, criador de Black Mirror, e James Wan, diretor e criador da saga Jogos Mortais, entraram juntos em um avião. E essa frase que parece o inicio de uma piada ruim é a síntese da ideia de Panic Button (que em português ganhou o horrendo título de Pânico Virtual), um filme que, como diriam aquelas frases sensacionalistas que estampam pôsteres por aí a fora, “é o encontro de Jogos Mortais com Black Mirror, dentro de um avião (?!?!)”. Sem a genialidade de Brooker ou a inventividade de Wan, mas ainda sim com uma boa dose de entretenimento.
O filme dirigido por Chris Crow foge um pouco da estrutura comum de um terror de baixo orçamento. É claro que a qualidade das atuações é pra lá de questionável e o cenário e a fotografia são bastante chinfrins, mas o projeto não tenta compensar isso com horror gráfico, sangue jorrando, música alta e jump scares. Ele aposta na tensão criada pela dúvida colocada sobre cada um dos personagens, afinal é um filme de terror e sabemos que em algum momento vai dar merda. A diversão está em especular de onde a merda virá, e cada detalhe exposto sobre o grupo muda a coisa de figura.
E fora esse clima de thriller e mistério, temos o fator “isso é muito Black Mirror, mêo”, que nos faz repensar nosso comportamento na internet e o quanto nossa privacidade está em xeque nos dias de hoje. Não só em relação ao que nós compartilhamos, mas com aquilo que assistimos, lemos, a parte mais passiva da interação. Misturando um pouco os conceitos de Shut up and Dance com Hated in the Nation, respectivamente terceiro e sexto episódios da terceira temporada, Panic Button nos coloca aquela pulga atrás da orelha e nos faz olhar com um pouquinho mais de cuidado para aqueles termos de uso que aceitamos sem nem checar se por acaso estamos cedendo nossa alma ao capiroto.
Não dá pra dizer que Panic Button é um grande filme, mas ele serve para aqueles momentos em que você não tem nada melhor para fazer. Quem gosta daqueles suspenses estilo super-cine deve ficar satisfeito. Tem uma ideia bacana, traz uma reflexão interessante e tem umas referências a clássicos do cinema que fazem os fãs esboçar aquele sorrisinho de canto de boca. É um terror barato que não dói, e o melhor (ou não) é que está na Netflix.
Escolha o viés metafórico que você quiser, o gênesis judaico-cristão, o mito da caverna de Platão, as pílulas azuis ou vermelhas de Matrix ou a teoria da mente bicameral de Julian Jaynes. Em suas visões e teorizações distintas essas fórmulas visam explicar o mesmo fenômeno, a ignição da auto-consciência humana. Bem como a trama criada por Jonathan Nolan e Lisa Joy em Westworld, que o faz numa embalagem de ficção cientifica pautada por mistérios e quebra-cabeças. O que se prova cada vez mais o grande talento dos irmãos Nolan, trabalhar temas complexos e relevantes em embalagens acessíveis e por que não dizer, comerciais.
Havia no paraíso inúmeras árvores com inúmeros frutos, mas duas delas tinham um valor maior do que as demais: a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. “E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” Diz o livro do Gênesis, em seu segundo capítulo, nos versículos dezesseis e dezessete. Havia também no paraíso o mais astuto dos animais, que tentou e convenceu Eva a comer do fruto da árvore proibida. Estava cometido o pecado original. O crime que resultou na expulsão de Adão e Eva do Paraíso. O crime da consciência.
A ficção cientifica desde sempre se disfarçou de previsão do futuro para escancarar de forma mais palatável e lúdica nosso presente e passado. E em Westworld isso está mais presente do que nunca. A série explora as filosofias por trás do que é ser humano de forma pessimista, inclinando-se a afirmar que a origem da consciência é o inicio de nossos problemas e de nossa ruína como espécie, especulando as maneiras que encontramos diariamente para fugirmos dessa descoberta, analisando os caminhos que buscamos para voltar para nossa caverna. É o que fazemos ao mecanizar nossas vidas. “A autoconsciência não é uma jornada para o alto, mas uma jornada para dentro.” E por isso nos apegamos as coisas externas, por mais banais e efêmeras que sejam.
Estamos totalmente na contramão dos anfitriões. A existência do parque é a prova disso. Enquanto eles dão passos em direção a humanidade, os humanos dão passos em direção á barbárie. Westworld é o lugar para roubar, matar e estuprar sem remorsos. O lugar para abandonar qualquer senso de civilidade e moral. O que pode ser menos humano do que isso? Westworld também desafia as noções de liberdade individual, de poder de escolha, de destino ou da aleatoriedade dos fatos, ao fazer um personagem que representava bem o livre-arbítrio, se tornar apenas mais uma marionete de uma história que já está escrita.
Mas nem só de divagações filosóficas vive essa primeira temporada. Westworld funciona perfeitamente como um “simples” mistério a ser resolvido. Com uma narrativa inteligente que abusa da não linearidade, usando diversos artifícios como rimas visuais, linhas de diálogo soltas e coincidências para deixar pistas àqueles fãs ávidos por teorias e especulações. E satisfaz ao oferecer repostas coerentes para as perguntas levantadas, fazendo desses dez primeiros episódios uma obra coesa que se encerra em si mesma, se necessário.
Tem uma produção impecável, uma trilha sonora sensacional e ainda um show de atuação por parte de Evan Rachel-Wood, Thandie Newton, Ed Harris e Jeffrey Wright, além de uma verdadeira aula de Anthony Hopkins, que coloca o Dr. Ford no seu rol de grandes criações.
Westworld é uma obra importantíssima, pois vai muito além de entreter, ela questiona e leva o espectador a também fazê-lo. Uma ficção cientifica muito bem pensada e conduzida, que sem a menor sombra de dúvida, é a grande série de 2016.
Há vários estudos que confirmam algo que já sabemos há algum tempo: o lugar-comum nos agrada. Gostamos do conhecido, do repetido. Por isso vemos o mesmo filme dez vezes, pelo fato de que o nosso cérebro já sabe a recompensa que vai receber, seja satisfação, emoção alegria ou relaxamento. E por que é mais seguro também, arriscar experimentar algo novo aumenta a chance de decepção. Creio que, talvez em menor escala, essa teoria também se aplique a fórmulas. Nós nos apegamos a elas. No fundo nós amamos os clichês, basta que eles sejam minimamente bem trabalhados. E Goliath faz isso de forma primorosa, sem arriscar ou inovar, mas sendo honesto em suas pretensões e métodos.
Goliath acompanha William “Billy” McBride, um advogado que já fora grande coisa, co-fundador de uma gigantesca firma de advocacia, mas que hoje encara a decadência, graças ás consequências de um grande caso, que o levou ao alcoolismo e consequentemente ao divórcio. Mas Billy tem a chance de dar a volta por cima, ou pelo menos colocar algumas coisas nos trilhos, quando aceita um caso contra uma grande empresa de segurança e fabricante de armamentos, que coincidentemente é representada por seu antigo escritório. E o que parece um caso relativamente simples, acaba desencadeando acontecimentos que colocam em risco não só sua chance de redenção, como sua própria vida.
É uma sinopse clichê, sim, e nem podemos dizer que ela é trabalhada de forma inovadora. A estrutura da série é bem comum, com um desenvolvimento de narrativa equilibrado e uma sucessão de mistérios que sempre conseguem segurar o espectador por pelo menos mais um episódio. Mas se as maiores qualidades de Goliath não estão na história em si e nem na forma de conta-la, onde elas estão? O que a fez se tornar a série mais vista da história do serviço de streaming da Amazon, em apenas dez dias?
Se eu fosse apostar, diria que foi o conjunto atores/personagens. O elenco de Goliath é primoroso e seus personagens são muito bons, cada um no seu estilo. A começar por Billy McBride, vivido por Billy Bob Thornton, personagem que evoluí e involui no decorrer da temporada, nas mãos de um dedicado Thornton, com sua postura e olhar melancólicos, que nos mostra sem nos dizer o homem que ele foi um dia. Um advogado que ao mesmo tempo busca certa redenção, sofre com os baques do caso e acaba minguando suas forças por causa disso. Uma atuação que deve ser agraciada com algumas indicações nos prêmios por aí.
Como seu Golias, temos o personagem de William Hurt, que se diverte ao compor um vilão com características caricaturais dignas de um oponente de James Bond. Ele tem aversão a claridade, tem parte do rosto deformado, ouve música clássica, fica isolado no topo de um prédio e traz em si aquele tipo de serenidade assustadora. Maria Bello é Michelle, ex-mulher de Billy e uma das sócias do grande escritório, e constrói a personagem que parece ser a ilha de bom senso em meio ao oceano de absurdos que os outros personagens cometem. E Maria consegue transparecer em poucas aparições, o fato de que sua personagem é quem mais tem coisas em jogo nesse imbróglio todo. E são só os três destaques, ainda temos muitos outros atores dedicados aos seus bons personagens, como Olivia Thirlby, Nina Arianda, Molly Parker, Diana Hopper, Tania Raymonde e Harold Perrineau.
Goliath é o tipo de série que não dói. Entretenimento honesto que se ancora em seu belo elenco e na familiaridade de seus temas para cativar o espectador. Não é revolucionária, mas é agradável e tem tudo pra ser a série de tribunal que você vai querer ver.
Se fosse para descrever essa primeira temporada em apenas uma palavra, com certeza seria “estranha”. No sentido de fugir de padrões, tanto de desenvolvimento de narrativa, quanto da criação do terror propriamente dito. Por meio de flashbacks vamos descobrindo os acontecimentos do passado e como eles se conectam com os do presente. E por meio de uma fotografia esfumaçada que cria uma atmosfera quase onírica, somos sempre colocados em dúvida, se o que está sendo mostrado está acontecendo de fato ou não.
Fugindo do modus operandi do horror atual, Candle Cove escolhe um caminho minimalista para aterrorizar o espectador. Sem jump scares, sem alternações constantes de volume e sem trilhas sonoras opressoras. As coisas se desenrolam calmamente e as cenas mais assustadoras são inseridas sem aviso prévio, de forma quase casual, o que reforça ainda mais o nível de estranheza. Você sai de uma cena corriqueira para uma bizarríssima, depois volta para a cena corriqueira como se nada tivesse acontecido. É uma forma de chocar o espectador sem apelações, apenas pelo inesperado da situação.
Candle Cove também ganha pontos por um senso de familiaridade em muitos aspectos. Primeiro ao lidar com memória e nostalgia de uma forma inteligente, sabendo usar a questão das falhas e das lacunas que envolvem a maioria das nossas lembranças e a capacidade que elas tem de nos trair. Em segundo num sentido mais referencial, a série de Nick Antosca conversa com muitas obras populares e queridas nos mais diversos âmbitos. Impossível não lembrar do estilo Stephen King de se trabalhar o horror, da estética que ora evoca John Carpenter e ora vai de encontro a David Lynch. Ainda temos umas pitadas de Além de Imaginação aqui e um pouco de It Follows acolá.
E tem mais, em alguns momentos a série se apresenta como um “Stranger Things reverso”, onde a memória dos anos oitenta deixa de ser tratada como lugar de conforto e vira lugar de trauma. Onde o foco na personalidade infantil deixa de ser a inocência e o carisma, e passa a ser a crueldade e a volatilidade. Como se saíssemos de Goonies e fossemos direto para a Cidade dos Amaldiçoados.
A estranheza também está presente nas atuações, Paul Schneider tem um desempenho propositalmente incomodo. Sua fala, sua postura e suas expressões trazem uma aura de falsa tranquilidade, de falso controle, e ele sempre parece saber mais do que está dizendo. É uma atuação que dificulta a empatia por seu personagem, mas de forma proposital, o mesmo desconforto que temos com ele é o desconforto que os outros personagens tem em sua presença. Desconforto bem retratado por Fiona Shaw, por exemplo, que vive sua mãe, que nunca parece estar bem na companhia do filho, com um olhar sempre desconfiado e uma postura sempre de distanciamento.
Candle Cove conseguiu criar em seis episódios uma aura de horror psicológico fascinante, trabalhando com figuras e temas fáceis de conectar ao medo, como crianças assustadoras, televisões com estática, fantoches e bonecos bizarros e um incessante clima de pesadelo, mas trabalhando essas figuras comuns de uma forma pouco usual. É um começo mais do que promissor para essa antologia, que já tem a segunda temporada encomendada para 2017, onde adaptará outra famosa creepypasta, chamada A Casa Sem Fim. Dentre as várias opções de terror televisivo que temos hoje em dia, Candle Cove mostrou ser o mais criativo na forma de desenvolver sua história. Uma série que merece ser vista.
Entre todos os temas, abordagens e assuntos tratados na mais recente temporada de Black Mirror, existe uma palavra que percorre cada um dos seis episódios: Fuga. Não é de hoje que a criação de Charlie Brooker fala disso, é verdade, desde o principio, na elaboração da identidade da obra, se notou a criação de um universo rico em tecnologias que serviam sutilmente a um propósito, o de fugir. Fugir do esquecimento, das imperfeições e sensações humanas, das coisas que supostamente fazem mal, mas que na verdade constroem o que somos: seres em fuga.
Lacie está em fuga. Ela foge do ostracismo social. Quer ser reconhecida, notada e com isso ascender em popularidade. O que no seu contexto tem efeitos práticos, como o direito de alugar um carro melhor ou de ganhar um belo desconto na hipoteca. Para isso ela foge. Foge de qualquer autenticidade, da sua própria personalidade. Suas reações são ensaiadas, mecânicas e totalmente vazias. O ato de cumprimentar alguém, elogiar, puxar uma conversa, tudo tem uma segunda intenção muito clara, ganhar uma boa avaliação. Fazendo isso ela foge. Foge de uma característica humana natural e universal, a imperfeição. Não há espaço para imperfeições na vida de Lacie, tudo tem que ser perfeito, bonito e feliz.
Seu irmão Ryan também foge. Foge dessa vida mecanizada, de aparências. Ou aparenta fugir das aparências, pois se preocupa em conferir o que o seu desapego ao sistema vai gerar de aprovação. Naomie foge. Foge de Lacie, inclusive. Ao perceber que sua companhia já não lhe trará benefícios, ela foge daqueles que não tem “nada” a oferecer. Em fuga Lacie descobre que não tem pra onde fugir. Quando é alcançada por todas as sensações das quais vinha fugindo, Lacie se liberta, em um momento catártico, onde é rejeitada por aqueles que ainda fogem e acaba encarcerada, sendo que paradoxalmente, nunca se sentiu mais livre.
Livre como Cooper. O aventureiro que está em sua última parada no mochilão ao redor do mundo. Cooper está literalmente em fuga. De um passado recente de dor e perda. De encarar suas responsabilidades práticas e emocionais, como adulto e como filho. Ele foge de conexões emocionais e do ônus que elas trazem, no caso, mais dor e perda. Cooper foge por que tem medo. O medo de aceitar os momentos ruins da vida, os momentos de tristeza. E é seu medo que será testado em sua nova escolha de emprego temporário.
A ironia do destino aqui é que a fuga literal de Cooper se encontra com um belo mecanismo moderno de fuga da realidade, os games, e acaba levando Cooper pra dentro de si mesmo. Quase que literalmente. E esse deve ser o mais assustador dos lugares para aqueles que vivem fugindo. Dentro de si mesmo você é obrigado a encarar seus medos. Dentro de si mesmo você não tem para onde fugir. E se quando chegar a hora você não tiver força para vencer seus medos, a tendência é o colapso.
Kenny talvez seja o que mais foge. Internamente ele parece fugir de quem ele é, como a maioria dos adolescentes. E quando pessoas misteriosas ameaçam divulgar um vídeo que mostrará ao mundo o que ele faz, ele foge. Foge do confronto, cedendo a chantagens e fazendo coisas perigosas para fugir da responsabilidade por suas ações. Kenny está dominado. A crescente de conflitos e situações culmina na colisão. Ninguém ali consegue fugir, nem mesmo o espectador. A ironia fina de Black Mirror nesse episódio é fazer quem assiste querer fugir, de uma responsabilidade por ter torcido pelos personagens, fugir do fato de que fizemos um juízo de caráter antes da hora. Fugir do fato de que sempre fazemos isso.
San Junipero fala de outras fugas, com certa leveza e um pouco mais de otimismo, pelo menos na superfície. Yorkie é uma jovem tímida que foge de um estilo de vida que foi imposto a ela. Ela quer se encontrar, descobrir quem realmente é. E o faz em um lugar (ou não lugar), que por si só é um ponto de encontro de pessoas em fuga. Kelly também foge. Foge de compromissos, mas principalmente foge de envolvimentos emocionais, que como já dissemos aqui, tendem causar dor e perda em um momento ou outro. Com objetivos opostos elas se encontram, desencontram e acabam se completando.
Mas o encontro não é tão simples assim. Com histórias de vida e visões de mundo diferentes, suas fugas acabam entrando em conflito. A iminência da morte traz a tona essa cisão. Enquanto uma vê o “mal inevitável” como forma de fugir das lembranças de uma vida que teve seus bons momentos, mas também teve momentos ruins, a outra enxerga uma oportunidade de fugir do fim, transformando-o em um novo começo, onde poderá levar a vida que não pode levar em vida. Não é a primeira vez que a série conta uma história de amor, mas dentro de seu contexto, trazendo reflexões sobre a morte e a tentativa de fugir dela, é a primeira a ter um desfecho relativamente feliz.
Em Engenharia Reversa vemos a mais perigosa das fugas. A fuga de uma das características naturais que nos torna diferente e é fundamental na perpetuação do humano como espécie: a empatia, que é anulada numa versão tecnológica de um mecanismo já muito comum hoje em dia, a desumanização do outro. Não ver o outro como igual é uma forma de fugir da responsabilidade por seus atos contra ele. Fugir do remorso. Do peso na consciência. É a pedra basilar dos discursos de ódio e das propagandas de guerra. O título do episódio em português faz muito sentido nesse contexto, pois o ser humano é desmontado, para ter retirado de si parte de sua essência. Para fazer o que os assassinos fazem é preciso fugir da humanidade.
O desfecho da temporada não poderia ser mais simbólico. E a fuga aqui não é de nenhum personagem em especial, mas sim da sociedade como um todo. Usando como pano de fundo uma campanha de ódio na internet que pode estar vitimando pessoas na vida real, vemos a facilidade com que as pessoas se apegam aos erros alheios para fugir da responsabilidade pelos seus próprios. Exaltam os defeitos dos outros para não ter que encarar os seus. É a base para julgamentos e acusações, que aqui vem em forma de social media shaming. Essas pessoas ainda contam com o anonimato, para fugir do flagrante e das consequências.
Mas é impossível fugir, é o recado que a última cena desse episódio nos deixa. Acredite você em karma, destino, punição divina ou em nada disso, é impossível fugir. Black Mirror nos convida a olhar para nossa própria vida e encarar aquilo que temos que encarar. Façamos isso voluntariamente, ou soframos intensamente quando acontecer. Por que mais cedo ou mais tarde, todos seremos pegos.
Cara, é um filme estranho. A ideia é interessante, toda a metalinguagem que o filme usa pra analisar a relação do autor com a sua obra. Tem uma crítica aos padrões de beleza e tal, mas a execução é meio bizarra. É o tipo de filme que termina e você não sabe dizer se gostou ou não. Acho que pela criatividade vale a pena, mas não é um filme fácil de recomendar.
Acho que o filme fala basicamente sobre incompatibilidade, não há lado certo ou errado. São duas pessoas incompatíveis em suas expectativas e planos, em sua visão sobre o amor e relacionamentos. Acho que esse duelo de pontos de vista tem mais a ver com a insistência em encontrar culpados ou responsáveis por fracassos de qualquer tipo, e não acho que ela caia sempre para o amor, pelo contrário, é sempre jogada para as pessoas, de um lado para o outro.
"A verdade é que ambos são pessoas com ideias completamente erradas sobre o amor." E qual é a certa? Até onde eu sei é a que funciona pra cada casal, não é algo padronizado. Chama-lo de imaturo, chama-la de egoísta, é só a maneira de responsabilizá-los por algo que não é da alçada deles: uma natural incompatibilidade,que não é, ou não precisa ser culpa de alguém.
Não deis lugar ao diabo, pois em qualquer brecha o inimigo faz a festa. Uma frase feita, típica de pregações neopentecostais, mas que numa análise menos teológica pode se referir ás várias concepções a respeito do mal, seja ele filosófico, metafórico, espiritual, ou até mesmo físico.
Com um desenrolar cadenciado, O Lamento nos conta uma história essencialmente folclórica, sobre guardiões, demônios, xamãs e sobre uma parte interessante da cultura oriental que conversa bastante com as noções religiosas ocidentais. Mas indo além dessa leitura, podemos ver as várias maneiras que o mal tem para entrar na vida das pessoas, disfarçado de proteção, disfarçado de boa intenção, de conexão com o divino. Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você, dizia Friedrich Nietzsche. Dependendo de como você combate o mal, acaba se tornando o mal, ou abrindo a porta para ele. É um dos recados que esse filme passa.
Ele fala sobre o pecado, não exatamente numa concepção religiosa, mas humana, mostrando como é tênue a linha que separa a culpa da inocência, questionando onde a busca por justiça se transforma em vingança. Nesse sentido podemos sentir uma forte crítica ao uso que as pessoas dão á religião e a fé e o poder destrutivo de falsos guias e profetas.
O roteiro brinca com as expectativas, contando uma história relativamente simples de uma forma complexa, mas não indecifrável ou inacessível. Ele apresenta seus personagens e vai os construindo de maneira dúbia, sem explicar quem é quem e quais são suas reais intenções, nos dizendo muito em cenas que aparentemente não tem grande propósito. E é nesse ponto que o filme dá uma leve derrapada, ele exige atenção aos detalhes, o que não seria um problema não fossem as duas horas e quarenta de duração. Em alguns momentos o desenvolvimento fica um pouco enfadonho, mas não é nada que chega a comprometer.
O conjunto fotografia + trilha sonora funciona bem demais, é uma combinação imersiva, que nos coloca no meio daquela vila e ao mesmo tempo nos dá a impressão de que tem alguém ou algo na espreita. Nesse ponto a gente se lembra que é um filme de terror, que aliás, caminha entre alguns subgêneros, como o de possessão e o de contágio, chegando a flertar com os zumbis em alguns momentos. E o filme consegue construir uma atmosfera de horror sem apelar aos truques típicos do gênero, como jump scares e alterações de volume.
Enfim, O Lamento é um grande filme, horror atmosférico, repleto de mistério e com muita a coisa a dizer em suas entrelinhas. Um dos belos exemplares do gênero nos últimos anos.
O atual vencedor do Oscar de melhor filme, Spotlight – Segredos Revelados abordou um tema bastante polêmico: o abuso sexual cometido por sacerdotes e o encobrimento realizado pelos altos níveis da igreja católica. Um filme incrível, mas que tratou do assunto pelo viés jornalístico e investigativo, tendo como protagonista a equipe de repórteres do The Boston Globe que trouxe a história a público. No mesmo ano, porém, foi lançado um filme bem menos badalado, mas não menos relevante sobre esse assunto.
El Bosque de Karadima, do diretor Matias Lira, conta a história de um dos maiores escândalos envolvendo sacerdotes na América Latina. Escândalo protagonizado por Fernando Karadima, famoso pároco e personalidade chilena, amigo das elites politicas, formador de algumas dezenas de padres e condenado a uma vida de penitência pelo Vaticano por suas décadas de abuso sexual e psicológico cometidos contra vários seminaristas e até fiéis de sua paróquia. Mas diferente de Spotlight, a abordagem do filme de Lira é bem menos jornalística e muito mais pessoal, quase patológica, deixando de lado os melindres burocráticos a respeito dos mecanismos de defesa dessa instituição poderosíssima.
O foco aqui é a vitima, e é do ponto de vista dela que a história é contada. Thomas Leyton, vivido brilhantemente por Benjamín Vicuña, é um jovem com suas inseguranças e confusões, em relação a sua função, a uma provável vocação religiosa, a sua família e a sua sexualidade. Um jovem que vê no Padre Karadima (Luis Gnecco), uma mistura de figura paterna e guia espiritual. Uma figura que se aproveita de todas as fraquezas e incertezas de Leyton para iniciar uma história de abuso que durará até sua vida adulta. De certa forma, o filme nos mostra um caso de dependência psicológica causada por uma vida de abusos, quase como uma síndrome de Estocolmo. O histórico de Leyton, a sua experiência familiar, tudo isso o faz desenvolver uma espécie de incapacidade de reagir, de responder as situações pelo qual ele passa. O tipo de quadro que vemos em casos de assédio moral, de violência doméstica. É uma situação que fica bem clara em alguns diálogos entre Leyton e o Padre para quem ele conta sua história. Por qual razão ele não consegue se livrar dessa situação? O que o faz ainda nutrir um tipo bizarro de afeto ou respeito pela figura que lhe causa tanto mal? É uma tentativa inconsciente de amenizar essa situação terrível? É algo que a psicologia talvez consiga responder, mas que o roteiro apenas especula.
El Bosque de Karadima acaba sendo um filme incomodo, por vários motivos, primeiro pela forma lenta que a narrativa encontra para desenvolver esse trauma, o que acaba “traumatizando” o espectador também. Segundo por que ele testa nossa capacidade de ter empatia, apresentando uma história que caminha do limite da culpabilização da vitima. E uma culpabilização que não vem apenas de terceiros, mas da própria vitima. Algo que reforça o quão profunda é a cicatriz emocional que um caso desses pode causar. Vale dizer que esse incomodo parece proposital, na intenção de botar o dedo na ferida, nos fazer refletir sobre as figuras em quem depositamos confiança, tenha motivação religiosa ou não, ou nos julgamentos que realizamos, ao responsabilizar as pessoas por coisas sobre as quais elas não tem o menor controle.
É um filme relevante em várias esferas, na de denúncia, na de análise psicológica e até na de crítica comportamental e estudo social. Aborda a relação das pessoas com a fé e com as instituições que a “representam” e a força devastadora de um trauma. É um filme forte, que não deve agradar a todo tipo de público, mas que vale a pena ser visto. Tem no Netflix.
Há 130 anos o escritor escocês Robert Louis Stevenson publicou um dos romances mais influentes da história da literatura mundial, Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde, ou O médico e o monstro, em bom português. Umas das primeiras obras populares a tratar da teoria de que o mal habita em todos nós e que a nossa principal habilidade é mantê-lo escondido. Entre as notáveis figuras que leram esse romance está o Dr. Philip Zimbardo, renomado psicólogo que se dedicou a estudar esse estranho fenômeno que faz pessoas boas cruzarem a linha e cometer atrocidades, fenômeno que ele chamou de Efeito Lúcifer. Fenômeno que além de chamar a atenção de estudiosos do comportamento humano, inspira obras artísticas de todo tipo, como o thriller alemão Die dunkle Seite des Mondes, um filme um tanto quanto curioso que adapta o romance homônimo de Martin Suter.
Um dos desdobramentos curiosos do Efeito Lúcifer é a facilidade em encontrar “boas desculpas”. Sempre vai ter uma, foi por um bom motivo, foi por que a situação pediu, foi por que era a única saída, foi por que eu estava sob o efeito de um cogumelo alucinógeno. Atos de maldade raramente vêm sem uma justificativa plausível (pra quem o comete, é claro). E o poder de achar a desculpa para a violência talvez seja o que nos diferencie de um animal. Violência na natureza selvagem tem a ver com sobrevivência, não com maldade. Talvez isso explique a relação de Urs com a floresta e a importância que ela tem na trama.
Aliás, que floresta bem capturada. Um dos grandes méritos de Die dunkle Seite des Mondes é sua beleza. O filme é esteticamente incrível, sua fotografia, a iluminação e as paisagens escolhidas também. Tudo colabora pra criação do clima de suspense psicodélico, quase chegando na fantasia. Outra grande qualidade está nas atuações, até então só tinha visto Moritz Bleibtreu como coadjuvante em filmes americanos, mas seu trabalho é incrível aqui. Ele consegue transmitir a transição da segurança do grande executivo, para a fraqueza do animal violento e descontrolado.
No entanto, apesar de abordar um tema interessante, ter uma produção impecável e contar com um elenco inspirado, é na convergência desses fatores que o filme dá uma pequena derrapada. Como filme, o resultado é estranho, meio instável, mas não ruim. Só é um resultado diferente. No fim, o filme acaba sendo mesmo como uma viagem ao lado escuro da lua, mas que para alguns pode ser uma bela bad trip.
O filme é barato, tanto que alguns aspectos remetem a produções quase amadoras. Cenários, trilha sonora, figurinos, fotografia, é tudo bem “estranho”. Mas um bom texto, o carisma e esforço dos atores e o conhecimento dos gêneros abordados, transformam o projeto em um filme divertidíssimo, com uma história derivada, mas que é bem contada com seus diálogos debochados e suas ótimas piadas.
A estreia de Nguyen é um belo cartão de visitas, pois aqui ele demonstra saber trabalhar com poucos recursos, além de coordenar muito bem dois gêneros que só funcionam juntos em mãos extremamente talentosas. O filme é inteligente, constrói bem seus momentos de tensão, mas o ponto forte é no senso de humor. Ele brinca com estereótipos, acerta a mão no humor negro e subverte os clichês, se rendendo a alguns, é verdade, mas de maneira bem coerente, num filme interessante e divertido. Ele ainda apresenta aos amantes do gênero três nomes promissores: Nguyen como diretor e roteirista, Chris Dinh como ator e roteirista e a belíssima Katie Savoy como atriz. Vale a pena ver e observar o que vem por aí para esse pessoal.
O projeto tem uma aura de filme de sobrevivência, mas tem muito mais a dizer. É um filme que explora os limites do ser humano, analisando as circunstâncias que podem fazê-lo colapsar. E também pode ser encarado como uma análise interna, dos dois lados que todos temos, o impulsivo e o controlado, o sonhador e o sóbrio e como um acaba matando o outro, tornando quase impossível um “meio-termo”. Lembra, de forma um pouco menos metafórica, o ótimo “O Homem Duplicado”. É um filme ágil e interessante, que mistura comédia com drama, conta com uma ótima atuação de Josh Duhamel e um final um tanto quanto enigmático.
A série segue o modelo mockumentary, ao estilo The Office, com depoimentos dos personagens em meio à ação, e mostra como funciona aquele microuniverso do pátio. Os grupinhos, as regras de convivência, a economia e tudo o mais. O que é curioso nessa premissa, aparentemente simples, é a quantidade de análises que ela abre e o número de instâncias em que ela funciona. Os episódios são engraçados, tem um ritmo agradável e momentos muito fofinhos, mas essa é só a primeira camada do show.
A segunda camada traz á tona um pensamento bem comum e que você já deve ter parado pra analisar, que é a semelhança entre a dinâmica de um colégio e a dinâmica de um presidio, especialmente no que diz respeito às relações entre as pessoas. As “facções” que se formam, as disputas por controle, busca por respeito e status, regras e formas de quebra-las, o fato de você não poder esfaquear seu colega do lado, entre outras coisas. Uma correlação interessante e feita de forma bem estruturada.
Na terceira camada é que a série realmente brilha, The Yard usa o universo infantil para tratar de temas relevantes e até polêmicos, temas como politica, que vão de intervencionismo estatal até liberalismo econômico, inflação, livre-mercado e concorrência entre moedas. Tráfico, proibição do consumo de drogas e criminalidade também são abordados. Ainda se fala sobre relacionamentos, equidade entre os sexos, disputas territoriais mundo afora, pobreza, crises migratória e muito mais. Tudo adaptado de forma precisa para a realidade infantil, preservando a inocência de seu ponto de vista e um teor didático sobre os temas, mas adicionando uma camada crítica, com um humor que varia entre o adorável e o ácido.
É uma escolha inteligente tratar de temas assim de forma didática e num universo agradável, pois dribla a resistência que o público médio apresenta para com esses assuntos. É a mais perfeita combinação entre educação e entretenimento que eu vi em muito tempo e vale quase como uma daquelas palestras de “como funciona a sociedade”. Tem um elenco carismático, histórias bem amarradas, personagens críveis e um ambiente familiar pra quase cem por cento dos espectadores. Uma obra incrível que traz o selo HBO de qualidade e merece ser conhecida por muito mais gente.
Gotham (5ª Temporada)
3.6 89 Assista AgoraQuando se começa a acompanhar uma história, seja ela contada em livro, filme, série, música ou até mesmo oralmente, o mínimo que se espera é que ela tenha um começo, um meio e um fim. É claro que esse conceito precisa ser adaptável, principalmente no contexto de produções televisivas, afinal, o meio e o fim da maioria delas não dependem exatamente da vontade de seus idealizadores. Quantas vezes vimos shows que foram cancelados antes de alcançar sua conclusão desejada, ou até o contrário, shows que se estenderam para além do que foram pensados (estou falando com você, Supernatural)? Depois de cem episódios divididos de forma incomum em cinco temporadas, dá para dizer que Gotham é uma exceção. Ela tinha um ponto de partida claro, mas nunca soube onde (e consequentemente, como) queria chegar.
E quando não se sabe aonde quer chegar... qualquer caminho serve.
Apesar do gosto ruim que a temporada final deixou na boca e da falta de uma ‘conexão espiritual’ entre as temporadas, Gotham teve sim seus ótimos momentos. A maioria deles ligados a construção de personagem e ao trabalho de seus intérpretes. As várias ascensões e quedas que construíram a persona de Oswald Cobblepot, muito bem interpretado por Robin Lord Taylor, merecem destaque. A evolução de personagens que começaram discretos como Alfred (Sean Pertwee), Edward Nygma (Cory Michael Smith) e Lee Thompkins (Morena Baccarin), além dos personagens que tiveram vida curta, mas marcante graças ao talento de Michael Chiklis, John Doman e Jada Pinkett Smith.
Mas um caso que merece uma atenção especial é o de Cameron Monaghan. Ele foi escalado para uma participação que seria quase um easter egg na primeira temporada, interpretando um personagem que poderia vir a ser num futuro distante ele, o Joker, o Palhaço, o Coringa. No entanto, sua performance foi tão forte que rendeu não apenas um retorno, mas a transformação de um coadjuvante irrelevante na figura que movimentou a trama nas três últimas temporadas. Cameron foi a cara de uma reformulação na origem de um dos personagens mais icônicos dos quadrinhos e do cinema, e simplesmente deu um show.
Ainda que a trama tenha levado seu(s) personagem(ns) para lugares não muito legais e o texto muitas vezes bobo e super expositivo não tenha ajudado muito, Monaghan criou versões distintas e convincentes de Coringa ao longo dos anos. Facilmente está entre as melhores encarnações do personagem, ainda que seu nome jamais tenha sido citado de verdade.
Em última análise, Gotham foi uma verdadeira metamorfose ambulante nesses cinco anos de exibição. Seu primeiro ano foi um procedural policial dos mais genéricos em estrutura, com casos da semana se destacando, enquanto a investigação da morte dos Wayne por parte de um novato e quase puro James Gordon, se desenrolava ao fundo. Muito pouco para diferenciá-la de outras dezenas de séries policias que estão televisão afora há muitos anos.
A partir do segundo ano as coisas mudaram, os casos da semana dão lugar a uma trama mais longa, que ocupa a primeira metade da temporada. A relação de Gordon com o assassinato que está ligado a origem do herói da cidade sai de cena, surge a relação de Gordon com o submundo do crime e o passado da cidade, além dos constantes testes a moralidade do protagonista. Até ali dava para chamar Gordon de protagonista, pelo menos.
A decisão de dividir a temporada ao meio e ocupar cada metade com um arco dramático próprio foi muito inteligente e esses arcos funcionavam em si mesmos, como boas graphic novels, mas a falta de “coesão artística” sempre esteve no encalço do show. Gotham que começou no limite de um realismo bizarro, mas com uma emulação noir muito clara, foi se transformando numa fantasia quadrinhesca gótica e se encerrou quase tão camp quanto a série do Adam West.
Essa transformação também foi sentida esteticamente, mas não de forma natural, e sim como um descuido na continuidade. A cidade cinza, nublada, fotografada em tons de sépia foi ficando mais escura e com mais neon e depois ficou clara, com ares de metrópole comum. É quase como se saíssemos da Gotham de Zack Snyder pra Gotham de Tim Burton e acabássemos na Gotham de Christopher Nolan, em sua versão de O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Para além da mudança de estrutura narrativa e de visual, hoje é difícil dizer sobre o que foi a série Gotham, afinal. No começo era sobre um iniciante James Gordon e o Departamento de Polícia da Cidade; depois passou a ser sobre Gotham e seus demônios, ou quão bizarra a cidade era a ponto de precisar de um vigilante vestido de morcego; em seus momentos mais frágeis foi sobre um jovem Bruce Wayne, num atrapalhado begins do begins; e em sua última temporada foi sobre coisa alguma, foi um pretexto para amontoar fan services e focar excessivamente na criação de uma mitologia que jamais seria abordada, com um episódio final praticamente desconectado do que foi construído até então, com cara de piloto rejeitado pelo canal CW.
Com um conjunto da obra pouco memorável, Gotham encerra sua jornada de altos e baixos de uma forma decepcionante e que não deixará saudades.
A Frequência Kirlian (1ª Temporada)
4.0 80Há 80 anos, o engenheiro elétrico Semyon Davidovich Kirlian descobriu, por acidente, um método de capturar fotograficamente a aura das pessoas, usando uma placa fotográfica conectada a certa voltagem de energia elétrica, projetando assim uma luminescência curiosa no contorno de seus corpos. Bom, pelo menos essa é a forma que alguns entusiastas da parapsicologia e do esoterismo encaram o fenômeno.
Padre Quevedo diria enfaticamente que isso non ecziste, que o contorno luminoso capturado pelo fotograma de Kirlian nada mais é do que a ionização dos gases e vapores exalados pelo corpo, através dos poros da pele. Nesse caso não importa muito se você é adepto do viés cientifico ou místico, basta entender que o fenômeno capturado pelo fotograma existe e rodeia todos os corpos e objetos, ainda que não possamos vê-lo.
La Frecuencia Kirlian é uma daquelas pérolas que se escondem nos confins do catálogo do Netflix. Uma série animada com episódios de aproximadamente dez minutos, criada por Cristian Ponce. Cada episódio traz um conto de terror independente, mantendo apenas o cenário em comum: Um não-lugar, fora dos mapas e registros, quase inalcançável por pessoas comuns.
Num programa de rádio que vai ao ar todas as noites, a noite toda, um apresentador recebe ligações e conta histórias sombrias que acontecem na cidade de Kirlian, remota e desconhecida em algum lugar da Argentina. Quem é o apresentador ou os personagens das histórias não importa muito, sejam moradores ou visitantes do lugarejo, afinal, sequer conseguimos ver seus rostos. Apenas contornos escuros e olhos brilhantes.
A Cidade de Kirlian é a protagonista aqui, uma protagonista estranha e perturbadora. A gente nunca sabe ao certo o que envolve essa cidade e nem se os cidadãos têm consciência do que acontece em suas ruas, praças e casas. Alguns parecem ser pegos de surpresa pelas loucuras, outros soam bastante familiarizados com o horror que está à espreita. Sabemos apenas que forasteiros não são bem-vindos.
Tem ecos de Edgar Allan Poe, H.P. Lovecraft e Stephen King (o último citado nominalmente) e uma técnica de animação bastante característica, concentrada em sombras, contraste e cores escuras, lembrando um pouco o estilo utilizado no conto das Relíquias da Morte, em Harry Potter, mas com uma pegada mais neon, emulando o próprio efeito das fotografias Kirlian que eu citei no início.
Como o narrador é um locutor de rádio, a narrativa lembra um pouco esse estilo, se assemelhando também a alguns podcasts no formato story telling, principalmente Welcome to Night Vale, um dos mais populares e cultuados podcasts da atualidade. Nesse contexto, fica o elogio ao elenco de dubladores brasileiros que trabalhou na adaptação, não sei dizer se por algum bug, mas a versão com áudio original não estava disponível na Netflix.
Se você é um adepto das narrativas curtas de terror, gosta de séries como Além da Imaginação, Visões Noturnas ou Contos da Cripta, A Frequência Kirlian é uma boa escolha. Um esforço criativo bem original e carismático.
O Nome da Morte
3.4 156Existe entre os especialistas em criminologia um semi consenso do que define um assassino em série ou serial killer, se preferir: mais do que três vítimas com perfil semelhante e um método especifico de atuação em suas mortes. Mas esse não é o único tipo de “matador por atacado”, segundo a escritora Ilana Casoy temos também o assassino impulsivo (ou spree killer), que mata de maneira aleatória, movido por uma necessidade de matar, quase por esporte, sem necessariamente fantasiar com as vítimas. Ou o assassino em massa, que faz de seu crime um evento, com várias vítimas em um único local de uma única vez. São várias formas de catalisar o desejo e a necessidade pela violência.
Mas essas categorias não definem o protagonista de O Nome da Morte, talvez por que num país onde 60 mil pessoas são assassinadas num ano, a violência não é um desejo ou um hobby, é um oficio. Oficio no qual Julio Santana foi funcionário do mês todos os meses por mais de trinta anos, contabilizando quase 500 mortes em seu portfólio. Julio não matava por esporte, fetiche ou necessidade, matava por dinheiro e assim se tornou um expoente de uma profissão ainda muito popular nos rincões do Brasil: a Pistolagem.
O filme dirigido por Henrique Goldman é baseado livremente no livro de mesmo nome, escrito por Klester Cavalcanti, e não é exatamente uma biografia, nos moldes que nos acostumamos a ver no cinema nacional, que elenca cronologicamente acontecimentos da vida de seu protagonista para que o público saiba o que aconteceu e como aconteceu. Tampouco é um estudo de personagem que entra na cabeça do biografado tentando entender os porquês de suas atitudes (ainda que flerte com isso em alguns momentos). É mais como um estudo de situação, que tenta apresentar as circunstancias que levam uma pessoa a escolher a vida do crime em nosso país.
Mas tenta – com certo sucesso – fazer isso sem o uso de filosofismo, sem tomar partido sobre a pureza do homem perante a sociedade corrompida e vice e versa. Ele apenas expõe as coisas, a miséria de alguns lugares do país e a falta de perspectivas que ela gera, a insignificância da vida, a sanha por prosperidade acima de tudo de algumas religiões, a banalização completa da violência e principalmente a impunidade que reina por aqui. Ele também trabalha em humanizar cautelosamente a figura monstruosa do matador, expondo-o como a pessoa comum que pode estar bem perto de você.
Como filme, O Nome da Morte tem um quê de western brasileiro, junto de uma aura de filme de gangster, construindo um vilão de forma que não pareça totalmente odioso. Trabalha com um senso de atemporalidade, sem datar os acontecimentos e usando o número de vítimas como marcador de tempo. A trilha sonora, apesar de bem feita, é muito óbvia. Músicas tristes para momentos tristes, músicas tensas para momentos tensos, como se precisássemos de instrução do que devemos sentir em cada cena, mas nada que comprometa a experiência.
No quesito atuação a obra tem seu ponto mais alto. Marco Pigossi representa bem um homem introspectivo, de poucas palavras, que começa bastante emocional e vai ganhando frieza no decorrer do filme. Os coadjuvantes Fabíula Nascimento e André Mattos também entregam personagens sólidos, mesmo com pouco tempo de tela.
O Nome da Morte é um filme nacional interessante, que dá um viés autoral a uma biografia cem por cento brasileira, falando da tragédia marginal que assola o país sem tirar a responsabilidade do indivíduo, nem amenizar a influência da sociedade. Vale o tempo investido.
O Carma de um Assassino
3.1 53Se você chegou aqui por acaso, talvez não saiba, mas existe um submundo dos filmes de luta. É um submundo muito produtivo, onde se escondem promissores dublês e artistas marciais, ex lutadores de MMA e membros da WWE que não tem o mesmo carisma do The Rock. Um submundo onde dezenas de películas são lançadas todos os anos, geralmente direto em home vídeo. De onde submergiu um atlético Jean Claude Van Damme lá nos anos 80, por exemplo, na época em que alguns desses filmes de luta iam parar nas tardes da tv aberta. O que não acontece mais, infelizmente, no máximo esses filmes passam nas noites da Band, privando assim nossas crianças da boa e velha pancadaria desenfreada. Privando também Scott Adkins, astro maior desse submundo na atualidade, de seu devido reconhecimento.
Scott Adkins e Jesse V. Johnson, astro e diretor de Accident Man, respectivamente, dão aqui o chamado passo maior do que a perna, o famoso morder mais do que pode mastigar, ou qualquer outra variação desse ditado. Tentam entregar um filme um pouco mais ambicioso do que seus portfólios no submundo dos filmes de luta recomenda e acaba faltando substância para isso. As situações e informações fornecidas no início do filme vem tão redondinhas, tão ajeitadinhas, que fica bem evidente a forma que elas se encaixarão no desenrolar da trama. E não tem reviravolta ou subversão, as coisas acontecem exatamente como elas aparentam que vão acontecer. Mas ok, talvez não devamos exigir tanto de Adkins em sua primeira aventura como escritor.
Accident Man tem um senso de estilo familiar, combinando-o com a trama do filme podemos analisar que é como se o Guy Ritchie tentasse dirigir a sua versão de John Wick, mas sofresse um derrame no processo. A violência estilizada, o sotaque carregado e os humores britânico e politicamente incorreto estão aqui, mas numa versão meio “lesada”, principalmente no que diz respeito ao humor agressivo. As piadas que tentam ser mais ácidas, envolvendo o patriotismo e a fleuma britânica ou pautas como ambientalismo e sexualidade não conseguem fazer rir, na verdade elas não conseguem sequer ofender, só soam meio patéticas.
Mas então o filme é ruim, é isso? Não exatamente, caro leitor. Por incrível que pareça, a experiência de assistir Accident Man é boa no contexto correto. Se você é capaz de acessar aquele espirito de quando via O Grande Dragão Branco na tarde de sábado, da época em que você achava que “tijolo não revida” era um exemplo de diálogo bem escrito e que a cena do Van Damme lutando cego era a expressão máxima da sétima arte, digna de uma indicação ao Oscar, você vai curtir esse filme também. Tem arquétipos de personagens fáceis de simpatizar, um protagonista canastrão bad ass, vários coadjuvantes canastrões e bad ass, cenas de ação limpas e bem executadas e o que importa no fim das contas, uma porradaria honesta, bem coreografada e divertida de se ver.
Não é o filme que transformará Scott Adkins no Jean Claude Van Damme dessa geração, mas com um pouco mais de dedicação e sorte ele pode se tornar pelo menos um novo Jason Statham.
Feliz! (1ª Temporada)
4.1 79 Assista AgoraGrant Morrison é um maluco. Qualquer um que tenha lido um quadrinho escrito pelo escocês sabe disso. Mesmo nos seus momentos de sobriedade com a Liga da Justiça, a insanidade conceitual do roteirista estava presente. Não é de se surpreender que uma história que tenha como protagonistas um ex-policial degenerado e um unicórnio azul imaginário tenha saído da sua mente genial e doentia. Não é de se surpreender também que a adaptação de uma obra assim saia do canal SyFy. O que talvez surpreenda é que resultado seja uma das séries mais divertidas da atualidade.
Se a sinopse da série já foi longe demais pra você, melhor nem tentar continuar. É só o começo da total loucura que foi essa primeira temporada de Happy! Enquanto nas entrelinhas acontece uma trama policial convencional, digna de qualquer filme meia boca do Domingo Maior, na sua cara estão sendo jogados personagens que vão de um Papai Noel do Inferno (e não são todos?), até um assassino com fantasias sexuais peculiares e um apresentador de programas infantis com sérios desvios de personalidade. É claro, sem esquecer o unicórnio azul imaginário.
Mas não vamos creditar toda a insanidade ao material fonte, é preciso um diretor tão maluco quanto para dar vida a certas ideias, e aí entra o ótimo trabalho de Brian Taylor, que tem no seu portfólio passagens como Jason Statham transando no meio de um pista de corrida de cavalos, ou ligando uma bateria de carro aos mamilos em Adrenalina 1 e 2, ou Nicolas Cage mijando fogo em Motoqueiro Fantasma: Espirito de Vingança, ou o Nicolas Cage tentando matar os próprios filhos com uma serra tico-tico ao lado de Selma Blair no recente Mom and Dad. E isso não tá nem próximo do que ele “executa” nos cinco episódios que dirige.
Mas para além de uma trama policial e um exercício de degeneração, Happy! conta uma história de redenção natalina. Sim, como se fosse um encontro entre Um Homem de Família e Vicio Frenético, dois filmes com o Nicolas Cage, temos um homem numa espiral de drogas, álcool e autodestruição, mas que no fundo tenta recuperar sua família. Nick Sax é um personagem para quem torcemos ao mesmo tempo em que apreciamos sua desgraça, fisicamente falando. Ele é uma mistura bizarra de John McLane com Wile Coyote, que apanha mais que boi ladrão mas sempre tenta de novo.
E claro, não podemos deixar de falar de Happy, o cavalo azul imaginário, inocente, cheio de boas intenções e até meio bocó, antes de ter contato com o submundo de mafiosos, traficantes e torturadores, é claro. Acredite, o personagem animado brilhantemente dublado por Patton Oswalt é a coisa mais normal que vemos em tela. São oito episódios em que você se pega constantemente pensando “que porra é essa que eu acabei de ver?”
Happy! é uma série agridoce, com um senso de humor bizarro e nenhuma moralidade. É extremamente violenta, mas uma violência caricata, típica dos quadrinhos. É a pedida certa para o fã de experiências estranhas.
Black Mirror (4ª Temporada)
3.8 1,3K Assista AgoraBing. Talvez você se lembre dele. Não, não é aquele buscador, um dos muitos googles genéricos que tem por aí. Bing é o protagonista de Fifteen Million Merits, aquele episódio das bicicletas lá na primeira temporada. É, já faz um tempo, mas talvez você se lembre da trajetória dele. Basicamente, ele cansou daquele ciclo onde tudo se resumia a coisas rasas, a pedalar para consumir, e resolveu botar o dedo na ferida. Subiu no palco e criticou tudo e todos, o sistema, a sociedade, as pessoas mesmo. Todo mundo amou. Mas a revolta genuína fez sucesso demais pra ser um ato isolado. Logo ele virou um produto, sua dose de crítica e revolta semanal. Perdeu toda sua substância, é verdade, mas as pessoas ainda amavam. Mesmo sendo só uma repetição.
Como algo tão marcante, que toca em temas profundos e nos mostra um lado nocivo da nossa vida, pode perder significado tão rapidamente? Virou um produto qualquer.
Isso é muito Black Mirror, né?
Stranger Things (2ª Temporada)
4.3 1,6KNetflix, you got to let me know
Should I stay or should I go?
Acho que os irmãos Duffer não aguentaram a pressão. Achei a temporada fraquíssima. Vou listar alguns dos problemas dessa temporada pra mim. Um dos maiores méritos de Stranger Things na temporada anterior foi trabalhar bem com familiaridades. Os arquétipos de personagem repetidos exaustivamente desde os anos 80 receberam um bom tratamento, mesmo que sem tanta profundidade. E nessa temporada, os irmãos Duffer sequer se esforçaram em trazer arquétipos novos, eles apenas substituíram os personagens. Steve, o bad boy da temporada anterior, alcançou um tipo de “redenção” e foi substituído por Billy. Eleven, a garota “diferente” que foi abraçada pelo grupo de amigos foi se aventurar em outro núcleo, foi trocada por Max. Mudaram-se os nomes, mas o esqueleto é o mesmo. E esses personagens são apenas objetos pro roteiro, já que nenhum deles ganha desenvolvimento no decorrer dos episódios.
Outro erro foi particionar demais os arcos. Enquanto na temporada anterior tínhamos três arcos principais, o grupo das crianças, o trio Steve-Nancy-Jonathan e a dupla Joyce e Hopper, que convergiram no final, nessa temporada temos no mínimo seis mini arcos que não tem nada de relevante para contar. O grupo e a dinâmica entre as crianças, ponto forte do ano um, foi desmantelado, jogando um pra cada lado e tirando toda a importância das ações de cada um. Mike, até então protagonista, foi escanteado e virou nada mais que um papagaio de pirata de Joyce, na busca de ajudar o garoto Will. Esse excesso de mini-histórias acarretou na total quebra de ritmo da temporada. A fluidez que nos fez encarar Stranger Things como “um filme de oito horas” morreu. O excesso de pontos para focar fez a história ficar travada, cinco episódios se passaram e a trama simplesmente não saiu do lugar. E os produtores perceberam isso, tanto que apelaram para um artificio pouco utilizado até então, ao fim de cada capítulo um cliffhanger, para não deixar a atenção se perder e deixando a experiência, antes fluída, totalmente episódica.
Falemos de dois “personagens” inseridos nessa temporada. E as aspas nos personagens é por que eles não são personagens de fato, não tem profundidade ou desenvolvimento para tal. Eles são os famosos plot devices, que foram adicionados da forma mais safada possível. Bob Newby, que também atende a cota de arquétipos dos anos 80, o gordinho nerd bonachão que em algum momento vai se mostrar mais bad ass do que o esperado. Ele aparece do nada e desde o principio sabemos seu destino, sacrificar-se em um momento para que não se queime um protagonista. Dito e feito. A segunda é Kali, a irmã perdida, que ganha um episódio inteiro apenas para exercer sua função: mostrar a Eleven como canalizar seu poder. Apesar dos outros ganchos deixados, essa é sua função primordial.
Há outros pontos bastante questionáveis sobre essa temporada, por exemplo, como Nancy sabia que ao marcar um encontro com os pais da Barbs seria levada para o QG do mal e poderia gravar uma confissão? Por que o jornalista conspirólogo saiu da cidade no meio da investigação? O quão estranha é a relação de cárcere privado a qual Hopper submete Eleven? E não me venha falar de proteção, é só ver a reação dele ao saber que Eleven foi dar um passeio pra perceber que não é saudável a situação em que ela se encontra. Como a garota que mal sabe ver as horas vira caroneira e vai parar em outro estado sozinha? De onde surgiu a ligação maternal de Eleven? Por que os meninos não brincam mais, onde está o RPG (além dos comentários forçadíssimos no último episódio), os passeios de bike?
Os dois últimos episódios foram um pouco superiores aos demais, mesmo que de forma atabalhoada. Por que no fundo, os problemas que se construíram no início da temporada já vieram com uma sugestão de solução. E no fim, a solução foi exatamente aquela projetada no inicio. Os cinco episódios entre os dois primeiros e os dois últimos só serviram pra fazer os personagens rodarem por aí, sem grandes evoluções para a trama e nem para si mesmos. Não houve reviravolta, ou um novo obstáculo. O enredo seguiu exatamente o que se esperava dele, num molde bem parecido do que ocorreu no ano anterior, mas sem o fator novidade. E fica a pergunta, no que a história avançou de fato? A segunda temporada termina com os personagens em situação praticamente igual a anterior.
As referencias ainda estão lá, assim como o carisma do elenco, mas a impressão que ficou é que essa temporada só foi feita para não deixar as crianças espicharem demais, por que não havia nada de novo para mostrar. E também a conclusão de que é um padrão as séries do Netflix terem o dobro de episódios que o necessário. Quero ser otimista e pensar que essa temporada foi um ponto fora da curva, mas a verdade é que os Irmãos Duffer não parecem saber o que fazer com a série. E no momento também não sei o que fazer em relação a ela.
Legion (1ª Temporada)
4.2 286 Assista AgoraRubem Alves tem um texto no qual diz que as pessoas são como donas de pensões, onde cada uma de nossas sub personalidades são hóspedes, que vez ou outra saem de seus quartos pra zoar no hall de entrada, deixando toda bagunça e responsabilidade pela algazarra nas costas de seu senhorio. David Haller não é como os outros, ou como nós. Ele não é dono de uma simples pensão com paredes brancas e janelas azuis, como diria Rubem Alves. Ele está mais para diretor de um manicômio projetado por Salvador Dalí, onde alguns quartos não tem porta e os internos caminham livremente pelos corredores.
Assistir Legion é como fazer um tour sem guia por esse manicômio, entrando e saindo de quartos bagunçados, passando por corredores com uma iluminação diferente e dando de cara com algumas salas trancadas. Salas onde encontraríamos as respostas, eu suponho, mas as quais ainda não temos acesso. Nesse tour encontramos alguns funcionários do local, pessoas que estão ali para ajudar o diretor a entender e controlar tudo o que acontece, mas que por vezes ficam tão perdidos quanto o próprio. Encontramos também os internos, que vivem tomando o controle e causando estragos sérios ao diretor, ao manicômio e até mesmo aos vizinhos que não tem nada a ver com situação.
Assistir Legion também é presenciar um espetáculo sensorial, que mistura inventividade narrativa com poesia visual. O conjunto de cores e sons cria todo um clima de psicodelia, com pitadas de surrealismo, sendo coerente com a construção da trama, que se passa e reflete, em sua maioria, uma mente perturbada e cheia de conflitos. Os trabalhos de iluminação, edição e mixagem de som ganham uma importância narrativa rara de se ver por aí, pois elas não trabalham apenas na construção das situações, mas são manifestações claras das atitudes e habilidades dos personagens.
Mas assim como nem todo mundo teria estrutura para fazer um tour por um manicômio, por motivos óbvios, nem todo mundo terá o desprendimento necessário para comprar a proposta de Legion, por motivos que ficam mais claros no decorrer dos episódios, mas que são sentidos logo de cara. Por exemplo, ao anunciar Legion como um spin-off dos X-Men, o show criado por Noah Hawley ganhou de presente o selo “série de super herói”, coisa que ela não é, pelo menos não nos moldes convencionais. Temos um ou outro conceito similar ao que vemos no universo dos X-Men, mas nada que conecte a série a esse universo. Até o termo mutante é utilizado com bastante cuidado aqui. Essa quebra de expectativas pode ser um dos fatores que tem mantido a audiência abaixo do esperado.
Outro fator que pode afastar o público é que Legion mantém um quê meio experimental, apesar de se adequar ao arquétipo de protagonista da moda, o cara mentalmente quebrado, com claros problemas psiquiátricos, seus caminhos narrativos, seu visual e até o fato de não estar posicionada em uma época especifica, são características não muito comuns na TV e com as quais o consumidor médio de séries pode não se conectar.
É inegável que Legion tem algo de diferente pra oferecer, e o faz com capricho na produção, com atores talentosíssimos e com bastante coragem em sua abordagem, mas é uma série que precisa tomar cuidado para não se perder na própria loucura, ou vai acabar trancada num quarto falando sozinha.
Chance (1ª Temporada)
3.5 18House MD é um exemplo de série cultuada e popular que não me pegou. O pouco que vi achei chatíssima, tanto a estrutura quanto o personagem principal. Nosso santo não bateu. Então quando li a sinopse básica de Chance, nova série do Hulu, fiquei com os dois pés atrás. Série cujo título é o nome do protagonista, que é médico aparentemente fodão e interpretado por Hugh Laurie. Já vi esse filme antes, lá vem mais uma mistura de drama médico com procedural de investigação. Nada de novo no front, certo?
Errado. Muito errado. Chance não é um drama médico e passa longe, mas muito longe mesmo de ser um procedural genérico. Na verdade se trata do melhor exemplo de um thriller noir que eu vi recentemente. Se houvesse uma cartilha de como fazer uma obra noir, Chance seria a transposição dela para a TV. Com exceção da fotografia em preto e branco – que não é exatamente uma regra – todos os elementos que fazem um noir estão aqui. O clima de pessimismo e desesperança, os personagens com uma ambiguidade moral que chega a dar medo, uma femme fatale, pessoas obcecadas, policiais corruptos, assassinatos.
E esses elementos não estão jogados aqui, como uma simples colagem de referências ou algo do tipo. Chance tem uma história interessante a contar. E essa história é contada de forma inteligente, cadenciada, dosando as informações e construindo seus personagens de forma que, por mais que nos identifiquemos com eles, sempre nos mantemos em estado de alerta. A qualquer momento uma nova informação pode mudar o que sabemos e isso acontece frequentemente. É uma série de temas complexos, com uma construção sombria que escancara o senso de decadência que nos rodeia.
A maior riqueza da série são seus personagens, especialmente os quatro que são os motores da trama, Chance, Jaclyn, D e Raymond. Eles apresentam uma complexidade inquietante desde o primeiro momento em que aparecem e essa complexidade não é apenas uma pista falsa, que faz você ficar desconfiado simplesmente para manter o interesse na série. Ela é bem fundamentada, todos os atos, por mais questionáveis que sejam, tem uma motivação real. A medida que a trama vai se desenvolvendo, nossa impressão sobre cada um deles vai mudando e quem é vitima se torna criminoso e vice-e-versa. É uma série que realmente mexe com nossa noção de moralidade, que realmente nos faz questionar se os fins justificam os meios.
O elenco também merece o devido destaque. Que ator fantástico é o Hugh Laurie, a construção de Eldon Chance é impecável, a “involução” do personagem é sentida no olhar, na postura, você percebe o homem definhando moralmente, você sente a sanidade abalada em cada reação, em cada movimento e em cada fio de cabelo que, aparentemente, vai desistindo no decorrer da série. Ethan Suplee interpreta o gigante D, que vai do adorável para o assustador em questão de segundos, mesmo mantendo uma expressão impassível na maior parte do tempo. Sua história é a mais intrigante da série, seu personagem tem muitas camadas e é bastante complicado entende-lo. Sabemos que o seu passado traumático é responsável por suas ações, mas é difícil conectar uma razão aos seus atos. Mesmo assim, D é o personagem mais carismático da série.
Ainda temos Gretchen Mol, que surge como vitima indefesa e passa a se revelar muito mais do que isso. É muito bom vê-la como alguém que está constantemente impersonando alguém, e que sempre parece estar sendo pega na mentira e ativando um gatilho de improvisação. Outra personagem cheia de camadas. E por fim, o policial corrupto Raymond, vivido por Paul Adelstein, um homem perigoso e assustador, que tem menos construção do que os outros três, mas que ainda sim consegue se fazer notar.
Enfim, Chance é uma grande série, inteligente, bem construída e que realmente mexe com quem assiste. Tem pessoas de gabarito na produção, como Lenny Abrahamson, diretor de O Quarto de Jack, que produz e dirige alguns episódios.
Let's Be Evil
1.7 68A primeira e a última cena do filme são bem legais, o problema são os oitenta minutos que estão entre esses dois momentos. Sendo muito gentil podemos tirar um ou outro conceito interessante, como o clima retro futurista. Mas a câmera subjetiva confusa, o jogo de luzes e cores exagerado, os personagens sem carisma, o ritmo arrastado e a história sem pé nem cabeça ferram com tudo. Muito ruim.
The OA (Parte 1)
4.1 980 Assista AgoraNenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo, disse o escritor americano Ernest Hemingway em seu livro “Por quem os sinos dobram”, citanto o poeta inglês John Donne. E sabemos disso, o ser humano é o tal do animal social, cujos instintos obrigaram desde tempos primórdios a conviver em grupos, como uma forma de contornar e superar suas limitações e medos. E em tempos em que somos escravos de nossas próprias necessidades, sempre focados no eu, no sentido mais externo e superficial da expressão, acabamos nos esquecendo um pouco disso, pelo menos até estarmos correndo algum tipo de perigo.
The OA é a nova série original do Netflix, criada pela talentosissíma dupla Brit Marling e Zal Batmanglij, responsáveis pelos excelentes A Outra Terra, A Seita Misteriosa e O Sistema. E é bom que se fique claro por aqui, se você conhece e não gosta desses filmes, dificilmente The OA será uma série pra você, já que o show funciona como uma condensação dos conceitos e estruturas deles, especialmente os dois primeiros. O estilo, o desenvolvimento e até mesmo a base temática conversa bastante com esses outros projetos. Na trama, conhecemos Prairie Johnson (Brit), uma jovem que volta para casa sete anos após desaparecer misteriosamente. Para aumentar o mistério, ela que era cega quando sumiu, voltou enxergando. Ela não fala para ninguém sobre as circunstâncias de seu desaparecimento ou o que aconteceu nesses anos, exceto para um seleto e disfuncional grupo de cinco pessoas que acabara de conhecer e do qual subjetivamente passamos a fazer parte.
Há quem diga que a morte é o maior medo do ser humano. E é uma aposta bastante válida, essa. Mas sabendo de sua inevitabilidade, porque haveríamos de temer? Talvez o medo não seja da morte em si. Teorizamos, pesquisamos e inventamos diversas possibilidades do que pode acontecer depois da morte. Queremos que exista algo, que não seja realmente o fim, mas porquê? Talvez o nosso apego ao mundo material nos faça ter medo do fim, pois ele é vago, incerto e vazio. É como estar sozinho no escuro e não enxergar nada. Não fazer mais parte do mundo como conhecemos. No fundo talvez seja isso, as maiores dores humanas nascem do sentimento de não fazer parte. Não temos medo da morte, temos medo da solidão, do sentimento de não fazer parte de nada.
E voltamos ao tal do animal social, pertencer a um grupo é saudável para nós. Ter alguém com quem compartilhemos o minimo de afinidade, o menor interesse ou objetivo em comum, nos mantém vivos. E quando não encontramos isso em nossas famílias ou amigos, nós formamos novos grupos, nem que para isso tenhamos que nos forçar a acreditar nesse interesse em comum, seja um projeto, uma ideia ou até mesmo uma crença em um suposto ser angelical que faz belos passos de dança contemporânea.
Essa ideia de pertencimento nos ajuda em outros âmbitos também, por que nós seres humanos possuímos uma característica bastante nobre, que pode ser vista como um instinto grupal ou como um dom, nós sentimos a dor do outro. E somos – pelo menos alguns de nós – compelidos a deixar nosso próprio sofrimento de lado para tentar aliviar o sofrimento do próximo. Ajudar os outros nos ajuda. Veja o grupo que se forma ao redor de Prairie, pessoas com todos os tipos de sofrimento, luto, desamor, sacrifício, arrependimento, pessoas deslocadas e sozinhas, que se encontram nesse grupo, e que se esquecem por um momento de seus próprios problemas para ajudar o outro. E nesse momento nem importa quais são as intenções ocultas por trás do gesto.
A narrativa de The OA nos insere nesse contexto de pertencimento, afinal, estamos naquela roda ouvindo a história de Prairie junto com os demais. E compartilhamos de todas as sensações que eles vivem, a desconfiança, o encantamento, a credulidade e até a decepção em certo ponto dos episódios. E se você também acreditou e depois se decepcionou com o desenrolar dos fatos, talvez valha dizer que o desfecho brinca com a magia da simplicidade. Não é necessário um feixe de luz interdimensional, quando uma simples coreografia da Sia resolve o problema, e isso não torna a intervenção menos “milagrosa”, não é mesmo?
Enfim, The OA faz jus ao currículo e ao que este que vos escreve espera desses realizadores. Brinca com ficção cientifica e fantasia, se guia por um mistério, mas é só a capa para um drama que trata de forma cadenciada sobre o nosso senso de pertencimento e sobre a nossa relação com aquele mal irremediável que é a morte, voltando a nos lembrar que é por nós que os sinos dobram.
Pânico Virtual
2.4 97 Assista AgoraEm algum momento Charlie Brooker, criador de Black Mirror, e James Wan, diretor e criador da saga Jogos Mortais, entraram juntos em um avião. E essa frase que parece o inicio de uma piada ruim é a síntese da ideia de Panic Button (que em português ganhou o horrendo título de Pânico Virtual), um filme que, como diriam aquelas frases sensacionalistas que estampam pôsteres por aí a fora, “é o encontro de Jogos Mortais com Black Mirror, dentro de um avião (?!?!)”. Sem a genialidade de Brooker ou a inventividade de Wan, mas ainda sim com uma boa dose de entretenimento.
O filme dirigido por Chris Crow foge um pouco da estrutura comum de um terror de baixo orçamento. É claro que a qualidade das atuações é pra lá de questionável e o cenário e a fotografia são bastante chinfrins, mas o projeto não tenta compensar isso com horror gráfico, sangue jorrando, música alta e jump scares. Ele aposta na tensão criada pela dúvida colocada sobre cada um dos personagens, afinal é um filme de terror e sabemos que em algum momento vai dar merda. A diversão está em especular de onde a merda virá, e cada detalhe exposto sobre o grupo muda a coisa de figura.
E fora esse clima de thriller e mistério, temos o fator “isso é muito Black Mirror, mêo”, que nos faz repensar nosso comportamento na internet e o quanto nossa privacidade está em xeque nos dias de hoje. Não só em relação ao que nós compartilhamos, mas com aquilo que assistimos, lemos, a parte mais passiva da interação. Misturando um pouco os conceitos de Shut up and Dance com Hated in the Nation, respectivamente terceiro e sexto episódios da terceira temporada, Panic Button nos coloca aquela pulga atrás da orelha e nos faz olhar com um pouquinho mais de cuidado para aqueles termos de uso que aceitamos sem nem checar se por acaso estamos cedendo nossa alma ao capiroto.
Não dá pra dizer que Panic Button é um grande filme, mas ele serve para aqueles momentos em que você não tem nada melhor para fazer. Quem gosta daqueles suspenses estilo super-cine deve ficar satisfeito. Tem uma ideia bacana, traz uma reflexão interessante e tem umas referências a clássicos do cinema que fazem os fãs esboçar aquele sorrisinho de canto de boca. É um terror barato que não dói, e o melhor (ou não) é que está na Netflix.
Westworld (1ª Temporada)
4.5 1,3KEscolha o viés metafórico que você quiser, o gênesis judaico-cristão, o mito da caverna de Platão, as pílulas azuis ou vermelhas de Matrix ou a teoria da mente bicameral de Julian Jaynes. Em suas visões e teorizações distintas essas fórmulas visam explicar o mesmo fenômeno, a ignição da auto-consciência humana. Bem como a trama criada por Jonathan Nolan e Lisa Joy em Westworld, que o faz numa embalagem de ficção cientifica pautada por mistérios e quebra-cabeças. O que se prova cada vez mais o grande talento dos irmãos Nolan, trabalhar temas complexos e relevantes em embalagens acessíveis e por que não dizer, comerciais.
Havia no paraíso inúmeras árvores com inúmeros frutos, mas duas delas tinham um valor maior do que as demais: a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. “E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” Diz o livro do Gênesis, em seu segundo capítulo, nos versículos dezesseis e dezessete. Havia também no paraíso o mais astuto dos animais, que tentou e convenceu Eva a comer do fruto da árvore proibida. Estava cometido o pecado original. O crime que resultou na expulsão de Adão e Eva do Paraíso. O crime da consciência.
A ficção cientifica desde sempre se disfarçou de previsão do futuro para escancarar de forma mais palatável e lúdica nosso presente e passado. E em Westworld isso está mais presente do que nunca. A série explora as filosofias por trás do que é ser humano de forma pessimista, inclinando-se a afirmar que a origem da consciência é o inicio de nossos problemas e de nossa ruína como espécie, especulando as maneiras que encontramos diariamente para fugirmos dessa descoberta, analisando os caminhos que buscamos para voltar para nossa caverna. É o que fazemos ao mecanizar nossas vidas. “A autoconsciência não é uma jornada para o alto, mas uma jornada para dentro.” E por isso nos apegamos as coisas externas, por mais banais e efêmeras que sejam.
Estamos totalmente na contramão dos anfitriões. A existência do parque é a prova disso. Enquanto eles dão passos em direção a humanidade, os humanos dão passos em direção á barbárie. Westworld é o lugar para roubar, matar e estuprar sem remorsos. O lugar para abandonar qualquer senso de civilidade e moral. O que pode ser menos humano do que isso? Westworld também desafia as noções de liberdade individual, de poder de escolha, de destino ou da aleatoriedade dos fatos, ao fazer um personagem que representava bem o livre-arbítrio, se tornar apenas mais uma marionete de uma história que já está escrita.
Mas nem só de divagações filosóficas vive essa primeira temporada. Westworld funciona perfeitamente como um “simples” mistério a ser resolvido. Com uma narrativa inteligente que abusa da não linearidade, usando diversos artifícios como rimas visuais, linhas de diálogo soltas e coincidências para deixar pistas àqueles fãs ávidos por teorias e especulações. E satisfaz ao oferecer repostas coerentes para as perguntas levantadas, fazendo desses dez primeiros episódios uma obra coesa que se encerra em si mesma, se necessário.
Tem uma produção impecável, uma trilha sonora sensacional e ainda um show de atuação por parte de Evan Rachel-Wood, Thandie Newton, Ed Harris e Jeffrey Wright, além de uma verdadeira aula de Anthony Hopkins, que coloca o Dr. Ford no seu rol de grandes criações.
Westworld é uma obra importantíssima, pois vai muito além de entreter, ela questiona e leva o espectador a também fazê-lo. Uma ficção cientifica muito bem pensada e conduzida, que sem a menor sombra de dúvida, é a grande série de 2016.
Goliath (1ª Temporada)
4.1 32 Assista AgoraHá vários estudos que confirmam algo que já sabemos há algum tempo: o lugar-comum nos agrada. Gostamos do conhecido, do repetido. Por isso vemos o mesmo filme dez vezes, pelo fato de que o nosso cérebro já sabe a recompensa que vai receber, seja satisfação, emoção alegria ou relaxamento. E por que é mais seguro também, arriscar experimentar algo novo aumenta a chance de decepção. Creio que, talvez em menor escala, essa teoria também se aplique a fórmulas. Nós nos apegamos a elas. No fundo nós amamos os clichês, basta que eles sejam minimamente bem trabalhados. E Goliath faz isso de forma primorosa, sem arriscar ou inovar, mas sendo honesto em suas pretensões e métodos.
Goliath acompanha William “Billy” McBride, um advogado que já fora grande coisa, co-fundador de uma gigantesca firma de advocacia, mas que hoje encara a decadência, graças ás consequências de um grande caso, que o levou ao alcoolismo e consequentemente ao divórcio. Mas Billy tem a chance de dar a volta por cima, ou pelo menos colocar algumas coisas nos trilhos, quando aceita um caso contra uma grande empresa de segurança e fabricante de armamentos, que coincidentemente é representada por seu antigo escritório. E o que parece um caso relativamente simples, acaba desencadeando acontecimentos que colocam em risco não só sua chance de redenção, como sua própria vida.
É uma sinopse clichê, sim, e nem podemos dizer que ela é trabalhada de forma inovadora. A estrutura da série é bem comum, com um desenvolvimento de narrativa equilibrado e uma sucessão de mistérios que sempre conseguem segurar o espectador por pelo menos mais um episódio. Mas se as maiores qualidades de Goliath não estão na história em si e nem na forma de conta-la, onde elas estão? O que a fez se tornar a série mais vista da história do serviço de streaming da Amazon, em apenas dez dias?
Se eu fosse apostar, diria que foi o conjunto atores/personagens. O elenco de Goliath é primoroso e seus personagens são muito bons, cada um no seu estilo. A começar por Billy McBride, vivido por Billy Bob Thornton, personagem que evoluí e involui no decorrer da temporada, nas mãos de um dedicado Thornton, com sua postura e olhar melancólicos, que nos mostra sem nos dizer o homem que ele foi um dia. Um advogado que ao mesmo tempo busca certa redenção, sofre com os baques do caso e acaba minguando suas forças por causa disso. Uma atuação que deve ser agraciada com algumas indicações nos prêmios por aí.
Como seu Golias, temos o personagem de William Hurt, que se diverte ao compor um vilão com características caricaturais dignas de um oponente de James Bond. Ele tem aversão a claridade, tem parte do rosto deformado, ouve música clássica, fica isolado no topo de um prédio e traz em si aquele tipo de serenidade assustadora. Maria Bello é Michelle, ex-mulher de Billy e uma das sócias do grande escritório, e constrói a personagem que parece ser a ilha de bom senso em meio ao oceano de absurdos que os outros personagens cometem. E Maria consegue transparecer em poucas aparições, o fato de que sua personagem é quem mais tem coisas em jogo nesse imbróglio todo. E são só os três destaques, ainda temos muitos outros atores dedicados aos seus bons personagens, como Olivia Thirlby, Nina Arianda, Molly Parker, Diana Hopper, Tania Raymonde e Harold Perrineau.
Goliath é o tipo de série que não dói. Entretenimento honesto que se ancora em seu belo elenco e na familiaridade de seus temas para cativar o espectador. Não é revolucionária, mas é agradável e tem tudo pra ser a série de tribunal que você vai querer ver.
Channel Zero: Candle Cove (1ª Temporada)
3.4 98Se fosse para descrever essa primeira temporada em apenas uma palavra, com certeza seria “estranha”. No sentido de fugir de padrões, tanto de desenvolvimento de narrativa, quanto da criação do terror propriamente dito. Por meio de flashbacks vamos descobrindo os acontecimentos do passado e como eles se conectam com os do presente. E por meio de uma fotografia esfumaçada que cria uma atmosfera quase onírica, somos sempre colocados em dúvida, se o que está sendo mostrado está acontecendo de fato ou não.
Fugindo do modus operandi do horror atual, Candle Cove escolhe um caminho minimalista para aterrorizar o espectador. Sem jump scares, sem alternações constantes de volume e sem trilhas sonoras opressoras. As coisas se desenrolam calmamente e as cenas mais assustadoras são inseridas sem aviso prévio, de forma quase casual, o que reforça ainda mais o nível de estranheza. Você sai de uma cena corriqueira para uma bizarríssima, depois volta para a cena corriqueira como se nada tivesse acontecido. É uma forma de chocar o espectador sem apelações, apenas pelo inesperado da situação.
Candle Cove também ganha pontos por um senso de familiaridade em muitos aspectos. Primeiro ao lidar com memória e nostalgia de uma forma inteligente, sabendo usar a questão das falhas e das lacunas que envolvem a maioria das nossas lembranças e a capacidade que elas tem de nos trair. Em segundo num sentido mais referencial, a série de Nick Antosca conversa com muitas obras populares e queridas nos mais diversos âmbitos. Impossível não lembrar do estilo Stephen King de se trabalhar o horror, da estética que ora evoca John Carpenter e ora vai de encontro a David Lynch. Ainda temos umas pitadas de Além de Imaginação aqui e um pouco de It Follows acolá.
E tem mais, em alguns momentos a série se apresenta como um “Stranger Things reverso”, onde a memória dos anos oitenta deixa de ser tratada como lugar de conforto e vira lugar de trauma. Onde o foco na personalidade infantil deixa de ser a inocência e o carisma, e passa a ser a crueldade e a volatilidade. Como se saíssemos de Goonies e fossemos direto para a Cidade dos Amaldiçoados.
A estranheza também está presente nas atuações, Paul Schneider tem um desempenho propositalmente incomodo. Sua fala, sua postura e suas expressões trazem uma aura de falsa tranquilidade, de falso controle, e ele sempre parece saber mais do que está dizendo. É uma atuação que dificulta a empatia por seu personagem, mas de forma proposital, o mesmo desconforto que temos com ele é o desconforto que os outros personagens tem em sua presença. Desconforto bem retratado por Fiona Shaw, por exemplo, que vive sua mãe, que nunca parece estar bem na companhia do filho, com um olhar sempre desconfiado e uma postura sempre de distanciamento.
Candle Cove conseguiu criar em seis episódios uma aura de horror psicológico fascinante, trabalhando com figuras e temas fáceis de conectar ao medo, como crianças assustadoras, televisões com estática, fantoches e bonecos bizarros e um incessante clima de pesadelo, mas trabalhando essas figuras comuns de uma forma pouco usual. É um começo mais do que promissor para essa antologia, que já tem a segunda temporada encomendada para 2017, onde adaptará outra famosa creepypasta, chamada A Casa Sem Fim. Dentre as várias opções de terror televisivo que temos hoje em dia, Candle Cove mostrou ser o mais criativo na forma de desenvolver sua história. Uma série que merece ser vista.
Black Mirror (3ª Temporada)
4.5 1,3K Assista AgoraEntre todos os temas, abordagens e assuntos tratados na mais recente temporada de Black Mirror, existe uma palavra que percorre cada um dos seis episódios: Fuga. Não é de hoje que a criação de Charlie Brooker fala disso, é verdade, desde o principio, na elaboração da identidade da obra, se notou a criação de um universo rico em tecnologias que serviam sutilmente a um propósito, o de fugir. Fugir do esquecimento, das imperfeições e sensações humanas, das coisas que supostamente fazem mal, mas que na verdade constroem o que somos: seres em fuga.
Lacie está em fuga. Ela foge do ostracismo social. Quer ser reconhecida, notada e com isso ascender em popularidade. O que no seu contexto tem efeitos práticos, como o direito de alugar um carro melhor ou de ganhar um belo desconto na hipoteca. Para isso ela foge. Foge de qualquer autenticidade, da sua própria personalidade. Suas reações são ensaiadas, mecânicas e totalmente vazias. O ato de cumprimentar alguém, elogiar, puxar uma conversa, tudo tem uma segunda intenção muito clara, ganhar uma boa avaliação. Fazendo isso ela foge. Foge de uma característica humana natural e universal, a imperfeição. Não há espaço para imperfeições na vida de Lacie, tudo tem que ser perfeito, bonito e feliz.
Seu irmão Ryan também foge. Foge dessa vida mecanizada, de aparências. Ou aparenta fugir das aparências, pois se preocupa em conferir o que o seu desapego ao sistema vai gerar de aprovação. Naomie foge. Foge de Lacie, inclusive. Ao perceber que sua companhia já não lhe trará benefícios, ela foge daqueles que não tem “nada” a oferecer. Em fuga Lacie descobre que não tem pra onde fugir. Quando é alcançada por todas as sensações das quais vinha fugindo, Lacie se liberta, em um momento catártico, onde é rejeitada por aqueles que ainda fogem e acaba encarcerada, sendo que paradoxalmente, nunca se sentiu mais livre.
Livre como Cooper. O aventureiro que está em sua última parada no mochilão ao redor do mundo. Cooper está literalmente em fuga. De um passado recente de dor e perda. De encarar suas responsabilidades práticas e emocionais, como adulto e como filho. Ele foge de conexões emocionais e do ônus que elas trazem, no caso, mais dor e perda. Cooper foge por que tem medo. O medo de aceitar os momentos ruins da vida, os momentos de tristeza. E é seu medo que será testado em sua nova escolha de emprego temporário.
A ironia do destino aqui é que a fuga literal de Cooper se encontra com um belo mecanismo moderno de fuga da realidade, os games, e acaba levando Cooper pra dentro de si mesmo. Quase que literalmente. E esse deve ser o mais assustador dos lugares para aqueles que vivem fugindo. Dentro de si mesmo você é obrigado a encarar seus medos. Dentro de si mesmo você não tem para onde fugir. E se quando chegar a hora você não tiver força para vencer seus medos, a tendência é o colapso.
Kenny talvez seja o que mais foge. Internamente ele parece fugir de quem ele é, como a maioria dos adolescentes. E quando pessoas misteriosas ameaçam divulgar um vídeo que mostrará ao mundo o que ele faz, ele foge. Foge do confronto, cedendo a chantagens e fazendo coisas perigosas para fugir da responsabilidade por suas ações. Kenny está dominado. A crescente de conflitos e situações culmina na colisão. Ninguém ali consegue fugir, nem mesmo o espectador. A ironia fina de Black Mirror nesse episódio é fazer quem assiste querer fugir, de uma responsabilidade por ter torcido pelos personagens, fugir do fato de que fizemos um juízo de caráter antes da hora. Fugir do fato de que sempre fazemos isso.
San Junipero fala de outras fugas, com certa leveza e um pouco mais de otimismo, pelo menos na superfície. Yorkie é uma jovem tímida que foge de um estilo de vida que foi imposto a ela. Ela quer se encontrar, descobrir quem realmente é. E o faz em um lugar (ou não lugar), que por si só é um ponto de encontro de pessoas em fuga. Kelly também foge. Foge de compromissos, mas principalmente foge de envolvimentos emocionais, que como já dissemos aqui, tendem causar dor e perda em um momento ou outro. Com objetivos opostos elas se encontram, desencontram e acabam se completando.
Mas o encontro não é tão simples assim. Com histórias de vida e visões de mundo diferentes, suas fugas acabam entrando em conflito. A iminência da morte traz a tona essa cisão. Enquanto uma vê o “mal inevitável” como forma de fugir das lembranças de uma vida que teve seus bons momentos, mas também teve momentos ruins, a outra enxerga uma oportunidade de fugir do fim, transformando-o em um novo começo, onde poderá levar a vida que não pode levar em vida. Não é a primeira vez que a série conta uma história de amor, mas dentro de seu contexto, trazendo reflexões sobre a morte e a tentativa de fugir dela, é a primeira a ter um desfecho relativamente feliz.
Em Engenharia Reversa vemos a mais perigosa das fugas. A fuga de uma das características naturais que nos torna diferente e é fundamental na perpetuação do humano como espécie: a empatia, que é anulada numa versão tecnológica de um mecanismo já muito comum hoje em dia, a desumanização do outro. Não ver o outro como igual é uma forma de fugir da responsabilidade por seus atos contra ele. Fugir do remorso. Do peso na consciência. É a pedra basilar dos discursos de ódio e das propagandas de guerra. O título do episódio em português faz muito sentido nesse contexto, pois o ser humano é desmontado, para ter retirado de si parte de sua essência. Para fazer o que os assassinos fazem é preciso fugir da humanidade.
O desfecho da temporada não poderia ser mais simbólico. E a fuga aqui não é de nenhum personagem em especial, mas sim da sociedade como um todo. Usando como pano de fundo uma campanha de ódio na internet que pode estar vitimando pessoas na vida real, vemos a facilidade com que as pessoas se apegam aos erros alheios para fugir da responsabilidade pelos seus próprios. Exaltam os defeitos dos outros para não ter que encarar os seus. É a base para julgamentos e acusações, que aqui vem em forma de social media shaming. Essas pessoas ainda contam com o anonimato, para fugir do flagrante e das consequências.
Mas é impossível fugir, é o recado que a última cena desse episódio nos deixa. Acredite você em karma, destino, punição divina ou em nada disso, é impossível fugir. Black Mirror nos convida a olhar para nossa própria vida e encarar aquilo que temos que encarar. Façamos isso voluntariamente, ou soframos intensamente quando acontecer. Por que mais cedo ou mais tarde, todos seremos pegos.
Zoom
3.3 127Cara, é um filme estranho. A ideia é interessante, toda a metalinguagem que o filme usa pra analisar a relação do autor com a sua obra. Tem uma crítica aos padrões de beleza e tal, mas a execução é meio bizarra. É o tipo de filme que termina e você não sabe dizer se gostou ou não. Acho que pela criatividade vale a pena, mas não é um filme fácil de recomendar.
(500) Dias com Ela
4.0 5,7K Assista AgoraAcho que o filme fala basicamente sobre incompatibilidade, não há lado certo ou errado. São duas pessoas incompatíveis em suas expectativas e planos, em sua visão sobre o amor e relacionamentos. Acho que esse duelo de pontos de vista tem mais a ver com a insistência em encontrar culpados ou responsáveis por fracassos de qualquer tipo, e não acho que ela caia sempre para o amor, pelo contrário, é sempre jogada para as pessoas, de um lado para o outro.
"A verdade é que ambos são pessoas com ideias completamente erradas sobre o amor." E qual é a certa? Até onde eu sei é a que funciona pra cada casal, não é algo padronizado. Chama-lo de imaturo, chama-la de egoísta, é só a maneira de responsabilizá-los por algo que não é da alçada deles: uma natural incompatibilidade,que não é, ou não precisa ser culpa de alguém.
O Lamento
3.9 433 Assista AgoraNão deis lugar ao diabo, pois em qualquer brecha o inimigo faz a festa. Uma frase feita, típica de pregações neopentecostais, mas que numa análise menos teológica pode se referir ás várias concepções a respeito do mal, seja ele filosófico, metafórico, espiritual, ou até mesmo físico.
Com um desenrolar cadenciado, O Lamento nos conta uma história essencialmente folclórica, sobre guardiões, demônios, xamãs e sobre uma parte interessante da cultura oriental que conversa bastante com as noções religiosas ocidentais. Mas indo além dessa leitura, podemos ver as várias maneiras que o mal tem para entrar na vida das pessoas, disfarçado de proteção, disfarçado de boa intenção, de conexão com o divino. Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você, dizia Friedrich Nietzsche. Dependendo de como você combate o mal, acaba se tornando o mal, ou abrindo a porta para ele. É um dos recados que esse filme passa.
Ele fala sobre o pecado, não exatamente numa concepção religiosa, mas humana, mostrando como é tênue a linha que separa a culpa da inocência, questionando onde a busca por justiça se transforma em vingança. Nesse sentido podemos sentir uma forte crítica ao uso que as pessoas dão á religião e a fé e o poder destrutivo de falsos guias e profetas.
O roteiro brinca com as expectativas, contando uma história relativamente simples de uma forma complexa, mas não indecifrável ou inacessível. Ele apresenta seus personagens e vai os construindo de maneira dúbia, sem explicar quem é quem e quais são suas reais intenções, nos dizendo muito em cenas que aparentemente não tem grande propósito. E é nesse ponto que o filme dá uma leve derrapada, ele exige atenção aos detalhes, o que não seria um problema não fossem as duas horas e quarenta de duração. Em alguns momentos o desenvolvimento fica um pouco enfadonho, mas não é nada que chega a comprometer.
O conjunto fotografia + trilha sonora funciona bem demais, é uma combinação imersiva, que nos coloca no meio daquela vila e ao mesmo tempo nos dá a impressão de que tem alguém ou algo na espreita. Nesse ponto a gente se lembra que é um filme de terror, que aliás, caminha entre alguns subgêneros, como o de possessão e o de contágio, chegando a flertar com os zumbis em alguns momentos. E o filme consegue construir uma atmosfera de horror sem apelar aos truques típicos do gênero, como jump scares e alterações de volume.
Enfim, O Lamento é um grande filme, horror atmosférico, repleto de mistério e com muita a coisa a dizer em suas entrelinhas. Um dos belos exemplares do gênero nos últimos anos.
O Bosque de Karadima
3.4 10O atual vencedor do Oscar de melhor filme, Spotlight – Segredos Revelados abordou um tema bastante polêmico: o abuso sexual cometido por sacerdotes e o encobrimento realizado pelos altos níveis da igreja católica. Um filme incrível, mas que tratou do assunto pelo viés jornalístico e investigativo, tendo como protagonista a equipe de repórteres do The Boston Globe que trouxe a história a público. No mesmo ano, porém, foi lançado um filme bem menos badalado, mas não menos relevante sobre esse assunto.
El Bosque de Karadima, do diretor Matias Lira, conta a história de um dos maiores escândalos envolvendo sacerdotes na América Latina. Escândalo protagonizado por Fernando Karadima, famoso pároco e personalidade chilena, amigo das elites politicas, formador de algumas dezenas de padres e condenado a uma vida de penitência pelo Vaticano por suas décadas de abuso sexual e psicológico cometidos contra vários seminaristas e até fiéis de sua paróquia. Mas diferente de Spotlight, a abordagem do filme de Lira é bem menos jornalística e muito mais pessoal, quase patológica, deixando de lado os melindres burocráticos a respeito dos mecanismos de defesa dessa instituição poderosíssima.
O foco aqui é a vitima, e é do ponto de vista dela que a história é contada. Thomas Leyton, vivido brilhantemente por Benjamín Vicuña, é um jovem com suas inseguranças e confusões, em relação a sua função, a uma provável vocação religiosa, a sua família e a sua sexualidade. Um jovem que vê no Padre Karadima (Luis Gnecco), uma mistura de figura paterna e guia espiritual. Uma figura que se aproveita de todas as fraquezas e incertezas de Leyton para iniciar uma história de abuso que durará até sua vida adulta.
De certa forma, o filme nos mostra um caso de dependência psicológica causada por uma vida de abusos, quase como uma síndrome de Estocolmo. O histórico de Leyton, a sua experiência familiar, tudo isso o faz desenvolver uma espécie de incapacidade de reagir, de responder as situações pelo qual ele passa. O tipo de quadro que vemos em casos de assédio moral, de violência doméstica. É uma situação que fica bem clara em alguns diálogos entre Leyton e o Padre para quem ele conta sua história. Por qual razão ele não consegue se livrar dessa situação? O que o faz ainda nutrir um tipo bizarro de afeto ou respeito pela figura que lhe causa tanto mal? É uma tentativa inconsciente de amenizar essa situação terrível? É algo que a psicologia talvez consiga responder, mas que o roteiro apenas especula.
El Bosque de Karadima acaba sendo um filme incomodo, por vários motivos, primeiro pela forma lenta que a narrativa encontra para desenvolver esse trauma, o que acaba “traumatizando” o espectador também. Segundo por que ele testa nossa capacidade de ter empatia, apresentando uma história que caminha do limite da culpabilização da vitima. E uma culpabilização que não vem apenas de terceiros, mas da própria vitima. Algo que reforça o quão profunda é a cicatriz emocional que um caso desses pode causar. Vale dizer que esse incomodo parece proposital, na intenção de botar o dedo na ferida, nos fazer refletir sobre as figuras em quem depositamos confiança, tenha motivação religiosa ou não, ou nos julgamentos que realizamos, ao responsabilizar as pessoas por coisas sobre as quais elas não tem o menor controle.
É um filme relevante em várias esferas, na de denúncia, na de análise psicológica e até na de crítica comportamental e estudo social. Aborda a relação das pessoas com a fé e com as instituições que a “representam” e a força devastadora de um trauma. É um filme forte, que não deve agradar a todo tipo de público, mas que vale a pena ser visto. Tem no Netflix.
The Dark Side of The Moon
3.0 3Há 130 anos o escritor escocês Robert Louis Stevenson publicou um dos romances mais influentes da história da literatura mundial, Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde, ou O médico e o monstro, em bom português. Umas das primeiras obras populares a tratar da teoria de que o mal habita em todos nós e que a nossa principal habilidade é mantê-lo escondido. Entre as notáveis figuras que leram esse romance está o Dr. Philip Zimbardo, renomado psicólogo que se dedicou a estudar esse estranho fenômeno que faz pessoas boas cruzarem a linha e cometer atrocidades, fenômeno que ele chamou de Efeito Lúcifer. Fenômeno que além de chamar a atenção de estudiosos do comportamento humano, inspira obras artísticas de todo tipo, como o thriller alemão Die dunkle Seite des Mondes, um filme um tanto quanto curioso que adapta o romance homônimo de Martin Suter.
Um dos desdobramentos curiosos do Efeito Lúcifer é a facilidade em encontrar “boas desculpas”. Sempre vai ter uma, foi por um bom motivo, foi por que a situação pediu, foi por que era a única saída, foi por que eu estava sob o efeito de um cogumelo alucinógeno. Atos de maldade raramente vêm sem uma justificativa plausível (pra quem o comete, é claro). E o poder de achar a desculpa para a violência talvez seja o que nos diferencie de um animal. Violência na natureza selvagem tem a ver com sobrevivência, não com maldade. Talvez isso explique a relação de Urs com a floresta e a importância que ela tem na trama.
Aliás, que floresta bem capturada. Um dos grandes méritos de Die dunkle Seite des Mondes é sua beleza. O filme é esteticamente incrível, sua fotografia, a iluminação e as paisagens escolhidas também. Tudo colabora pra criação do clima de suspense psicodélico, quase chegando na fantasia. Outra grande qualidade está nas atuações, até então só tinha visto Moritz Bleibtreu como coadjuvante em filmes americanos, mas seu trabalho é incrível aqui. Ele consegue transmitir a transição da segurança do grande executivo, para a fraqueza do animal violento e descontrolado.
No entanto, apesar de abordar um tema interessante, ter uma produção impecável e contar com um elenco inspirado, é na convergência desses fatores que o filme dá uma pequena derrapada. Como filme, o resultado é estranho, meio instável, mas não ruim. Só é um resultado diferente. No fim, o filme acaba sendo mesmo como uma viagem ao lado escuro da lua, mas que para alguns pode ser uma bela bad trip.
Crush the Skull
2.8 13O filme é barato, tanto que alguns aspectos remetem a produções quase amadoras. Cenários, trilha sonora, figurinos, fotografia, é tudo bem “estranho”. Mas um bom texto, o carisma e esforço dos atores e o conhecimento dos gêneros abordados, transformam o projeto em um filme divertidíssimo, com uma história derivada, mas que é bem contada com seus diálogos debochados e suas ótimas piadas.
A estreia de Nguyen é um belo cartão de visitas, pois aqui ele demonstra saber trabalhar com poucos recursos, além de coordenar muito bem dois gêneros que só funcionam juntos em mãos extremamente talentosas. O filme é inteligente, constrói bem seus momentos de tensão, mas o ponto forte é no senso de humor. Ele brinca com estereótipos, acerta a mão no humor negro e subverte os clichês, se rendendo a alguns, é verdade, mas de maneira bem coerente, num filme interessante e divertido. Ele ainda apresenta aos amantes do gênero três nomes promissores: Nguyen como diretor e roteirista, Chris Dinh como ator e roteirista e a belíssima Katie Savoy como atriz. Vale a pena ver e observar o que vem por aí para esse pessoal.
E não se esqueça, CRUSH THE SKULL ALWAYS!
A Rota de Colisão
3.3 103 Assista AgoraO projeto tem uma aura de filme de sobrevivência, mas tem muito mais a dizer. É um filme que explora os limites do ser humano, analisando as circunstâncias que podem fazê-lo colapsar. E também pode ser encarado como uma análise interna, dos dois lados que todos temos, o impulsivo e o controlado, o sonhador e o sóbrio e como um acaba matando o outro, tornando quase impossível um “meio-termo”. Lembra, de forma um pouco menos metafórica, o ótimo “O Homem Duplicado”. É um filme ágil e interessante, que mistura comédia com drama, conta com uma ótima atuação de Josh Duhamel e um final um tanto quanto enigmático.
The Yard
4.7 13A série segue o modelo mockumentary, ao estilo The Office, com depoimentos dos personagens em meio à ação, e mostra como funciona aquele microuniverso do pátio. Os grupinhos, as regras de convivência, a economia e tudo o mais. O que é curioso nessa premissa, aparentemente simples, é a quantidade de análises que ela abre e o número de instâncias em que ela funciona. Os episódios são engraçados, tem um ritmo agradável e momentos muito fofinhos, mas essa é só a primeira camada do show.
A segunda camada traz á tona um pensamento bem comum e que você já deve ter parado pra analisar, que é a semelhança entre a dinâmica de um colégio e a dinâmica de um presidio, especialmente no que diz respeito às relações entre as pessoas. As “facções” que se formam, as disputas por controle, busca por respeito e status, regras e formas de quebra-las, o fato de você não poder esfaquear seu colega do lado, entre outras coisas. Uma correlação interessante e feita de forma bem estruturada.
Na terceira camada é que a série realmente brilha, The Yard usa o universo infantil para tratar de temas relevantes e até polêmicos, temas como politica, que vão de intervencionismo estatal até liberalismo econômico, inflação, livre-mercado e concorrência entre moedas. Tráfico, proibição do consumo de drogas e criminalidade também são abordados. Ainda se fala sobre relacionamentos, equidade entre os sexos, disputas territoriais mundo afora, pobreza, crises migratória e muito mais. Tudo adaptado de forma precisa para a realidade infantil, preservando a inocência de seu ponto de vista e um teor didático sobre os temas, mas adicionando uma camada crítica, com um humor que varia entre o adorável e o ácido.
É uma escolha inteligente tratar de temas assim de forma didática e num universo agradável, pois dribla a resistência que o público médio apresenta para com esses assuntos. É a mais perfeita combinação entre educação e entretenimento que eu vi em muito tempo e vale quase como uma daquelas palestras de “como funciona a sociedade”. Tem um elenco carismático, histórias bem amarradas, personagens críveis e um ambiente familiar pra quase cem por cento dos espectadores. Uma obra incrível que traz o selo HBO de qualidade e merece ser conhecida por muito mais gente.