o progresso da trama é bastante simples e até meio sumário, sem grandes inovações de narrativa, nem plots geniais, o que faz com que a primeira parte da obra exija uma paciência de elefante, justamente na medida em que é um enredo ordinário. porém, a metade final reserva uma representação do inferno que faz tudo valer a pena. nobuo nakagawa leva a câmera até as mais diversas "alas" subterrâneas e nos apresenta uma visão dantesca e intrigante do inferno. a coletânea de pecados, a confusão, a penumbra hostil, a pele arrancada, os ossos expostos, os gritos de desacolhimento e os dissabores desse subsolo tenebroso, tudo isso condensa uma vista funesta do inferno imaginado através dos elementos da cultura japonesa
uma peça-obra-odisseia sobre os labirintos obscuros e marginais da velada e eternamente ficcional "virginalidade" de uma cidade florida e sossegada e de um jovem simples representados numa suposta nessa fachada de pureza e ordem. uma investigação que termina gerando uma iluminação às avessas, uma peregrinação periférica por entre a textura-doçura do veludo azul que encobre subterrâneos de desvios, loucuras e fetichismos... gosto muito desse universo teatral lynchiano cheinho de imagens-obsessões-violências que vão surgindo em forma de fragmentos na face cândida de um lugar tranquilo que se assenta sobre um subsolo de perversidade, taras e aflições. me fez ter ainda mais vontade de descobrir todas as nuances das subliminaridades e sentidos nas obras do grande david lynch
quem sabe finis hominis seja, e com muita razão, a obra mais distinta e mais cheia de semânticas heréticas de todos os trabalhos do mojica. o filme é todinho recortado por cenas que denotam um certo deboche-blasfêmia das crenças, dos costumes e da mentalidade da sociedade da época. o diretor se diverte através de episódicas e pontuais visões de profanidades e paganismos: a nudez inicial já coloca o profeta fora do mundo, em uma posição pagã diante da moralidade fingida e das hipocrisias ontológicas de quem vive "dentro" do mundo, atolado nas convenções irrefletidas e irremediáveis da vida comunitária. até mesmo a equivalência entre a profecia e a loucura vale alguma meditação sobre os conceitos que ergueram quase todas as sociedades. ninguém confessa que é um canalha ou um imoral, é justamente a dissimulação a grande marca da vida social
a caracterização áspera dos personagens como pessoas ordinariamente comuns e, portanto, nem heróis sem defeitos, tampouco vilões malignos; uma história tão poética quanto crua e real capaz de desvelar todas as suas feridas sociais, desejos profundos e carências existenciais. acredito que essa é a maior virtude do realismo cinematográfico! o triângulo amoroso é inteirinho construído, tijolo por tijolo, com as inseguranças e angústias de cada um, e uma equivalência justificada das agonias de todos. isso é válido justamente na impossibilidade de encontrar culpados indiscutíveis nas pequenas tragédias que acontecem durante a trama e de extrair uma moral (todo mundo tem razão no que faz ou deixa de fazer)
o curta é todinho cercado de um clima de tensão, de atração sexual, de voyeurismo, desejo e repulsa. parece incorporar um simbolismo poético e até mesmo lúgubre sobre os amores, as paixões e todas as complexidades que envolvem as relações humanas e as aflições entre feminino e masculino. são recortes desse momento sombroso e iluminado de um fervor desejoso e inspiração, mas também de dominação e subjugação, já que o seu binóculo parece sugerir alguma investigação e domínio relacional do tipo sujeito-objeto. é uma bonita expressão polissêmica sobre a sublimidade e a feiura das relações amorosas! é um trabalho um tantão ambíguo, já que seu tema poderia ser a intimidade e a proximidade, assim como o distanciamento e o estranhamento
uma animação pictórica, onírica e surreal como simbolismo das dilacerações da alma! que belíssima conjunção de artes temos nesse curta sombrio, fatal e poético do petrov! é talvez uma das obras que melhor explorou a densa atmosfera de terror e morbidez que orbita em dostoiésvki; o clima soturno e desesperançoso causado pelos horrores da guerra e o seu terrível processo de desumanização são projetados através de pinceladas grossas e brutas; a guerra é um vazio! o futuro é um nada! porém, nessa terra "recheada" de esvaziamentos, alguns fatos puros e intocados ainda podem nos entregar uma quieta e brevíssima nostalgia do éden perdido... é um recorte quimérico de fé, um sonho como resolução da realidade, mas que de todo modo acaba em chamas, pó e ruínas
achei tão sensual esse frenesi violeta-púrpura que atua como perspectiva estética de um cinema gestual-abstrato; essa impermanência das imagens moldam uma fila de novidades sobre a banalidade dos atos... segurar um cigarro entre os dedos, ou descascar um ovo, se contemplados dentro da sugestão delirante dos atos, pode até nos convencer dos novos significados e das semânticas possivelmente inventadas pela película magenta do diretor, já que a tremenda alternância imagética-psicótica-colorida funda um tipo de abstracionismo nas figuras; a obra pode até sugerir, através da trivialidade dos gestos, uma coleção de neologismos das mãos!
surrealismo sublime & pesadíssimo! é um traço despojado e sem muitas cerimônias, mas que vai guiando o espectador numa coleção interminável de metamorfoses imagéticas e lisérgicas das dolorosas reminiscências da dançarina; o chapéu vai alterando sua forma e encaminhando esse montante medonho de lembranças-perturbações enquanto a moça dança nua em um bar; um curta pesado e terrível sobre todos os tipos de sofrimentos psicossexuais da infância: a imagem permanente do agressor que acossa e persegue durante a existência toda; a tinta preta que a cournoyer utiliza materializa essa tremenda inquietação febril da memória indelével do assédio que surge repentinamente como uma punhalada
achei do caralho essa animação empregada nesse trabalho esquecido e de caráter fragmentário; nada como uma boa leitura certeira e aguda sobre o ser humano! deve até mesmo existir alguma dúvida de terminologia: esses singelos e verdadeiros comentários apontam para a condição humana ou para a natureza humana? pra mim ainda existe alguma indefinição nisso tudo; por vezes nossas taras e fetiches ideológico-metafísicos parecem condenações existenciais intrinsecamente ligadas aos terrores indecifráveis da nossa consciência — será que nossa inclinação para inventar ficções é a mesma inclinação que faz os órgãos continuarem funcionando? ("todo homem tem pulmão, coração, cérebro e uma bandeira (...) alguns não tem cérebro... mas um homem sem bandeira? impossível!") — outras vezes penso que toda a desgraça da existência não passa de um vício culturalmente transmissível
assistir essa "grande" obra "curta" do grande buñuel foi uma experiência extensamente inefável! como é difícil arranjar termos pra caraterizar essa narratividade cinematográfica que, ora parece irônica, ora parece terrivelmente denunciativa; se trata de um pseudo-documentário-denúncia (mocumentário), uma confusão lírica um tantinho surreal entre uma realidade crua e sórdida e uma ficção inventada e satírica; filmar uma cabra caindo de maneira profundamente ""acidental"" para servir de retrato imagético dos hábitos alimentares do povo da região?? enfim, a denúncia da miséria, a feiura, a falta de higiene, a precariedade e o esquecimento são elementos que certamente se fazem logo evidentes, mas parece também interessar a luis buñuel uma certa alfinetada na forma como nós, espectadores amenos, passivamente internalizamos o desfile de fatos de uma narrativa
essa obra honrosa e caprichosa de benjamin christensen é um tesouro para todos os admiradores e interessados em temáticas como bruxaria, feitiçaria, paganismo, satanismo e outros esoterismos medievais; mas além da galeria de temas pagãos e de imagens profanas, há também uma cuidadosa montagem híbrida entre o que poderia se chamar de documental e uma perspectiva de horror; mesmo no esbanjar de tamanho didatismo histórico e artístico do filme, há espaço para a reconstrução de uma atmosfera teatral que reconte e reposicione todas as particularidades cerimoniosas e morais da época da caça às bruxas; outra coisa a se notar na mensagem carimbada no discurso da obra são as questões de fé e as superstições como espécies de "biologias" irrevogáveis do ser humano; temos uma vocação sobrenatural e desesperada e demonológica diante do absurdo do desconhecido
acabo de conhecer e experimentar, ainda que de forma fatalmente tardia, o extremo-violento-escatológico-corpulento-poético movimento vienense do cinema actionista; achei um barato total esse modo de expressão performática e profundamente rachada, volumosa e visualmente agressiva; nudez, fluídos corporais, fezes, entranhas e sujeira como ferramentas de choque diante dum contexto político-social em ruínas de guerra, enrijecido e terrivelmente sisudo; nesse tipo de performance selvagem e sublime, o corpo torna-se palco de excessos, flagelações, brutalidades e de libertações sexuais!
ao passo que os tentáculos da guerra do vietnã invadem todos os espaços e todos os cantos possíveis, até mesmo um suposto paraíso bucólico, surgem diversos tipos de aniquilamentos e ruínas: o primeiro e mais notável é a destruição material causada pelas bombas e pelos tiros; logo depois, bergman nos faz perceber uma segunda categoria de devastação que é existencial e traumática; é extremamente nítida a decadência do casal de músicos diante dos abusos da guerra, de suas lógicas perversas de estabelecimento de um bode expiatório, da binarização política e das loucuras cometidas pelo poder; o fato de serem ambos artistas comunica muito sentimentalismo bergmaniano em relação ao desmantelamento da arte perante os impulsos bélicos; é uma baita obra sobre o processo de desumanização pelo absurdo da pólvora e das ideologias!
como não se identificar e não sentir uma intensa aproximação e comunhão existencial com as personagens bergmanianas? como criar uma imagem cinematográfica sobre o amor sem acrescentar todos os episódios de paixão incendiária, de rachaduras presentes nas relações humanas, de afetos confusos e de desilusões cósmicas e fatais? quase todos os atores da filmografia de bergman atravessam essas peregrinações angustiosas e transmitem toda a crueza barulhenta e silenciosa dos encontros humanos; essa espécie de irmandade emocional que se sente em simetria com os amores e terrores das moças e, de maneira geral, com a própria obra do bergman, é que faz dele um diretor de potentes meditações existencialistas
kurt kren tornou completamente pública e cristalina a tamanha facilidade que é inventar retratos abstratos a partir das copas de árvores e dos galhos nus outonais, estes combinados com um fundo branco de um céu nebuloso; é um experimentalismo um tanto absurdo! é, afinal, um naturalismo antinatural, a obra de kren parece ser um processo de aproximação e afastamento; são árvores, mas também são simples traços; são galhos, mas também puramente uma experiência ótica; são copas, mas também meras geometrias; os cortes rápidos terminam o serviço de criar esse vislumbre fantástico e incapturável
experimental, psicodélico, demonológico, teatral e exuberantemente cinético-cinematográfico! sem dúvidas, a experiência visual é única, que bela visão mágica que há em seguir a câmera durante suas órbitas ilusórias e alucinógenas em volta do demônio-astro! matsumoto inventou uma porção de ilusionismos fotográficos e fez disso cinema e movimento diabólico! não há nada além de um monte de frames "mortos" arranjados num tipo de processo de stop motion imensamente mais encantador; deve existir alguma interpretação mito-poética ou religiosa para a reiterada centralidade da figura de hannya e de nossa trajetória circular, perpétua e inevitável ao redor dessa máscara-simbolo das tensões da consciência e dos conflitos existenciais
estou apaixonado por essa diretora-poeta! uma belíssima coleção de estéticas e fragmentos presentes em cada um dos elementos da natureza, dos climas e estações do ano; é um curta sobre o quão cambiante são as atmosferas, os ares e tudo o mais que estiver colado nas cenas da cotidianidade mais imediata; além do imenso prazer que são os vislumbres cinematográficos analógicos e a alternância de matizes, essa obra tem até uma propriedade sedativa e uma vibe caseira super aconchegante! é praticamente um estudo poético-climatológico que abrange uns quarterões ou uns metros quadrados, mas digamos que já foi muitíssimo mais que o suficiente para tornar a experiência um contentamento só
bergman foi sempre certeiro e visceral em selecionar temáticas verdadeiramente fatais e arrebatadoras, todas as confusões cosmológicas e existenciais, todos os abalos de fé e cutuca até mesmo na maior das feridas humanas, ferida aberta e incurável: a necessidade de crer; nesse filminho relativamente simples e lacônico, ingmar bergman novamente recolhe e projeta essa aspecto da incurabilidade da existência, ser biologicamente inclinado à fé, possuir uma fome metafísica por ficções e semânticas, mas "ouvir" o implacável silêncio divino; os seres humanos são tagarelas e cobiçosos, porém o cosmos é mudo e impassível! nada mais simbólico ao declínio da fé do que uma missa rezada em numa temporada fria e com tantas apatias
um jardim-composição, jardim-poesia como última e florida manifestação do campesino, do contemplativo, do organicamente deleitoso... ventos e pétalas dançantes como singelas resistências contra a crescente rudez citadina, à aspereza das máquinas e das guerras sanguinárias, à inconveniência do concreto que transforma tudo em uniformidade e simetria crua e impessoal, dos tratores brutos e da grosseria ativa das metrópoles murchas; na sublime sonata floral, os tratores não são apenas ruídos estrangeiros, mas anti-musicalidade em si! adoro como as flores ganham um tecido bonito através dessas lentes dos anos cinquenta e sessenta, simplesmente belo e uma ode ao conservacionismo!
um registro urbano e novaiorquino em forma de um poema visual imensamente mais ameno e contemplativo, composição relativamente rara dentro da filmografia alucinógena, arranhada, fraturada e cineticamente futurista do brakhage; claro que o diretor se aproveitaria desta vista profana das janelas dos trens para transformá-las em quadros sagrados e vivos por onde a perspectiva cambiante, as luzes, as ilusões do vidro e os reflexões pincelam novos "mundologias" de concreto silencioso; e qual cinema que não é um olho inédito fabricado de mais e mais afetos, de recordações e despedidas? que bela obra rendeu essa parceria experimental!
" [...] Third Avenue El de Nova York (desde então demolida) como se fosse através dos olhos de uma criança em um carrossel. ' - Cinema 16."
lindo! lindo! amargo! bergman é o mestre no retrato das dores impenetráveis, dos martírios invisíveis, das ansiedades arbitrárias e dos dramas sem espetáculo; nesta obra dolorosa e incomunicavelmente solitária, ingmar bergman, assim como sinto e interpreto, amontoa todo seu minucioso trabalho acerca das rachaduras da alma humana e de um deus omisso numa história sobre distância, loucura, degradação e solidão; foi inevitável não sentir o imenso desabrigo e maldição que é a consciência: ela é capaz de criar uma teoria sobre a existência e obrigar-nos a viver dentro desse delírio teorético; como se aproximar do outro, se cada um vive sob o jugo deste demiurgo perverso e implacável chamado consciência? a mente é uma criadora de calvários!
"é terrível ver a sua própria confusão e não entendê-la"... queria eu abrir a minha cabeça ao meio, catar cada pensamento e atirar aos cachorros, pena não conseguir encontrar nada que não seja infelicidade imaterial
a casa é escura não é apenas mais um daqueles filmes-documento que esbanjam meras exibições irrefletidas das feiuras do mundo, o documentário é substancialmente humanista e profundamente poético-religioso na incursão de suas filmagens e cuidadoso na captura da cotidianidade desmemoriada das pessoas afetadas pelos males da lepra; apesar do retrato das desfigurações e manchas cutâneas, a obra é muito mais sobre uma revisão da marginalidade, do desconhecimento e de todos os estigmas sociais que acompanham a enfermidade; os parágrafos do alcorão e as poesias autorais ajudam a realçar essa intencionalidade humanizadora da diretora iraniana, assim como uma possível redenção e graça... pedacinhos de beleza e de perseverança numa casa escura
meu deus! o preto e branco e os tremores da alma bergmanianos são coisas de outro mundo! eu tenho uma profunda simpatia por essa temática do silêncio divino, e que ingmar bergman manuseia com tanto primor e beleza; a quietude de deus ou, usando termos mais laicos e pagãos, a mudez do cosmos, a mudez das plantas, o silêncio das pedras, dos carvalhos e das nuvens... tudo isso indica a solidão galáctica que rasga o ser humano e que é materializada na imagem do cristão, um angustioso largado e abandonado por entre as inexpressividades das coisas, a grandeza calada e inexprimível do mundo e a vileza de tudo: o bergman, em "a fonte da donzela", está muito próximo do silêncio pascaliano, que é, em parte, essa porta impenetrável dos céus e o caráter hediondo e sublime da existência
eu sempre faço questão de festejar qualquer faísca de experimentalismo e pedacinho de ousadia vanguardista; então costumo louvar com muitos afetos essas colagens surrealistas-dadaístas e que, com alguma certeza, são imensamente laboriosas e uma porta aberta para zombarias políticas e uma janela para críticas certeiras às narrativas necrológicas e existencialmente apequenadoras; apesar do clima vertiginoso e fantasioso das colagens, é possível entrar numa dança irrefletida da coleção de imaginários e confusões entre a fotografia, realidade, as guerras e a morte; apesar de sermos modernos, a morte presente nas xilogravuras quatrocentistas nos afeta com mais armas atualmente... nesse sentido, a dança macabra ganhou novos ritmos e passos, novas figuras e possibilidades funerárias
Inferno
3.5 36o progresso da trama é bastante simples e até meio sumário, sem grandes inovações de narrativa, nem plots geniais, o que faz com que a primeira parte da obra exija uma paciência de elefante, justamente na medida em que é um enredo ordinário. porém, a metade final reserva uma representação do inferno que faz tudo valer a pena. nobuo nakagawa leva a câmera até as mais diversas "alas" subterrâneas e nos apresenta uma visão dantesca e intrigante do inferno. a coletânea de pecados, a confusão, a penumbra hostil, a pele arrancada, os ossos expostos, os gritos de desacolhimento e os dissabores desse subsolo tenebroso, tudo isso condensa uma vista funesta do inferno imaginado através dos elementos da cultura japonesa
Veludo Azul
3.9 779 Assista Agorauma peça-obra-odisseia sobre os labirintos obscuros e marginais da velada e eternamente ficcional "virginalidade" de uma cidade florida e sossegada e de um jovem simples representados numa suposta nessa fachada de pureza e ordem. uma investigação que termina gerando uma iluminação às avessas, uma peregrinação periférica por entre a textura-doçura do veludo azul que encobre subterrâneos de desvios, loucuras e fetichismos... gosto muito desse universo teatral lynchiano cheinho de imagens-obsessões-violências que vão surgindo em forma de fragmentos na face cândida de um lugar tranquilo que se assenta sobre um subsolo de perversidade, taras e aflições. me fez ter ainda mais vontade de descobrir todas as nuances das subliminaridades e sentidos nas obras do grande david lynch
Finis Hominis: O Fim do Homem
3.5 33 Assista Agoraquem sabe finis hominis seja, e com muita razão, a obra mais distinta e mais cheia de semânticas heréticas de todos os trabalhos do mojica. o filme é todinho recortado por cenas que denotam um certo deboche-blasfêmia das crenças, dos costumes e da mentalidade da sociedade da época. o diretor se diverte através de episódicas e pontuais visões de profanidades e paganismos: a nudez inicial já coloca o profeta fora do mundo, em uma posição pagã diante da moralidade fingida e das hipocrisias ontológicas de quem vive "dentro" do mundo, atolado nas convenções irrefletidas e irremediáveis da vida comunitária. até mesmo a equivalência entre a profecia e a loucura vale alguma meditação sobre os conceitos que ergueram quase todas as sociedades. ninguém confessa que é um canalha ou um imoral, é justamente a dissimulação a grande marca da vida social
A Cadela
3.9 29a caracterização áspera dos personagens como pessoas ordinariamente comuns e, portanto, nem heróis sem defeitos, tampouco vilões malignos; uma história tão poética quanto crua e real capaz de desvelar todas as suas feridas sociais, desejos profundos e carências existenciais. acredito que essa é a maior virtude do realismo cinematográfico! o triângulo amoroso é inteirinho construído, tijolo por tijolo, com as inseguranças e angústias de cada um, e uma equivalência justificada das agonias de todos. isso é válido justamente na impossibilidade de encontrar culpados indiscutíveis nas pequenas tragédias que acontecem durante a trama e de extrair uma moral (todo mundo tem razão no que faz ou deixa de fazer)
Spectator
3.9 5o curta é todinho cercado de um clima de tensão, de atração sexual, de voyeurismo, desejo e repulsa. parece incorporar um simbolismo poético e até mesmo lúgubre sobre os amores, as paixões e todas as complexidades que envolvem as relações humanas e as aflições entre feminino e masculino. são recortes desse momento sombroso e iluminado de um fervor desejoso e inspiração, mas também de dominação e subjugação, já que o seu binóculo parece sugerir alguma investigação e domínio relacional do tipo sujeito-objeto. é uma bonita expressão polissêmica sobre a sublimidade e a feiura das relações amorosas! é um trabalho um tantão ambíguo, já que seu tema poderia ser a intimidade e a proximidade, assim como o distanciamento e o estranhamento
O Sonho de um Homem Ridículo
4.5 140uma animação pictórica, onírica e surreal como simbolismo das dilacerações da alma! que belíssima conjunção de artes temos nesse curta sombrio, fatal e poético do petrov! é talvez uma das obras que melhor explorou a densa atmosfera de terror e morbidez que orbita em dostoiésvki; o clima soturno e desesperançoso causado pelos horrores da guerra e o seu terrível processo de desumanização são projetados através de pinceladas grossas e brutas; a guerra é um vazio! o futuro é um nada! porém, nessa terra "recheada" de esvaziamentos, alguns fatos puros e intocados ainda podem nos entregar uma quieta e brevíssima nostalgia do éden perdido... é um recorte quimérico de fé, um sonho como resolução da realidade, mas que de todo modo acaba em chamas, pó e ruínas
Process Red
3.3 3achei tão sensual esse frenesi violeta-púrpura que atua como perspectiva estética de um cinema gestual-abstrato; essa impermanência das imagens moldam uma fila de novidades sobre a banalidade dos atos... segurar um cigarro entre os dedos, ou descascar um ovo, se contemplados dentro da sugestão delirante dos atos, pode até nos convencer dos novos significados e das semânticas possivelmente inventadas pela película magenta do diretor, já que a tremenda alternância imagética-psicótica-colorida funda um tipo de abstracionismo nas figuras; a obra pode até sugerir, através da trivialidade dos gestos, uma coleção de neologismos das mãos!
O Chapéu
4.1 12 Assista Agorasurrealismo sublime & pesadíssimo! é um traço despojado e sem muitas cerimônias, mas que vai guiando o espectador numa coleção interminável de metamorfoses imagéticas e lisérgicas das dolorosas reminiscências da dançarina; o chapéu vai alterando sua forma e encaminhando esse montante medonho de lembranças-perturbações enquanto a moça dança nua em um bar; um curta pesado e terrível sobre todos os tipos de sofrimentos psicossexuais da infância: a imagem permanente do agressor que acossa e persegue durante a existência toda; a tinta preta que a cournoyer utiliza materializa essa tremenda inquietação febril da memória indelével do assédio que surge repentinamente como uma punhalada
A Lecture on Man
4.2 1achei do caralho essa animação empregada nesse trabalho esquecido e de caráter fragmentário; nada como uma boa leitura certeira e aguda sobre o ser humano! deve até mesmo existir alguma dúvida de terminologia: esses singelos e verdadeiros comentários apontam para a condição humana ou para a natureza humana? pra mim ainda existe alguma indefinição nisso tudo; por vezes nossas taras e fetiches ideológico-metafísicos parecem condenações existenciais intrinsecamente ligadas aos terrores indecifráveis da nossa consciência — será que nossa inclinação para inventar ficções é a mesma inclinação que faz os órgãos continuarem funcionando? ("todo homem tem pulmão, coração, cérebro e uma bandeira (...) alguns não tem cérebro... mas um homem sem bandeira? impossível!") — outras vezes penso que toda a desgraça da existência não passa de um vício culturalmente transmissível
Terra Sem Pão
4.0 47assistir essa "grande" obra "curta" do grande buñuel foi uma experiência extensamente inefável! como é difícil arranjar termos pra caraterizar essa narratividade cinematográfica que, ora parece irônica, ora parece terrivelmente denunciativa; se trata de um pseudo-documentário-denúncia (mocumentário), uma confusão lírica um tantinho surreal entre uma realidade crua e sórdida e uma ficção inventada e satírica; filmar uma cabra caindo de maneira profundamente ""acidental"" para servir de retrato imagético dos hábitos alimentares do povo da região?? enfim, a denúncia da miséria, a feiura, a falta de higiene, a precariedade e o esquecimento são elementos que certamente se fazem logo evidentes, mas parece também interessar a luis buñuel uma certa alfinetada na forma como nós, espectadores amenos, passivamente internalizamos o desfile de fatos de uma narrativa
Haxan: A Feitiçaria Através dos Tempos
4.2 183 Assista Agoraessa obra honrosa e caprichosa de benjamin christensen é um tesouro para todos os admiradores e interessados em temáticas como bruxaria, feitiçaria, paganismo, satanismo e outros esoterismos medievais; mas além da galeria de temas pagãos e de imagens profanas, há também uma cuidadosa montagem híbrida entre o que poderia se chamar de documental e uma perspectiva de horror; mesmo no esbanjar de tamanho didatismo histórico e artístico do filme, há espaço para a reconstrução de uma atmosfera teatral que reconte e reposicione todas as particularidades cerimoniosas e morais da época da caça às bruxas; outra coisa a se notar na mensagem carimbada no discurso da obra são as questões de fé e as superstições como espécies de "biologias" irrevogáveis do ser humano; temos uma vocação sobrenatural e desesperada e demonológica diante do absurdo do desconhecido
7/64: Leda and the Swan
3.2 2acabo de conhecer e experimentar, ainda que de forma fatalmente tardia, o extremo-violento-escatológico-corpulento-poético movimento vienense do cinema actionista; achei um barato total esse modo de expressão performática e profundamente rachada, volumosa e visualmente agressiva; nudez, fluídos corporais, fezes, entranhas e sujeira como ferramentas de choque diante dum contexto político-social em ruínas de guerra, enrijecido e terrivelmente sisudo; nesse tipo de performance selvagem e sublime, o corpo torna-se palco de excessos, flagelações, brutalidades e de libertações sexuais!
Vergonha
4.3 118ao passo que os tentáculos da guerra do vietnã invadem todos os espaços e todos os cantos possíveis, até mesmo um suposto paraíso bucólico, surgem diversos tipos de aniquilamentos e ruínas: o primeiro e mais notável é a destruição material causada pelas bombas e pelos tiros; logo depois, bergman nos faz perceber uma segunda categoria de devastação que é existencial e traumática; é extremamente nítida a decadência do casal de músicos diante dos abusos da guerra, de suas lógicas perversas de estabelecimento de um bode expiatório, da binarização política e das loucuras cometidas pelo poder; o fato de serem ambos artistas comunica muito sentimentalismo bergmaniano em relação ao desmantelamento da arte perante os impulsos bélicos; é uma baita obra sobre o processo de desumanização pelo absurdo da pólvora e das ideologias!
Sonhos de Mulheres
3.9 28como não se identificar e não sentir uma intensa aproximação e comunhão existencial com as personagens bergmanianas? como criar uma imagem cinematográfica sobre o amor sem acrescentar todos os episódios de paixão incendiária, de rachaduras presentes nas relações humanas, de afetos confusos e de desilusões cósmicas e fatais? quase todos os atores da filmografia de bergman atravessam essas peregrinações angustiosas e transmitem toda a crueza barulhenta e silenciosa dos encontros humanos; essa espécie de irmandade emocional que se sente em simetria com os amores e terrores das moças e, de maneira geral, com a própria obra do bergman, é que faz dele um diretor de potentes meditações existencialistas
3/60: Trees in Autumn
2.6 2kurt kren tornou completamente pública e cristalina a tamanha facilidade que é inventar retratos abstratos a partir das copas de árvores e dos galhos nus outonais, estes combinados com um fundo branco de um céu nebuloso; é um experimentalismo um tanto absurdo! é, afinal, um naturalismo antinatural, a obra de kren parece ser um processo de aproximação e afastamento; são árvores, mas também são simples traços; são galhos, mas também puramente uma experiência ótica; são copas, mas também meras geometrias; os cortes rápidos terminam o serviço de criar esse vislumbre fantástico e incapturável
Atman
3.9 14experimental, psicodélico, demonológico, teatral e exuberantemente cinético-cinematográfico! sem dúvidas, a experiência visual é única, que bela visão mágica que há em seguir a câmera durante suas órbitas ilusórias e alucinógenas em volta do demônio-astro! matsumoto inventou uma porção de ilusionismos fotográficos e fez disso cinema e movimento diabólico! não há nada além de um monte de frames "mortos" arranjados num tipo de processo de stop motion imensamente mais encantador; deve existir alguma interpretação mito-poética ou religiosa para a reiterada centralidade da figura de hannya e de nossa trajetória circular, perpétua e inevitável ao redor dessa máscara-simbolo das tensões da consciência e dos conflitos existenciais
Aerial
3.9 2estou apaixonado por essa diretora-poeta! uma belíssima coleção de estéticas e fragmentos presentes em cada um dos elementos da natureza, dos climas e estações do ano; é um curta sobre o quão cambiante são as atmosferas, os ares e tudo o mais que estiver colado nas cenas da cotidianidade mais imediata; além do imenso prazer que são os vislumbres cinematográficos analógicos e a alternância de matizes, essa obra tem até uma propriedade sedativa e uma vibe caseira super aconchegante! é praticamente um estudo poético-climatológico que abrange uns quarterões ou uns metros quadrados, mas digamos que já foi muitíssimo mais que o suficiente para tornar a experiência um contentamento só
Luz de Inverno
4.3 173bergman foi sempre certeiro e visceral em selecionar temáticas verdadeiramente fatais e arrebatadoras, todas as confusões cosmológicas e existenciais, todos os abalos de fé e cutuca até mesmo na maior das feridas humanas, ferida aberta e incurável: a necessidade de crer; nesse filminho relativamente simples e lacônico, ingmar bergman novamente recolhe e projeta essa aspecto da incurabilidade da existência, ser biologicamente inclinado à fé, possuir uma fome metafísica por ficções e semânticas, mas "ouvir" o implacável silêncio divino; os seres humanos são tagarelas e cobiçosos, porém o cosmos é mudo e impassível! nada mais simbólico ao declínio da fé do que uma missa rezada em numa temporada fria e com tantas apatias
Canção Sobre Uma Flor
4.1 2um jardim-composição, jardim-poesia como última e florida manifestação do campesino, do contemplativo, do organicamente deleitoso... ventos e pétalas dançantes como singelas resistências contra a crescente rudez citadina, à aspereza das máquinas e das guerras sanguinárias, à inconveniência do concreto que transforma tudo em uniformidade e simetria crua e impessoal, dos tratores brutos e da grosseria ativa das metrópoles murchas; na sublime sonata floral, os tratores não são apenas ruídos estrangeiros, mas anti-musicalidade em si! adoro como as flores ganham um tecido bonito através dessas lentes dos anos cinquenta e sessenta, simplesmente belo e uma ode ao conservacionismo!
The Wonder Ring
3.5 3um registro urbano e novaiorquino em forma de um poema visual imensamente mais ameno e contemplativo, composição relativamente rara dentro da filmografia alucinógena, arranhada, fraturada e cineticamente futurista do brakhage; claro que o diretor se aproveitaria desta vista profana das janelas dos trens para transformá-las em quadros sagrados e vivos por onde a perspectiva cambiante, as luzes, as ilusões do vidro e os reflexões pincelam novos "mundologias" de concreto silencioso; e qual cinema que não é um olho inédito fabricado de mais e mais afetos, de recordações e despedidas? que bela obra rendeu essa parceria experimental!
" [...] Third Avenue El de Nova York (desde então demolida) como se fosse através dos olhos de uma criança em um carrossel. ' - Cinema 16."
Através de um Espelho
4.3 249lindo! lindo! amargo! bergman é o mestre no retrato das dores impenetráveis, dos martírios invisíveis, das ansiedades arbitrárias e dos dramas sem espetáculo; nesta obra dolorosa e incomunicavelmente solitária, ingmar bergman, assim como sinto e interpreto, amontoa todo seu minucioso trabalho acerca das rachaduras da alma humana e de um deus omisso numa história sobre distância, loucura, degradação e solidão; foi inevitável não sentir o imenso desabrigo e maldição que é a consciência: ela é capaz de criar uma teoria sobre a existência e obrigar-nos a viver dentro desse delírio teorético; como se aproximar do outro, se cada um vive sob o jugo deste demiurgo perverso e implacável chamado consciência? a mente é uma criadora de calvários!
"é terrível ver a sua própria confusão e não entendê-la"... queria eu abrir a minha cabeça ao meio, catar cada pensamento e atirar aos cachorros, pena não conseguir encontrar nada que não seja infelicidade imaterial
A Casa é Escura
4.2 37 Assista Agoraa casa é escura não é apenas mais um daqueles filmes-documento que esbanjam meras exibições irrefletidas das feiuras do mundo, o documentário é substancialmente humanista e profundamente poético-religioso na incursão de suas filmagens e cuidadoso na captura da cotidianidade desmemoriada das pessoas afetadas pelos males da lepra; apesar do retrato das desfigurações e manchas cutâneas, a obra é muito mais sobre uma revisão da marginalidade, do desconhecimento e de todos os estigmas sociais que acompanham a enfermidade; os parágrafos do alcorão e as poesias autorais ajudam a realçar essa intencionalidade humanizadora da diretora iraniana, assim como uma possível redenção e graça... pedacinhos de beleza e de perseverança numa casa escura
A Fonte da Donzela
4.3 219 Assista Agorameu deus! o preto e branco e os tremores da alma bergmanianos são coisas de outro mundo! eu tenho uma profunda simpatia por essa temática do silêncio divino, e que ingmar bergman manuseia com tanto primor e beleza; a quietude de deus ou, usando termos mais laicos e pagãos, a mudez do cosmos, a mudez das plantas, o silêncio das pedras, dos carvalhos e das nuvens... tudo isso indica a solidão galáctica que rasga o ser humano e que é materializada na imagem do cristão, um angustioso largado e abandonado por entre as inexpressividades das coisas, a grandeza calada e inexprimível do mundo e a vileza de tudo: o bergman, em "a fonte da donzela", está muito próximo do silêncio pascaliano, que é, em parte, essa porta impenetrável dos céus e o caráter hediondo e sublime da existência
Breath Death
2.8 3eu sempre faço questão de festejar qualquer faísca de experimentalismo e pedacinho de ousadia vanguardista; então costumo louvar com muitos afetos essas colagens surrealistas-dadaístas e que, com alguma certeza, são imensamente laboriosas e uma porta aberta para zombarias políticas e uma janela para críticas certeiras às narrativas necrológicas e existencialmente apequenadoras; apesar do clima vertiginoso e fantasioso das colagens, é possível entrar numa dança irrefletida da coleção de imaginários e confusões entre a fotografia, realidade, as guerras e a morte; apesar de sermos modernos, a morte presente nas xilogravuras quatrocentistas nos afeta com mais armas atualmente... nesse sentido, a dança macabra ganhou novos ritmos e passos, novas figuras e possibilidades funerárias