Por não gostar nem um pouco do cinema de Verhoeven, deixei este filme para depois e dei uma chance apenas pela indicação de Huppert ao Oscar. E que surpresa a minha por encontrar neste um dos melhores longas não apenas do diretor de filmografia duvidosa, mas também do ano de 2016. É do tipo de projeto de uma complexidade moral e narrativa que deixa o espectador digerindo o que viu por muito tempo após a sessão. A discussão brilhante da sexualidade inerente ao ser humano só encontra par na construção soberba da protagonista encabeçada brilhantemente por Huppert - uma criatura obstinada, forte e de ética um tanto questionável. "Elle", no fim das contas, é muito mais que um estudo da natureza animalesca humana - é uma análise do papel feminino na sociedade atual, de uma mulher que precisou crescer fria para superar seu passado ainda vivo.
O trunfo aqui é o tom documental e imparcial assumido pela diretora. A câmera geralmente observa os personagens de frente ou de lado, enquanto a montagem faz tudo parecer um grande diário de situações - e cabe a nós, espectadores, julgarmos o que vemos. Diante das escolhas assumidas pela protagonista, é impossível não admirar ao menos seu total desapego material e sua tentativa de se auto-descobrir. No fim das contas, quem somos nós para julgar a opção particular de cada um? E aí está: quando a reflexão vem do próprio público, e não mastigado pela obra, ela permanece em quem a assiste. Agnès Varda parece entender isto muito bem.
O que chama a atenção aqui é a destreza com a qual a narrativa é construída. Muito mais que um mero trash, Fulci sabe conduzir sua história de forma pausada, aproveitando ao máximo os momentos de tensão e mantendo o espectador com a pulga atrás da orelha até o fim. Sem contar as inúmeras sequências antológicas que o longa reserva pra agradar até os fãs mais ortodoxos do sub-gênero. Um prato cheio de gore e humor negro, com direito a cultos pagãos e um inesquecível MMA de zumbi Vs. tubarão.
Sem exageros um dos melhores filmes de Argento, principalmente pela forma como afirma sua estética única de maneira extremamente inteligente, embora nem sempre tão sutil. O filme é de uma beleza tremenda, principalmente pela opção do diretor no uso dos figurinos e sua excepcional direção de arte (notem como as cores se combinam e a fotografia enquadra cada objeto como se os cenários fossem também personagens). A trilha sonora é um deleite, enquanto nos guia por um labirinto de personagens que completam uns aos outros e conferem grandiosidade e inquietude à narrativa.
E, como se não bastasse, o filme ainda explora (mesmo que de forma não tão aprofundada) as consequências de um relacionamento familiar mal resolvido sobre uma persona de tendências homicidas.
É espantoso que este filme não tenha nenhum comentário aqui no filmow ainda. Não apenas por ser um dos maiores pilares do impressionismo francês, mas também pela destreza como adapta Émile Zola sem soar diminutivo e capta deveras a essência do que quer falar: a ganância como corrupção do homem. O longa desconstrói a figura de seu protagonista de forma a estudar os efeitos do desespero sobre sua persona e a de todos ao seu redor. E, de quebra, ainda entrega um show de apuro técnico e sofisticação na fotografia, figurinos e montagem.
O filme é exemplar naquilo que se propõe e se desenvolve em uma narrativa multifacetada onde o espectador presencia quase como cúmplice tudo aquilo que decorre à protagonista. Mérito da direção sagaz de Chabrol, que sabe brilhantemente narrar sem soar melodramático demais (tendência deste tipo de trama nas mãos erradas), inserindo tiradas cômicas nos momentos exatos. Apenas o roteiro me desagradou um tanto por desperdiçar a chance de grandes diálogos ou mesmo uma reviravolta mais bem construída - ainda que isso não comprometa totalmente o resultado final, que é pertinente, ácido e, ao fim, doce.
Este filme eleva o conceito de "beleza no luto" a um outro nível. Daqueles longas que não se veem todo dia. Absolutamente atordoante e acachapante: o filme me desconstruiu e construiu novamente em sua jornada de cicatrização de feridas. A longa duração não pesa pela direção genial e pelo roteiro fascinante. Além disso, "Eureka" ainda carrega uma fotografia meticulosa e uma técnica irrepreensível. O tipo de obra-prima que demonstra um domínio narrativo fora do comum. Colossal e grandioso - ainda que tão simples e bucólico, como simplesmente observar o oceano.
Incrível como este filme é verborrágico. Fala muito e não diz nada, se estende mais do que deveria e escancara o óbvio sem chegar a lugar algum. Só serve para constatar a irregularidade da carreira de Van Sant, diretor pelo qual tenho grande apreço, mas que precisa de algum tipo de inspiração anormal para dirigir seus filmes com total dedicação. Aqui, erra coisas que apenas um diretor iniciante teria a inocência de filmar. Ainda que demonstre grande sensibilidade em dirigir seus atores em situações introspectivas.
Meu contato prévio com o cinema de Hsiao-Hsien não havia sido muito animador, com o péssimo "Café Lumière", e não fosse a indicação de um amigo confiável provavelmente não iria dar mais uma chance a seu cinema tão cedo. "Millennium Mambo", então, surgiu em um bom momento: me mostrou a habilidade do diretor em lidar com tempo e a globalização. Há muito não via um longa que captasse tão bem as incertezas da modernidade através de um estilo cinematográfico tão único. Dono de uma fotografia absolutamente magistral, Hou filma seus atores quase que totalmente em locais fechados e usa as cores (assim como sua direção de arte eficiente) para demonstrar o sufocamento e fragilidade da relação do casal - quando vemos a garota interagindo com sua cidade natal e esta é filmada quase que totalmente em ambientes externos, a mensagem fica muito clara. E é exatamente este o conceito do filme: ser colossal com pouco. Ser discreto em absolutamente tudo, para que a experiência seja sensorial, quase que absorvida pela pele.
Filme absolutamente sublime e poético, de uma humanidade gritante. Poucas vezes um longa centrado no envelhecimento foi tão contundente em passar a mensagem quanto este aqui. Uma sequência mais apavorante se segue à outra e assim se constrói uma narrativa ácida, dolorosa mas que ainda traz espaço para beleza em meio ao caos. Um filme onde o casal protagonista demonstra uma química impecável e realmente convence com seu sofrimento. E, para além de tudo isso, ainda carrega uma direção perspicaz e uma fotografia cuidadosamente planejada. Não é exagero elencar este como um dos mais significativos filmes da década de 30 em Hollywood, não apenas pela intenção nobre, mas pela execução primorosa. Que esta pérola seja mais conhecida e difundida!
Para além da performance marcante do sempre impecável Paul Muni e da direção aguçada, que confia no talento de seu intérprete para conduzir a narrativa, tem-se um thriller/drama de denúncia. O tipo de abordagem que não se vê todo dia, levada à cabo sem concessões ao criticar tão abertamente o sistema penitenciário estadunidense. E este filme ainda fazer tanto sentido não apenas nas terras dos yankees mas também aqui e em grande parte do mundo é, ao menos, preocupante.
Não apenas em estética cinematográfica, mas principalmente em abordagem temática Jean Renoir era muito à frente de seu tempo. A problemática trabalhada aqui de forma tão explícita certamente fez escola e escancarou ao público da época um contexto ao qual muitos preferiam virar o rosto. Grande filme, com um dos melhores trabalhos de direção de Renoir - perspicaz e ácido na medida exata.
O filme começa muito bem, mas acredito que Kazan tenha se perdido entre as inventividades de sua narrativa, não sabendo aproveitar as técnicas que experimenta em prol de um desenvolvimento ao menos instigante. O filme é insípido e longo demais (mesmo que diversos trechos intragáveis tenham sido ajustados pela montagem afiada), acaba valendo apenas pela fotografia deslumbrante e um Kirk Douglas entregue de corpo e alma a seu personagem.
Não estava preparado para um filme tão arrebatador. Embora venha de um diretor estreante, parece coisa de veterano pelo apuro estilístico e, principalmente, por saber usar os elementos narrativos como forma de criar repulsa, horror e perturbação. Consegue uma proeza que poucos longas hoje alçaram e alcançaram - extrair beleza do caos e horror de pequenas coisas como o simples silêncio ou um sorriso torto. Junto de "A Bruxa" (coexistindo até na mesma abordagem estética), o longa de horror mais original e destacável do ano.
Não acho que o filme seja assim tão brilhante como o estão tachando por ai. Certo que existem diversos momentos de profunda sintonia entre o casal que nos fazem rir e emocionar juntos com as personas em tela. Mas até lá, existe um roteiro perdido e inflado, que não sabe muito bem aonde seguir e acaba dissolvendo uma avalanche de sentimentos em uma sopa muitas vezes insípida que demora a mostrar a que veio. Mas, verdade seja dita:
a inserção do aborto como revelação temática ao final da projeção talvez tenha sido a melhor cartada da direção para salvar este longa do total esquecimento.
O filme é escatológico sim, mas não creio que seja desnecessário. É muito mais uma questão de estratégia do diretor em abordar a violência de uma forma absolutamente grotesca que propriamente desperdiçar a duração com cenas que não contribuam à narrativa. Até a famigerada cena da tartaruga possui um motivo de existir e ser da forma como é (embora a questão dos maus tratos ao animal seja de fato muito pungente a discussão). Mas à parte toda a polêmica em seu entorno, "Holocausto Canibal" ganha muitos pontos por ir além do limite que normalmente filmes deste porte iriam: usa a temática polêmica para versar sobre a bestialidade humana e a megalomania de encararmos nossa cultura como algo tão mais evoluído que outras que não entendemos.
O grito de atenção definitivo de Bergman sobre a classe artística circense - personagens que volta e meia permeiam sua filmografia. Muito mais que um belíssimo estudo de personalidades (que viria a se consolidar como o centro da obra do cineasta), ainda se esforça para tecer as múltiplas visões que a sociedade expurga sobre estes artistas. Belíssimo filme, de um Bergman ainda gestando seu estilo particular - mas dando fortes indícios do que viria a se tornar.
Kaufman foi muito feliz na direção deste que tinha tudo para ser um projeto covarde e desleal a seu conteúdo. Afinal, fala-se aqui da erotização do ser humano e a ligação espiritual com o sexo e tabus - algo ainda hoje não é muito bem recebido pelo espectador médio. Mas o diretor é certeiro em acrescentar o erótico sem soar pejorativo e acerta fortemente na forma como tece a persona do Marquês. Além disso, o filme ainda conta com ótimas performances de um elenco qualitativamente homogêneo e uma montagem que consegue brilhantemente costurar todas as histórias ao redor dos contos sem soar forçado.
É interessante como alegoria da separação de mãe e filha e de sua potencial reunião (e nisso o filme é bem eficaz ao retratar as duas sempre distantes através da direção de arte e fotografia) se fazem presentes fortemente e poderiam, se bem aplicadas, terem levado o longa para um patamar diferente. Se o filme não procurasse insistentemente abordar personagens multifacetados e uma trama supostamente mais profunda que teria de fato capacidade de desenvolver, não teria criado em quem assiste uma expectativa de que algo mais que genérico iria se desenvolver no fim da projeção.
De todos os filmes que vi de Almodóvar, este é o mais polêmico. Mas não se engane: por trás da carcaça radical e falsamente conformada existe uma trama muito mais crítica e ácida que se imagina. Marina Osorio é a representação do vício e da auto-destruição. O diretor aqui mostra com muita tristeza a situação de uma mulher subjugada (inclusive por ela mesma) a uma situação de fácil escape. E o mais fascinante é a forma perspicaz com que Almodóvar passeia entre a comédia escrachada e o drama denso - demonstrando que muitas vezes a melhor maneira de chamar a atenção e conscientizar é não levar o problema tão a sério como manda a cartilha.
A importância deste filme transcende o próprio cinema - é um clamor para que um episódio obscuro de nossa história não seja esquecido. Assim como tantas entrevistadas bradam, o espectador fica extremamente desconfortável ao acompanhar o trauma e sofrimento destas mulheres nos porões da ditadura. É um filme necessário e ainda hoje urgente. Que incomoda porque tem que incomodar, mas sem tropeçar num exímio controle narrativo que a diretora demonstra durante toda a projeção. Sabe caminhar muito bem entre a ficção e o documentário, sem soar repetitivo ou inócuo. E ainda por cima levanta uma bandeira feminista que é por demais bem-vinda e eficiente.
"Eu devia por uma placa: Cuidado! Cachorro ferido!"
O mais fascinante desse filme é seu roteiro afiado que consegue costurar muito bem os personagens sem soar artificial ou oportunista. É um longa de condução fluida e muito divertido de se assistir. Embora longe de ser o melhor filme de seus intérpretes (Garbo e Crawford viriam a oferecer performances muito melhor trabalhadas em filmes posteriores), "Grande Hotel" vale pela abordagem diferenciada à época e pela empatia que emana do início ao fim da projeção.
Mais um para a coleção das pérolas desconhecidas da obra de Bette Davis. Este, para além de um ótimo filme, ainda levanta a questão do papel feminino na sociedade, a importância da educação na formação de caráter e desmistifica rigores da época. É (por que não?) um filme militante. Faz um discurso muito bem embasado sobre valores como a perseverança e o altruísmo, com direito a sequências de pura inspiração.
Este foi meu primeiro contato com o cinema de Micheaux, mas já pude notar a importância de seu cinema durante a era muda. Só por provocar reflexões fora do pensamento padrão da época e não ter medo de escrachar a verdade em tela grande, sua obra já vale ser citada como uma das mais ativistas do período. Mas para além da urgência de sua temática, ainda é um filme que acerta como cinema e se prova inteligente na maneira como usa de uma linguagem não tão evoluída em benefício próprio. A fluidez e abrangência da narrativa são destacáveis, ao abordar diversos personagens interagindo sob várias perspectivas sociais distintas. Apesar de um tanto simplista em recursos e produção (não propriamente demérito de Micheaux), é um filme cuja importância de sua existência transcende os anos de cinema mudo e ainda sobrevive aos dias de hoje.
Elle
3.8 886Por não gostar nem um pouco do cinema de Verhoeven, deixei este filme para depois e dei uma chance apenas pela indicação de Huppert ao Oscar. E que surpresa a minha por encontrar neste um dos melhores longas não apenas do diretor de filmografia duvidosa, mas também do ano de 2016. É do tipo de projeto de uma complexidade moral e narrativa que deixa o espectador digerindo o que viu por muito tempo após a sessão. A discussão brilhante da sexualidade inerente ao ser humano só encontra par na construção soberba da protagonista encabeçada brilhantemente por Huppert - uma criatura obstinada, forte e de ética um tanto questionável. "Elle", no fim das contas, é muito mais que um estudo da natureza animalesca humana - é uma análise do papel feminino na sociedade atual, de uma mulher que precisou crescer fria para superar seu passado ainda vivo.
Os Renegados
4.1 86 Assista AgoraO trunfo aqui é o tom documental e imparcial assumido pela diretora. A câmera geralmente observa os personagens de frente ou de lado, enquanto a montagem faz tudo parecer um grande diário de situações - e cabe a nós, espectadores, julgarmos o que vemos. Diante das escolhas assumidas pela protagonista, é impossível não admirar ao menos seu total desapego material e sua tentativa de se auto-descobrir. No fim das contas, quem somos nós para julgar a opção particular de cada um? E aí está: quando a reflexão vem do próprio público, e não mastigado pela obra, ela permanece em quem a assiste. Agnès Varda parece entender isto muito bem.
Zombie: A Volta dos Mortos
3.7 181O que chama a atenção aqui é a destreza com a qual a narrativa é construída. Muito mais que um mero trash, Fulci sabe conduzir sua história de forma pausada, aproveitando ao máximo os momentos de tensão e mantendo o espectador com a pulga atrás da orelha até o fim. Sem contar as inúmeras sequências antológicas que o longa reserva pra agradar até os fãs mais ortodoxos do sub-gênero. Um prato cheio de gore e humor negro, com direito a cultos pagãos e um inesquecível MMA de zumbi Vs. tubarão.
Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza
3.5 58Sem exageros um dos melhores filmes de Argento, principalmente pela forma como afirma sua estética única de maneira extremamente inteligente, embora nem sempre tão sutil. O filme é de uma beleza tremenda, principalmente pela opção do diretor no uso dos figurinos e sua excepcional direção de arte (notem como as cores se combinam e a fotografia enquadra cada objeto como se os cenários fossem também personagens). A trilha sonora é um deleite, enquanto nos guia por um labirinto de personagens que completam uns aos outros e conferem grandiosidade e inquietude à narrativa.
E, como se não bastasse, o filme ainda explora (mesmo que de forma não tão aprofundada) as consequências de um relacionamento familiar mal resolvido sobre uma persona de tendências homicidas.
O Dinheiro
3.8 2É espantoso que este filme não tenha nenhum comentário aqui no filmow ainda. Não apenas por ser um dos maiores pilares do impressionismo francês, mas também pela destreza como adapta Émile Zola sem soar diminutivo e capta deveras a essência do que quer falar: a ganância como corrupção do homem. O longa desconstrói a figura de seu protagonista de forma a estudar os efeitos do desespero sobre sua persona e a de todos ao seu redor. E, de quebra, ainda entrega um show de apuro técnico e sofisticação na fotografia, figurinos e montagem.
Trágica Separação
3.7 10O filme é exemplar naquilo que se propõe e se desenvolve em uma narrativa multifacetada onde o espectador presencia quase como cúmplice tudo aquilo que decorre à protagonista. Mérito da direção sagaz de Chabrol, que sabe brilhantemente narrar sem soar melodramático demais (tendência deste tipo de trama nas mãos erradas), inserindo tiradas cômicas nos momentos exatos. Apenas o roteiro me desagradou um tanto por desperdiçar a chance de grandes diálogos ou mesmo uma reviravolta mais bem construída - ainda que isso não comprometa totalmente o resultado final, que é pertinente, ácido e, ao fim, doce.
Eureka
4.3 29Este filme eleva o conceito de "beleza no luto" a um outro nível. Daqueles longas que não se veem todo dia. Absolutamente atordoante e acachapante: o filme me desconstruiu e construiu novamente em sua jornada de cicatrização de feridas. A longa duração não pesa pela direção genial e pelo roteiro fascinante. Além disso, "Eureka" ainda carrega uma fotografia meticulosa e uma técnica irrepreensível. O tipo de obra-prima que demonstra um domínio narrativo fora do comum. Colossal e grandioso - ainda que tão simples e bucólico, como simplesmente observar o oceano.
O Mar de Árvores
3.3 92 Assista AgoraIncrível como este filme é verborrágico. Fala muito e não diz nada, se estende mais do que deveria e escancara o óbvio sem chegar a lugar algum. Só serve para constatar a irregularidade da carreira de Van Sant, diretor pelo qual tenho grande apreço, mas que precisa de algum tipo de inspiração anormal para dirigir seus filmes com total dedicação. Aqui, erra coisas que apenas um diretor iniciante teria a inocência de filmar. Ainda que demonstre grande sensibilidade em dirigir seus atores em situações introspectivas.
Millennium Mambo
4.0 44Meu contato prévio com o cinema de Hsiao-Hsien não havia sido muito animador, com o péssimo "Café Lumière", e não fosse a indicação de um amigo confiável provavelmente não iria dar mais uma chance a seu cinema tão cedo. "Millennium Mambo", então, surgiu em um bom momento: me mostrou a habilidade do diretor em lidar com tempo e a globalização. Há muito não via um longa que captasse tão bem as incertezas da modernidade através de um estilo cinematográfico tão único. Dono de uma fotografia absolutamente magistral, Hou filma seus atores quase que totalmente em locais fechados e usa as cores (assim como sua direção de arte eficiente) para demonstrar o sufocamento e fragilidade da relação do casal - quando vemos a garota interagindo com sua cidade natal e esta é filmada quase que totalmente em ambientes externos, a mensagem fica muito clara. E é exatamente este o conceito do filme: ser colossal com pouco. Ser discreto em absolutamente tudo, para que a experiência seja sensorial, quase que absorvida pela pele.
A Cruz dos Anos
4.3 55Filme absolutamente sublime e poético, de uma humanidade gritante. Poucas vezes um longa centrado no envelhecimento foi tão contundente em passar a mensagem quanto este aqui. Uma sequência mais apavorante se segue à outra e assim se constrói uma narrativa ácida, dolorosa mas que ainda traz espaço para beleza em meio ao caos. Um filme onde o casal protagonista demonstra uma química impecável e realmente convence com seu sofrimento. E, para além de tudo isso, ainda carrega uma direção perspicaz e uma fotografia cuidadosamente planejada. Não é exagero elencar este como um dos mais significativos filmes da década de 30 em Hollywood, não apenas pela intenção nobre, mas pela execução primorosa. Que esta pérola seja mais conhecida e difundida!
O Fugitivo
4.2 36Para além da performance marcante do sempre impecável Paul Muni e da direção aguçada, que confia no talento de seu intérprete para conduzir a narrativa, tem-se um thriller/drama de denúncia. O tipo de abordagem que não se vê todo dia, levada à cabo sem concessões ao criticar tão abertamente o sistema penitenciário estadunidense. E este filme ainda fazer tanto sentido não apenas nas terras dos yankees mas também aqui e em grande parte do mundo é, ao menos, preocupante.
A Cadela
3.9 29Não apenas em estética cinematográfica, mas principalmente em abordagem temática Jean Renoir era muito à frente de seu tempo. A problemática trabalhada aqui de forma tão explícita certamente fez escola e escancarou ao público da época um contexto ao qual muitos preferiam virar o rosto. Grande filme, com um dos melhores trabalhos de direção de Renoir - perspicaz e ácido na medida exata.
Movidos Pelo Ódio
3.3 13O filme começa muito bem, mas acredito que Kazan tenha se perdido entre as inventividades de sua narrativa, não sabendo aproveitar as técnicas que experimenta em prol de um desenvolvimento ao menos instigante. O filme é insípido e longo demais (mesmo que diversos trechos intragáveis tenham sido ajustados pela montagem afiada), acaba valendo apenas pela fotografia deslumbrante e um Kirk Douglas entregue de corpo e alma a seu personagem.
Os Olhos de Minha Mãe
3.6 180 Assista AgoraNão estava preparado para um filme tão arrebatador. Embora venha de um diretor estreante, parece coisa de veterano pelo apuro estilístico e, principalmente, por saber usar os elementos narrativos como forma de criar repulsa, horror e perturbação. Consegue uma proeza que poucos longas hoje alçaram e alcançaram - extrair beleza do caos e horror de pequenas coisas como o simples silêncio ou um sorriso torto. Junto de "A Bruxa" (coexistindo até na mesma abordagem estética), o longa de horror mais original e destacável do ano.
Blue Jay
3.8 265 Assista AgoraNão acho que o filme seja assim tão brilhante como o estão tachando por ai. Certo que existem diversos momentos de profunda sintonia entre o casal que nos fazem rir e emocionar juntos com as personas em tela. Mas até lá, existe um roteiro perdido e inflado, que não sabe muito bem aonde seguir e acaba dissolvendo uma avalanche de sentimentos em uma sopa muitas vezes insípida que demora a mostrar a que veio. Mas, verdade seja dita:
a inserção do aborto como revelação temática ao final da projeção talvez tenha sido a melhor cartada da direção para salvar este longa do total esquecimento.
Holocausto Canibal
3.1 833O filme é escatológico sim, mas não creio que seja desnecessário. É muito mais uma questão de estratégia do diretor em abordar a violência de uma forma absolutamente grotesca que propriamente desperdiçar a duração com cenas que não contribuam à narrativa. Até a famigerada cena da tartaruga possui um motivo de existir e ser da forma como é (embora a questão dos maus tratos ao animal seja de fato muito pungente a discussão). Mas à parte toda a polêmica em seu entorno, "Holocausto Canibal" ganha muitos pontos por ir além do limite que normalmente filmes deste porte iriam: usa a temática polêmica para versar sobre a bestialidade humana e a megalomania de encararmos nossa cultura como algo tão mais evoluído que outras que não entendemos.
Noites de Circo
3.9 49O grito de atenção definitivo de Bergman sobre a classe artística circense - personagens que volta e meia permeiam sua filmografia. Muito mais que um belíssimo estudo de personalidades (que viria a se consolidar como o centro da obra do cineasta), ainda se esforça para tecer as múltiplas visões que a sociedade expurga sobre estes artistas. Belíssimo filme, de um Bergman ainda gestando seu estilo particular - mas dando fortes indícios do que viria a se tornar.
Contos Proibidos do Marquês de Sade
3.9 424Kaufman foi muito feliz na direção deste que tinha tudo para ser um projeto covarde e desleal a seu conteúdo. Afinal, fala-se aqui da erotização do ser humano e a ligação espiritual com o sexo e tabus - algo ainda hoje não é muito bem recebido pelo espectador médio. Mas o diretor é certeiro em acrescentar o erótico sem soar pejorativo e acerta fortemente na forma como tece a persona do Marquês. Além disso, o filme ainda conta com ótimas performances de um elenco qualitativamente homogêneo e uma montagem que consegue brilhantemente costurar todas as histórias ao redor dos contos sem soar forçado.
Um Monstro no Caminho
2.6 178 Assista AgoraÉ interessante como alegoria da separação de mãe e filha e de sua potencial reunião (e nisso o filme é bem eficaz ao retratar as duas sempre distantes através da direção de arte e fotografia) se fazem presentes fortemente e poderiam, se bem aplicadas, terem levado o longa para um patamar diferente. Se o filme não procurasse insistentemente abordar personagens multifacetados e uma trama supostamente mais profunda que teria de fato capacidade de desenvolver, não teria criado em quem assiste uma expectativa de que algo mais que genérico iria se desenvolver no fim da projeção.
Não é o que acontece e tudo acaba se reduzindo a mais um filme de monstro um pouco mais bem tratado que muitos por ai.
Ata-me!
3.7 550De todos os filmes que vi de Almodóvar, este é o mais polêmico. Mas não se engane: por trás da carcaça radical e falsamente conformada existe uma trama muito mais crítica e ácida que se imagina. Marina Osorio é a representação do vício e da auto-destruição. O diretor aqui mostra com muita tristeza a situação de uma mulher subjugada (inclusive por ela mesma) a uma situação de fácil escape. E o mais fascinante é a forma perspicaz com que Almodóvar passeia entre a comédia escrachada e o drama denso - demonstrando que muitas vezes a melhor maneira de chamar a atenção e conscientizar é não levar o problema tão a sério como manda a cartilha.
Que Bom Te Ver Viva
4.3 55 Assista AgoraA importância deste filme transcende o próprio cinema - é um clamor para que um episódio obscuro de nossa história não seja esquecido. Assim como tantas entrevistadas bradam, o espectador fica extremamente desconfortável ao acompanhar o trauma e sofrimento destas mulheres nos porões da ditadura. É um filme necessário e ainda hoje urgente. Que incomoda porque tem que incomodar, mas sem tropeçar num exímio controle narrativo que a diretora demonstra durante toda a projeção. Sabe caminhar muito bem entre a ficção e o documentário, sem soar repetitivo ou inócuo. E ainda por cima levanta uma bandeira feminista que é por demais bem-vinda e eficiente.
"Eu devia por uma placa: Cuidado! Cachorro ferido!"
Grande Hotel
3.8 118 Assista AgoraO mais fascinante desse filme é seu roteiro afiado que consegue costurar muito bem os personagens sem soar artificial ou oportunista. É um longa de condução fluida e muito divertido de se assistir. Embora longe de ser o melhor filme de seus intérpretes (Garbo e Crawford viriam a oferecer performances muito melhor trabalhadas em filmes posteriores), "Grande Hotel" vale pela abordagem diferenciada à época e pela empatia que emana do início ao fim da projeção.
O Coração Não Envelhece
4.1 8Mais um para a coleção das pérolas desconhecidas da obra de Bette Davis. Este, para além de um ótimo filme, ainda levanta a questão do papel feminino na sociedade, a importância da educação na formação de caráter e desmistifica rigores da época. É (por que não?) um filme militante. Faz um discurso muito bem embasado sobre valores como a perseverança e o altruísmo, com direito a sequências de pura inspiração.
Dentro de Nossos Portões
3.3 33 Assista AgoraEste foi meu primeiro contato com o cinema de Micheaux, mas já pude notar a importância de seu cinema durante a era muda. Só por provocar reflexões fora do pensamento padrão da época e não ter medo de escrachar a verdade em tela grande, sua obra já vale ser citada como uma das mais ativistas do período. Mas para além da urgência de sua temática, ainda é um filme que acerta como cinema e se prova inteligente na maneira como usa de uma linguagem não tão evoluída em benefício próprio. A fluidez e abrangência da narrativa são destacáveis, ao abordar diversos personagens interagindo sob várias perspectivas sociais distintas. Apesar de um tanto simplista em recursos e produção (não propriamente demérito de Micheaux), é um filme cuja importância de sua existência transcende os anos de cinema mudo e ainda sobrevive aos dias de hoje.