Outra das comédias românticas dos anos 90 que traduz o pensamento afetivo/emocional de uma geração – mas que não envelheceu tão bem quanto poderia ter. QUATRO CASAMENTOS E UM FUNERAL é um clássico dirigido por Mike Newell ("Príncipe da Pérsia", "Donnie Brasco"), estrelando o queridinho Hugh Grant, e que foi um sucesso estrondoso de público – cerca de 240 milhões de dólares para um filme que custou aproximadamente 6 milhões. É inegável que, culturalmente, trata-se de um longa que não foi esquecido, figurando bastante bem na estante em que outros de sua geração estão (entre eles, “Uma Linda Mulher”, “Um Lugar Chamado Notting Hill” e “10 Coisas que Odeio em Você”). Mas como os demais de sua época – salvo raras exceções – “Quatro Casamentos...” apresenta sinais de mau-envelhecimento. Há piadinhas machistas, há certos preconceitos “da época” e também uma maneira um tanto antiquada de abordar o encontro entre um homem e uma mulher, quase sempre retratado como ‘uma mulher esperando algo de um homem’, passiva, beldade submissa e misteriosa, impossivelmente distante e encantadora. Aliás, numa leitura mais moderna, a personagem de Andie MacDowell é basicamente uma atiçadora “tentando” Hugh Grant, sabendo dele a paixão inconfessa. De qualquer maneira, é ainda um divertimento possível, se fizermos vista grossa a alguns desses elementos. Grant tem todo o carisma do mundo, como sempre, e o longa é bem articulado ao apresentar esses quatro casamentos (e o surpreendente belo funeral que ocorre ali no meio). Há sempre boas lições sobre amor a aprender em comédias românticas simples como esta – é um prato cheio para quem curte o gênero. E tenho dito!
“Matthew: Perhaps you will forgive me if I turn from my own feelings to the words of another splendid bugger: W.H. Auden. This is actually what I want to say:
‘Stop all the clocks, cut off the telephone, Prevent the dog from barking with a juicy bone, Silence the pianos and with muffled drum Bring out the coffin, let the mourners come.
Let aeroplanes circle moaning overhead Scribbling on the sky the message He Is Dead, Put crepe bows round the white necks of the public doves, Let the traffic policemen wear black cotton gloves.
He was my North, my South, my East and West, My working week and my Sunday rest, My noon, my midnight, my talk, my song; I thought that love would last for ever: I was wrong.
The stars are not wanted now: put out every one; Pack up the moon and dismantle the sun; Pour away the ocean and sweep up the wood; For nothing now can ever come to any good.’”
Difícil elencar só um elemento que não funcione aqui. ANNABELLE 3 é, sendo curto e grosso, didático demais, com roteiro estúpido e condução fraca. Comercialmente mais-do-mesmo e descartável no pior sentido – não é o melhor da franquia e não chega perto de ser um bom filme “independentemente dela”. A história da boneca de Ed e Lorraine Warren já deu o que tinha que dar, ainda mais na fórmula fast-food em que seus filmes foram feitos; consigo inclusive ver mais spin-offs e reboots de personagens apresentados aqui, para a manutenção do império do terror imediatista que caracteriza a obra recente de James Wan, responsável pelo aclamado (e odiado) “Jogos Mortais” original. Apesar de apresentar novidades interessantes, como um elenco inteiramente feminino (personagens com poder de voz e decisão) e duas ou três cenas muito bem feitas seguindo a fórmula jumpscare, o motor de ANNABELLE 3 é pífio: uma sucessão de decisões equivocadas, despreparos adolescentes e inconsequências questionáveis. Irrita porque é muita burrice, não parece real em momento algum e acaba caindo duro no chão, tentando um voo que nunca seria, no fim das contas, bem-sucedido. É o último que vejo produzido pelo Wan. A minha cota já deu. E quem reclamar desta resenha é adolescente frustrado.
“Lorraine Warren: Há muito mal neste quarto. Mas sabe o que eu realmente gosto sobre ele? Todo o mal que está aqui me lembra de todo o bem que há lá fora.”
Retumbante. “Dúvida” é um daqueles filmes que a gente fica namorando, com vontade de ver, mas acaba deixando pra depois, pra depois e pra depois e, quando finalmente se dá a oportunidade, se arrepende de não ter visto antes. O longa, estrelado pelas gigantes Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams e Viola Davis, coloca a questão da pedofilia na igreja católica sem cair em lugares-comuns, em críticas simplórias ou numa caracterização cafona. Mergulhando no mundo ortodoxo da irmã Aloysius, o filme vai acompanhar a sua trajetória (e a de seu inimigo declarado, o padre Brendan) no decorrer de uma denúncia catastrófica, calcada na forte suspeita de que houve um caso de pedofilia em sua igreja. Minimalista, o filme passa por várias perspectivas – das irmãs, dos padres, do rapaz que é (ou pode ser) a vítima e até da mãe dele. São olhares diferentes para o mesmo problema, que não vemos na tela e podemos apenas inferir através dos diálogos, e da exímia interpretação de todo o elenco. De fato, o sentimento de dúvida corre pelo longa inteiro, tornando difícil mesmo ao final dar um veredicto. Houve mesmo um abuso sexual dentro daquela igreja? O padre era inteiramente culpado? O que faziam ambos nas reuniões privadas dos olhares da assembléia? Todas essas questões pertinentes o longa não esquece, mas procura responder de maneira subjetiva, para que possamos juntar as peças e chegar à nossa própria conclusão. Há quem diga que o padre era inocente, e quem veementemente afirme que estava na cara que ele era culpado. Sendo ou não sendo, o filme chega a uma cena final retumbante e perturbadora, que independe da verdade do que aconteceu. Por isso, e pelo trabalho fantástico de atuação empreendido pelos quatro, o filme caminha sozinho sem o menor esforço e se sedimenta como uma leitura importantíssima sobre o problema da pedofilia, como o também excelente “A Caça”, de 2012, que aborda a mesma questão, mas num contexto diferente. Incrível. Assistam logo!!
“Padre Brendan Flynn: A dúvida pode ser um laço tão forte e permanente quanto a certeza. Quando você se sente perdido, você não está sozinho.”
Este filme é uma graça… E ainda um must-see! PHOEBE IN WONDERLAND aborda uma condição mental em que vive Phoebe, uma garotinha de nove anos que sonha em ser atriz e quer participar da adaptação da escola de “Alice no País das Maravilhas”. O dia-a-dia, a relação com a irmã, com os pais e com a professora de teatro, o bullying e a incompreensão dos colegas de classe, tudo isso está retratado no longa de maneira preciosa e precisa. Tudo funciona bem: trata-se de uma direção ágil, com excelentes atores capitaneados por uma surpreendente atriz-mirim, a Elle Fanning, irmã da Dakota, que entrega uma interpretação poderosa e emocionante. As alucinações retratadas pelas mudanças de cenário e os efeitos visuais são toques a mais que o filme tem, para além da leitura certeira que ele dá adereçando o problema mental como uma questão anti-socializante para uma criança em crescimento. Longe de ser só um retrato para pessoas com a condição, "A Menina no País das Maravilhas" é um filme forte mesmo nas cenas mais singelas, como nos diálogos finais entre a professora e a menina. É importante estimar as pessoas que estão à nossa volta, sobretudo as que passam por dificuldades constantes - e ter uma questão mental pode ser um desafio para muitas, mas empatia e compreensão estão a um abraço de distância; Você estaria disposto(a) a dá-las para pessoas como ela? É um filme verdadeiramente lindo e certeiro em tudo. Vale a pena!
“Srta. Dodger: Num certo momento da sua vida, provavelmente quando muito disso já tiver passado, você vai abrir seus olhos e se ver como realmente é… Especialmente por tudo que te fez tão diferente dos péssimos normais. E você vai dizer para si mesma: “mas eu sou esta pessoa”. E, nesta declaração, nesta correção, haverá um tipo de amor.”
Confesso que fui assisti-lo sem muita expectativa, e até esperava um fiasco de ALADDIN, a nova superprodução da Disney, mas estava redondamente enganado... O filme de Guy Ritchie é tudo menos um fiasco. Direção, composição musical, performances, fotografia e coreografia absolutamente afiadas. Design de produção arrojado como os vários sucessos da Disney, fazendo referência e atualizando elementos datados do primeiro Aladdin, de 1992 – letras que incluíam palavras como “escravos” foram espertamente substituídas por outras expressões, por exemplo, e as releituras musicais com rap, trap e a cultura do hip-hop ficaram simplesmente fantásticas, em contraponto com a cultura arábica da dança do ventre e das escalas ciganas. Entretanto, algumas questões de representatividade são importantes de mencionar... ALADDIN é um filme que tangencia o assunto do não-silenciamento das mulheres (sobretudo no solo de Jasmine, a excelente “Speachless”), mas o próprio filme não passa no teste de Bechdel: as personagens femininas são quase meramente ilustrativas, e embora Jasmine seja o par romântico do protagonista, ela não parece ter autonomia sequer em suas próprias escolhas. A real é que toda a estrutura narrativa da princesa-que-precisa-ser-conquistada é clássica, mas também precisa ser revisada – esta ideia de que mulheres são mistérios que homens resolvem é arcaica e, no fim das contas, reduz as mulheres a musas que elas não são. É estranho um filme tão esteticamente inovador e inclusivo não quebrar esta barreira tão primordial dos contos de princesas da Disney. Um dia os estúdios verão não só a superficialidade de sua política de diversidade, mas toda a estrutura que perpetua silenciamentos menores, mesmo quando o filme é contra este mesmo silenciamento... É isso. De maneira geral, é um filme genuinamente bom. Assistam!
“Genie: In ten thousand years, I have never been so embarrassed.”
Difícil dizer exatamente o que desandou aqui... ROCKETMAN é o novo filme de Dexter Fletcher, responsável por finalizar o super bem-sucedido BOHEMIAN RHAPSODY, indicado ao Óscar do ano passado. Há diferenças brutais entre um e outro, sobretudo na parte técnica (a edição deste filme, em especial, dá um banho na do anterior), mas há aspectos nele que simplesmente não funcionam e fazem toda a coisa desandar... ROCKETMAN é uma cinebiografia musical com o (excelente) Taron Egerton interpretando Elton John. O filme é uma explosão de bom colorismo e boa ambientação, sobretudo na parte da infância do cantor, ali pelos anos 50. Entretanto, o longa, que foi produzido pelo próprio Elton John, evita momentos polêmicos da carreira e foca quase que unicamente na relação conturbada entre pai x filho (inclusive criticada pelo meio-irmão de Elton, por não ser retratada como realmente foi). Há poucos embates ou momentos de movam a narrativa – ele faz sucesso quase instantaneamente, não briga com ninguém importante, mantém contato com a família e continua fazendo sucesso até hoje, reerguendo-se de um problema com as drogas que dura relativamente pouco na tela também. Os cortes rápidos, de cenas importantes que duram quase dois minutos apenas, ilustram a pressa pra terminar esta produção, perceptível mesmo para quem assiste desatento. O filme corre em assuntos como o casamento com Renate Blauel, a relação com a avó (que o apoiou na música), os países que ele visitou em turnê e as dificuldades de ser homossexual mesmo no meio artístico, para privilegiar a incomunicabilidade entre o artista e seus pais. Acho que o grande problema deste filme é que o roteiro, por si só, não traz uma história suficientemente interessante para duas horas de longa. Talvez este seja o caso de uma cinebiografia que acerta bastante no factual, mas tem pouco de efetivamente interessante como um filme isolado, como narrativa mesmo. Fãs do cantor vão amar cada segundo, mas quem vai para ouvi-lo pela primeira vez (o caso de muitos das gerações mais novas, por exemplo) pode não encontrar aqui um longa exatamente carismático, como é até hoje o próprio cantor. Achei fraco...
“Counselor: Did marriage make you happy? Elton John: Not really. I'm gay.”
É um bom filme. “Nada a Esconder” é uma comédia francesa remake de outra espanhola chamado “Perfeitos Desconhecidos” – ambos tratam das relações humanas na era da tecnologia, nos efeitos dos smartphones a longo prazo num relacionamento a dois. Amigos e casais de longa data se reúnem para jantar e brincam de expor as mensagens que receberão ao longo da noite, basicamente causando caos para todos os envolvidos. Apesar de ter, aqui e ali, certos comentários estereotipantes, o filme num geral se sai bem. Há graça e inteligência genuínas neste remake, e diferenças estruturais em relação ao espanhol original. Sinto que a edição salva este filme, na medida em que é ela que dá o timing perfeito para tudo acontecer. É um drama bem-encadeado, mesmo que tenha mais piadas e situações constrangedoras que um drama convencional. Como um filme despretensioso, é entretenimento na certa. Acho que geral fica boquiaberto com este final... Vale a pena (como comédia).
“Eu pensei que era um brinquedo antes de explodir na minha mão…”
THE BREADWINNER, indicado ao Óscar de Melhor Animação de seu ano, é um filme delicado na medida em que é pesado. Abordando os conflitos no Afeganistão do Talibã, o filme segue a jornada de Parvana, uma menina que precisa vestir-se de menino para poder dar sustento a sua família. Trata dos aspectos culturais e da opressão que as mulheres afegãs sofrem, do silenciamento ao abuso físico, da desvalorização de si à depressão. A direção, assinada pela Nora Twomey, explora de maneira cuidadosa e profunda como é ser criança e ter de crescer em meio à guerra. Porque assim vivem muitas crianças não só naquele Afeganistão como também nos territórios palestinos hoje, sobretudo enquanto do confronto na Faixa de Gaza. A hostil realidade de adultos e crianças que vivem no medo, na fome e na eterna possibilidade de um bombardeio. O desespero, a dor e a morte estão aqui presentes como manifestação real e crua de uma vida que nenhuma pessoa deveria viver. A ganha-pão, a menina-mulher que precisa encarar este mundo de diferentes forças que a desapropriam de si é o tema central do filme, e disso decorre toda a crítica à violência e ao totalitarismo que THE BREADWINNER de fato representa. Como um chamado à paz, “A Ganha-Pão” é um daqueles filmes que ecoa pra depois da gente assisti-lo. Algumas das imagens das crianças aqui são das mais fortes que já vi, e nos fazem lembrar como é importante debater e procurar saber de que forma é possível ajudar essas pessoas, mesmo que do outro lado do mundo, numa realidade distante mas não menos predatória que a nossa. Todo o universo se constrói primeiro numa mulher.
“Parvana: Levante seu coração, não a sua voz. É a chuva que faz as flores crescerem, não o trovão.”
Um clássico que, infelizmente, passou batido em sua época... A MISSÃO é um filme tocante sobre a defesa dos direitos dos indígenas pelos jesuítas, no começo do processo “civilizatório” da Amazônia, em 1740. Com trilha sonora inesquecível de Ennio Morricone, o longa discorre sobre o ativismo cristão no século XVIII, no contexto da colonização portuguesa e do tratamento dado aos nativos naquele tempo. Muito embora a conversão dos Guaranis ao catolicismo não tenha sido ‘pacífica’ como em muitos momentos o filme ilustra, há aqui violência suficiente para representar a verdadeira guerra ocorrida entre jesuítas, colonizadores e indígenas. O diretor Roland Joffé filma a natureza com primor poucas vezes visto no cinema comercial, com notável atenção para o uso da luz natural e poucos efeitos artificiais. Robert de Niro e Jeremy Irons também estão impecáveis em seus papéis (quase) antagônicos, e a temática religiosa, em contraponto com a natural dos guaranis, é experimentada até musicalmente, quando os temas dos espanhóis se unem aos motivos dos nativos... Tecnicamente falando, A MISSÃO tem tudo que um grande filme dos anos 80 precisava ter para ser notável: tema pouco debatido, roteiro engajador e excelentes trilha sonora, edição e fotografia (que aliás, levou o Óscar daquele ano). Porém, em sua promoção, o longa foi pouco visto e arrecadou praticamente o seu valor de orçamento, sendo considerado um flop gigante... E assistindo-o hoje, por outro lado, existe também a questão de ser um filme sobre o Brasil, a Colômbia e o Paraguai e basicamente não ter artistas dessas nacionalidades em nenhum campo. Entendo que a época era outra, em que não se colocavam essas questões, mas hoje, mesmo despretensiosamente, A MISSÃO parece ter envelhecido um pouco mal, apesar de todo o primor em cada frame – porque se trata de um filme histórico, biográfico E político, né... Mas é uma verdadeira aventura, para revisitar com toda a certeza... Sigo apaixonado por essa trilha!
"Gabriel: If might is right, then love has no place in the world. It may be so, it may be so. But I don't have the strength to live in a world like that, Rodrigo."
Fazia tempos que eu não via um documentário tão... Humano. WHAT HAPPENED, MISS SIMONE? é daqueles filmes que não sai da cabeça. Produzido pela Netflix e dirigido pela experiente Liz Garbus, o documentário mostra os bastidores da carreira de uma das maiores cantoras norte-americanas do século passado. Sem perder tempo, Garbus entra na história sem poupar esforços no sentido de imparcializar depoimentos como os da filha de Simone, de seu ex-marido/produtor e até dela mesma, em fitas e gravações antigas e inéditas. Como o doc perpassa desde a tenra infância até os mais polêmicos momentos de vida, dá pra dizer que é um longa bastante completo – sabe prestar a homenagem sem ficar redundante, idólatra ou tedioso. Pelo trabalho feito em virtude do reconhecimento de seu legado, e em especial pela própria filha de Simone ter ajudado a representar sua mãe com maior veracidade, este filme é um 10 sem dúvidas. Um must-see para todo mundo que gosta de música, cultura, afroativismo e dela, é claro! Nossa eterna Miss Simone...
“Nina: We will shape and mold this country or it will not be molded and shaped at all anymore. So I think we don't have a choice. How can you be an artist and not reflect the times?”
Traçando um paralelo quase cristalino da situação da desigualdade na América, “Nós”, o novo longa de Jordan Peele, tem fôlego para entreter em todo o percurso e evita clichês de terror na maior parte do tempo. Tendo sido lançado após o sucesso estrondoso de público e crítica de seu longa anterior, “Corra!”, era natural que US fosse receber certa expectativa por ambas as partes. Numa avaliação geral, dá pra dizer que “Nós” é bastante diferente do outro filme, mas consegue chegar em um lugar igualmente distante e interessante – se para o primeiro aquela resolução parecia meio absurda demais, ninguém esperava o que sairia ao final deste... É possível argumentar que as piadinhas, que quebram a tensão e tornam o filme mais “palatável”, sejam desnecessárias, mesmo que sejam como uma marca do diretor; mas não é um demérito que Peele consiga criar a tensão e dissipá-la rapidamente neste trabalho... Diversificado, instigante e tenebroso, US revela o lado grotesco da civilização capitalista dos últimos 60, 70 anos, tendo na manutenção das sombras (classe dominada) sua crítica em relação à burguesia (classe dominante e protagonista, vivida na pele da família de Lupita Nyong’o). Aliás, aqui temos uma Elisabeth Moss bem diferente de seu conhecido papel como June em “O Conto da Aia”... Na verdade, tudo no filme precisa ser primeiro digerido para depois ser efetivamente compreendido: o contexto socio-político em que ele se dá, quem é a protagonista, o que motiva os antagonistas e por quê este filme saiu este ano – que relação ele estabelece entre o evento “Hands Across America”, de 1986, e o nosso tempo. Há muito para se pensar em relação a este longa, mas é suficiente dizer que ele carrega conteúdo bastante para, assim como GET OUT!, ser revisitado várias vezes. Jordan Peele segue sendo um dos nomes em alta conta entre os diretores mainstream dos Estados Unidos. Junto a Spike Lee, são a dupla de diretores atuantes no mercado que mais têm a dizer no sentido do discurso anti-racista e pró-diversidade do nosso tempo. Brabo demais.
“Gabe Wilson: Who are you people? Red: We're Americans.”
Dolorosamente necessário. THE MASK YOU LIVE IN adereça a origem de basicamente toda a violência que germina nos homens, que, quando meninos, costumavam ser tão abertos e vulneráveis, mas através do processo de socialização (separação de ser-homem e ser-mulher) passam a viver de maneira reclusa em si, evitando sentir e falar sobre seus sentimentos, e não desenvolvendo empatia frente às diferenças que existem na humanidade. É perfeito, porque fala exatamente em que momento os meninos passam a precisar “virar homens”, conceito danoso em todos os sentidos, mesmo para os que se já identificam com ele. A rejeição ao feminino, e aliás a identificação de virtudes como humildade e empatia como “femininas”, constrói todo o problema que vive dentro desses rapazes, que guardam quem são para si e se dão a qualquer coisa que os coloque mais acima no status social – para que sejam o dominador, o desbravador, o-que-transa-com-todas-as-mulheres e etc... É difícil explicitar quantas coisas ditas aqui ressoam num menino como eu, que tive criação semelhante e por pouco não virei essa pessoa. É absolutamente necessário que homens discutam hoje, e não amanhã ou depois, a importância de se fazer vulnerável, de se abrir com os amigos e amigas e de contribuir para o bem-comum, rejeitando a violência em suas manifestações diversas e buscando igualdade de tratamento a quem estiver ao alcance. Falar qualquer coisa a mais é estragar. Assistam! Uma das paradas mais lindas e poderosas que eu já vi!
William Pollack: “A maneira como os meninos são criados faz com que eles escondam todos os seus sentimentos naturais, vulneráveis e empáticos atrás de uma máscara de masculinidade.”
Meu Deus. SE A RUA BEALE FALASSE foi a grande surpresa no Óscar do ano passado. Não tendo sido indicado ao Melhor Filme, e só concorrendo a três indicações (sendo duas técnicas), foi muito inesperado o impacto que este filme surtiu sobre mim. A história, do casal negro separado pela prisão do rapaz, não é exatamente inédita – mas a maneira como ela é contada é simplesmente apaixonante. Barry Jenkins, que levou o Óscar de Melhor Filme no ano retrasado por “Moonlight”, confirma sua precisão de mão e qualidade de olhar para as narrativas afrocentradas dos Estados Unidos. Se o anterior já era um filme sensível e poderoso, aqui temos uma obra que agrega às qualidades muita cor, calor, muita música e vida. É claro que um romance entre brancos dificilmente teria a mesma pegada – tratam-se de questões de racismo pelas quais casais como os de outros dramas simplesmente não vivenciam. SE A RUA BEALE FALASSE é um retrato poderoso, sentimental, esteticamente impecável e bem-executado da vida dos negros em Nova York, primorosamente ambientado nos anos 60-70, e com o comentário social afinadíssimo ao engajamento pelo qual o diretor ficou conhecido. Vale a pena como experiência isolada, como estudo de cores/contrastes, como audição livre da trilha e mesmo como forma de prestigiar este emergente cinema negro, que passou a ganhar o reconhecimento da academia somente nos últimos anos... Arte livre, engajada e poderosa. Definitivamente um filmaço.
“Levy: Eu sou o filho da minha mãe. Talvez isso seja tudo que nos separe deles.”
Um dos melhores filmes que demorei demais pra assistir. O RENASCIMENTO DO PARTO é um daqueles longas disruptivos que gruda na gente. Abordando a situação das práticas obstétricas no Brasil, o filme de Eduardo Chauvet e Érica de Paula denuncia de maneira profunda e detida como o parto foi ‘desfuncionalizado’ no gênero feminino – como se elas não fossem mais capaz de parir sozinhas, em 100% das gestações. “É como se o corpo feminino fosse algo que sempre precisa de conserto, de cirurgias, precisa de reparos”... Dando voz à secretária de saúde, a obstetras, doulas, mães e até pais, o filme explora a fundo a origem de todo um sistema industrial de nascimentos, que envolve convênios, hospitais, mitos e toda uma estrutura de agentes para lucrar com a prática da cesariana, cirurgia que não é necessária em TODOS os casos... O doc parte da experiência traumática de uma mãe num parto hospitalar para destrinchar a nível microscópico de que maneira o parto “tornou-se uma operação”; “se temos tecnologia, é sempre melhor fazermos com tecnologia, né?”. E a decisão, realmente, precisa ser da mulher, sempre dela se quer parir de forma natural ou não (na medida em que não houver complicações para ela) – mas se o médico quiser mentir sobre a condição do bebê para empurrar uma cesárea ventre abaixo, o que se faz? Educa-se. E com um doc lindo desses, ainda por cima! Já quero ver o restante da trilogia.
“Para mudar o mundo, é preciso primeiro mudar a maneira como nascemos.”
Caramba! Tão bom que achei que fosse da A24. A QUIET PLACE é uma grata surpresa; um filme ágil, assustador e, sobretudo, silencioso. Tendo recebido prêmios super merecidos no Critic’s Choice e no AFI, o longa de John Krasinski surpreende não só como seu primeiro grande trabalho de direção, mas como experiência profunda no cinema. O silêncio, aqui, nos afeta fisicamente. Desavisadamente, estamos deixando de mastigar e até de respirar para tentar ouvir aonde a criatura está, pra saber, cada vez mais tensos, aonde aquela família vai parar. Começando num cenário pós-apocalíptico misterioso, gradativamente somos convidados a conhecer a realidade surreal na qual vivem os Abbotts... Aliás, é bem legal saber que a atriz Millicent Simmonds, que interpreta a filha mais velha do casal, é de fato surda, e ajudou os atores a aprender a linguagem de sinais, ao lado de uma equipe especializada nessa comunicação. Há cenas em absoluto silêncio que estão só na ótica dela, e são essas as que causam o maior horror – a perspectiva de não conseguir escutar algo que pode nos causar a morte é absolutamente aterrorizante, e foi uma excelente escolha de Krasinski adotá-la neste contexto deste gênero. No mais, é um filme linear, simples, mas que entrega uma poderosa história de amor e redenção, de desespero e sacrifício. Um dos grandes filmes de terror/suspense recente, que certamente vale uma revisitada depois de alguns meses. Assistam! Vale muito a pena!
“Evelyn: Quem somos nós se não podemos protegê-los? Precisamos protegê-los.”
Minha maior preocupação em filmes de temática LGBT costuma ser se a relação homoafetiva será retratada como ela se dá – horizontal e naturalmente, e de maneira não-objetificada. Em filmes lésbicos, costuma ser de praxe certo fetichismo (principalmente nas cenas sexuais), e a ausência de um final feliz, como se toda relação homossexual resultasse em tragédia, ou fosse uma “fase” das personagens centrais. Endossa minha crítica longas como “Azul é a Cor Mais Quente” e outros, dirigidos por homens, que pouco fizeram pra visibilizá-las para além de si – como se ser lésbica se bastasse na maneira como elas transam e, por que não?, desobedecem. DESOBEDIÊNCIA tem suas derrapadas. A história de Ronit, que retorna à cidade natal em virtude da morte de seu pai, um religioso ortodoxo, e reencontra a antiga paixão pela amiga Esti, tinha tudo para dar pano pra manga: a situação do judaísmo sobre a homoafetividade, a questão coletivo/público x individual/particular que o romance coloca para o marido de Esti, Dovid, e até a própria relação que elas desenvolvem, com Ronit se voltando ao passado e Esti pensando num possível futuro... O longa de Sebastián Lelio tinha farto material para trabalhar a questão das mulheres numa estrutura patriarcal e tradicional, mas preferiu manter a dialética tabu x liberdade (tema central do filme) em segundo plano, para privilegiar a beleza (e a tristeza) das duas atrizes. Todo o escopo do filme é questionável por ser "só" triste: nessas duas horas, todo o tempo Ronit e Esti estão infelizes em seus universos, o que reforça a ideia de que um relacionamento lésbico costuma surgir dessa infelicidade/solidão em comum. É claro que no contexto do patriarcalismo judaico (e do casamento religioso) essa ideia é impossível, mas saindo disso – nas paredes de um hotel, numa outra cidade, num outro lugar – será mesmo que ‘o amor é um ato de desafio’? De fato, o filme é bonito e bem filmado – e Alessandro Nivola, que faz Doniel, chega a se destacar até mais que as protagonistas na entrega de seu personagem. Porém, a produção não consegue depender só dessas performances, e o que tinha substância para trabalhar ideias muito mais audaciosas acabou tentando um voo menor, e ainda fracassando no processo de seu discurso. No fim das contas, com o desfecho escolhido por ambas, fica parecendo, assim como noutros filmes LGBT, que lésbicas seguirão sem espaço no curso das coisas que ficam; que um relacionamento homoafetivo é isso mesmo, transitório, um “desvio”, um “comportamento de adolescente”, uma impossibilidade – a desobediência de um momento. Sigo dizendo o que já digo há anos por aqui: enquanto as artes não refletirem o mundo como ele se dá hoje, em 2019, seguiremos com a mentalidade antiga das coisas-como-sempre-foram. Não basta visibilizar, nem só dar voz – é preciso retratar fidedignamente as pessoas que realmente experimentam essas situações na prática, para que se sintam acolhidas, representadas, e com histórias que possam *também* ter um final feliz. Sempre fui a favor da tragédia, mas na maioria dos filmes LGBT, a tragédia parece ser o único desfecho possível – e sabemos que isso não é real. Talvez seria melhor se o diretor fosse uma mulher lésbica, e não um homem. Mas aí já não é comigo. Decepcionante.
“Esti: Me desculpe, eu me comportei como uma adolescente ontem. Desculpe.”
Não foi tudo isso. GREEN BOOK, vencedor do Óscar de melhor filme deste ano, aborda o racismo institucionalizado nos EUA dos anos 50-60, na época do segregacionismo das ditas “pessoas de cor” – como se houvesse pessoa sem. O longa, de Peter Farrelly, é o primeiro premiado de sua carreira, que consiste basicamente em comédias pastelão como “Deby & Loide 1 e 2”, “Os Três Patetas” e “Antes Só do que Mal Casado”. Tendo chegado a levar o Framboesa de Ouro de pior filme seis anos atrás, é no mínimo irônico que hoje tenha sido consagrado com o Óscar de melhor filme, sobretudo pela maneira como Green Book se apresenta. O filme, em si, não é de todo mal: trata-se de uma história verídica de um racista italiano que cria (meu deus, que spoiler!) uma amizade com um pianista negro, um homem de grande prestígio nas casas de show do sul do país, desde que não tenha de comer perto de seus espectadores. Aqui e ali, são exploradas situações comuns pelas quais passaram (e ainda passam) negros em ambientes semelhantes, em que a segregação se dá pelo não-ser: não-sendo branco, não-se-pode congregar. O longa trata do respeito contra a intolerância, porque não se basta até que o protagonista, Tony Lip, respeite plenamente Don Shirley, e a vida que este tem de levar somente pela cor de sua pele. Contudo, o filme caminha mal em outros termos. É estranho um longa sobre racismo abordar o tema pela ótica do racista, sobretudo quando este passa a ser um herói na trama, enfrentando o racismo que basicamente o moldou – nas primeiras cenas Tony é visto jogando fora copos de vidro em que negros beberam em sua casa, para dali a algumas semanas ele ser capaz de socar homens que fariam o mesmo com o pianista. Nada disso aparece no filme como uma reflexão ou autocrítica do personagem, o que sugere que ele simplesmente “desligou um botão” de racismo e pronto, resolveu o problema. Outro ponto polêmico é como o filme trata sobre racismo deixando Don Shirley quase como um coadjuvante da própria história: seu personagem é raso – sabe-se pouco de quem ele é ou por que é assim – e, tirando dois ou três monólogos em que entendemos sua crise existencial (não ser nem branco nem preto o suficiente para ser aceito), pouco se explora da riqueza possível ao contar a sua história como deveria ser contada – a partir de SEU ponto de vista, sua ótica, inescapavelmente negra. Um último aspecto que incomoda é a raiz “besteirol” do diretor no filme: tem piadinhas demais sobre a rudeza, a grosseria e o aspecto “ogro” de Tony Lip, um racista “engraçado apesar de ser racista”. Não sei até que ponto rirmos do diferente – sobretudo quando é um diferente com potencial para aniquilar etnias – é saudável, e até que ponto colocar este racista como protagonista de um “drama-comédia” faz a discussão sobre racismo ir pra frente. O filme, afinal, é para quem? Pro público negro? Branco? Pro público racista? Ou melhor: o próprio Tony iria ao cinema assistir a este filme, se estivesse em cartaz em sua época? Reflexos do fato de que o diretor (que também assinou o roteiro) é um cara branco que até então não tinha feito um filme que abordasse o tema antes de ganhar um Óscar por isso – ao contrário de Spike Lee, indicado na mesma categoria, e que construiu toda uma carreira com o assunto, nunca tendo recebido a estatueta de melhor filme. Me parece muito cômodo premiar o ex-besteirol (e branco) Peter Farrelly ignorando o filme de Spike Lee, verdadeiro agitador dos pensamentos no sentido da tolerância e respeito pela negritude de seu país. Ademais, na mesma premiação, em outras categorias, concorreu “Se a Rua Beale Falasse”, que trata do mesmo assunto, na mesma época, e é dirigido, produzido e adaptado por Barry Jenkins, cineasta negro de crescente prestígio na indústria dos últimos anos. Aliás, o melhor filme do Óscar, pra mim. GREEN BOOK, diante disso tudo, simplesmente não rolou. Não rolou mesmo. Não foi tudo isso.
“Oleg: Ser um gênio não é o suficiente. É preciso coragem para mudar o coração das pessoas.”
Meh. Tô brigado com o Shyamalan desde aquele sofrível “A Dama na Água”, de 2006, que parecia promissor, mas acabou sendo um balde de água fria (sem duplos sentidos). De lá pra cá, quase tudo que o diretor produziu recebeu duras críticas e acabou desagradando o público, inclusos nisso os fracassos “Depois da Terra” e “O Último Mestre do Ar”, ambos com nota baixíssima em todos os sites de cinema visitáveis. Portanto, eu já esperava uma bomba e, ironicamente, não foi bem assim que aconteceu... FRAGMENTADO é um longa interessante, pelo menos na maior parte, e se mostra um suspense com fôlego para uma continuação. A questão aqui, e que é comum em seu cinema, é a falta, no roteiro, de recursos que o tornem minimamente instigante, para não deixar o espectador passivo, esperando aquilo se desenrolar. Como seus outros longas de 2006 pra cá, SPLIT encarna os clichês do suspense e não sabe se impor como um filme além da própria sinopse; o tema do cárcere, o sequestro das meninas jovens, podia ter uma série de desdobramentos mais reflexivos do que o que teve: basicamente um survival movie na casa de um homem doente, que possui 23 personalidades (e revela cerca de seis ou oito até o fim do filme). A atuação de James McAvoy é exagerada, chegando até a ser boba em alguns momentos, e o uso de uma psicóloga/psiquiatra simplesmente para explicar a existência deste antagonista é só fácil demais, dado demais pra gente. A direção, que se pretende intensa, parece preguiçosa, assim como o desenvolvimento de todo o argumento deste filme. Ao contrário dos anteriores, porém, FRAGMENTADO consegue envolver o suficiente para que fiquemos até o fim da sessão – o que, infelizmente, não é dizer muita coisa; isto é só o mínimo que um suspense deve fazer para ser um suspense, por isso talvez seja a hora de Shyamalan realmente se dar umas férias deste ofício... Fraco.
“The Beast: The broken are the more evolved. Rejoice.”
Putz... A MORTE TE DÁ PARABÉNS é, basicamente, o que diz a sinopse, na forma que se espera, com um ou dois respiros de criatividade num mar de clichês do gênero. O longa, de Christopher Landon (responsável pelo fraquíssimo “Atividade Paranormal 5”), não consegue justificar sua existência sozinho, apesar de entregar uma história interessante aliada a uma boa edição, que torna dinâmico todo o percurso da narrativa. O conceito de viagem no tempo (e o eterno retorno) é clássico e funciona bem quando bem trabalhado; “O Efeito Borboleta” e “Questão de Tempo” são alguns filmes que exploram o assunto sem perder a pegada comercial que lhes é comum. Em “Happy Death Day”, porém, não é isso que acontece: a repetição não torna o filme mais assustador, e sim cômico, e o próprio longa não se leva muito a sério (a começar pelo seu antagonista risível). É quase como se inaugurasse um subgênero no terror, um “pastelão terror”, se desse pra chamar assim. Mas entendo, também, que não se deve esperar um filme cabeça e experimental de algo produzido sob demandas mercadológicas (como o recente “A Freira” e outros semelhantes). É suficiente dizer que este filme entretém, no sentido que ele é dinâmico o suficiente para isso, e que entrega uma história mais ou menos interessante – com exceção, talvez, de algumas quebras ali pelo final... Mas é fraquinho. Não vale o tempo investido.
“Tree Gelbman: I can't change what I've done, but I can start trying to be a better person today.”
Daquelas comédias bonitas e com pegada existencialista que eu adoro... ABOUT TIME aborda a questão do tempo (e sua irreversibilidade) no contexto de um casal que se encontra – e desencontra várias vezes. O longa foi dirigido por Richard Curtis, realizador de comédias românticas bastante consagradas como “Simplesmente Amor” e “Um Lugar Chamado Notting Hill”. Este filme tem leveza e constrói um roteiro bastante “linear”, se é que dá pra falar assim; pelo menos mais que “O Efeito Borboleta”, suspense que aborda as mesmas questões – mas com pegada completamente diferente, é claro. Este foi o último filme de Curtis como diretor, depois de dizer que “[about time] fala sobre como aproveitar os dias, algo que você não consegue fazer quando dirige um filme”. Dali pra frente, ele viria a se bastar sendo roteirista e produtor de outros trabalhos, que incluíram o novo “Mamma Mia” e “Yesterday”, musical muito aguardado para este ano. Tendo abandonado o ofício da direção por motivos pessoais absolutamente compreensíveis, é interessante observar a trajetória de um homem que dirigiu apenas três longas na carreira, mas ficou consagrado no gênero sem aparente esforço. "Questão de Tempo" é um bom divertimento, trazendo uma infância saudosa, um amor “quase impossível” e uma escolha sobre como viver a vida. Não curto muito o reforço dos papeis de gênero em filmes de comédia romântica, nem as piadas preconceituosas lançadas aqui e ali, mas isso vai de mim; a mensagem é que, como o filme explica, tudo é sobre como você organiza seu tempo, e as prioridades que coloca para si – família, amigos, relacionamentos, trabalho... É tudo uma escolha, e este longa fala um pouco sobre como as escolhas operam na vida da gente, muitas vezes de maneira imperceptível. É preciso ter novos olhos para enxergar isto. Não basta não ser cego para perceber... Bonito!
“Tim Lake: Estamos todos viajando no tempo juntos, todos os dias de nossas vidas. Tudo que podemos fazer é o melhor para que possamos saborear essa memorável jornada.”
“A Rússia é como um teatro...” Uma pomposíssima visita à Rússia Czarista através da sua arte, suas manifestações culturais e seu legado como potência emergente do século XIX. ARCA RUSSA é um filme ambicioso, filmado em primeira pessoa e com o espectador “sendo” o protagonista, enquanto ele passeia pelos corredores do Museu Hermitage, em São Petesburgo, e contempla a complexa arte que por seus caminhos se estende. Aleksandr Sokurov decidiu fazer o filme inteiro em um dia e num take só, montando todo o cenário antes de começar a gravar e executando tudo com a ajuda do diretor de fotografia Tilman Büttner. Só aí já rolou um problema – o diretor russo só falava russo, e Büttner só alemão, então todo o filme teve também a participação de um tradutor para garantir a comunicação efetiva entre os dois realizadores. É impressionante o primor técnico que este filme exigiu. Filmado em plano-sequência, redublado e sem nenhuma compressão, o longa de Sokurov é uma viagem plácida pelos corredores do Palácio de Inverno, que foi moradia para a aristocracia russa até a Revolução irromper, na época do czar Nicolau II. Mais de 4.500 pessoas foram necessárias para montar e desmontar o filme, e o museu iria fechar no dia seguinte, então o take teria que sair de qualquer jeito. As três primeiras tentativas foram falhas logo nos primeiros minutos, sendo a quarta a que, enfim, deu certo. Alguns trechos disso aqui são memoráveis – as meninas-pássaro brincando nos corredores, a reconstrução de alguns quadros nas cenas e a dança de salão final, por exemplo. ARCA RUSSA tem um figurino adequadíssimo e boa fotografia, apesar de não possuir roteiro que vá além da própria contemplação da arte pró-monarquia, com os comentários irreverentes do estranho interlocutor que nos acompanha até o fim... Não fosse a absoluta lentidão da câmera e os vários momentos em que se filmam “passagens” de ambientes para outros, quase sempre na escuridão, o filme teria sido um passeio um pouco mais agradável: o fato é que, depois de mais ou menos uma hora, a forma do filme o fada a ser quase apenas uma produção muito robusta, mas vazia para além de sua moldura. Fica difícil pensar se a Rússia Czarista é um elogio ou um ultraje para a Rússia pós-revolução, dado o contexto em que o filme se passa e os inúmeros comentários políticos que o “amigo” do protagonista faz. Afinal, a intenção de revisitar a arte de uma Rússia “napoleônica”, como o amigo diz, tem a intenção de exaltá-la ou de pô-la em perspectiva? É difícil dizer. O roteiro guarda seus segredos e, provavelmente, este filme não se propõe a dar conta deles. A um russo letrado que conhece a arte de seu país, o longa deve ser muito mais agradável. A mim, foi um pouco penoso. Penoso e distante demais do espectador para se fazer entender. Não acho que o veria de novo, apesar de ainda estar deslumbrado...
“Viajante do Tempo: O mar cerca tudo. Estamos destinados a navegar para sempre... A viver para sempre.”
Wakanda Forever! BLACK PANTHER, o longa assinado por Ryan Coogler, o diretor de “Creed”, estabelece sua pegada afrofuturista com êxitos técnicos, mas não vai muito longe em termos de roteiro e profundidade... Finalmente a MARVEL lançou o longa do Pantera Negra, um super-herói de 1966 que até então não havia conhecido a grande tela (só filmes menores lançados direto para DVD). A representatividade negra – em tribos africanas, negros da periferia e no protagonista e antagonista do filme – é o ponto mais alto em favor da produção, anunciada em 1992 e só concluída em 2018, em tempo para as premiações mundiais que a consagraram. BLACK PANTHER levou melhor figurino, trilha sonora e edição de som no Óscar, e não foi por menos: trajes excelentes das tribos e composições fantásticas do Kendrick Lamar, um dos maiores nomes do rap atual... Com prêmios super merecidos também no Critics’ Choice e Screen Actors Guild, o longa flerta com o movimento afrofuturista, fazendo uma poderosa imersão no universo da MARVEL, mas preservando a representação e identidade dos povos quenianos e nigerianos – cujo público elogiou até o sotaque das personagens... Entretanto, apesar das qualidades técnicas, o filme, em si, não vai tão longe. A atuação de Chadwick Boseman, o protagonista T’Challa, deixa muito a desejar. A unidimensionalidade das personagens femininas (e a estrutura patriarcalista que o filme abraça) também não contribui para que ele produza o melhor comentário social que pretende, e as críticas que o vilão N’Jadaka tece em relação à população negra “do mundo exterior a Wakanda” são super pertinentes, podendo até ser consideradas “revisionistas” – mas são escassas, ocorrendo espaçadamente num roteiro que lembra muito a trajetória de Simba, o Rei Leão (não que isso seja um grande problema). É um filme que tem uma moldura linda, com efeitos especiais, explosões e cenas super bem editadas, mas, como boa parte dos longas de super-herói, basta-se ao contar uma história de maneira linear, tentando, no percurso, se tornar um bom entretenimento. Como representatividade é um espetáculo, mas como filme somente, não é pra tanto...
“T'Challa: Ainda podemos curar você. N'Jadaka: Pra quê? Pra vocês me prenderem depois? Nah. Apenas me enterre no oceano com meus ancestrais, que pularam dos navios, porque eles sabiam que a morte era melhor do que a escravidão.”
Lembro bem do stand-up da Hannah Gadsby do ano passado, “Nanette”. Em determinado momento do show, ela contempla a vida de Vincent Van Gogh com uma máxima: “ele não era um gênio incompreendido, ele só precisava de um amigo!”. De certa forma, isso dá conta de muito do que NO PORTAL DA ETERNIDADE coloca à mesa – a saúde física, mental e espiritual de um pintor que estava à frente do seu tempo, mas cada dia mais distante de seus contemporâneos... Pouco se sabe sobre a causa de sua morte, e não há consenso sobre as questões psicológicas ele tinha – depressão? Autismo? Esquizofrenia? O fato é que a vida e obra deste cara resistiu ao tempo, apesar de ele, em vida, ter vendido apenas um quadro. Tendo morrido miserável e anônimo, Van Gogh era evitado nas ruas (falavam de seu mal cheiro e sua personalidade antissocial) e era ignorado pelos críticos em geral. É difícil julgar, sabendo deste contexto, que uma pessoa chegue a ‘absurdos’ como comer tinta amarela, pra ficar mais feliz, e cortar a própria orelha como um pedido de perdão. Seja o que for que Van Gogh tenha enfrentado, é certo que sua produtividade não cessou até a morte e o resultado se vê até hoje implacavelmente: é ele o grande representante do movimento pós-impressionista, o homem que inspirou inúmeros artistas mais tarde a adotarem a técnica do pontilhismo, sendo uma inquestionável referência para a arte de modo geral. Este filme acerta também na medida em que não romantiza suas questões psicológicas, limitando-se a expô-las, e tratá-las com a atenção e o cuidado que elas merecem. É triste ver a cinebiografia de alguém que não tinha amigos, e nem se relacionava amorosamente, e não podia contar sequer com mais que a piedade de seu irmão... Para o objeto abordado, NO PORTAL DA ETERNIDADE tem a pegada certa, porque nos transporta para esta realidade sem esforço algum. Trata-se de um filme contemplativo e emocionante. Por vezes, o marasmo do enredo pega, mas não é de maneira gratuita: cada silêncio, pausa e cena longa contribui para ambas as sensações de isolamento (vivida intensamente pelo pintor) e de proximidade (do espectador em relação a ele, à sua visão). O uso do desfoque e do amarelo como cor estrutural deste trabalho são dois charmes à parte, além da fabulosa interpretação de Willem Dafoe. Vontade de pegar no colo e dar um abraço apertado. Assistam!
“A VIDA É UMA IMPOSSIBILIDADE COLETIVA." Gaspar Noé num momento melhor. CLÍMAX é bastante ágil. Sendo um dos mais curtos entre seus longas, o filme, que recebeu o prêmio Cinema de Arte de Cannes, causa impacto com bom equilíbrio entre tensão e recompensa, sendo o mais acessível entre os do diretor – tanto que nem ele mesmo acreditou que tinha sido ovacionado pelos seus críticos mais ferrenhos (dentre os quais eu mesmo estou rs). É preciso dar ao cara o que ele merece: “Clímax” é o seu filme mais conciso desde IRREVERSÍVEL, e segue todos os maneirismos de seu cinema; os créditos ao início e o título ao final, o emprego das letras garrafais em pausas, o uso do laranja/vermelho como tom de alarme, perigo; os longos corredores que são cenário para quase todos os seus filmes... É inegável que Noé busca beber da própria obra para produzir seus filmes, mas este é o que mais se aproxima de uma produção “comercial”, apesar da experiência ser caótica, pra dizer o mínimo. A exploração do exagero, muito presente em seu cinema, encontra aqui mais uma boa abordagem. As drogas, o sexo e a imoralidade, que seus filmes frequentemente põem em pauta, vibram em “Clímax” com força. Os excessos, a imprudência e a violência são características de seus personagens vaidosos, vingativos e traiçoeiros. Seus longas costumam ser agressivos, e passar por qualquer um deles exige um exercício físico de tolerância; mas, para quem já é familiarizado, este aqui se apresenta como uma grata surpresa na sua explosiva obra. O uso de planos-sequência durante quase todo o filme reforça a pegada caótica que ele tem. O caos ligado ao LSD (o paraíso/inferno dos lisérgicos) é verdadeiramente uma linguagem para o filme, nos movimentos de câmera, na mudança de foco, na ausência de um(a) protagonista fixo. A música eletrônica é quase um cenário na maneira física em que se impõe, e o uso da grua para captar imagens de cabeça para baixo é algo que ele tinha abandonado desde ENTER THE VOID, mas que, aqui, coube muitíssimo bem. É difícil perceber cortes (eles ocorrem frequentemente no escuro) e perto do final só o que se vê é confusão – mas esta é a ideia do filme, que, no contexto, está muito bem executada. Entretanto, ao contrário de LOVE ou ENTER THE VOID, o “vazio existencial” que CLÍMAX coloca não parece ir mais longe que a sua própria exposição. É um realizador amado e odiado por razões absolutamente compreensíveis: ele não deixa de ser um roteirista pretensioso, como neste caso, em que escreveu apenas 5 páginas para o projeto e deixou todos os diálogos para os atores (que não são atores) improvisarem à vontade. Apesar de ter sido bem feito, o filme trabalha muito mais no improviso que na mensagem, tornando-se, como seus outros trabalhos, uma espécie de soco “vazio”, sem a profundidade que realmente merecia para ser eficiente. CLÍMAX não é o seu pior, mas como experiência isolada, não será muito lembrado. No fim das contas, não parece fazer desembocar um pensamento inteiro, ou algo que dê conta da experiência melhor que as imagens desconexas de pessoas sofrendo, gemendo, gritando, transando e morrendo. IRREVERSÍVEL segue sendo o mais forte e eficiente de seus longas, para o bem ou para o mal, mesmo que este aqui esteja longe de ser o pior da sua carreira...
Quatro Casamentos e Um Funeral
3.3 254 Assista AgoraOutra das comédias românticas dos anos 90 que traduz o pensamento afetivo/emocional de uma geração – mas que não envelheceu tão bem quanto poderia ter.
QUATRO CASAMENTOS E UM FUNERAL é um clássico dirigido por Mike Newell ("Príncipe da Pérsia", "Donnie Brasco"), estrelando o queridinho Hugh Grant, e que foi um sucesso estrondoso de público – cerca de 240 milhões de dólares para um filme que custou aproximadamente 6 milhões. É inegável que, culturalmente, trata-se de um longa que não foi esquecido, figurando bastante bem na estante em que outros de sua geração estão (entre eles, “Uma Linda Mulher”, “Um Lugar Chamado Notting Hill” e “10 Coisas que Odeio em Você”).
Mas como os demais de sua época – salvo raras exceções – “Quatro Casamentos...” apresenta sinais de mau-envelhecimento. Há piadinhas machistas, há certos preconceitos “da época” e também uma maneira um tanto antiquada de abordar o encontro entre um homem e uma mulher, quase sempre retratado como ‘uma mulher esperando algo de um homem’, passiva, beldade submissa e misteriosa, impossivelmente distante e encantadora. Aliás, numa leitura mais moderna, a personagem de Andie MacDowell é basicamente uma atiçadora “tentando” Hugh Grant, sabendo dele a paixão inconfessa.
De qualquer maneira, é ainda um divertimento possível, se fizermos vista grossa a alguns desses elementos. Grant tem todo o carisma do mundo, como sempre, e o longa é bem articulado ao apresentar esses quatro casamentos (e o surpreendente belo funeral que ocorre ali no meio). Há sempre boas lições sobre amor a aprender em comédias românticas simples como esta – é um prato cheio para quem curte o gênero.
E tenho dito!
“Matthew: Perhaps you will forgive me if I turn from my own feelings to the words of another splendid bugger: W.H. Auden. This is actually what I want to say:
‘Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.
Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.
He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.
The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.’”
Annabelle 3: De Volta Para Casa
2.8 680 Assista AgoraDifícil elencar só um elemento que não funcione aqui.
ANNABELLE 3 é, sendo curto e grosso, didático demais, com roteiro estúpido e condução fraca. Comercialmente mais-do-mesmo e descartável no pior sentido – não é o melhor da franquia e não chega perto de ser um bom filme “independentemente dela”. A história da boneca de Ed e Lorraine Warren já deu o que tinha que dar, ainda mais na fórmula fast-food em que seus filmes foram feitos; consigo inclusive ver mais spin-offs e reboots de personagens apresentados aqui, para a manutenção do império do terror imediatista que caracteriza a obra recente de James Wan, responsável pelo aclamado (e odiado) “Jogos Mortais” original.
Apesar de apresentar novidades interessantes, como um elenco inteiramente feminino (personagens com poder de voz e decisão) e duas ou três cenas muito bem feitas seguindo a fórmula jumpscare, o motor de ANNABELLE 3 é pífio: uma sucessão de decisões equivocadas, despreparos adolescentes e inconsequências questionáveis. Irrita porque é muita burrice, não parece real em momento algum e acaba caindo duro no chão, tentando um voo que nunca seria, no fim das contas, bem-sucedido.
É o último que vejo produzido pelo Wan. A minha cota já deu.
E quem reclamar desta resenha é adolescente frustrado.
“Lorraine Warren: Há muito mal neste quarto. Mas sabe o que eu realmente gosto sobre ele? Todo o mal que está aqui me lembra de todo o bem que há lá fora.”
Dúvida
3.9 1,0K Assista AgoraRetumbante.
“Dúvida” é um daqueles filmes que a gente fica namorando, com vontade de ver, mas acaba deixando pra depois, pra depois e pra depois e, quando finalmente se dá a oportunidade, se arrepende de não ter visto antes. O longa, estrelado pelas gigantes Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams e Viola Davis, coloca a questão da pedofilia na igreja católica sem cair em lugares-comuns, em críticas simplórias ou numa caracterização cafona.
Mergulhando no mundo ortodoxo da irmã Aloysius, o filme vai acompanhar a sua trajetória (e a de seu inimigo declarado, o padre Brendan) no decorrer de uma denúncia catastrófica, calcada na forte suspeita de que houve um caso de pedofilia em sua igreja. Minimalista, o filme passa por várias perspectivas – das irmãs, dos padres, do rapaz que é (ou pode ser) a vítima e até da mãe dele. São olhares diferentes para o mesmo problema, que não vemos na tela e podemos apenas inferir através dos diálogos, e da exímia interpretação de todo o elenco.
De fato, o sentimento de dúvida corre pelo longa inteiro, tornando difícil mesmo ao final dar um veredicto. Houve mesmo um abuso sexual dentro daquela igreja? O padre era inteiramente culpado? O que faziam ambos nas reuniões privadas dos olhares da assembléia? Todas essas questões pertinentes o longa não esquece, mas procura responder de maneira subjetiva, para que possamos juntar as peças e chegar à nossa própria conclusão.
Há quem diga que o padre era inocente, e quem veementemente afirme que estava na cara que ele era culpado. Sendo ou não sendo, o filme chega a uma cena final retumbante e perturbadora, que independe da verdade do que aconteceu. Por isso, e pelo trabalho fantástico de atuação empreendido pelos quatro, o filme caminha sozinho sem o menor esforço e se sedimenta como uma leitura importantíssima sobre o problema da pedofilia, como o também excelente “A Caça”, de 2012, que aborda a mesma questão, mas num contexto diferente.
Incrível. Assistam logo!!
“Padre Brendan Flynn: A dúvida pode ser um laço tão forte e permanente quanto a certeza. Quando você se sente perdido, você não está sozinho.”
A Menina no País das Maravilhas
4.1 405Este filme é uma graça… E ainda um must-see!
PHOEBE IN WONDERLAND aborda uma condição mental em que vive Phoebe, uma garotinha de nove anos que sonha em ser atriz e quer participar da adaptação da escola de “Alice no País das Maravilhas”. O dia-a-dia, a relação com a irmã, com os pais e com a professora de teatro, o bullying e a incompreensão dos colegas de classe, tudo isso está retratado no longa de maneira preciosa e precisa.
Tudo funciona bem: trata-se de uma direção ágil, com excelentes atores capitaneados por uma surpreendente atriz-mirim, a Elle Fanning, irmã da Dakota, que entrega uma interpretação poderosa e emocionante. As alucinações retratadas pelas mudanças de cenário e os efeitos visuais são toques a mais que o filme tem, para além da leitura certeira que ele dá adereçando o problema mental como uma questão anti-socializante para uma criança em crescimento.
Longe de ser só um retrato para pessoas com a condição, "A Menina no País das Maravilhas" é um filme forte mesmo nas cenas mais singelas, como nos diálogos finais entre a professora e a menina. É importante estimar as pessoas que estão à nossa volta, sobretudo as que passam por dificuldades constantes - e ter uma questão mental pode ser um desafio para muitas, mas empatia e compreensão estão a um abraço de distância;
Você estaria disposto(a) a dá-las para pessoas como ela?
É um filme verdadeiramente lindo e certeiro em tudo.
Vale a pena!
“Srta. Dodger: Num certo momento da sua vida, provavelmente quando muito disso já tiver passado, você vai abrir seus olhos e se ver como realmente é… Especialmente por tudo que te fez tão diferente dos péssimos normais. E você vai dizer para si mesma: “mas eu sou esta pessoa”. E, nesta declaração, nesta correção, haverá um tipo de amor.”
Aladdin
3.9 1,3K Assista AgoraConfesso que fui assisti-lo sem muita expectativa, e até esperava um fiasco de ALADDIN, a nova superprodução da Disney, mas estava redondamente enganado...
O filme de Guy Ritchie é tudo menos um fiasco. Direção, composição musical, performances, fotografia e coreografia absolutamente afiadas. Design de produção arrojado como os vários sucessos da Disney, fazendo referência e atualizando elementos datados do primeiro Aladdin, de 1992 – letras que incluíam palavras como “escravos” foram espertamente substituídas por outras expressões, por exemplo, e as releituras musicais com rap, trap e a cultura do hip-hop ficaram simplesmente fantásticas, em contraponto com a cultura arábica da dança do ventre e das escalas ciganas.
Entretanto, algumas questões de representatividade são importantes de mencionar... ALADDIN é um filme que tangencia o assunto do não-silenciamento das mulheres (sobretudo no solo de Jasmine, a excelente “Speachless”), mas o próprio filme não passa no teste de Bechdel: as personagens femininas são quase meramente ilustrativas, e embora Jasmine seja o par romântico do protagonista, ela não parece ter autonomia sequer em suas próprias escolhas. A real é que toda a estrutura narrativa da princesa-que-precisa-ser-conquistada é clássica, mas também precisa ser revisada – esta ideia de que mulheres são mistérios que homens resolvem é arcaica e, no fim das contas, reduz as mulheres a musas que elas não são. É estranho um filme tão esteticamente inovador e inclusivo não quebrar esta barreira tão primordial dos contos de princesas da Disney.
Um dia os estúdios verão não só a superficialidade de sua política de diversidade, mas toda a estrutura que perpetua silenciamentos menores, mesmo quando o filme é contra este mesmo silenciamento...
É isso. De maneira geral, é um filme genuinamente bom.
Assistam!
“Genie: In ten thousand years, I have never been so embarrassed.”
Rocketman
4.0 922 Assista AgoraDifícil dizer exatamente o que desandou aqui...
ROCKETMAN é o novo filme de Dexter Fletcher, responsável por finalizar o super bem-sucedido BOHEMIAN RHAPSODY, indicado ao Óscar do ano passado. Há diferenças brutais entre um e outro, sobretudo na parte técnica (a edição deste filme, em especial, dá um banho na do anterior), mas há aspectos nele que simplesmente não funcionam e fazem toda a coisa desandar...
ROCKETMAN é uma cinebiografia musical com o (excelente) Taron Egerton interpretando Elton John. O filme é uma explosão de bom colorismo e boa ambientação, sobretudo na parte da infância do cantor, ali pelos anos 50. Entretanto, o longa, que foi produzido pelo próprio Elton John, evita momentos polêmicos da carreira e foca quase que unicamente na relação conturbada entre pai x filho (inclusive criticada pelo meio-irmão de Elton, por não ser retratada como realmente foi). Há poucos embates ou momentos de movam a narrativa – ele faz sucesso quase instantaneamente, não briga com ninguém importante, mantém contato com a família e continua fazendo sucesso até hoje, reerguendo-se de um problema com as drogas que dura relativamente pouco na tela também.
Os cortes rápidos, de cenas importantes que duram quase dois minutos apenas, ilustram a pressa pra terminar esta produção, perceptível mesmo para quem assiste desatento. O filme corre em assuntos como o casamento com Renate Blauel, a relação com a avó (que o apoiou na música), os países que ele visitou em turnê e as dificuldades de ser homossexual mesmo no meio artístico, para privilegiar a incomunicabilidade entre o artista e seus pais.
Acho que o grande problema deste filme é que o roteiro, por si só, não traz uma história suficientemente interessante para duas horas de longa. Talvez este seja o caso de uma cinebiografia que acerta bastante no factual, mas tem pouco de efetivamente interessante como um filme isolado, como narrativa mesmo. Fãs do cantor vão amar cada segundo, mas quem vai para ouvi-lo pela primeira vez (o caso de muitos das gerações mais novas, por exemplo) pode não encontrar aqui um longa exatamente carismático, como é até hoje o próprio cantor.
Achei fraco...
“Counselor: Did marriage make you happy?
Elton John: Not really. I'm gay.”
Nada a Esconder
3.6 473 Assista AgoraÉ um bom filme.
“Nada a Esconder” é uma comédia francesa remake de outra espanhola chamado “Perfeitos Desconhecidos” – ambos tratam das relações humanas na era da tecnologia, nos efeitos dos smartphones a longo prazo num relacionamento a dois. Amigos e casais de longa data se reúnem para jantar e brincam de expor as mensagens que receberão ao longo da noite, basicamente causando caos para todos os envolvidos.
Apesar de ter, aqui e ali, certos comentários estereotipantes, o filme num geral se sai bem. Há graça e inteligência genuínas neste remake, e diferenças estruturais em relação ao espanhol original. Sinto que a edição salva este filme, na medida em que é ela que dá o timing perfeito para tudo acontecer. É um drama bem-encadeado, mesmo que tenha mais piadas e situações constrangedoras que um drama convencional.
Como um filme despretensioso, é entretenimento na certa. Acho que geral fica boquiaberto com este final...
Vale a pena (como comédia).
A Ganha-Pão
4.4 272“Eu pensei que era um brinquedo antes de explodir na minha mão…”
THE BREADWINNER, indicado ao Óscar de Melhor Animação de seu ano, é um filme delicado na medida em que é pesado. Abordando os conflitos no Afeganistão do Talibã, o filme segue a jornada de Parvana, uma menina que precisa vestir-se de menino para poder dar sustento a sua família. Trata dos aspectos culturais e da opressão que as mulheres afegãs sofrem, do silenciamento ao abuso físico, da desvalorização de si à depressão. A direção, assinada pela Nora Twomey, explora de maneira cuidadosa e profunda como é ser criança e ter de crescer em meio à guerra.
Porque assim vivem muitas crianças não só naquele Afeganistão como também nos territórios palestinos hoje, sobretudo enquanto do confronto na Faixa de Gaza. A hostil realidade de adultos e crianças que vivem no medo, na fome e na eterna possibilidade de um bombardeio. O desespero, a dor e a morte estão aqui presentes como manifestação real e crua de uma vida que nenhuma pessoa deveria viver. A ganha-pão, a menina-mulher que precisa encarar este mundo de diferentes forças que a desapropriam de si é o tema central do filme, e disso decorre toda a crítica à violência e ao totalitarismo que THE BREADWINNER de fato representa.
Como um chamado à paz, “A Ganha-Pão” é um daqueles filmes que ecoa pra depois da gente assisti-lo. Algumas das imagens das crianças aqui são das mais fortes que já vi, e nos fazem lembrar como é importante debater e procurar saber de que forma é possível ajudar essas pessoas, mesmo que do outro lado do mundo, numa realidade distante mas não menos predatória que a nossa.
Todo o universo se constrói primeiro numa mulher.
“Parvana: Levante seu coração, não a sua voz. É a chuva que faz as flores crescerem, não o trovão.”
A Missão
3.8 225Um clássico que, infelizmente, passou batido em sua época...
A MISSÃO é um filme tocante sobre a defesa dos direitos dos indígenas pelos jesuítas, no começo do processo “civilizatório” da Amazônia, em 1740. Com trilha sonora inesquecível de Ennio Morricone, o longa discorre sobre o ativismo cristão no século XVIII, no contexto da colonização portuguesa e do tratamento dado aos nativos naquele tempo. Muito embora a conversão dos Guaranis ao catolicismo não tenha sido ‘pacífica’ como em muitos momentos o filme ilustra, há aqui violência suficiente para representar a verdadeira guerra ocorrida entre jesuítas, colonizadores e indígenas.
O diretor Roland Joffé filma a natureza com primor poucas vezes visto no cinema comercial, com notável atenção para o uso da luz natural e poucos efeitos artificiais. Robert de Niro e Jeremy Irons também estão impecáveis em seus papéis (quase) antagônicos, e a temática religiosa, em contraponto com a natural dos guaranis, é experimentada até musicalmente, quando os temas dos espanhóis se unem aos motivos dos nativos...
Tecnicamente falando, A MISSÃO tem tudo que um grande filme dos anos 80 precisava ter para ser notável: tema pouco debatido, roteiro engajador e excelentes trilha sonora, edição e fotografia (que aliás, levou o Óscar daquele ano). Porém, em sua promoção, o longa foi pouco visto e arrecadou praticamente o seu valor de orçamento, sendo considerado um flop gigante...
E assistindo-o hoje, por outro lado, existe também a questão de ser um filme sobre o Brasil, a Colômbia e o Paraguai e basicamente não ter artistas dessas nacionalidades em nenhum campo. Entendo que a época era outra, em que não se colocavam essas questões, mas hoje, mesmo despretensiosamente, A MISSÃO parece ter envelhecido um pouco mal, apesar de todo o primor em cada frame – porque se trata de um filme histórico, biográfico E político, né...
Mas é uma verdadeira aventura, para revisitar com toda a certeza...
Sigo apaixonado por essa trilha!
"Gabriel: If might is right, then love has no place in the world. It may be so, it may be so. But I don't have the strength to live in a world like that, Rodrigo."
What Happened, Miss Simone?
4.4 401 Assista AgoraFazia tempos que eu não via um documentário tão... Humano.
WHAT HAPPENED, MISS SIMONE? é daqueles filmes que não sai da cabeça. Produzido pela Netflix e dirigido pela experiente Liz Garbus, o documentário mostra os bastidores da carreira de uma das maiores cantoras norte-americanas do século passado. Sem perder tempo, Garbus entra na história sem poupar esforços no sentido de imparcializar depoimentos como os da filha de Simone, de seu ex-marido/produtor e até dela mesma, em fitas e gravações antigas e inéditas. Como o doc perpassa desde a tenra infância até os mais polêmicos momentos de vida, dá pra dizer que é um longa bastante completo – sabe prestar a homenagem sem ficar redundante, idólatra ou tedioso.
Pelo trabalho feito em virtude do reconhecimento de seu legado, e em especial pela própria filha de Simone ter ajudado a representar sua mãe com maior veracidade, este filme é um 10 sem dúvidas.
Um must-see para todo mundo que gosta de música, cultura, afroativismo e dela, é claro! Nossa eterna Miss Simone...
“Nina: We will shape and mold this country or it will not be molded and shaped at all anymore. So I think we don't have a choice. How can you be an artist and not reflect the times?”
Nós
3.8 2,3K Assista AgoraTraçando um paralelo quase cristalino da situação da desigualdade na América, “Nós”, o novo longa de Jordan Peele, tem fôlego para entreter em todo o percurso e evita clichês de terror na maior parte do tempo.
Tendo sido lançado após o sucesso estrondoso de público e crítica de seu longa anterior, “Corra!”, era natural que US fosse receber certa expectativa por ambas as partes. Numa avaliação geral, dá pra dizer que “Nós” é bastante diferente do outro filme, mas consegue chegar em um lugar igualmente distante e interessante – se para o primeiro aquela resolução parecia meio absurda demais, ninguém esperava o que sairia ao final deste...
É possível argumentar que as piadinhas, que quebram a tensão e tornam o filme mais “palatável”, sejam desnecessárias, mesmo que sejam como uma marca do diretor; mas não é um demérito que Peele consiga criar a tensão e dissipá-la rapidamente neste trabalho... Diversificado, instigante e tenebroso, US revela o lado grotesco da civilização capitalista dos últimos 60, 70 anos, tendo na manutenção das sombras (classe dominada) sua crítica em relação à burguesia (classe dominante e protagonista, vivida na pele da família de Lupita Nyong’o).
Aliás, aqui temos uma Elisabeth Moss bem diferente de seu conhecido papel como June em “O Conto da Aia”... Na verdade, tudo no filme precisa ser primeiro digerido para depois ser efetivamente compreendido: o contexto socio-político em que ele se dá, quem é a protagonista, o que motiva os antagonistas e por quê este filme saiu este ano – que relação ele estabelece entre o evento “Hands Across America”, de 1986, e o nosso tempo.
Há muito para se pensar em relação a este longa, mas é suficiente dizer que ele carrega conteúdo bastante para, assim como GET OUT!, ser revisitado várias vezes. Jordan Peele segue sendo um dos nomes em alta conta entre os diretores mainstream dos Estados Unidos. Junto a Spike Lee, são a dupla de diretores atuantes no mercado que mais têm a dizer no sentido do discurso anti-racista e pró-diversidade do nosso tempo.
Brabo demais.
“Gabe Wilson: Who are you people?
Red: We're Americans.”
A Máscara em que Você Vive
4.5 201Dolorosamente necessário.
THE MASK YOU LIVE IN adereça a origem de basicamente toda a violência que germina nos homens, que, quando meninos, costumavam ser tão abertos e vulneráveis, mas através do processo de socialização (separação de ser-homem e ser-mulher) passam a viver de maneira reclusa em si, evitando sentir e falar sobre seus sentimentos, e não desenvolvendo empatia frente às diferenças que existem na humanidade.
É perfeito, porque fala exatamente em que momento os meninos passam a precisar “virar homens”, conceito danoso em todos os sentidos, mesmo para os que se já identificam com ele. A rejeição ao feminino, e aliás a identificação de virtudes como humildade e empatia como “femininas”, constrói todo o problema que vive dentro desses rapazes, que guardam quem são para si e se dão a qualquer coisa que os coloque mais acima no status social – para que sejam o dominador, o desbravador, o-que-transa-com-todas-as-mulheres e etc...
É difícil explicitar quantas coisas ditas aqui ressoam num menino como eu, que tive criação semelhante e por pouco não virei essa pessoa. É absolutamente necessário que homens discutam hoje, e não amanhã ou depois, a importância de se fazer vulnerável, de se abrir com os amigos e amigas e de contribuir para o bem-comum, rejeitando a violência em suas manifestações diversas e buscando igualdade de tratamento a quem estiver ao alcance.
Falar qualquer coisa a mais é estragar. Assistam!
Uma das paradas mais lindas e poderosas que eu já vi!
William Pollack: “A maneira como os meninos são criados faz com que eles escondam todos os seus sentimentos naturais, vulneráveis e empáticos atrás de uma máscara de masculinidade.”
Se a Rua Beale Falasse
3.7 284 Assista AgoraMeu Deus.
SE A RUA BEALE FALASSE foi a grande surpresa no Óscar do ano passado. Não tendo sido indicado ao Melhor Filme, e só concorrendo a três indicações (sendo duas técnicas), foi muito inesperado o impacto que este filme surtiu sobre mim. A história, do casal negro separado pela prisão do rapaz, não é exatamente inédita – mas a maneira como ela é contada é simplesmente apaixonante.
Barry Jenkins, que levou o Óscar de Melhor Filme no ano retrasado por “Moonlight”, confirma sua precisão de mão e qualidade de olhar para as narrativas afrocentradas dos Estados Unidos. Se o anterior já era um filme sensível e poderoso, aqui temos uma obra que agrega às qualidades muita cor, calor, muita música e vida.
É claro que um romance entre brancos dificilmente teria a mesma pegada – tratam-se de questões de racismo pelas quais casais como os de outros dramas simplesmente não vivenciam. SE A RUA BEALE FALASSE é um retrato poderoso, sentimental, esteticamente impecável e bem-executado da vida dos negros em Nova York, primorosamente ambientado nos anos 60-70, e com o comentário social afinadíssimo ao engajamento pelo qual o diretor ficou conhecido.
Vale a pena como experiência isolada, como estudo de cores/contrastes, como audição livre da trilha e mesmo como forma de prestigiar este emergente cinema negro, que passou a ganhar o reconhecimento da academia somente nos últimos anos...
Arte livre, engajada e poderosa.
Definitivamente um filmaço.
“Levy: Eu sou o filho da minha mãe. Talvez isso seja tudo que nos separe deles.”
O Renascimento do Parto
4.4 92Um dos melhores filmes que demorei demais pra assistir.
O RENASCIMENTO DO PARTO é um daqueles longas disruptivos que gruda na gente. Abordando a situação das práticas obstétricas no Brasil, o filme de Eduardo Chauvet e Érica de Paula denuncia de maneira profunda e detida como o parto foi ‘desfuncionalizado’ no gênero feminino – como se elas não fossem mais capaz de parir sozinhas, em 100% das gestações. “É como se o corpo feminino fosse algo que sempre precisa de conserto, de cirurgias, precisa de reparos”... Dando voz à secretária de saúde, a obstetras, doulas, mães e até pais, o filme explora a fundo a origem de todo um sistema industrial de nascimentos, que envolve convênios, hospitais, mitos e toda uma estrutura de agentes para lucrar com a prática da cesariana, cirurgia que não é necessária em TODOS os casos...
O doc parte da experiência traumática de uma mãe num parto hospitalar para destrinchar a nível microscópico de que maneira o parto “tornou-se uma operação”; “se temos tecnologia, é sempre melhor fazermos com tecnologia, né?”. E a decisão, realmente, precisa ser da mulher, sempre dela se quer parir de forma natural ou não (na medida em que não houver complicações para ela) – mas se o médico quiser mentir sobre a condição do bebê para empurrar uma cesárea ventre abaixo, o que se faz?
Educa-se. E com um doc lindo desses, ainda por cima!
Já quero ver o restante da trilogia.
“Para mudar o mundo, é preciso primeiro mudar a maneira como nascemos.”
Um Lugar Silencioso
4.0 3,0K Assista AgoraCaramba!
Tão bom que achei que fosse da A24. A QUIET PLACE é uma grata surpresa; um filme ágil, assustador e, sobretudo, silencioso. Tendo recebido prêmios super merecidos no Critic’s Choice e no AFI, o longa de John Krasinski surpreende não só como seu primeiro grande trabalho de direção, mas como experiência profunda no cinema.
O silêncio, aqui, nos afeta fisicamente. Desavisadamente, estamos deixando de mastigar e até de respirar para tentar ouvir aonde a criatura está, pra saber, cada vez mais tensos, aonde aquela família vai parar. Começando num cenário pós-apocalíptico misterioso, gradativamente somos convidados a conhecer a realidade surreal na qual vivem os Abbotts... Aliás, é bem legal saber que a atriz Millicent Simmonds, que interpreta a filha mais velha do casal, é de fato surda, e ajudou os atores a aprender a linguagem de sinais, ao lado de uma equipe especializada nessa comunicação. Há cenas em absoluto silêncio que estão só na ótica dela, e são essas as que causam o maior horror – a perspectiva de não conseguir escutar algo que pode nos causar a morte é absolutamente aterrorizante, e foi uma excelente escolha de Krasinski adotá-la neste contexto deste gênero.
No mais, é um filme linear, simples, mas que entrega uma poderosa história de amor e redenção, de desespero e sacrifício. Um dos grandes filmes de terror/suspense recente, que certamente vale uma revisitada depois de alguns meses.
Assistam! Vale muito a pena!
“Evelyn: Quem somos nós se não podemos protegê-los? Precisamos protegê-los.”
Desobediência
3.7 720 Assista AgoraMinha maior preocupação em filmes de temática LGBT costuma ser se a relação homoafetiva será retratada como ela se dá – horizontal e naturalmente, e de maneira não-objetificada. Em filmes lésbicos, costuma ser de praxe certo fetichismo (principalmente nas cenas sexuais), e a ausência de um final feliz, como se toda relação homossexual resultasse em tragédia, ou fosse uma “fase” das personagens centrais. Endossa minha crítica longas como “Azul é a Cor Mais Quente” e outros, dirigidos por homens, que pouco fizeram pra visibilizá-las para além de si – como se ser lésbica se bastasse na maneira como elas transam e, por que não?, desobedecem.
DESOBEDIÊNCIA tem suas derrapadas. A história de Ronit, que retorna à cidade natal em virtude da morte de seu pai, um religioso ortodoxo, e reencontra a antiga paixão pela amiga Esti, tinha tudo para dar pano pra manga: a situação do judaísmo sobre a homoafetividade, a questão coletivo/público x individual/particular que o romance coloca para o marido de Esti, Dovid, e até a própria relação que elas desenvolvem, com Ronit se voltando ao passado e Esti pensando num possível futuro... O longa de Sebastián Lelio tinha farto material para trabalhar a questão das mulheres numa estrutura patriarcal e tradicional, mas preferiu manter a dialética tabu x liberdade (tema central do filme) em segundo plano, para privilegiar a beleza (e a tristeza) das duas atrizes.
Todo o escopo do filme é questionável por ser "só" triste: nessas duas horas, todo o tempo Ronit e Esti estão infelizes em seus universos, o que reforça a ideia de que um relacionamento lésbico costuma surgir dessa infelicidade/solidão em comum. É claro que no contexto do patriarcalismo judaico (e do casamento religioso) essa ideia é impossível, mas saindo disso – nas paredes de um hotel, numa outra cidade, num outro lugar – será mesmo que ‘o amor é um ato de desafio’?
De fato, o filme é bonito e bem filmado – e Alessandro Nivola, que faz Doniel, chega a se destacar até mais que as protagonistas na entrega de seu personagem. Porém, a produção não consegue depender só dessas performances, e o que tinha substância para trabalhar ideias muito mais audaciosas acabou tentando um voo menor, e ainda fracassando no processo de seu discurso.
No fim das contas, com o desfecho escolhido por ambas, fica parecendo, assim como noutros filmes LGBT, que lésbicas seguirão sem espaço no curso das coisas que ficam; que um relacionamento homoafetivo é isso mesmo, transitório, um “desvio”, um “comportamento de adolescente”, uma impossibilidade – a desobediência de um momento.
Sigo dizendo o que já digo há anos por aqui: enquanto as artes não refletirem o mundo como ele se dá hoje, em 2019, seguiremos com a mentalidade antiga das coisas-como-sempre-foram. Não basta visibilizar, nem só dar voz – é preciso retratar fidedignamente as pessoas que realmente experimentam essas situações na prática, para que se sintam acolhidas, representadas, e com histórias que possam *também* ter um final feliz. Sempre fui a favor da tragédia, mas na maioria dos filmes LGBT, a tragédia parece ser o único desfecho possível – e sabemos que isso não é real.
Talvez seria melhor se o diretor fosse uma mulher lésbica, e não um homem.
Mas aí já não é comigo.
Decepcionante.
“Esti: Me desculpe, eu me comportei como uma adolescente ontem. Desculpe.”
Green Book: O Guia
4.1 1,5K Assista AgoraNão foi tudo isso.
GREEN BOOK, vencedor do Óscar de melhor filme deste ano, aborda o racismo institucionalizado nos EUA dos anos 50-60, na época do segregacionismo das ditas “pessoas de cor” – como se houvesse pessoa sem. O longa, de Peter Farrelly, é o primeiro premiado de sua carreira, que consiste basicamente em comédias pastelão como “Deby & Loide 1 e 2”, “Os Três Patetas” e “Antes Só do que Mal Casado”. Tendo chegado a levar o Framboesa de Ouro de pior filme seis anos atrás, é no mínimo irônico que hoje tenha sido consagrado com o Óscar de melhor filme, sobretudo pela maneira como Green Book se apresenta.
O filme, em si, não é de todo mal: trata-se de uma história verídica de um racista italiano que cria (meu deus, que spoiler!) uma amizade com um pianista negro, um homem de grande prestígio nas casas de show do sul do país, desde que não tenha de comer perto de seus espectadores. Aqui e ali, são exploradas situações comuns pelas quais passaram (e ainda passam) negros em ambientes semelhantes, em que a segregação se dá pelo não-ser: não-sendo branco, não-se-pode congregar. O longa trata do respeito contra a intolerância, porque não se basta até que o protagonista, Tony Lip, respeite plenamente Don Shirley, e a vida que este tem de levar somente pela cor de sua pele.
Contudo, o filme caminha mal em outros termos. É estranho um longa sobre racismo abordar o tema pela ótica do racista, sobretudo quando este passa a ser um herói na trama, enfrentando o racismo que basicamente o moldou – nas primeiras cenas Tony é visto jogando fora copos de vidro em que negros beberam em sua casa, para dali a algumas semanas ele ser capaz de socar homens que fariam o mesmo com o pianista. Nada disso aparece no filme como uma reflexão ou autocrítica do personagem, o que sugere que ele simplesmente “desligou um botão” de racismo e pronto, resolveu o problema. Outro ponto polêmico é como o filme trata sobre racismo deixando Don Shirley quase como um coadjuvante da própria história: seu personagem é raso – sabe-se pouco de quem ele é ou por que é assim – e, tirando dois ou três monólogos em que entendemos sua crise existencial (não ser nem branco nem preto o suficiente para ser aceito), pouco se explora da riqueza possível ao contar a sua história como deveria ser contada – a partir de SEU ponto de vista, sua ótica, inescapavelmente negra.
Um último aspecto que incomoda é a raiz “besteirol” do diretor no filme: tem piadinhas demais sobre a rudeza, a grosseria e o aspecto “ogro” de Tony Lip, um racista “engraçado apesar de ser racista”. Não sei até que ponto rirmos do diferente – sobretudo quando é um diferente com potencial para aniquilar etnias – é saudável, e até que ponto colocar este racista como protagonista de um “drama-comédia” faz a discussão sobre racismo ir pra frente. O filme, afinal, é para quem? Pro público negro? Branco? Pro público racista? Ou melhor: o próprio Tony iria ao cinema assistir a este filme, se estivesse em cartaz em sua época?
Reflexos do fato de que o diretor (que também assinou o roteiro) é um cara branco que até então não tinha feito um filme que abordasse o tema antes de ganhar um Óscar por isso – ao contrário de Spike Lee, indicado na mesma categoria, e que construiu toda uma carreira com o assunto, nunca tendo recebido a estatueta de melhor filme. Me parece muito cômodo premiar o ex-besteirol (e branco) Peter Farrelly ignorando o filme de Spike Lee, verdadeiro agitador dos pensamentos no sentido da tolerância e respeito pela negritude de seu país.
Ademais, na mesma premiação, em outras categorias, concorreu “Se a Rua Beale Falasse”, que trata do mesmo assunto, na mesma época, e é dirigido, produzido e adaptado por Barry Jenkins, cineasta negro de crescente prestígio na indústria dos últimos anos.
Aliás, o melhor filme do Óscar, pra mim.
GREEN BOOK, diante disso tudo, simplesmente não rolou.
Não rolou mesmo.
Não foi tudo isso.
“Oleg: Ser um gênio não é o suficiente. É preciso coragem para mudar o coração das pessoas.”
Fragmentado
3.9 3,0K Assista AgoraMeh.
Tô brigado com o Shyamalan desde aquele sofrível “A Dama na Água”, de 2006, que parecia promissor, mas acabou sendo um balde de água fria (sem duplos sentidos). De lá pra cá, quase tudo que o diretor produziu recebeu duras críticas e acabou desagradando o público, inclusos nisso os fracassos “Depois da Terra” e “O Último Mestre do Ar”, ambos com nota baixíssima em todos os sites de cinema visitáveis. Portanto, eu já esperava uma bomba e, ironicamente, não foi bem assim que aconteceu...
FRAGMENTADO é um longa interessante, pelo menos na maior parte, e se mostra um suspense com fôlego para uma continuação. A questão aqui, e que é comum em seu cinema, é a falta, no roteiro, de recursos que o tornem minimamente instigante, para não deixar o espectador passivo, esperando aquilo se desenrolar. Como seus outros longas de 2006 pra cá, SPLIT encarna os clichês do suspense e não sabe se impor como um filme além da própria sinopse; o tema do cárcere, o sequestro das meninas jovens, podia ter uma série de desdobramentos mais reflexivos do que o que teve: basicamente um survival movie na casa de um homem doente, que possui 23 personalidades (e revela cerca de seis ou oito até o fim do filme). A atuação de James McAvoy é exagerada, chegando até a ser boba em alguns momentos, e o uso de uma psicóloga/psiquiatra simplesmente para explicar a existência deste antagonista é só fácil demais, dado demais pra gente. A direção, que se pretende intensa, parece preguiçosa, assim como o desenvolvimento de todo o argumento deste filme.
Ao contrário dos anteriores, porém, FRAGMENTADO consegue envolver o suficiente para que fiquemos até o fim da sessão – o que, infelizmente, não é dizer muita coisa; isto é só o mínimo que um suspense deve fazer para ser um suspense, por isso talvez seja a hora de Shyamalan realmente se dar umas férias deste ofício...
Fraco.
“The Beast: The broken are the more evolved. Rejoice.”
A Morte Te Dá Parabéns
3.3 1,5K Assista AgoraPutz...
A MORTE TE DÁ PARABÉNS é, basicamente, o que diz a sinopse, na forma que se espera, com um ou dois respiros de criatividade num mar de clichês do gênero. O longa, de Christopher Landon (responsável pelo fraquíssimo “Atividade Paranormal 5”), não consegue justificar sua existência sozinho, apesar de entregar uma história interessante aliada a uma boa edição, que torna dinâmico todo o percurso da narrativa.
O conceito de viagem no tempo (e o eterno retorno) é clássico e funciona bem quando bem trabalhado; “O Efeito Borboleta” e “Questão de Tempo” são alguns filmes que exploram o assunto sem perder a pegada comercial que lhes é comum. Em “Happy Death Day”, porém, não é isso que acontece: a repetição não torna o filme mais assustador, e sim cômico, e o próprio longa não se leva muito a sério (a começar pelo seu antagonista risível). É quase como se inaugurasse um subgênero no terror, um “pastelão terror”, se desse pra chamar assim.
Mas entendo, também, que não se deve esperar um filme cabeça e experimental de algo produzido sob demandas mercadológicas (como o recente “A Freira” e outros semelhantes). É suficiente dizer que este filme entretém, no sentido que ele é dinâmico o suficiente para isso, e que entrega uma história mais ou menos interessante – com exceção, talvez, de algumas quebras ali pelo final...
Mas é fraquinho. Não vale o tempo investido.
“Tree Gelbman: I can't change what I've done, but I can start trying to be a better person today.”
Questão de Tempo
4.3 4,0K Assista AgoraDaquelas comédias bonitas e com pegada existencialista que eu adoro...
ABOUT TIME aborda a questão do tempo (e sua irreversibilidade) no contexto de um casal que se encontra – e desencontra várias vezes. O longa foi dirigido por Richard Curtis, realizador de comédias românticas bastante consagradas como “Simplesmente Amor” e “Um Lugar Chamado Notting Hill”. Este filme tem leveza e constrói um roteiro bastante “linear”, se é que dá pra falar assim; pelo menos mais que “O Efeito Borboleta”, suspense que aborda as mesmas questões – mas com pegada completamente diferente, é claro.
Este foi o último filme de Curtis como diretor, depois de dizer que “[about time] fala sobre como aproveitar os dias, algo que você não consegue fazer quando dirige um filme”. Dali pra frente, ele viria a se bastar sendo roteirista e produtor de outros trabalhos, que incluíram o novo “Mamma Mia” e “Yesterday”, musical muito aguardado para este ano. Tendo abandonado o ofício da direção por motivos pessoais absolutamente compreensíveis, é interessante observar a trajetória de um homem que dirigiu apenas três longas na carreira, mas ficou consagrado no gênero sem aparente esforço.
"Questão de Tempo" é um bom divertimento, trazendo uma infância saudosa, um amor “quase impossível” e uma escolha sobre como viver a vida. Não curto muito o reforço dos papeis de gênero em filmes de comédia romântica, nem as piadas preconceituosas lançadas aqui e ali, mas isso vai de mim; a mensagem é que, como o filme explica, tudo é sobre como você organiza seu tempo, e as prioridades que coloca para si – família, amigos, relacionamentos, trabalho... É tudo uma escolha, e este longa fala um pouco sobre como as escolhas operam na vida da gente, muitas vezes de maneira imperceptível.
É preciso ter novos olhos para enxergar isto.
Não basta não ser cego para perceber...
Bonito!
“Tim Lake: Estamos todos viajando no tempo juntos, todos os dias de nossas vidas. Tudo que podemos fazer é o melhor para que possamos saborear essa memorável jornada.”
Arca Russa
4.0 182“A Rússia é como um teatro...”
Uma pomposíssima visita à Rússia Czarista através da sua arte, suas manifestações culturais e seu legado como potência emergente do século XIX.
ARCA RUSSA é um filme ambicioso, filmado em primeira pessoa e com o espectador “sendo” o protagonista, enquanto ele passeia pelos corredores do Museu Hermitage, em São Petesburgo, e contempla a complexa arte que por seus caminhos se estende. Aleksandr Sokurov decidiu fazer o filme inteiro em um dia e num take só, montando todo o cenário antes de começar a gravar e executando tudo com a ajuda do diretor de fotografia Tilman Büttner. Só aí já rolou um problema – o diretor russo só falava russo, e Büttner só alemão, então todo o filme teve também a participação de um tradutor para garantir a comunicação efetiva entre os dois realizadores.
É impressionante o primor técnico que este filme exigiu. Filmado em plano-sequência, redublado e sem nenhuma compressão, o longa de Sokurov é uma viagem plácida pelos corredores do Palácio de Inverno, que foi moradia para a aristocracia russa até a Revolução irromper, na época do czar Nicolau II. Mais de 4.500 pessoas foram necessárias para montar e desmontar o filme, e o museu iria fechar no dia seguinte, então o take teria que sair de qualquer jeito. As três primeiras tentativas foram falhas logo nos primeiros minutos, sendo a quarta a que, enfim, deu certo.
Alguns trechos disso aqui são memoráveis – as meninas-pássaro brincando nos corredores, a reconstrução de alguns quadros nas cenas e a dança de salão final, por exemplo. ARCA RUSSA tem um figurino adequadíssimo e boa fotografia, apesar de não possuir roteiro que vá além da própria contemplação da arte pró-monarquia, com os comentários irreverentes do estranho interlocutor que nos acompanha até o fim... Não fosse a absoluta lentidão da câmera e os vários momentos em que se filmam “passagens” de ambientes para outros, quase sempre na escuridão, o filme teria sido um passeio um pouco mais agradável: o fato é que, depois de mais ou menos uma hora, a forma do filme o fada a ser quase apenas uma produção muito robusta, mas vazia para além de sua moldura.
Fica difícil pensar se a Rússia Czarista é um elogio ou um ultraje para a Rússia pós-revolução, dado o contexto em que o filme se passa e os inúmeros comentários políticos que o “amigo” do protagonista faz. Afinal, a intenção de revisitar a arte de uma Rússia “napoleônica”, como o amigo diz, tem a intenção de exaltá-la ou de pô-la em perspectiva?
É difícil dizer. O roteiro guarda seus segredos e, provavelmente, este filme não se propõe a dar conta deles. A um russo letrado que conhece a arte de seu país, o longa deve ser muito mais agradável. A mim, foi um pouco penoso. Penoso e distante demais do espectador para se fazer entender.
Não acho que o veria de novo, apesar de ainda estar deslumbrado...
“Viajante do Tempo: O mar cerca tudo. Estamos destinados a navegar para sempre... A viver para sempre.”
Pantera Negra
4.2 2,3K Assista AgoraWakanda Forever!
BLACK PANTHER, o longa assinado por Ryan Coogler, o diretor de “Creed”, estabelece sua pegada afrofuturista com êxitos técnicos, mas não vai muito longe em termos de roteiro e profundidade...
Finalmente a MARVEL lançou o longa do Pantera Negra, um super-herói de 1966 que até então não havia conhecido a grande tela (só filmes menores lançados direto para DVD). A representatividade negra – em tribos africanas, negros da periferia e no protagonista e antagonista do filme – é o ponto mais alto em favor da produção, anunciada em 1992 e só concluída em 2018, em tempo para as premiações mundiais que a consagraram.
BLACK PANTHER levou melhor figurino, trilha sonora e edição de som no Óscar, e não foi por menos: trajes excelentes das tribos e composições fantásticas do Kendrick Lamar, um dos maiores nomes do rap atual... Com prêmios super merecidos também no Critics’ Choice e Screen Actors Guild, o longa flerta com o movimento afrofuturista, fazendo uma poderosa imersão no universo da MARVEL, mas preservando a representação e identidade dos povos quenianos e nigerianos – cujo público elogiou até o sotaque das personagens...
Entretanto, apesar das qualidades técnicas, o filme, em si, não vai tão longe. A atuação de Chadwick Boseman, o protagonista T’Challa, deixa muito a desejar. A unidimensionalidade das personagens femininas (e a estrutura patriarcalista que o filme abraça) também não contribui para que ele produza o melhor comentário social que pretende, e as críticas que o vilão N’Jadaka tece em relação à população negra “do mundo exterior a Wakanda” são super pertinentes, podendo até ser consideradas “revisionistas” – mas são escassas, ocorrendo espaçadamente num roteiro que lembra muito a trajetória de Simba, o Rei Leão (não que isso seja um grande problema).
É um filme que tem uma moldura linda, com efeitos especiais, explosões e cenas super bem editadas, mas, como boa parte dos longas de super-herói, basta-se ao contar uma história de maneira linear, tentando, no percurso, se tornar um bom entretenimento.
Como representatividade é um espetáculo, mas como filme somente, não é pra tanto...
“T'Challa: Ainda podemos curar você.
N'Jadaka: Pra quê? Pra vocês me prenderem depois? Nah. Apenas me enterre no oceano com meus ancestrais, que pularam dos navios, porque eles sabiam que a morte era melhor do que a escravidão.”
No Portal da Eternidade
3.8 348 Assista AgoraLembro bem do stand-up da Hannah Gadsby do ano passado, “Nanette”. Em determinado momento do show, ela contempla a vida de Vincent Van Gogh com uma máxima: “ele não era um gênio incompreendido, ele só precisava de um amigo!”. De certa forma, isso dá conta de muito do que NO PORTAL DA ETERNIDADE coloca à mesa – a saúde física, mental e espiritual de um pintor que estava à frente do seu tempo, mas cada dia mais distante de seus contemporâneos...
Pouco se sabe sobre a causa de sua morte, e não há consenso sobre as questões psicológicas ele tinha – depressão? Autismo? Esquizofrenia? O fato é que a vida e obra deste cara resistiu ao tempo, apesar de ele, em vida, ter vendido apenas um quadro. Tendo morrido miserável e anônimo, Van Gogh era evitado nas ruas (falavam de seu mal cheiro e sua personalidade antissocial) e era ignorado pelos críticos em geral. É difícil julgar, sabendo deste contexto, que uma pessoa chegue a ‘absurdos’ como comer tinta amarela, pra ficar mais feliz, e cortar a própria orelha como um pedido de perdão.
Seja o que for que Van Gogh tenha enfrentado, é certo que sua produtividade não cessou até a morte e o resultado se vê até hoje implacavelmente: é ele o grande representante do movimento pós-impressionista, o homem que inspirou inúmeros artistas mais tarde a adotarem a técnica do pontilhismo, sendo uma inquestionável referência para a arte de modo geral. Este filme acerta também na medida em que não romantiza suas questões psicológicas, limitando-se a expô-las, e tratá-las com a atenção e o cuidado que elas merecem.
É triste ver a cinebiografia de alguém que não tinha amigos, e nem se relacionava amorosamente, e não podia contar sequer com mais que a piedade de seu irmão... Para o objeto abordado, NO PORTAL DA ETERNIDADE tem a pegada certa, porque nos transporta para esta realidade sem esforço algum. Trata-se de um filme contemplativo e emocionante. Por vezes, o marasmo do enredo pega, mas não é de maneira gratuita: cada silêncio, pausa e cena longa contribui para ambas as sensações de isolamento (vivida intensamente pelo pintor) e de proximidade (do espectador em relação a ele, à sua visão). O uso do desfoque e do amarelo como cor estrutural deste trabalho são dois charmes à parte, além da fabulosa interpretação de Willem Dafoe.
Vontade de pegar no colo e dar um abraço apertado.
Assistam!
Clímax
3.6 1,1K Assista Agora“A VIDA É UMA IMPOSSIBILIDADE COLETIVA."
Gaspar Noé num momento melhor.
CLÍMAX é bastante ágil. Sendo um dos mais curtos entre seus longas, o filme, que recebeu o prêmio Cinema de Arte de Cannes, causa impacto com bom equilíbrio entre tensão e recompensa, sendo o mais acessível entre os do diretor – tanto que nem ele mesmo acreditou que tinha sido ovacionado pelos seus críticos mais ferrenhos (dentre os quais eu mesmo estou rs).
É preciso dar ao cara o que ele merece: “Clímax” é o seu filme mais conciso desde IRREVERSÍVEL, e segue todos os maneirismos de seu cinema; os créditos ao início e o título ao final, o emprego das letras garrafais em pausas, o uso do laranja/vermelho como tom de alarme, perigo; os longos corredores que são cenário para quase todos os seus filmes... É inegável que Noé busca beber da própria obra para produzir seus filmes, mas este é o que mais se aproxima de uma produção “comercial”, apesar da experiência ser caótica, pra dizer o mínimo.
A exploração do exagero, muito presente em seu cinema, encontra aqui mais uma boa abordagem. As drogas, o sexo e a imoralidade, que seus filmes frequentemente põem em pauta, vibram em “Clímax” com força. Os excessos, a imprudência e a violência são características de seus personagens vaidosos, vingativos e traiçoeiros. Seus longas costumam ser agressivos, e passar por qualquer um deles exige um exercício físico de tolerância; mas, para quem já é familiarizado, este aqui se apresenta como uma grata surpresa na sua explosiva obra.
O uso de planos-sequência durante quase todo o filme reforça a pegada caótica que ele tem. O caos ligado ao LSD (o paraíso/inferno dos lisérgicos) é verdadeiramente uma linguagem para o filme, nos movimentos de câmera, na mudança de foco, na ausência de um(a) protagonista fixo. A música eletrônica é quase um cenário na maneira física em que se impõe, e o uso da grua para captar imagens de cabeça para baixo é algo que ele tinha abandonado desde ENTER THE VOID, mas que, aqui, coube muitíssimo bem. É difícil perceber cortes (eles ocorrem frequentemente no escuro) e perto do final só o que se vê é confusão – mas esta é a ideia do filme, que, no contexto, está muito bem executada.
Entretanto, ao contrário de LOVE ou ENTER THE VOID, o “vazio existencial” que CLÍMAX coloca não parece ir mais longe que a sua própria exposição. É um realizador amado e odiado por razões absolutamente compreensíveis: ele não deixa de ser um roteirista pretensioso, como neste caso, em que escreveu apenas 5 páginas para o projeto e deixou todos os diálogos para os atores (que não são atores) improvisarem à vontade. Apesar de ter sido bem feito, o filme trabalha muito mais no improviso que na mensagem, tornando-se, como seus outros trabalhos, uma espécie de soco “vazio”, sem a profundidade que realmente merecia para ser eficiente.
CLÍMAX não é o seu pior, mas como experiência isolada, não será muito lembrado. No fim das contas, não parece fazer desembocar um pensamento inteiro, ou algo que dê conta da experiência melhor que as imagens desconexas de pessoas sofrendo, gemendo, gritando, transando e morrendo.
IRREVERSÍVEL segue sendo o mais forte e eficiente de seus longas, para o bem ou para o mal, mesmo que este aqui esteja longe de ser o pior da sua carreira...
"A MORTE É UMA EXPERIÊNCIA EXTRAORDINÁRIA.”