O que mais chama atenção no filme é sua velocidade. O roteiro é tão intenso e engraçado que a impressão que fica é de não haver buraco algum. Seria meu sonho interpretar a peça que deu origem ao filme?
Um professor meu tem um poema que se chama "Não encontrarás no Google", no qual a relação entre as novas tecnologias e a memória humana é discutida. Achei que "Lion" vai um pouco de encontro a isso. A memória estende mais seus braços com os recursos de busca atuais. Nem todo conhecimento humano está nas catacumbas do Google, mas nelas encontramos muitas vezes o que nossa limitação não permite.
A ação jesuíta na América foi, por muito tempo, interpretada como civilizatória e progressista. No século passado, com o advento dos estudos antropológicos, a Companhia de Jesus foi lida de maneira avessa. A catequização dos ameríndios passou, então, a ser vista como invasiva e responsável pela aniquilação de várias culturas. No filme de Scorsese os padres jesuítas são destituídos tanto do antigo lugar-comum enquanto heróis, quanto da interpretação contemporânea da história que os posiciona como vilões. Os jesuítas devem ser entendidos como homens de seu tempo e, nesse ponto, o filme acerta. Com um poderoso jogo retórico, 'Silence', é capaz de tombar e levantar a fé do espectador. O silêncio de Deus põe a prova a validade da luta dos cristãos no Japão, mas sua negação obrigada transforma aqueles que a ela são submetidos em criaturas semi-vivas, perdido seu ideal. A ideia de Deus paira como reflexo da eternidade e ideia capaz de sobreviver à morte. O silêncio de Deus é a eterna dúvida do homem acerca da existência de um sentido para a vida.
Asghar Farhadi usa aqui a mesma fórmula de 'A Separação', um problema inicial (divórcio/desmoronamento) que dá vazão para o conflito principal. Sempre com muita sutileza discute os problemas do Irã moderno. Destaco duas cenas incríveis que somente alguém capaz de usar o cinema em potência máxima seria capaz de executar. A primeira quando, em plena peça, o ator ri de sua companheira porque sua fala diz "Não posso andar nua por aí", mas interpreta sua personagem vestida com um longo casaco. A cena mostra o anseio por liberdade das mulheres iranianas mas sua impotência para alcançá-lo, dado o conservadorismo da sociedade. A segunda quando essa mesma atriz conversa com sua amiga enquanto atua da coxia. Achei belíssima a risada que solta enquanto conversa outro assunto completamente diferente e sério.
Todos saíram chorando da sala de cinema. Talvez porque tenham reconhecido a si mesmos no personagem Daniel Blake. Filme atualíssimo sobre a luta do homem contra a máquina burocrática do Estado. Sistematização x humanização. Impactante.
Aposto que "Fences" foi uma grande peça. Como cinema, deixou a desejar. Denzel se mostrou imaturo ainda como diretor, não explorando o potencial da história como filme. Tudo pareceu um grande teatro filmado, se tornando basicamente um filme de diálogos, com poucos cenários e pouca beleza visual. Senti ainda uma discrepância entre sua atuação e a de Viola, que parecia saber que não estava no teatro, tendo uma atuação para câmeras e não para o público.
Não fosse a provável e merecida presença do novo filme de Damien Chazelle, La La Land, entre os indicados a filme do ano na principal premiação do cinema americano, não haveria motivos plausíveis para que a realização do desconhecido Barry Jeckins não fosse o grande nome da noite. Moonlight surge em um momento controverso nos EUA, em que os vícios e virtudes americanas são discutidas como nunca. Após a eleição de um nome tão retrógrado como Donald Trump, a nação que pensou ter dado um passo definitivo na direção contrária à sua história racista, teve seus alicerces de igualdade e liberdade balançados. Ser um filme montado praticamente com a totalidade de seus atores e figurantes negros faz de Moonlight um belo ensaio sobre a comunidade afro-americana. Ainda por discutir bem a fundo questões relacionadas à homossexualidade e machismo, especificamente nessa comunidade, o filme de Jeckins é mais que necessário ao nosso tempo. No entanto, o grande feito de seu filme não é levantar essas discussões, mas incorporá-las segundo as especificidades da arte. Moonlight não é um grande filme apenas por trazer temas atuais. É um grande filme porque é cinema da mais alta qualidade.
Saramago dizia que a arte tem suas próprias regras e, por mais que o autor possua fortes convicções políticas e/ou religiosas, não poderia fazer de sua obra um mero panfleto de suas ideias, mas deveria realiza-la segundo a demanda da própria arte. O diretor de Moonlight, Barry Jeckins, soube conduzir muito bem seu filme nesse sentido. Em um momento delicado como o atual, seria muito fácil repetir o erro estético de um Crash- No Limite (2005), premiado como filme do ano no Oscar de 2006, mas completamente irrelevante como cinema, pois, embora levante temas que convinham ao momento, é medíocre como arte. Moonlight, enquanto cinema, possui uma direção primorosa, com uma câmera que no início parece aflita, indo ao encontro dos personagens que discutem; os cortes, muitas vezes violentos, não acompanham a expectativa do espectador, deixando claro que esse deverá preencher as lacunas da trama; por fim, a fotografia deslumbrante tornam o espetáculo cinematográfico completo.
A trama, divida em três partes, segue seu protagonistas em diferentes fases de sua vida. Chamado de Little (Menino/Moleque), Chiron (seu nome real) e Black (apelido que ganha de seu amigo e amante), o filme acompanha sua mutação interior e exterior. Outro grande mérito de Moonlight é a destreza ao tratar do embate sujeito x coletividade. As escolhas de Chiron o levam aonde chegou, muito embora o meio no qual foi criado e as influências que teve também tenham trilhado seu caminho. Uma das cenas que melhor representa esse embate é a que Chiron, então adolescente, apanha do menino com o qual teve uma relação sexual e emocional, mas não se abaixa. Permanece estoico. Após o ocorrido, acaba agredindo com uma cadeira aquele que incentivou a agressão. O sujeito, embora queira escolher, tem que agir segundo as regras do ambiente em que vive para não ser massacrado pelo mesmo. O estoicismo e paciência são trocados pela violência, única língua possível.
Após a polêmica da ausência de indicados negros no ano passado, a Academia Americana de Cinema deve querer, nessa edição, reparar seu erro. É provável que Viola Davis receba o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante por Fences e Mahershala Ali, Juan de Moonlight, de ator coadjuvante. Um filme escrito, dirigido e atuado por negros vencer a principal categoria do Oscar seria, de fato, lindo. Juan conta a Little, no início do filme, quando corria criança pela praia e uma senhora lhe disse que todos os negros são azuis sob a luz do luar. Embora Chiron tenha corrido na direção contrária à luz lunar, parece ter se tornado ele também azul. Todos nós somos fruto de forças interiores e exteriores. Moonlight consegue captar essa dualidade humana de forma magistral. Deixa, ao final, com o olhar de Little na praia noturna, uma indagação: somos realmente todos azuis sob a luz do luar?
O enorme burburinho causado entorno do novo filme de Damien Chazelle, diretor de Whiplash, e seu recente triunfo nos prêmios Globo de Ouro, me deixou quase maluco para assisti-lo. Finalmente, depois de muito caçá-lo pelos subterrâneos da internet o encontrei. Os primeiros 60min do filme foram um choque. Não no bom sentido. Me perguntei: onde está o argumento? O conflito? Aparte da enorme e indiscutível beleza visual, o filme simplesmente parecia não andar. E por que haveria de andar? Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou. La La Land é uma grande obra, embora não tão fácil quanto possa parecer.
A cena inicial do filme, considerado pela imprensa americana o melhor do ano e queridinho do Oscar em 2017, é um deleite para todos os amantes de cinema, principalmente para os aficionados em musicais. Chazelle tira música das buzinas e ruídos dos carros, fazendo-nos cantar em coro e flutuar juntamente com todos aqueles que se encaminham para Los Angeles em busca de seus sonhos. Erguem-se acima dos carros que se tornam peças de arte, não máquinas práticas. Está aí, no início, o mote principal do gênero, que o diretor sabiamente quer reviver: a deformação da realidade pela arte.
Os musicais já foram o principal gênero de Hollywood, tendo sido tão produzidos de modo que se dividiram em subgêneros, como, por exemplo, o estranhíssimo musical em piscinas, homenageado em Ave Cesar dos irmãos Coen. Atualmente, não contam com a sorte que em outro dia contaram, estando fadados a ser gênero revisitado e não protagonista. A última produção musical a receber o Oscar de melhor filme foi Chicago, em 2003. Quatorze anos depois, a expectativa é grande para que La La Land homenageie com a principal estatueta da noite o gênero que ajudou a tornar Hollywood o que Hollywood hoje é.
Musicais de bastidores, explorando a indústria do cinema e a aspiração de várias figuras ao sucesso como atores atrizes são comuns ao longo da história do cinema. Basta olhar para Singing in the rain, o grande clássico do gênero. Assim, o roteiro original de Damien Chazelle não é original. Não pretende sê-lo. A história de um homem e uma mulher que, enquanto lutam pelos seus sonhos, se apaixonam e se envolvem parece ter uma trama básica e clichê. E é. O grande feito de La La Land não é ser original enquanto história inédita, mas ser original transportando o musical para uma época na qual a música parece ter se tornado silenciosa.
Os musicais ainda não morreram. Respiram por aparelhos e parecem ter ainda um longo caminho no leito do hospital hollywoodiano. As produções do gênero nos últimos anos, ao passo que permitiram a sobrevivência do musical americano pouco fizeram para renová-lo. Há neles um explícito saudosismo que faz com que se voltem para o passado para procurarem matéria. O musical parece ter parado no tempo, habitando ainda as décadas de 40 e 50. La La Land une realidade atual e tradição. As roupas, carros e cenários nos transportam para as décadas referidas, mas as mensagens no smartphone de Mia nos fazem lembrar que estamos em 2017 e que o sonho hollywoodiano, se ainda é o mesmo, pertence a outro mundo.
O personagem de Ryan Gosling, apaixonado por jazz, não quer deixar que o ritmo morra ou seja tão corrompido a ponto de se tornar irreconhecível. Chazelle parece nos dizer, através de seu personagem Sebastian, que com seu La La Land está fazendo, ou ao menos tentando, o mesmo com os musicais. O enredo clichê e os personagens prototípicos são a única maneira que o musical americano pode encontrar suas raízes mais profundas: sendo ele mesmo. Frívolo, belo, empolgante, excitante. Por detrás da banalidade, La La Land traz um brilhante jogo com a história do cinema e os rumos que está tomando.
As cenas do filme são absurdamente belas. A dança de Mia e Sebastian no espaço é de uma beleza incalculável. Detalhes menores como a cena em que Mia vai entrar no carro de Sebastian quando esse dá uma súbita partida fazendo-a recurar, também contribuem para a grandiosidade do filme. O silêncio também é muito bem explorado no musical. O diretor sabe quando arrebatar a música de seu filme. A cena final, talvez a melhor da produção, encerra em si o motivo pelo qual existem os musicais: para tornar o que é realidade, símbolo, com beleza e paixão. Seja pela dor ou pelo riso, os musicais ainda existem para nos lembrar que, com imaginação, a vida pode se tornar muito mais do que é. O último olhar de Mia a Sebastian parece nos dizer que a realidade, embora dura e menos colorida, carrega consigo uma nota a ser tocada, chamada esperança.
Provavelmente a melhor comédia romântica adolescente feita desde 'As Vantagens de Ser Invisível'. A ironia é bem ritmada como em qualquer boa obra de humor. Ótimo roteiro.
2016 foi um ano de incertezas para o mundo. Reviravoltas no cenário político internacional, conflitos armados, desastres. A situação é demasiada crítica para que a ausência de crítica esteja à sua altura. A diretora premiada com o urso de prata em Berlim no ano passado, Mia Hansen-Love, parece ter captado bem o espírito de 2016 ainda antes de o ano ter começado. Isso porque um ano não se inicia sem arrastar atrás de si a pesada corrente da história e o que vivemos hoje é fruto de mudanças acumuladas nos anos que precederam 2017 e 2016.
L’avenir (O Que Está Por Vir), protagonizado por Isabelle Huppert (papel seu um pouco abafado pela antológica interpretação em Elle), narra a história de Nathalie, uma professora de filosofia, que diante de duras mudanças em sua vida, é obrigada a repensa-la. Nathalie lembra, em partes, Clara de Aquarius, como a crítica da Folha de S. Paulo bem colocou quando o filme estreou no Brasil, no fim do ano passado. Embora esse não seja o argumento principal do filme, nele está presente também a luta da professora pela preservação daquilo que julga correto perante a desenfreada modernização promovida pela sociedade do espetáculo. Os livros devem ser julgados pelo seu conteúdo e não pela capa mais chamativa. Sua resistência, perante os infortúnios de sua vida, faz de si uma figura de resistência e afirmação da vida.
O momento de incerteza faz de L’avenir um filme necessário ao nosso tempo. Após se separar do marido, perder a mãe, um dos empregos e ver os filhos saindo de casa, é possível dizer que Nathalie se transforma em outra pessoa? Em uma das cenas, comenta que seu marido, desde sua adolescência é a mesma pessoa mas ela, pelo contrário, se renovou. O filme, após todas essas reviravoltas na vida da professora, parece negar essa afirmação. É a partir das mudanças ocorridas após sua fase mais consolidada que Nathalie é obrigada a realmente repensar sua subjetividade no mundo.
Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a vitória de Trump, Macri, a saída do Reino Unido da UE e o ganho de poder de extrema direita ao redor do planeta, o mundo globalizado se pergunta para onde vai. É sintomático que estejamos nos aproximando do centenário de datas importantes historicamente do século XX. Nesse ano a Revolução Russa completa 100 anos, deixando um legado ainda incerto para a civilização contemporânea. A experiência soviética certamente mudou o curso do capitalismo tal qual os indivíduos do início do século passado o experimentaram, mas não foi capaz de cumprir o objetivo ao qual veio e ditar uma nova ordem econômica e política internacional.
Diante das experiências malogradas do passado e o presente problemático, ainda por se resolver, nos resta encontrar caminhos novos para seguir. Uma das cenas iniciais do filme, em que estudantes realizam um piquete na escola, contra medidas do governo, é capaz de dar um panorama do impasse de nossos tempos. Com a derrota da revolução que alimentou os sonhos de jovens, intelectuais e proletários ao longo do século XX, o que resta contra a ordem pré-estabelecida pelo neoliberalismo? Impedir que alunos e professores entrem em instituições de ensino, como protesto? Ou a resignação da rotina ordeira de professora? Desilusão e ilusão se confrontam e indicam que nem juventude nem experiência poderão trazer as soluções dos problemas atuais.
Resta-nos tatear. Como o próprio título do filme aponta, há muito ainda por vir. O futuro que nos aguarda está coberto de incertezas. Certeza, apenas uma: é preciso resistir e afirmar a vida em frente à sombra dos tempos cruéis. O neto de Nathalie, ao final do filme, nasce e é ninando-o que a professora de filosofia parece finalmente encontrar um fio de esperança. Tal como a rosa de Drummond, do asfalto de Paris parece brotar uma criança que nos lembra que a vida continua e o tempo de total escuridão ainda não chegou.
Nenhuma sociedade que existe ou tenha existido deixou de contar histórias. Seja através dos textos bíblicos, dos relatos orais em hexâmetros datílicos, da época de Homero, das trovas medievais ibéricas, do drama burguês ou do cinema hollywoodiano, sempre buscamos definir quem somos através de nossa arte narrativa. E as pessoas precisam tanto contar histórias delas mesmas (1). A literatura, embora muitos a considerem inútil, é o canal que, ao longo dos anos, permitiu que rasgos da história de nossa civilização hoje, no século XXI, ainda fossem conhecidos por nós. É através das histórias e da História que adquirimos uma identidade, que nos transformamos em sujeito e nos vemos incluídos em uma nação. Pode um povo ser grande sem poesia (2)?
A nova animação da Disney, Moana, que se passa na Oceania, inicia sua trama com uma tradicional contação de histórias tribal. A avó da protagonista, Moana, Tala, conta a um bando de crianças narrativas tradicionais do povo polinésio. A história da perda da pedra-coração de Te Fiti, deusa criadora da vida, é essencial para o desenvolvimento do enredo, pois esse se trata justamente da aventura de Moana em busca da recuperação do artefato. Somente com a recuperação do coração da deusa a vida poderá voltar a reinar na ilha onde o filme se passa.
O tradicional formato épico, sobretudo no que se refere aos contos tradicionais, conversa seus elementos principais em Moana. O herói que parte em busca do retorno à ordem que foi quebrada. Herói que, nesse caso, é heroína. Apesar de o sexo não interferir diretamente no desempenho do papel de herói épico, no caso da nova animação da Disney, dota a produção de um segundo sentido não menos importante que o primeiro.
Moana é uma parente distante de Aurora, Ariel e Bela. Os estúdios Disney já haviam dado sinais de que suas tradicionais princesas deixariam o esteriótipo bela, recatada e do lar. As últimas animações bidimensionais da Disney, como Pocahontas, e Mulan, já traziam protagonistas femininas que se recusavam a esperar o príncipe encantado, partindo elas mesmas para a luta contra o mal. No entanto, apesar do passo progressista, ainda guardavam muitos lugares-comuns dos contos de fada que hoje soam retrógrados e machistas. Mulan e Pocahontas ainda precisam se realizar amorosamente para serem completamente felizes.
A Rapunzel de Tangled (Enrolados) dá saltos mais largos na construção de uma personagem feminina mais livre e independente. No entanto, é com Frozen que a Disney realmente parece ter superado o estereótipo da princesa em busca de um resgate. As duas protagonistas do filme, que se tornou uma das maiores bilheterias de todos os tempos e a animação mais bem sucedida da produtora (superando Rei Leão), finalmente refletem o espírito do século XXI e mostram que mulher nenhuma precisa de um homem para ser feliz.
Se realmente é fundamental amar e ser amado para alcançar a felicidade não serão os filmes Disney nem qualquer produção hollywoodiana que o irá nos revelar. As tradicionais histórias de princesa, que a Disney por quase um século levou aos cinemas e lares de crianças, não são menores porque atualmente novas protagonistas e enredos têm tomado o lugar dos velhos. A pura e bondosa Branca de Neve reflete os ideais de uma sociedade ainda patriarcal que via nessas virtudes as ideais para o segundo sexo, legando aos homens a coragem, honra e tantas outras qualidades que de fato nunca chegaram a ter.
A Disney não vai derrubar o patriarcado (Até ri escrevendo isso). Moana não resolve as muitas questões de gênero que ainda perduram. O filme, inclusive, é acusado de esquecer grandes e guerreiras deuses polinésias e se apropriar desagradavelmente da cultura desse povo. Entretanto é através de detalhes como esse filme que vamos criando esperanças de um mundo mais justo e igualitário para ambos os sexos. É de encher a boca d’água ver uma garota nativa polinésia protagonizar uma produção do estúdio de animações mais importante do mundo e mostrar para as personagens masculinas que não só é tão boa quanto eles como é melhor e mais capacitada. A era das princesas que esperam a salvação do alto de uma torre parece ter encontrado seu fim.
Contar histórias é uma das atividades humanas mais antigas. Não há, como disse no início, sociedade sem literatura. A literatura não vence guerras, não supre fome, não cura doença alguma, mas é ela que nos faz lembrar, volta e meia, ou propriamente cria a ideia de quem somos. As histórias que contaremos daqui para frente, sobretudo às crianças, refletirão nossos novos valores e ideais. Os valores antigos não cabem mais às 21th century girls. Era uma vez as princesas Disney como as conhecemos. O sapatinho de cristal já não encaixa em Cinderela.
Não lembro de um filme que tenha conseguido retratar com tamanha fidelidade o cotidiano da sala de aula. Filme profundamente dramático, dado o embate entre sujeito e instituição. Direção impecável.
Fotografia e direção lindas. Cenas espetaculares como a luta-dança entre Dounia e Djigui. No entanto acaba caindo em vários momentos no melodrama, deixando a sutileza de lado.
Realmente merece estar entre os melhores do ano. A diretora se aventurou em fazer uma comédia que não trocasse a inteligência e a perspicácia por fáceis momentos de humor. 'Toni Erdmann' brinda o espectador com cenas memoráveis, engraçadíssimas, sem extrapolar os limites do bom roteiro. Um filme sobre mais que a relação de pai e filha de personalidades diferentes. Um filme sobre a ambição moderna e sobre a perda, cada dia mais evidente, de nossa humanidade. Necessário para desconcertar, com o riso, o homem do século XXI.
Direção e fotografia fantásticas. Atuações igualmente bem dosadas. Bem e mau colocados na balança das relações humanas, nas quais família e amizade são privilegiadas. A moral é discutida de forma sutil e bem humorada. Com um roteiro sem furos, "Hell or High Water" inicia o ano cinéfilo muito bem.
Gullar dizia que a poesia não poderia se afastar muito da vida real, sentida pelo povo para que não se tornasse uma arte quase incomunicável, fechada na representação de um pequeno grupo ou nem isso. A filosofia de Ben passada aos seus filhos é como a poesia que não encontra o povo: algo fechado em si que acaba perdendo muito de seu sentido mais óbvio. O encontro entre conhecimento e aplicação do mesmo é o grande embate da família que o personagem de Mortensen enfrenta. A fácil alegoria à Caverna de Platão é ambivalente, pois ao mesmo tempo em que a sociedade corrente se aliena em relação àquilo que deveria conhecer, a família de Ben se aliena à realidade prática e ao funcionamento do mundo de então. Com algumas partes um tanto quanto forçadas que caminham com dificuldade na corda-bamba da verossimilhança, 'Capitão Fantástico' é um belo filme, com uma direção excelente (premiada em Cannes) e edição e trilha maravilhosas.
Triste assistir esse filme e se reconhecer na rotina diária desse homem a nossa própria. As pequenas humilhações no trabalho, a distância cada vez maior entre o homem e a máquina produtiva. Me lembrou um pouco "A Caverna" de Saramago. Realmente são tempos sombrios.
Um filme sobre a poesia. Ficcção e realidade se misturam e já não sabemos mais o que é mais importante. A poesia é, inicialmente, o que afasta Neruda da realidade e faz com que seja um comunista com privilégios. No entanto, ao fim do filme vemos que a poesia é o que realmente dá sentido a tudo o que ocorreu pois, como diria Clarice, "as pessoas precisam sempre contar a própria história". O personagem de Gael persegue mais que um homem, persegue a própria poesia. Essa não existe e no entanto é tudo que fica. Genial.
Filme lindo, lembrou Almodóvar. Soube fazer um retrato sensível de Cuba, como plano de fundo. A irmandade da sociedade cubana vs. o atraso causado pelo isolamento da ilha estão bem colocados no filme. O drama principal construído de uma forma belíssima e deliciosa. Impossível não se emocionar com o final: ali estão vida e morte, conjugados como faces de uma mesma moeda a qual chamamos "mistério".
Filme inteligentíssimo. Consegue, em um sci-fy, mesclar questões primárias do homem, como sua relação com o tempo e existência. Um prato cheio para os linguistas também. Que filmão da porra!
Entendo o porquê de 'Elle' estar em tantas importantes listas de melhores filmes do ano, ao redor do mundo. Um filme incansavelmente bem realizado. Raramente enredo, simbologia e atuação se encaixam tão bem. O filme, no início, oscila entre ser uma crítica obsessiva ao mundo dominado por homens e vingança pós-estupro. Pois a protagonista passa a perna em todos, nos personagens e no espectador. Um bem acabado suspense sobre as diferentes loucuras e seus extremos.
Jejum de Amor
4.0 89 Assista AgoraO que mais chama atenção no filme é sua velocidade. O roteiro é tão intenso e engraçado que a impressão que fica é de não haver buraco algum. Seria meu sonho interpretar a peça que deu origem ao filme?
Até o Último Homem
4.2 2,0K Assista AgoraFilme do começo ao fim entregue ao expectador. Melodramático sem necessidade. Gibson precisa aprender com Malick a fazer filmes bélicos e religiosos.
Lion: Uma Jornada para Casa
4.3 1,9K Assista AgoraUm professor meu tem um poema que se chama "Não encontrarás no Google", no qual a relação entre as novas tecnologias e a memória humana é discutida. Achei que "Lion" vai um pouco de encontro a isso. A memória estende mais seus braços com os recursos de busca atuais. Nem todo conhecimento humano está nas catacumbas do Google, mas nelas encontramos muitas vezes o que nossa limitação não permite.
Silêncio
3.8 576A ação jesuíta na América foi, por muito tempo, interpretada como civilizatória e progressista. No século passado, com o advento dos estudos antropológicos, a Companhia de Jesus foi lida de maneira avessa. A catequização dos ameríndios passou, então, a ser vista como invasiva e responsável pela aniquilação de várias culturas. No filme de Scorsese os padres jesuítas são destituídos tanto do antigo lugar-comum enquanto heróis, quanto da interpretação contemporânea da história que os posiciona como vilões. Os jesuítas devem ser entendidos como homens de seu tempo e, nesse ponto, o filme acerta. Com um poderoso jogo retórico, 'Silence', é capaz de tombar e levantar a fé do espectador. O silêncio de Deus põe a prova a validade da luta dos cristãos no Japão, mas sua negação obrigada transforma aqueles que a ela são submetidos em criaturas semi-vivas, perdido seu ideal. A ideia de Deus paira como reflexo da eternidade e ideia capaz de sobreviver à morte. O silêncio de Deus é a eterna dúvida do homem acerca da existência de um sentido para a vida.
O Apartamento
3.9 258 Assista AgoraAsghar Farhadi usa aqui a mesma fórmula de 'A Separação', um problema inicial (divórcio/desmoronamento) que dá vazão para o conflito principal. Sempre com muita sutileza discute os problemas do Irã moderno. Destaco duas cenas incríveis que somente alguém capaz de usar o cinema em potência máxima seria capaz de executar. A primeira quando, em plena peça, o ator ri de sua companheira porque sua fala diz "Não posso andar nua por aí", mas interpreta sua personagem vestida com um longo casaco. A cena mostra o anseio por liberdade das mulheres iranianas mas sua impotência para alcançá-lo, dado o conservadorismo da sociedade. A segunda quando essa mesma atriz conversa com sua amiga enquanto atua da coxia. Achei belíssima a risada que solta enquanto conversa outro assunto completamente diferente e sério.
Eu, Daniel Blake
4.3 533 Assista AgoraTodos saíram chorando da sala de cinema. Talvez porque tenham reconhecido a si mesmos no personagem Daniel Blake. Filme atualíssimo sobre a luta do homem contra a máquina burocrática do Estado. Sistematização x humanização. Impactante.
Um Limite Entre Nós
3.8 1,1K Assista AgoraAposto que "Fences" foi uma grande peça. Como cinema, deixou a desejar. Denzel se mostrou imaturo ainda como diretor, não explorando o potencial da história como filme. Tudo pareceu um grande teatro filmado, se tornando basicamente um filme de diálogos, com poucos cenários e pouca beleza visual. Senti ainda uma discrepância entre sua atuação e a de Viola, que parecia saber que não estava no teatro, tendo uma atuação para câmeras e não para o público.
Moonlight: Sob a Luz do Luar
4.1 2,4K Assista AgoraNão fosse a provável e merecida presença do novo filme de Damien Chazelle, La La Land, entre os indicados a filme do ano na principal premiação do cinema americano, não haveria motivos plausíveis para que a realização do desconhecido Barry Jeckins não fosse o grande nome da noite. Moonlight surge em um momento controverso nos EUA, em que os vícios e virtudes americanas são discutidas como nunca. Após a eleição de um nome tão retrógrado como Donald Trump, a nação que pensou ter dado um passo definitivo na direção contrária à sua história racista, teve seus alicerces de igualdade e liberdade balançados. Ser um filme montado praticamente com a totalidade de seus atores e figurantes negros faz de Moonlight um belo ensaio sobre a comunidade afro-americana. Ainda por discutir bem a fundo questões relacionadas à homossexualidade e machismo, especificamente nessa comunidade, o filme de Jeckins é mais que necessário ao nosso tempo. No entanto, o grande feito de seu filme não é levantar essas discussões, mas incorporá-las segundo as especificidades da arte. Moonlight não é um grande filme apenas por trazer temas atuais. É um grande filme porque é cinema da mais alta qualidade.
Saramago dizia que a arte tem suas próprias regras e, por mais que o autor possua fortes convicções políticas e/ou religiosas, não poderia fazer de sua obra um mero panfleto de suas ideias, mas deveria realiza-la segundo a demanda da própria arte. O diretor de Moonlight, Barry Jeckins, soube conduzir muito bem seu filme nesse sentido. Em um momento delicado como o atual, seria muito fácil repetir o erro estético de um Crash- No Limite (2005), premiado como filme do ano no Oscar de 2006, mas completamente irrelevante como cinema, pois, embora levante temas que convinham ao momento, é medíocre como arte. Moonlight, enquanto cinema, possui uma direção primorosa, com uma câmera que no início parece aflita, indo ao encontro dos personagens que discutem; os cortes, muitas vezes violentos, não acompanham a expectativa do espectador, deixando claro que esse deverá preencher as lacunas da trama; por fim, a fotografia deslumbrante tornam o espetáculo cinematográfico completo.
A trama, divida em três partes, segue seu protagonistas em diferentes fases de sua vida. Chamado de Little (Menino/Moleque), Chiron (seu nome real) e Black (apelido que ganha de seu amigo e amante), o filme acompanha sua mutação interior e exterior. Outro grande mérito de Moonlight é a destreza ao tratar do embate sujeito x coletividade. As escolhas de Chiron o levam aonde chegou, muito embora o meio no qual foi criado e as influências que teve também tenham trilhado seu caminho. Uma das cenas que melhor representa esse embate é a que Chiron, então adolescente, apanha do menino com o qual teve uma relação sexual e emocional, mas não se abaixa. Permanece estoico. Após o ocorrido, acaba agredindo com uma cadeira aquele que incentivou a agressão. O sujeito, embora queira escolher, tem que agir segundo as regras do ambiente em que vive para não ser massacrado pelo mesmo. O estoicismo e paciência são trocados pela violência, única língua possível.
Após a polêmica da ausência de indicados negros no ano passado, a Academia Americana de Cinema deve querer, nessa edição, reparar seu erro. É provável que Viola Davis receba o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante por Fences e Mahershala Ali, Juan de Moonlight, de ator coadjuvante. Um filme escrito, dirigido e atuado por negros vencer a principal categoria do Oscar seria, de fato, lindo. Juan conta a Little, no início do filme, quando corria criança pela praia e uma senhora lhe disse que todos os negros são azuis sob a luz do luar. Embora Chiron tenha corrido na direção contrária à luz lunar, parece ter se tornado ele também azul. Todos nós somos fruto de forças interiores e exteriores. Moonlight consegue captar essa dualidade humana de forma magistral. Deixa, ao final, com o olhar de Little na praia noturna, uma indagação: somos realmente todos azuis sob a luz do luar?
Estômago
4.2 1,6K Assista AgoraFreud dizia que sexo e violência eram nossos principais instintos. No filme de Marcos Jorge, os dois sucumbem ao refino do paladar. Lindo.
A Criada
4.4 1,3K Assista AgoraSem palavras. Roteiro, direção e atuações impecáveis. Uma história para deixar o espectador babando.
La La Land: Cantando Estações
4.1 3,6K Assista AgoraO enorme burburinho causado entorno do novo filme de Damien Chazelle, diretor de Whiplash, e seu recente triunfo nos prêmios Globo de Ouro, me deixou quase maluco para assisti-lo. Finalmente, depois de muito caçá-lo pelos subterrâneos da internet o encontrei. Os primeiros 60min do filme foram um choque. Não no bom sentido. Me perguntei: onde está o argumento? O conflito? Aparte da enorme e indiscutível beleza visual, o filme simplesmente parecia não andar. E por que haveria de andar? Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou. La La Land é uma grande obra, embora não tão fácil quanto possa parecer.
A cena inicial do filme, considerado pela imprensa americana o melhor do ano e queridinho do Oscar em 2017, é um deleite para todos os amantes de cinema, principalmente para os aficionados em musicais. Chazelle tira música das buzinas e ruídos dos carros, fazendo-nos cantar em coro e flutuar juntamente com todos aqueles que se encaminham para Los Angeles em busca de seus sonhos. Erguem-se acima dos carros que se tornam peças de arte, não máquinas práticas. Está aí, no início, o mote principal do gênero, que o diretor sabiamente quer reviver: a deformação da realidade pela arte.
Os musicais já foram o principal gênero de Hollywood, tendo sido tão produzidos de modo que se dividiram em subgêneros, como, por exemplo, o estranhíssimo musical em piscinas, homenageado em Ave Cesar dos irmãos Coen. Atualmente, não contam com a sorte que em outro dia contaram, estando fadados a ser gênero revisitado e não protagonista. A última produção musical a receber o Oscar de melhor filme foi Chicago, em 2003. Quatorze anos depois, a expectativa é grande para que La La Land homenageie com a principal estatueta da noite o gênero que ajudou a tornar Hollywood o que Hollywood hoje é.
Musicais de bastidores, explorando a indústria do cinema e a aspiração de várias figuras ao sucesso como atores atrizes são comuns ao longo da história do cinema. Basta olhar para Singing in the rain, o grande clássico do gênero. Assim, o roteiro original de Damien Chazelle não é original. Não pretende sê-lo. A história de um homem e uma mulher que, enquanto lutam pelos seus sonhos, se apaixonam e se envolvem parece ter uma trama básica e clichê. E é. O grande feito de La La Land não é ser original enquanto história inédita, mas ser original transportando o musical para uma época na qual a música parece ter se tornado silenciosa.
Os musicais ainda não morreram. Respiram por aparelhos e parecem ter ainda um longo caminho no leito do hospital hollywoodiano. As produções do gênero nos últimos anos, ao passo que permitiram a sobrevivência do musical americano pouco fizeram para renová-lo. Há neles um explícito saudosismo que faz com que se voltem para o passado para procurarem matéria. O musical parece ter parado no tempo, habitando ainda as décadas de 40 e 50. La La Land une realidade atual e tradição. As roupas, carros e cenários nos transportam para as décadas referidas, mas as mensagens no smartphone de Mia nos fazem lembrar que estamos em 2017 e que o sonho hollywoodiano, se ainda é o mesmo, pertence a outro mundo.
O personagem de Ryan Gosling, apaixonado por jazz, não quer deixar que o ritmo morra ou seja tão corrompido a ponto de se tornar irreconhecível. Chazelle parece nos dizer, através de seu personagem Sebastian, que com seu La La Land está fazendo, ou ao menos tentando, o mesmo com os musicais. O enredo clichê e os personagens prototípicos são a única maneira que o musical americano pode encontrar suas raízes mais profundas: sendo ele mesmo. Frívolo, belo, empolgante, excitante. Por detrás da banalidade, La La Land traz um brilhante jogo com a história do cinema e os rumos que está tomando.
As cenas do filme são absurdamente belas. A dança de Mia e Sebastian no espaço é de uma beleza incalculável. Detalhes menores como a cena em que Mia vai entrar no carro de Sebastian quando esse dá uma súbita partida fazendo-a recurar, também contribuem para a grandiosidade do filme. O silêncio também é muito bem explorado no musical. O diretor sabe quando arrebatar a música de seu filme. A cena final, talvez a melhor da produção, encerra em si o motivo pelo qual existem os musicais: para tornar o que é realidade, símbolo, com beleza e paixão. Seja pela dor ou pelo riso, os musicais ainda existem para nos lembrar que, com imaginação, a vida pode se tornar muito mais do que é. O último olhar de Mia a Sebastian parece nos dizer que a realidade, embora dura e menos colorida, carrega consigo uma nota a ser tocada, chamada esperança.
Sing Street - Música e Sonho
4.1 714 Assista AgoraProvavelmente a melhor comédia romântica adolescente feita desde 'As Vantagens de Ser Invisível'. A ironia é bem ritmada como em qualquer boa obra de humor. Ótimo roteiro.
O Que Está Por Vir
3.8 102 Assista Agora2016 foi um ano de incertezas para o mundo. Reviravoltas no cenário político internacional, conflitos armados, desastres. A situação é demasiada crítica para que a ausência de crítica esteja à sua altura. A diretora premiada com o urso de prata em Berlim no ano passado, Mia Hansen-Love, parece ter captado bem o espírito de 2016 ainda antes de o ano ter começado. Isso porque um ano não se inicia sem arrastar atrás de si a pesada corrente da história e o que vivemos hoje é fruto de mudanças acumuladas nos anos que precederam 2017 e 2016.
L’avenir (O Que Está Por Vir), protagonizado por Isabelle Huppert (papel seu um pouco abafado pela antológica interpretação em Elle), narra a história de Nathalie, uma professora de filosofia, que diante de duras mudanças em sua vida, é obrigada a repensa-la. Nathalie lembra, em partes, Clara de Aquarius, como a crítica da Folha de S. Paulo bem colocou quando o filme estreou no Brasil, no fim do ano passado. Embora esse não seja o argumento principal do filme, nele está presente também a luta da professora pela preservação daquilo que julga correto perante a desenfreada modernização promovida pela sociedade do espetáculo. Os livros devem ser julgados pelo seu conteúdo e não pela capa mais chamativa. Sua resistência, perante os infortúnios de sua vida, faz de si uma figura de resistência e afirmação da vida.
O momento de incerteza faz de L’avenir um filme necessário ao nosso tempo. Após se separar do marido, perder a mãe, um dos empregos e ver os filhos saindo de casa, é possível dizer que Nathalie se transforma em outra pessoa? Em uma das cenas, comenta que seu marido, desde sua adolescência é a mesma pessoa mas ela, pelo contrário, se renovou. O filme, após todas essas reviravoltas na vida da professora, parece negar essa afirmação. É a partir das mudanças ocorridas após sua fase mais consolidada que Nathalie é obrigada a realmente repensar sua subjetividade no mundo.
Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a vitória de Trump, Macri, a saída do Reino Unido da UE e o ganho de poder de extrema direita ao redor do planeta, o mundo globalizado se pergunta para onde vai. É sintomático que estejamos nos aproximando do centenário de datas importantes historicamente do século XX. Nesse ano a Revolução Russa completa 100 anos, deixando um legado ainda incerto para a civilização contemporânea. A experiência soviética certamente mudou o curso do capitalismo tal qual os indivíduos do início do século passado o experimentaram, mas não foi capaz de cumprir o objetivo ao qual veio e ditar uma nova ordem econômica e política internacional.
Diante das experiências malogradas do passado e o presente problemático, ainda por se resolver, nos resta encontrar caminhos novos para seguir. Uma das cenas iniciais do filme, em que estudantes realizam um piquete na escola, contra medidas do governo, é capaz de dar um panorama do impasse de nossos tempos. Com a derrota da revolução que alimentou os sonhos de jovens, intelectuais e proletários ao longo do século XX, o que resta contra a ordem pré-estabelecida pelo neoliberalismo? Impedir que alunos e professores entrem em instituições de ensino, como protesto? Ou a resignação da rotina ordeira de professora? Desilusão e ilusão se confrontam e indicam que nem juventude nem experiência poderão trazer as soluções dos problemas atuais.
Resta-nos tatear. Como o próprio título do filme aponta, há muito ainda por vir. O futuro que nos aguarda está coberto de incertezas. Certeza, apenas uma: é preciso resistir e afirmar a vida em frente à sombra dos tempos cruéis. O neto de Nathalie, ao final do filme, nasce e é ninando-o que a professora de filosofia parece finalmente encontrar um fio de esperança. Tal como a rosa de Drummond, do asfalto de Paris parece brotar uma criança que nos lembra que a vida continua e o tempo de total escuridão ainda não chegou.
Moana: Um Mar de Aventuras
4.1 1,5KNenhuma sociedade que existe ou tenha existido deixou de contar histórias. Seja através dos textos bíblicos, dos relatos orais em hexâmetros datílicos, da época de Homero, das trovas medievais ibéricas, do drama burguês ou do cinema hollywoodiano, sempre buscamos definir quem somos através de nossa arte narrativa. E as pessoas precisam tanto contar histórias delas mesmas (1). A literatura, embora muitos a considerem inútil, é o canal que, ao longo dos anos, permitiu que rasgos da história de nossa civilização hoje, no século XXI, ainda fossem conhecidos por nós. É através das histórias e da História que adquirimos uma identidade, que nos transformamos em sujeito e nos vemos incluídos em uma nação. Pode um povo ser grande sem poesia (2)?
A nova animação da Disney, Moana, que se passa na Oceania, inicia sua trama com uma tradicional contação de histórias tribal. A avó da protagonista, Moana, Tala, conta a um bando de crianças narrativas tradicionais do povo polinésio. A história da perda da pedra-coração de Te Fiti, deusa criadora da vida, é essencial para o desenvolvimento do enredo, pois esse se trata justamente da aventura de Moana em busca da recuperação do artefato. Somente com a recuperação do coração da deusa a vida poderá voltar a reinar na ilha onde o filme se passa.
O tradicional formato épico, sobretudo no que se refere aos contos tradicionais, conversa seus elementos principais em Moana. O herói que parte em busca do retorno à ordem que foi quebrada. Herói que, nesse caso, é heroína. Apesar de o sexo não interferir diretamente no desempenho do papel de herói épico, no caso da nova animação da Disney, dota a produção de um segundo sentido não menos importante que o primeiro.
Moana é uma parente distante de Aurora, Ariel e Bela. Os estúdios Disney já haviam dado sinais de que suas tradicionais princesas deixariam o esteriótipo bela, recatada e do lar. As últimas animações bidimensionais da Disney, como Pocahontas, e Mulan, já traziam protagonistas femininas que se recusavam a esperar o príncipe encantado, partindo elas mesmas para a luta contra o mal. No entanto, apesar do passo progressista, ainda guardavam muitos lugares-comuns dos contos de fada que hoje soam retrógrados e machistas. Mulan e Pocahontas ainda precisam se realizar amorosamente para serem completamente felizes.
A Rapunzel de Tangled (Enrolados) dá saltos mais largos na construção de uma personagem feminina mais livre e independente. No entanto, é com Frozen que a Disney realmente parece ter superado o estereótipo da princesa em busca de um resgate. As duas protagonistas do filme, que se tornou uma das maiores bilheterias de todos os tempos e a animação mais bem sucedida da produtora (superando Rei Leão), finalmente refletem o espírito do século XXI e mostram que mulher nenhuma precisa de um homem para ser feliz.
Se realmente é fundamental amar e ser amado para alcançar a felicidade não serão os filmes Disney nem qualquer produção hollywoodiana que o irá nos revelar. As tradicionais histórias de princesa, que a Disney por quase um século levou aos cinemas e lares de crianças, não são menores porque atualmente novas protagonistas e enredos têm tomado o lugar dos velhos. A pura e bondosa Branca de Neve reflete os ideais de uma sociedade ainda patriarcal que via nessas virtudes as ideais para o segundo sexo, legando aos homens a coragem, honra e tantas outras qualidades que de fato nunca chegaram a ter.
A Disney não vai derrubar o patriarcado (Até ri escrevendo isso). Moana não resolve as muitas questões de gênero que ainda perduram. O filme, inclusive, é acusado de esquecer grandes e guerreiras deuses polinésias e se apropriar desagradavelmente da cultura desse povo. Entretanto é através de detalhes como esse filme que vamos criando esperanças de um mundo mais justo e igualitário para ambos os sexos. É de encher a boca d’água ver uma garota nativa polinésia protagonizar uma produção do estúdio de animações mais importante do mundo e mostrar para as personagens masculinas que não só é tão boa quanto eles como é melhor e mais capacitada. A era das princesas que esperam a salvação do alto de uma torre parece ter encontrado seu fim.
Contar histórias é uma das atividades humanas mais antigas. Não há, como disse no início, sociedade sem literatura. A literatura não vence guerras, não supre fome, não cura doença alguma, mas é ela que nos faz lembrar, volta e meia, ou propriamente cria a ideia de quem somos. As histórias que contaremos daqui para frente, sobretudo às crianças, refletirão nossos novos valores e ideais. Os valores antigos não cabem mais às 21th century girls. Era uma vez as princesas Disney como as conhecemos. O sapatinho de cristal já não encaixa em Cinderela.
Entre os Muros da Escola
3.9 363 Assista AgoraNão lembro de um filme que tenha conseguido retratar com tamanha fidelidade o cotidiano da sala de aula. Filme profundamente dramático, dado o embate entre sujeito e instituição. Direção impecável.
Divinas
4.2 219 Assista AgoraFotografia e direção lindas. Cenas espetaculares como a luta-dança entre Dounia e Djigui. No entanto acaba caindo em vários momentos no melodrama, deixando a sutileza de lado.
As Faces de Toni Erdmann
3.8 257 Assista AgoraRealmente merece estar entre os melhores do ano. A diretora se aventurou em fazer uma comédia que não trocasse a inteligência e a perspicácia por fáceis momentos de humor. 'Toni Erdmann' brinda o espectador com cenas memoráveis, engraçadíssimas, sem extrapolar os limites do bom roteiro. Um filme sobre mais que a relação de pai e filha de personalidades diferentes. Um filme sobre a ambição moderna e sobre a perda, cada dia mais evidente, de nossa humanidade. Necessário para desconcertar, com o riso, o homem do século XXI.
A Qualquer Custo
3.8 803 Assista AgoraDireção e fotografia fantásticas. Atuações igualmente bem dosadas. Bem e mau colocados na balança das relações humanas, nas quais família e amizade são privilegiadas. A moral é discutida de forma sutil e bem humorada. Com um roteiro sem furos, "Hell or High Water" inicia o ano cinéfilo muito bem.
Capitão Fantástico
4.4 2,7K Assista AgoraGullar dizia que a poesia não poderia se afastar muito da vida real, sentida pelo povo para que não se tornasse uma arte quase incomunicável, fechada na representação de um pequeno grupo ou nem isso. A filosofia de Ben passada aos seus filhos é como a poesia que não encontra o povo: algo fechado em si que acaba perdendo muito de seu sentido mais óbvio. O encontro entre conhecimento e aplicação do mesmo é o grande embate da família que o personagem de Mortensen enfrenta. A fácil alegoria à Caverna de Platão é ambivalente, pois ao mesmo tempo em que a sociedade corrente se aliena em relação àquilo que deveria conhecer, a família de Ben se aliena à realidade prática e ao funcionamento do mundo de então. Com algumas partes um tanto quanto forçadas que caminham com dificuldade na corda-bamba da verossimilhança, 'Capitão Fantástico' é um belo filme, com uma direção excelente (premiada em Cannes) e edição e trilha maravilhosas.
O Valor de Um Homem
3.6 39 Assista AgoraTriste assistir esse filme e se reconhecer na rotina diária desse homem a nossa própria. As pequenas humilhações no trabalho, a distância cada vez maior entre o homem e a máquina produtiva. Me lembrou um pouco "A Caverna" de Saramago. Realmente são tempos sombrios.
Neruda
3.5 81 Assista AgoraUm filme sobre a poesia. Ficcção e realidade se misturam e já não sabemos mais o que é mais importante. A poesia é, inicialmente, o que afasta Neruda da realidade e faz com que seja um comunista com privilégios. No entanto, ao fim do filme vemos que a poesia é o que realmente dá sentido a tudo o que ocorreu pois, como diria Clarice, "as pessoas precisam sempre contar a própria história". O personagem de Gael persegue mais que um homem, persegue a própria poesia. Essa não existe e no entanto é tudo que fica. Genial.
Viva
3.9 60 Assista AgoraFilme lindo, lembrou Almodóvar. Soube fazer um retrato sensível de Cuba, como plano de fundo. A irmandade da sociedade cubana vs. o atraso causado pelo isolamento da ilha estão bem colocados no filme. O drama principal construído de uma forma belíssima e deliciosa. Impossível não se emocionar com o final: ali estão vida e morte, conjugados como faces de uma mesma moeda a qual chamamos "mistério".
A Chegada
4.2 3,4K Assista AgoraFilme inteligentíssimo. Consegue, em um sci-fy, mesclar questões primárias do homem, como sua relação com o tempo e existência. Um prato cheio para os linguistas também. Que filmão da porra!
Elle
3.8 886Entendo o porquê de 'Elle' estar em tantas importantes listas de melhores filmes do ano, ao redor do mundo. Um filme incansavelmente bem realizado. Raramente enredo, simbologia e atuação se encaixam tão bem. O filme, no início, oscila entre ser uma crítica obsessiva ao mundo dominado por homens e vingança pós-estupro. Pois a protagonista passa a perna em todos, nos personagens e no espectador. Um bem acabado suspense sobre as diferentes loucuras e seus extremos.