Versão coreana de two girls and one cup. Fiquei surpreso, já que os outros trabalhos do diretor seguem uma linha totalmente diferente, sendo muito menos experimental e mais próximo de um cinema mais político. Seu último trabalho (5.25m²), inclusive, é um curta metragem em Realidade Virtual que simula seus quase dois anos na prisão por ter se recusado a servir no exercito coreano. Já que todos os homens são obrigados a fazer o serviço militar, Kim Kyung Mook é mantido em um solitária separado dos outros detentos por ser gay. No filme, é possível experienciar um pouco da claustrofobia de sua cela e reviver um pouco dos seus momentos de reclusão. Por outro lado, Faceless Things (que é o título em inglês desse filme), é uma mistura de 2 curtas que descreve encontros sexuais com direito a muita bizarrice. Enquanto o primeiro é um trabalho de ficção, o segundo é um documentário em que o próprio diretor (pasmem) caga na boca de um outro homem. Tem que ter muito estômago. Apesar do primeiro curta ter um diálogo minimamente interessante em que os personagens ainda levantam questões pouco relevantes, o segundo é um show de horrores que serve somente pra chocar e nada mais. Talvez o diretor tinha o desejo de passar alguma mensagem com isso. Se sim, ele falha miseravelmente. Se alguém quiser ver essa bizarrice, está disponível aqui: https :// ubu. com/ film/Kim _ faceless .html
Com ressalva a esse filme, recomendo os outros filmes do Kim Kyung Mook. Se aqui ele não havia se encontrado como diretor, seus outros trabalhos mostram um profissional muito mais capacitado com uma linguagem cinematográfica muito mais refinada. "Stateless Things" é de longe o meu favorito! "Grace Period", que eu ainda não tive a oportunidade de assistir, é um documentário que acompanha a vida de trabalhadoras sexuais na Coreia em meio a constante repressão do governo que criminaliza a prostituição.
Fui assistir ao filme pensando se tratar de uma protagonista feminina no poder, mas me deparei com uma obra claramente anti-feminista.
Enquanto no Japão Kenji Mizoguchi colocava as mulheres e suas situações opressivas em foco, o diretor coreano fez exatamente o contrário. A mulher que tem controle sobre sua própria vida é vista sob uma perspectiva negativa e, o fato de não optar pelo casamento tem impacto direto no seu caráter.
O longa é tão evidente nesta posição que no final, a chefe, que era vista por todos como uma mulher amarga,
se casa com o homem que a maltratou e, não o bastante, resigna ao seu cargo para cuidar da casa enquanto cede a seu marido sua posição de diretora.
Não o bastante, em uma das cenas da sequência final é possível ver um cartaz com os dizeres “Homens são superiores às mulheres”.
Apesar de cruel, o filme emoldura um retrato da Coreia do Sul no pós-guerra e se traduz como uma importante ferramenta sociológica.. Mesmo com trabalhos revolucionários para a época, como “Obaltan” (1960) e “A Day Off” (1968), “A Female Boss” representa o senso comum dos coreanos em relação a posição da mulher na sociedade.
"When We Pick Apples" (Kim Yong-ho, 1971) é um típico filme do Realismo Juche, que impera no cinema norte-coreano. A arte no país deve servir ao proletariado e contar histórias para "elevar o pensamento" da nação quanto à luta de classes.
Aqui, temos uma contradição ideológica que é representada pelos pensamentos das duas irmãs. Enquanto a mais nova considera chocante o desperdício das maçãs que caem e apodrecem, decidindo salvá-las para o consumo de seu povo, a mais velha leva uma vida fácil e parece não se atentar aos problemas do pomar.
Esse contraponto de ideias ressalta a luta de classes entre a sociedade socialista e a capitalista: a primeira é representada através da preocupação com a propriedade pública e a segunda pelo comportamento egoísta que se atenta mais com interesses e conforto pessoais.
Como todos os filmes da Estética Juche devem ser concluídos politicamente através da linha ideológica do partido,
o filme carrega um final feliz. A irmã mais nova convence a mais velha sobre a importância do cuidado com a propriedade pública e juntas elas chamam atenção dos outros moradores da aldeia para o desperdício das maçãs, que pertencem ao país e ao povo.
Obaltan, do diretor Yu Hyun-Mok, faz referência a uma Coreia do Sul pós-guerra destruída e governada pelo presidente Rhee Syngman (1948-1960), que se tornou cada vez mais autoritário e não democrático.
O filme centra-se na situação de Song Cheol-ho, um modelo de integridade confucionista, que apesar de sua diligência, encontra-se incapaz de salvar sua família da desintegração. A garantia ideológica confucionista de respeito social, bem estar econômico, unidade familiar, e a dignidade pessoal são despidas em um apocalipse distópico em que a regra capitalista do lucro se constrói como uma nova regra cultural.
Inspirado pelos sofrimentos da nação, o diretor Yu Hyun-Mok invoca um caráter neo-realista e força a nação a confrontar, ao invés de evitar, as realidades nuas de seus muitos traumas. Através da estética do real, Yu espera instigar a crítica e suplantar diálogos que são necessários para encontrar e buscar soluções pessoais, que podem então transformarem-se em solução nacionais de forma democrática.
Obaltan foi censurado em 1962 pelo novo governo de Park, e só foi recuperado anos depois, pelo Korean Film Archive. O filme é uma marca de resistência do cinema realista sul-coreano e resgata um passado marcado por opressões e muito sofrimento. Não é de se estranhar que a crítica especializada o categorizou como melhor filme da história do país: é um retrato vivo da sociedade coreana em meio a opressão.
A Day Off é uma das marcas da resistência do cinema não só como arte, mas também como fruto de um período de repressões e dificuldades na Coréia do Sul. Anos mais tarde, o filme também é uma importante marca no processo de recuperação do passado cinematográfico coreano e da história conturbada do país.
Na história do cinema sul-coreano desde sua criação até os anos 1979, é possível afirmamos que o regime político teve importante impacto na produção cinematográfica. Ao estudar as implicações da censura no cinema sul-coreano,é possível reconhecermos que a regulamentação política foi a maior barreira para o seu desenvolvimento. Especialmente no período sob o controle do presidente Park Chung-hee (1961-1979), o poder estatal uniu grandes esforços para censurar eventuais discordâncias acerca do governo a fim de impor um esquema uniforme de opinião pública e política.
Partindo do interesse do governo coreano em controlar o cinema, podemos analisar que os filmes passaram por uma série de regulamentações a fim de delimitá-los aos interesses do governo. A tomada de poder de Park em 1961 intensificou a censura: ele promulgou a Motion Picture Law em janeiro de 1962, a primeira lei relativa ao cinema decretada por um governo coreano. A imposição tinha o principal objetivo de afastar produtores de filmes independentes, forçando a indústria em um sistema de estúdio estilo Hollywood que era mais passível de controle estatal.
Para isso, o governo limitou o acesso aos meios de produção cinematográfica para garantir que os valores do partido se tornassem a ideologia dominante. Assim, todas as produtoras licenciadas deveriam cumprir exigências para funcionar legalmente. Além disso, a reforma de Park estimulou o cinema a seguir os valores da democracia e nacionalismo coreanos.
Sob o artigo um da Film Police Measure, que especifica que o cinema deveria realizar objetivos políticos e sociais designados pelo regime, a organização The Motion Picture Promotion Corporation (MPPC) regulava a quota de importação, obrigando as empresas a fazer quatro filmes para obter uma licença de importação. Ademais, a corporação legitimava suas estipulações através da Lei de Segurança Nacional que proibia atividades anti-estado.
Dessa maneira, a censura cinematográfica se concentrava nos filmes que pudessem perturbar a ordem existente e prejudicasse a dignidade da Coreia como nação. Logo, produções que elogiassem a Coreia do Norte ou a ideologia comunista, assim como as que criticavam o partido ou continham violência ou sexo, eram reprovados.
As medidas do presidente Park, portanto, além de limitar a produção e expressão cinematográfica, comumente aplicavam punições para os que subvertessem a regra, incluindo multas sobre os produtores, revogação de circulação de filmes, prisão de cineastas e até mesmo a anulação das produtoras responsáveis.
Dentre os diretores que sofreram perseguição por parte do governo, concedemos destaque a Man-Hee Lee. O realizador teve problemas com as autoridades mais de uma vez, e com o filme Seven Female POWs (1965), no qual retratou norte-coreanos resgatando enfermeiras sul-coreanas dos chineses durante a guerra da Coreia, teve sua prisão decretada. Três anos mais tarde, com A Day Off (1968) o diretor foi novamente censurado, dessa vez sem prisão.
A Day Off (1968) conta a história de um jovem casal sul-coreano dos anos 1960, que, em meio a ditadura de Park, enfrenta problemas econômicos e morais.
Heo-wook e Ji-yeon ainda não se casaram e, em um final de semana, descobrem que terão um filho. Sem condições de criar uma criança, o casal se vê forçado a aborta-la. Após visitarem o médico e serem avisados que Ji-yeon está em uma gravidez de risco, o dilema moral escapa de suas mãos.Após o procedimento, Heo-wook descobre que Ji-yeon não resistiu e faleceu.
Nunca lançado nos cinemas, A Day Off somente foi exibido ao público pela primeira vez 37 anos depois, na mostra do Korean Film Archive em 2005. Durante o período da ditadura, o governo sul-coreano tentou, por meio da repressão artística, apagar pensamentos e manifestações de seu povo. Lacunas criadas por esse silenciamento voltam à tona anos maistarde, por meio de tentativas de recuperação e acesso ao passado.
Achei interessante como a trilha sonora, logo no início, dá tom ao resto do filme. Do rádio, conseguimos ouvir: “tristeza e mágoa me cercam... todos os dias rezo para que a solidão seja expulsa [...]”.
Adiante, com o desenrolar da trama, observamos Xiao Wu, que acorda quase que religiosamente todas as noites, exatamente às 4:30 da manhã, para observar Jung, um homem coreano que está hospedado em seu apartamento. O menino, a cada visita, constrói um relacionamento virtual com o homem, encontrando conforto para sua vida solitária.
Mas o ponto alto do filme não reside na narrativa, mas sim como ela é descrita através das imagens. Escasso de diálogos, Royston Tan nos apresenta dois personagens distintos conectados pela solidão e melancolia que assolam seus cotidianos. Suas performances se destacam e, a cada sequência, conseguimos capturar a profundidade emocional através de seus olhares e linguagem corporal.
Os planos nos carregam através do longa nos proporcionando um estado contemplativo. As cores, o som, a luz, o enquadramento e a espacialidade dos objetos entram em harmonia com a condição dos personagens, e o diretor, assim, transpõem o sentimento de solidão para o cinema, quase nos lembrando um filme de Tsai Ming-Liang.
Não tenho certeza se os diretores desse filme são Shin Sang-ok e Choi Eun-hee. Pelo que pesquisei, esse filme é do diretor Kyun Soon Joo, que dirigiu unicamente esse longa.
Mas fora isso, "A Broad Bellflower" é um prato cheio para entender um pouco dos filmes da Coreia do Norte, que é um país tão fechado para o resto do mundo. Eu diria que o cinema norte-coreano, sem contar o cinema da União Soviética, é um dos objetos mais provilegiados para se pensar a relação entre cinema e política e as diversas configurações do realismo socialista.
A grosso modo, o realismo socialista nasceu em meados da década de 1930 na União Soviética com a prerrogativa de delimitar o cinema a uma forma de educar o proletariado através da doutrina socialista e do conceito da guerra de classes. Contudo, apesar de ter surgido como um método que deveria superar o realismo crítico (como o neorrealismo italiano), que se abstraia em denunciar os problemas da sociedade burguesa sem propor uma perspectiva de transformação, e o naturalismo, que apenas descrevia determinado setor da sociedade, ele se degenerou num “envernizamento da realidade”.
Claro que essa é uma visão simplória do que realmente foi e pode ser o realismo socialista. Depois da União Soviética, países como Vietnã, Albânia, China e Coreia do Norte adaptaram a ideia às suas diferentes realidades. No caso da Coreia do Norte, por exemplo, identificamos traços dessa estética mesclados à ideia do Juche, que é a ideologia dominante nas artes e em toda estrutura governamental, militar e política do país.
O Juche, apesar de ter nascido através das ideias marxistas-leninistas, adapta a filosofia política à realidade coreana. Sinteticamente, o Juche (que pode ser traduzido como “autossuficiência”) propõem que o proletariado é o próprio mestre de sua revolução, sendo ele o responsável pela materialização de sua independência. Nesse sentido, a massa deveria alcançar a revolução através de uma independência geopolítica, autossuficiência bélica e econômica, voluntarialismo, nacionalismo e, acima de tudo, culto à personalidade de Kim Il-sung e sua família.
O Juche impera em todas as áreas da Coreia do Norte e, por isso, não seria diferente com o cinema. A estética Juche no cinema tem suas raízes principalmente nos escritos de Kim Jong-il sobre o papel do filme na sociedade coreana.
Curiosamente, o segundo líder norte-coreano tinha grande interesse pelas artes cinematográficas e, por conta disso, dedicou parte de seu trabalho definindo qual seria a estética dominante - e única permitida - nos filmes do país. Em seu livro “On The Art of Cinema” é possível observamos uma série de orientações acerca de como seria o filme ideal: endereçado às massas, o cinema deveria cumprir um papel social de educar o proletariado quanto a luta de classes e a ideologia Juche.
Essas características se mostram bem claras ao assistimos "A Broad Bellflower". Despido de um cuidado estético e repleto de zoons - que me doíam a cabeça -, o longa é feito pelo governo diretamente para às massas. A narrativa é simples e lembra a estrutura canônica, com agente causal, início, meio e fim. As diversas inserções propagandísticas, que são usuais em todos os filmes norte-coreanos, se anexam a histórica quase como um argumento, onde no fim, tudo se resume a benéfica revolução socialista, que cai como uma luva para salvar toda a sociedade norte coreana dos males do capitalismo.
“O Cheiro do Papaia Verde” foi o primeiro filme do cinema vietnamita que tive a oportunidade de assistir. O diretor Anh Hung Tran resgata o Vietnã de sua infância e nos apresenta imagens de um país tranquilo, distante e intocado pela guerra que devastou seu território entre 1955 e 1975.
O filme, que acompanha Mui e a família a quem ela serve, se distancia dos problemas políticos para transferir para a tela questões morais e filosóficas. Para isso, o diretor franco-vietnamita reúne uma série de pequenas mudanças que tem como papel principal (re)organizar a vida dos residentes da casa. Ao mesmo tempo, o longa tem como plano de fundo a existência de Mui, que é moldada pelas tarefas diárias e o trabalho doméstico.
Mui é uma observadora e, gradualmente, enquanto floresce em sua puberdade, aprende a se comportar quase como um bom espírito, que protege, guarda e organiza o lar de seus devotos. Mas o ponto principal é como isso é narrado pelas imagens. Anh Hung Tran nos apresenta planos sequência milimetricamente organizados, que passeiam pela casa tendo a arquitetura vietnamita e tecidos de seda como suporte para emoldurar os personagens na tela, tornando a mise-en-scène um dos pontos mais altos da obra.
O ritmo do filme é quase como uma poesia visual e, sua narrativa, longe da poética aristotélica, pode decepcionar os que ainda sentem a necessidade de uma estrutura clássica, com um protagonista como agente causal e atos demarcados. Indo em direção divergente, o diretor quase se apoia num realismo sensorial, e os afetos causados no filme são subjetivos a cada indivíduo que o assiste.
Assim, o desenvolvimento da narrativa a partir de algum conflito ou problema cede espaço para uma estética de fluxo que privilegia imagem e som em seu estado mais puro, onde o pensamento dialético do cinema narrativo dá lugar a contemplação. Por isto, eu arriscaria dizer que os planos sequência, a grande atenção aos detalhes, a preocupação intensa com a mise-en-scène e a quase inexistência de uma narrativa me lembram o cinema realizado por outros diretores asiáticos como Tsai Ming Liang, Apitchapong Weerasethakul, Abbas Kiarostami e Hou Hsiao-Hsien.
Para além dessas características, outro tópico que chama minha atenção é o título da obra, que ao mesmo tempo que remete à infância do diretor, torna o mamão uma metáfora para o desabrochar de Mui. Para aos que não sabem, em alguns lugares da Ásia o papaia é considerado um legume quando está verde e, acredita-se que somente quando ele chega em sua fase madura ele se transformará em uma fruta. Semelhantemente segue a evolução de Mui na fina narrativa, como um mamão verde que se tornará um fruto doce após sua fase de crescimento.
Assisti a “Imperador Ketchup” há algumas semanas e o filme continua reverberando em minha mente. Existe um paradoxo que faz com que eu me sinta aflito e, ao mesmo passo, maravilhado.
É certo que o filme se apoia em tendências experimentalistas e na revolução sexual e política japonesa dos anos 1970 e, por isso, era passível esperar certa perturbação. Mas, ao mesmo tempo, as situações controversas mostradas nos planos confrontam a normalidade e nossa ideia de moral.
Contudo, no fim, a genialidade dessa obra se encontra justamente no desconforto que ela causa. Ora, se um filme experimental não abalar o senso comum e a linguagem cinematográfica dominante, ele não alcança seu objetivo de subversão.
O cinema deveria atuar, por vezes, como um observador imparcial das mais variadas facetas da humanidade e não apenas como uma testemunha que se conforma com os modos convencionais de pensamento. E é nesse ponto que “Imperador Ketchup” se apoia.
Shuji Terayama, mesmo sendo ineficaz em invocar alguma mudança social, consegue ser revolucionário pois define os problemas sociais fora dos modos de pensamento convencional. Além disso, o diretor é capaz de capturar desses problemas uma interpretação que ilumina fatos, costumes e injustiças construídas socialmente.
Temos essa e outras pérolas do cinema sul-coreano graças ao trabalho de restauração do Korean Film Archive que, entre outros trabalhos, vem dispobilizando obras que teriam sido perdidas no tempo. Inclusive, a quem possa interessar, a organização tem um canal no youtube com um acervo de filmes bem amplo: https://www.youtube.com/channel/UCvH6u_Qzn5RQdz9W198umDw
Ademais, é por essa iniciativa que tive a oportunidade de adentrar no mundo de Shin Sang-ok. O diretor tem sua filmografia produzida em três períodos: o primeiro engloba os filmes feitos na Coreia do Sul (1926–1978); o segundo reune obras realizadas na Coreia do Norte durante o sequestro orquestrado por Kim Jong-il para alavancar a indústria cinematografica do país (1978–1986); e, finalmente, o último período engloba os trabalhos estudanenses do diretor (1986–2002).
Em termos de qualidade da linguagem cinematográfica, se destaca a primeira parte de sua filmografia. Não que não existam outros pontos a serem discutidos em outros períodos (aliás, o período norte-coreano abre espaço para diálogos acerca de cinema, arte e política e das configurações do realismo socialista no país), mas é aqui que Shin se torna conhecido como um grande realizador.
Em Madam White Snake, por exemplo, somos apresentados com uma transposição do mito chinês "A Cobra Banca". Assim como outras obras do início do cinema de horror sul-coreano, Shin tem influências do cinema hollywoodiano no que diz respeito à estrutura narrativa e, principalmente, do cinema de horror japonês. Vale lembrar que foi somente na década de 40 que a Coreia deixou o colonialismo japonês e ainda nos anos 50/60 sofria grandes interferências da cultura estudanense.
Assistindo a esse filme, por exemplo, é visível a semelhança com os filmes de horror produzidos por Kenji Mizoguchi. Aqui, destaco principalmente "Contos da Lua Vaga" (1953), que nos traz a misteriosa Lady Wasaka como um ser demoníaco.
Assim, não só os temas se aproximam, mas como também as escolhas estéticas de Shin se assemellham às usadas por Mizoguchi. A montagem, por exemplo, trabalha com sobreposições de imagens que, ao serem usadas, servem como efeito especial, potencializando o poder da linguagem cinematográfica na construção do horror.
Nesse filme temos a oportunidade de dar um último olhar sob um dos temas mais recorrentes nos trabalhos de Mizoguchi. Comumente tratando das diversas problemáticas e dificuldades que circundam o mundo das mulheres no Japão, Mizogochi se difere de outros diretores, que costumavam romantizar suas personagens femininas e afasta-las da realidade. Ao contrário, Kenji proporciona um nuance na forma como as mulheres lutam – e sofrem – para sobreviverem em uma sociedade dominada pelos homens.
Esse, inclusive, é um dos pontos que mais merecem ser destacados em seu último filme. Indo em direção contrária a melodramatização dos fatos, o diretor preferiu se apoiar em um viés mais realista, tratando de problemas concretos vividos pelas prostitutas no Japão pós-guerra. Vindas dos mais diversos backgrounds, as mulheres que trabalhavam na Dreamland – como é chamado o prostíbulo – viviam cercadas de problemas econômicos, morais e familiares.
Nessa perspectiva, Mizoguchi demostra como a prostituição era cruel para com elas, mas, por outro lado, confirma que a vida delas não tem outra perspectiva se não essa. Ora, como elas iriam comer, sustentar suas famílias em meio àquela sociedade? Quão desastroso seria uma lei antiprostuição?
Não nos resta dúvidas em qual lado Mizoguchi está.
Quando Hanae encontra seu marido que está prestes a se suicidar, por exemplo, ela diz: “Ninguém pode acusar-nos de sermos pessoas más. Mas sem vender meu corpo não poderíamos viver. Não poderíamos nem comprar o leite para o bebê! Não vou me render, eu não penso em desistir. Penso em seguir adiante”.
Para além do cunho social do filme, Mizoguchi tem seus planos cuidadosamente planejados, mantendo o enquadramento conforme a câmera se move e acompanha os personagens. A mise-en-scene, apesar de o filme se aproximar de um realismo, faz com que os movimentos dos personagens e da câmera pareça natural, tornando as ações que compõem a narrativa quase que orgânicas.
No entanto, se compararmos aos seus filmes anteriores, não encontramos uma estética tão meticulosa. Isso, porque em geral, o lado visual dessa obra não se traduz como sendo uma característica tão importante. O foco de Mizoguchi aqui é o social.
Aos poucos estou conhecendo o trabalho de Naomi Kawase e ficando hipnotizado com seu cinema. Há alguns meses tive a oportunidade de assistir à ‘A Floresta dos Lamentos’ e fiquei num estado de contemplação com toda a estrutura que ela cria: desde a narrativa lenta (e sublime) à câmera bamba e inocente sob os personagens. O filme era de uma sutileza tão grande que resolvi tirar um tempo para reflexão antes de conferir suas outras obras.
Em ‘Nanayo’, esse sentimento ainda perdura. A narrativa é tímida e apresenta uma estrutura de flutuação, onde os enquadramentos e movimentos de câmera de Naomi nos carregam pela trama como ondas no oceano, tudo num estado contemplativo. A história é simples ao extremo: não sabemos muito sobre a vida das personagens, nem de seus objetivos e perspectivas. Todavia, essa condução e desenvolvimento geniais da diretora funcionam como um ótimo artifício e vão criando reflexões potentes acerca das relações humanas, o que torna tudo uma inexorável crônica sobre a (in)comunicabilidade e barreiras linguísticas.
Dentre todas as características de Naomi, o que mais me chama atenção é sua capacidade de transformar todo o filme num estado de espírito, onde o deslocamento e a sensação de pertencimento caminham de mãos dadas. Ninguém sabe a língua do outro, mas suas relações começam a mesclar-se para além da formalidade.
A sequência onde Toi some consegue ilustrar isso muito bem: é o ápice da barreira que se forma entre as personagens, sendo que ao mesmo tempo a busca pelo garoto é tudo que os une.
De resto, basta aceitar que precisarei de mais um tempinho para absorver essa experiência antes de me encontrar em outros de seus filmes
Baraka (Ron Frickea, 1992), palavra de origem Sufi que pode ser traduzida como “benção”, “sopro” ou “essência da vida”, é um documentário que propõe um retrato do nosso planeta. Não suportando diálogos em sua trama, o filme é conduzido por um álbum vertiginoso de imagens ao redor do globo, que se mescla a sons ambientes, conversas e cantos. Através de planos surpreendentes, que funcionam como um espelho perante a vastidão da Terra, o longa (re)constrói a variedade da natureza em sua mais bela e cruel forma, reproduzindo civilizações indígenas, rituais religiosos, destruição, pobreza, vida urbana, ruínas antigas e guerras. Em Baraka, o diretor perpassa por uma intensa busca para que cada quadro consiga capturar a grande pulsação da humanidade, interligando, dessa forma, nossas consciências e sentimentos numa só frequência.
Muito mais que somente um documentário, é necessário encarar a película como uma experiência sensorial de reflexão espiritual-artística que fala ao espectador de qualquer lugar ou de qualquer crença. Sendo assim, é um filme dialético, que depende da percepção e interpretação de quem vê. De modo não-linear e não-verbal, Baraka consegue discutir o sagrado e o humano; a ordem natural e a entropia; a santidade e o materialismo. É como se as energias universais resolvessem se debruçar e traçar um paralelo entre as suas diversas criações, transcorrendo por todo o planeta e construindo um olhar livre de julgamentos de seu yin e yang.
Sua estrutura poético-imagética nos possibilita, portanto, variadas leituras. E é nesse caminho que podemos identificar a hipótese de Gaia, de James Lovelock, como um dos reflexos desse prisma. Através de uma perspectiva que combina pesquisa científica e metafísica, o autor aponta que a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo formam um sistema autorregulador com capacidade para manter o planeta sadio por meio do controle do ambiente químico e físico. Essa estrutura, que age como um organismo vivo, é chamada de Gaia, em referência à deusa grega Terra.
O postulado de Gaia é uma hipótese que fornece suporte científico para a interconectividade da vida em nosso planeta. Uma vez que a Terra responde a influências externas, é possível dizer que ela incorpora uma forma de inteligência.
Baraka, da mesma forma, é um filme sobre a vida, um registro da humanidade e sua relação com seu lar. É livre da narrativa formal e diálogo, mas nunca vazio de emoção ou significado: é poesia da vida cotidiana, despertar para a vida e reconhecimento da desgraça de se estar indo rumo ao nada. Não importa quem você seja ou onde viva: você também está em Baraka.
Para falar de Mary Reilly, primeiramente devemos voltar ao texto que inspira o livro: "O Médico e o Monstro", escrito em 1886, por Robert Louis Stevenson. A história é contada em relatos, através da perspectiva do advogado Utterson, que vai desvendado o caso ao decorrer da obra.
Utterson, advogado e amigo do Jekyll, recebe um testamento do Jekyll oferecendo todo seus pertences e dinheiro para um tal de Sr. Hyde, da qual ele não conhece e nunca ouviu falar. Ele começa a investigar, conhece o Hyde e não se agrada nada com o que vê, pois ele é reflexo do que a sociedade vitoriana abomina. Um ano se passa e um assassinato, cometido por Hyde, acontece. Mas ele some sem deixar rastros. Depois de um tempo, ao ser chamado pelo empregado do Dr. Jekyll. Utterson se depara com Hyde morto no laboratório de Jekyll e descobre toda a verdade através de uma carta escrita pelo próprio doutor.
A obra foi tão aterradora para a época, que dela vieram diversas transposições. No cinema a primeira versão foi de 1908, de Otis Turner. Depois dela vieram diversas outras. Além do cinema, muitas outras mídias fizeram releituras e tomaram como inspiração a história do Médico e o Monstro. Esse é o caso do livro escrito em 1990 por Valerie Martin, que foi transposto para o cinema Stephen Frears, 1996.
O filme consegue manter quase que fielmente os acontecimentos do livro (apesar de não ser uma característica importante para avaliarmos uma transposição). O livro, não traz muitos pontos adicionais para a narrativa em relação ao livro que o inspira. Temos a mesma história, só que contada através da perspectiva de outra pessoa, a empregada Mary Reilly, que não aparece no livro de Stevenson. O filme continua com essa perspectiva, mostrando Mary desvendando o que acontece ao longo da história. O filme é construído através dos olhares dela e de suas percepções.
Quando o personagem Jekyll aparece no texto, os ambientes quase sempre são fechados: ele sempre está dentro de casa. Frears seguiu o mesmo. O que é bastante interessante, porque a casa, simbolicamente representa sua própria mente: o fato de Jekyll ter uma entrada em sua residência por onde transita Mr. Hyde é uma alusão ao seu subconsciente, lugar onde “habita” esta outra personalidade que se apossa do seu consciente quando toma uma fórmula.
Outro ponto interessante é em relação ao personagem de Hyde. No livro, ele é um personagem construído para ser totalmente detestável: ele é grotesco, sem boas maneiras, violento e sinistro. No filme, como oposto do Dr Jekyll, ele continua mantendo essas características, mas o diretor optou por mostrar um outro lado mais “cativante” ao personagem que só Mary tem a capacidade de captar.
Assim, o cineasta continua emulando as estratégias do gótico, mas mescla o estilo gótico com um toque de romance entre Mary e Hyde, criando um jogo de sedução entre eles. O diretor aproveita-se da construção de Mary, que teve uma vida difícil e desde pequena conhece o mal das pessoas e da sociedade, criando uma fascinação estranha dela para com Hyde.
Assisti “Millenium Mambo” pela terceira vez em menos de dois meses, e a cada momento que vejo, o sentimento de vazio e incerteza vividos por Vicky crescem mais e mais em mim. Mambo é um filme que retrata a juventude urbana de Taipei, que se enclausura em bares, clubes e vive relacionamentos conturbados e sem significados. Para mim, Hou Hsiao-hsien, nesse filme, se mostra um dos melhores diretores da cena do cinema asiático contemporâneo. O taiwanês, aqui, demonstra um pulso muito mais vívido do que suas outras obras mais recentes: nesse longa, o sangue corre rápido através dos enquadramentos repletos de luminosidade, construindo uma fotografia que é impossível de transpassar por nossos olhos de forma despercebida.
O filme é desorientador, experimental e dissonante: a maioria das sequências realizadas por Hou são feitas em planos médios, em uma câmera quase autônoma que explora os espaços e personagens milimetricamente e paulatinamente. O espectador é direcionado por “Millenium Mambo” em tomadas lentas, em uma estrutura de flutuação. Por isso, para captar os pormenores que Hou Hsiao-hsien nos transpassa, sinto que devemos mergulhar nas águas profundas de seus quadros, nos deixando simplesmente levar pelo fluxo das imagens. Dessa forma, o diretor controla nossos olhares e nos revela que ele próprio parece estar em processo de descobrimento da trama ao longo do próprio filme. Mambo não deixa a desejar em seu roteiro porque simplesmente não propõem nos fazer experienciar uma história nos moldes clássicos, com começo, meio e fim, e outras características predominantes, principalmente, no cinema comercial hollywoodiano.
Dentre as outras particularidades que vemos ressoar no longa, devemos incluir a música que anda juntamente com os ciclos e cronologia espiral que o diretor cria. As cenas mais belas de Millenium Mambo acompanham trilha sonora, e dentre elas, não consigo deixar de destacar a cena (que para mim é uma das mais primorosas aberturas do cinema) em que Vicky, liricamente, anda sob as luzes neon em câmera lenta por um túnel que mais parece uma antecipação do vazio que está por vir. Outro ponto fascinante é a narração feita pela própria personagem dez anos mais velha, que potencializa o sentimento de desorientação perante a vida em que ela –e nós- está mergulhada.
Acho admirável quando o cinema funciona como ferramenta para compreender aspectos sociais. O filme chama atenção justamente por tratar a homossexualidade, a aceitação e a saída do armário em um país tão conservador como a Coreia do Sul. Num lugar onde sexo ainda é considerado um dos maiores tabus (a educação sexual coreana é tão falha que o país ainda apresenta poucas pessoas usando camisinha, o que leva ao alto contágio de doenças sexualmente transmissíveis, e uma falta de conhecimento de métodos contraceptivos, o que resulta em uma enorme taxa de abortos clandestinos), a população LGBTI e problemas vivenciados por ela encontra-se totalmente invisibilizados.
É interessante também como o filme mescla a temática LGBTI com outros problemas sociais vividos pelos jovens sul-coreanos, como a questão da pressão externa para a obtenção de notas extremamente altas -e quase inalcançáveis-, o que tem levado muitos estudantes ao suicídio. O filme dá uma aula sobre como a sociedade coreana tem levado a educação a níveis extremos, esquecendo-se de outros âmbitos como o combate a opressões, bullyng e homofobia.
Lanternas Vermelhas foi o primeiro filme de Zhang Yimou que assisti e de cara fiquei impressionado com a destreza técnica com que o diretor conduz o filme. Vi aqui um completo domínio da mise-em-scene, que se mescla com um senso de estética quase que impecável. Yimou parece preocupar-se com cada pormenor do filme, tornando-o quase um quadro vivo: os enquadramentos formam composições fixas e simétricas em meio a arquitetura chinesa antiga, combinada com uma direção de arte que é atenta ao vestuário das personagens e cenários que habitam; os gestos das personagens são conduzidos através de uma cultura formal milenar, e marcada pelo confucionismo que reina em alguns países orientais e demarcam pirâmides hierárquicas; a fotografia estabelece o vermelho como marca que simboliza a trama, desenhando um contraste entre o brilho que é emanado da casa da esposa escolhida pelo mestre e a escuridão em que as outras mulheres são confinadas a viver a noite.
Atenção especial para as lanternas vermelhas e sua importância na construção dramática e visual. Elas conduzem todo o ritual que é mostrado no filme,
desde quando cintilam sua tonalidade, marcando a preferida da noite, até quando são cobertas por tecidos negros quase como um sinal de luto. As lanternas que iluminam a casa da concubina eleita é a alimentação do ódio entre as mulheres, tornando-se símbolo desse ciclo interminável em que vivem e do final trágico inevitável a que estão impostas.
não mostra o rosto do mestre. Quando aparece, sempre o vemos de costas, por trás de véus, ou enquadrado de forma distante,
direcionando a ênfase, assim, para as personagens femininas. Isso reforça que o diretor preocupa-se em demonstrar a situação em que as mulheres foram condicionadas a viver na realidade chinesa dos anos 1900, onde não tinham voz ativa, eram reduzidas a meros objetos sexuais, e tinham o dever de agradar, respeitar e obedecer todas as vontades de seus maridos.
“O Livro de Cabeceira” (The Pillow Book; França/Holanda/Luxemburgo/ Reino Unido, 1996), é um longa-metragem do diretor britânico Peter Greenaway. A história gira em torno de Nagiko, filha de um escritor japonês. Seu pai, durante sua infância e adolescência, escreve versos sobre a criação do homem por deus em seu rosto e costas. Pela tia, a menina é apresentada ao “Livro de travesseiro” de Sei Shonagon, uma dama da corte na Dinastia Imperial Japonesa do século X.
O presente texto pretende analisar a plástica e a estética do filme exemplificada pela sequência do aniversário de seis anos da protagonista.
De início, a sequência retoma o ritual que seu pai fazia em seus aniversários e posteriormente, enquanto a garota treina caligrafia, uma voz narra que quando ela fez seis anos prometeu à tia que teria um diário, um “livro de travesseiro” de sua autoria. Trata-se da voz da Nagiko adulta, uma mulher que vive em busca de amantes que sejam bons calígrafos e consigam escrever sobre seu corpo, mantendo-a perto dessa necessidade do contado da tinta com a pele que aparece ao fim da sequência. Após a narração de Nagiko, uma voz, que seria de sua tia, lê “A lista das coisas esplêndidas” de Sei Shonagon. A menina vai ao encontro de seu pai que estava visitando seu editor em seu também aniversário. Assim, o espectador é apresentado ao ambiente de uma editora e ao futuro marido da protagonista.
A montagem do filme é sortida por recortes, sobreposições e superposições de imagens nas cenas. O diretor usa tais recursos para enaltecer a caligrafia como um discurso fílmico e reforça essa ideia ao introduzir as citações faladas, aliando, dessa forma, passado e futuro, aspecto e conteúdo. Ou seja, a palavra, ao ser apresentada escrita nos planos, interpõe com a que é falada, produzindo ritmo ao mesmo tempo que dialoga com as imagens que são mostradas, interligando a Nagiko adulta, a do passado e a mulher chamada de Sei Shonagon, sendo essa quem condiciona tal ligação.
Peter Greenaway considera-se um “catalogador”. Como forma de organização, tem-se na construção narrativa a utilização de algumas listas do “livro de travesseiro” original citada pela tia da protagonista. Tais intervenções não só organizam como preenchem o texto fílmico e quebram o ritmo que vinha antes, produzindo, como já dito, um outro ritmo. Trata-se nesse caso de um momento de contenção em que se evidencia por vezes uma não sincronização dos elementos falados com as legendas.
A própria sequência da qual se analisa pode ser vista como um “desacelerador” de ritmo até pelo efeito sonoro de rompimento acústico que é colocado ao final da sequência anterior. A inserção da citação sobre “A lista das coisas esplêndidas” da qual é feita pela tia preenche a narrativa.
Enquanto Nagiko está indo para a editora, se mesclam sobreposições da página do livro, superposição de um pequeno quadro no centro com a referência do que está sendo falando e que depois toma o lugar da imagem da menina para se sobrepor com a página do livro.
Essa dinâmica é feita em várias partes do filme e também no final da sequência quando ela volta pra casa com o pai.
É importante notar que cada elemento, seja ele verbal, sonoro ou visual, estão em harmonia mesmo nessas diferentes colagens. Tratando-se de visualidade, percebe-se que tudo é bastante bem escolhido e costurado e se pode exemplificar a passagem final da sequência em que o pai diz que vai publicar um livro e que recebeu um presente do editor: uma nota de yen é sobreposta. O diretor opta por representar a vivência de Nagiko no Japão através do preto e branco, porém alguns objetos coloridos são posicionados em cena, como o próprio livro de Shonagon e a superposição da folha de lição de Nagiko que é azul, fazendo referência a uma parte da lista lida pela tia que diz que “qualquer coisa tingida de azul-escuro é esplêndida”.
Greenaway compartilha a ideia de John Cage de que a arte, consequentemente o cinema, só tem a ganhar ao se introduzir algo novo. Em vista disso, não há como não lembrar as vanguardas experimentais que revolucionaram os anos 20. Faz-se necessário, para essa análise, destacar o formalismo russo, visto que em dado momento da sequência, quando demonstra-se o ambiente editorial, um recorte é utilizado: a tela divide-se em quatro partes superpostas que descrevem ações acontecendo ao mesmo tempo. Também pode-se referenciar Sergei Eseinstein em seus estudos traçados entre o paralelo da imagem do cinema e um ideograma, contudo essa representatividade é feita pelo cineasta inglês de forma quase literal. Finalmente, segundo Greenaway, para se contar uma história de forma eficiente é preciso ser um escritor, portanto não há homenagem maior a essa arte milenar do que “O livro de cabeceira”.
Dirigido por Krzysztof Kieślowski, Sem Fim (Bez Konca, 1985), narra a história de Ulla (Grazyna Szapolowska), uma tradutora viúva que perdeu seu marido e descobriu que o amava mais que do imaginava. No início temos o advogado Antek (Jerzy Radziwilowicz), marido de Ulla, anunciando detalhes de sua morte. O personagem não chega a ser um narrador oculto, contudo, serve como um entrelaçador das duas narrativas paralelas quando as acompanha. Ao mesmo passo em que Ulla deseja superar a tragédia e conseguir lidar com a perda, ela se encontra envolvida com o caso em que seu marido trabalhava, que dizia respeito à prisão de um integrante do “Solidariedade”, segunda história apresentada no longa.
A carreira de Kieślowski pode ser dividida em duas partes, das quais a primeira se refere às produções exclusivamente polonesas, enquanto a segunda se dá pelo estabelecimento de uma parceria com o produtor franco-romeno Marin Karmitz, fundador da companhia MK2. A última rendeu-lhe o lançamento de suas obras mais vivamente aclamadas: A Vida Dupla de Véronique (La double vie de Véronique, 1991), e a famosa Trilogia das Cores: A Liberdade é Azul (Trois couleurs: Bleu, 1993), A Igualdade é Branca (Trois couleurs: Blanc, 1994) e A Fraternidade é Vermelha (Trois couleurs: Rouge, 1994). Enquanto a primeira abriga, igualmente, outras grandes obras, das quais incluem-se Sem Fim (Bez Konca, 1985), Acaso (Przypadek, 1981), A Cicatriz (Brizna, 1976) e Cinemaníaco (Amator, 1979).
Em sua primeira fase, Kieślowski foi influenciado pelo sistema da época, abordando problemas como a burocracia governamental atrapalhando a economia do país, as greves e principalmente o cotidiano das cidades e cidadãos poloneses de uma maneira bastante direta. Realizando suas produções após a segunda grande Guerra, o diretor vivia em uma Europa em que a Cortina de Ferro ainda estava estabelecida, ou seja, ainda havia a segregação dos países influenciados pelos Estados Unidos, e do outro lado, das nações que seguiam a União Soviética, que era o caso da Polônia. Dessa maneira, o diretor critica o governo polonês realizando reflexões acerca de seu funcionamento através de suas obras, inserindo muita das vezes, um contexto político.
Sem fim não escapa desse ponto. Vivenciando um sistema extremamente repressivo, o personagem Derek (Artur Barcis), ex-cliente do marido de Ulla, que era advogado, luta contra um governo restritivo em oposição à lei marcial da Polônia, que durou de 1981 a 1983 e causou a morte de centenas de ativistas da oposição. Tal regime baseava-se em anular alguns dos direitos fundamentais do cidadão, como o direito de ir e vir, e principalmente o de se reunir e de manifestar opiniões contrárias acerca do governo. Decretou-se também que qualquer indivíduo que realizasse práticas a favor da conspiração opositora seria preso e enfrentaria um julgamento sumário por traição à nação, que poderia acarretar em até cinco anos de confinamento. Nesse sentido, Derek enfrenta um julgamento por tornar-se organizador de uma greve, opondo-se ao sistema. Apesar de seu cunho político bastante explícito, pode ser árduo para o espectador que não está diretamente ligado ou vivenciou a época entender essa parcela da narrativa, pois Kieślowski não explica o contexto histórico. Isso porque não pretendia-se que Sem Fim fosse divulgado nos demais países europeus ou no mercado estadunidense, tornando-se mais acessível somente posteriormente à queda da Cortina de Ferro e dos governos totalitários do leste europeu.
O desempenho civil no filme de Kieślowski é mesclado com uma incursão no território sobrenatural juntamente com um aprofundamento dos sentimentos humanos. Isso porque o personagem de Antek –subtende-se que é seu espírito- perpassa toda a trama, observando as situações em que sua mulher enfrenta e seus pensamentos menos externalizados. Apesar de afirmar que não filma metáforas, o diretor cria situações e conexões em que o espectador consegue ler através do seu próprio olhar. Um paradoxo foi formado, pois essa inserção ao meio sobrenatural e o constante contato que a protagonista mantém com seu marido –através das sessões promovidas pelo hipnotismo- pode subtender que os fios sociais excluídos pela lei marcial continuam intactos noutra dimensão. E isso pode ser visualizado quando no começo, Antek indica esse contato prévio com Ulla.
Antek é filmado sentado em uma cadeira contando detalhes de sua “passagem” enquanto sua mulher adormece, e logo, quando a câmera deixa de mostra-lo, com um plano médio em Ulla, e após voltar a mostrar toda a extensão do quarto, ele some. Tal fato ocorre porque ele é quem manterá esse laço vivo, e somente durante as sessões de hipnose, em momentos em que um cão o vê, ou quando Ulla comete suicídio no final do roteiro, é que sua presença será sentida. Devemos ressaltar que somente quando seu antigo cliente é liberto após o julgamento, fazendo uma analogia, é que os laços de Antek e Ulla se reavivam novamente.
Ou seja, quando a lei marcial deixa de abranger a condenação do cliente, possibilitando que ele possa voltar a sua antiga vida de ativista político é que as linhas entre os dois se renovam.
Essas conexões de Kieślowski tornam Sem Fim uma de suas mais poéticas obras. Os sentimentos da protagonista feminina, suas relações e principalmente a conexão entre Ulla e Antek é uma das causas disso. Não conseguimos identificar se a protagonista possui a capacidade de sentir o marido a todo instante – assim como ele sente ela. Não obstante, ao mesmo tempo ela constata-se impulsionada a ter um envolvimento com o caso de Derek. Portanto a estrutura define as conexões entre os personagens e suas histórias, o que torna a trama frágil nesse sentido.
Ainda durante a primeira sequência, percebemos a quebra da “quarta parede” existente no cinema. Na narrativa clássica, os personagens tendem a receber a orientação de não olhar para a câmera, formando assim, uma parede virtual que é chamada de quarta parede. Contudo, há uma quebra na narrativa canônica em relação a isso.
Já na primeira sequência conseguimos observar que Antek conta sua história direcionando seu olhar diretamente para as lentes de filmagem. Após o telefone tocar e Ulla entrar em quadro, a câmera passa a substituir a percepção visual do recém-falecido. Todavia, só conseguimos observar que a história é contada sob o olhar de Antek – que torna-se o narrador quando não está em quadro- na cena em que Ulla vai ao cemitério. Durante a visita ela acende algumas velas e quebra a parede virtual olhando para a câmera, e logo após diz as palavras “eu te amo”, repetindo as falas posteriormente do mesmo modo.
Ao mesmo tempo em que o filme ocorre sob o olhar de Antek, sua paleta de cores também reflete o sentimento e a situação do personagem. Com a predominância de cores pastéis e principalmente do cinza, as cenas manifestam certa melancolia, isso porque Antek se encontra impossibilitado de manter um contato direto com sua família e não consegue interferir em ações ou situações em que perpassam. Contudo, as cores vão muito além da percepção de Antek. Representam também o olhar de Ulla, Derek, e o de sua mulher. Ulla está passando por um momento desesperador, no qual ao mesmo tempo em que deseja superar a morte do marido, tenta manter determinada aproximação de seu último caso. A mulher de Derek e ele estão impossibilitados de manter contato por conta da prisão, possibilitando que o ar de tristeza e dificuldades apareçam sob suas vidas. Ademais, as cores faz alusão à situação política da Polônia, que estava mergulhada no sistema comunista que reprimia seus cidadãos. Portanto, toda a forma do filme funciona como um reflexo dos personagens, seus sentimentos e contexto histórico em que vivem.
O segundo filme que compõem a trilogia Qatsi, em contraponto com o anterior, apresenta cores mais quentes. Reggio, em Koyaanisqatsi, se abstém nos grandes centros urbanos, por isso disponibiliza muitas imagens noturnas, assim, temos muitas cores frias em termo de temperatura de cor. O primeiro longa tem enquadramentos mais amplos, e possui em si uma constância de imagens aceleradas e pouco destaque para o indivíduo. Enquanto que em Powaqatsi, o diretor dá enfoque ao terceiro mundo, que predominantemente se encontra em zonas tropicais – daí vem a predominância de cores mais quentes. Também em Powaqatsi encontramos um ritmo extremamente lento. Mesmo nos pontos em que as imagens não estejam propriamente em câmera lenta, o próprio ritmo da montagem, o tempo dos planos, o tempo que ele deixa as ações transcorrendo e própria predominância de cores deixa isso bem explícito. Reggio, em Powaqwatsi busca mostrar não a questão da organicidade do planeta, mas sim em que em meio a uma extrema pobreza, temos uma humanidade no terceiro mundo que está ausente nos grandes centros urbanos do primeiro mundo, como no Koyaanisqatsi. Em termos de narrativa cinematográfica, os dois filmes apresentam um primeiro momento em que se estabelece o que era modo de vivência antes de alguma intervenção. A vida anterior, em Powaqatsi, é equilibrada, e depois disso se estabelece o desequilíbrio, e assim a questão transformação é explicada. Portanto, Reggio mostra um modo de vida anterior que possui uma quebra muito clara quando você tem uma forma devorando a outra.
Senti que Sofia Coppola tentou criticar a sociedade do consumo, o capitalismo e o estilo de vida dos famosos. Contudo, a mensagem não foi enviada com sucesso, haha.
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0.5 1Versão coreana de two girls and one cup. Fiquei surpreso, já que os outros trabalhos do diretor seguem uma linha totalmente diferente, sendo muito menos experimental e mais próximo de um cinema mais político. Seu último trabalho (5.25m²), inclusive, é um curta metragem em Realidade Virtual que simula seus quase dois anos na prisão por ter se recusado a servir no exercito coreano. Já que todos os homens são obrigados a fazer o serviço militar, Kim Kyung Mook é mantido em um solitária separado dos outros detentos por ser gay. No filme, é possível experienciar um pouco da claustrofobia de sua cela e reviver um pouco dos seus momentos de reclusão. Por outro lado, Faceless Things (que é o título em inglês desse filme), é uma mistura de 2 curtas que descreve encontros sexuais com direito a muita bizarrice. Enquanto o primeiro é um trabalho de ficção, o segundo é um documentário em que o próprio diretor (pasmem) caga na boca de um outro homem. Tem que ter muito estômago. Apesar do primeiro curta ter um diálogo minimamente interessante em que os personagens ainda levantam questões pouco relevantes, o segundo é um show de horrores que serve somente pra chocar e nada mais. Talvez o diretor tinha o desejo de passar alguma mensagem com isso. Se sim, ele falha miseravelmente. Se alguém quiser ver essa bizarrice, está disponível aqui: https :// ubu. com/ film/Kim _ faceless .html
Com ressalva a esse filme, recomendo os outros filmes do Kim Kyung Mook. Se aqui ele não havia se encontrado como diretor, seus outros trabalhos mostram um profissional muito mais capacitado com uma linguagem cinematográfica muito mais refinada. "Stateless Things" é de longe o meu favorito! "Grace Period", que eu ainda não tive a oportunidade de assistir, é um documentário que acompanha a vida de trabalhadoras sexuais na Coreia em meio a constante repressão do governo que criminaliza a prostituição.
A Female Boss
2.0 1Fui assistir ao filme pensando se tratar de uma protagonista feminina no poder, mas me deparei com uma obra claramente anti-feminista.
Enquanto no Japão Kenji Mizoguchi colocava as mulheres e suas situações opressivas em foco, o diretor coreano fez exatamente o contrário. A mulher que tem controle sobre sua própria vida é vista sob uma perspectiva negativa e, o fato de não optar pelo casamento tem impacto direto no seu caráter.
O longa é tão evidente nesta posição que no final, a chefe, que era vista por todos como uma mulher amarga,
se casa com o homem que a maltratou e, não o bastante, resigna ao seu cargo para cuidar da casa enquanto cede a seu marido sua posição de diretora.
Apesar de cruel, o filme emoldura um retrato da Coreia do Sul no pós-guerra e se traduz como uma importante ferramenta sociológica.. Mesmo com trabalhos revolucionários para a época, como “Obaltan” (1960) e “A Day Off” (1968), “A Female Boss” representa o senso comum dos coreanos em relação a posição da mulher na sociedade.
When We Pick Apples
2.0 1"When We Pick Apples" (Kim Yong-ho, 1971) é um típico filme do Realismo Juche, que impera no cinema norte-coreano. A arte no país deve servir ao proletariado e contar histórias para "elevar o pensamento" da nação quanto à luta de classes.
Aqui, temos uma contradição ideológica que é representada pelos pensamentos das duas irmãs. Enquanto a mais nova considera chocante o desperdício das maçãs que caem e apodrecem, decidindo salvá-las para o consumo de seu povo, a mais velha leva uma vida fácil e parece não se atentar aos problemas do pomar.
Esse contraponto de ideias ressalta a luta de classes entre a sociedade socialista e a capitalista: a primeira é representada através da preocupação com a propriedade pública e a segunda pelo comportamento egoísta que se atenta mais com interesses e conforto pessoais.
Como todos os filmes da Estética Juche devem ser concluídos politicamente através da linha ideológica do partido,
o filme carrega um final feliz. A irmã mais nova convence a mais velha sobre a importância do cuidado com a propriedade pública e juntas elas chamam atenção dos outros moradores da aldeia para o desperdício das maçãs, que pertencem ao país e ao povo.
Bala Perdida
4.0 4Obaltan, do diretor Yu Hyun-Mok, faz referência a uma Coreia do Sul pós-guerra destruída e governada pelo presidente Rhee Syngman (1948-1960), que se tornou cada vez mais autoritário e não democrático.
O filme centra-se na situação de Song Cheol-ho, um modelo de integridade confucionista, que apesar de sua diligência, encontra-se incapaz de salvar sua família da desintegração. A garantia ideológica confucionista de respeito social, bem estar econômico, unidade familiar, e a dignidade pessoal são despidas em um apocalipse distópico em que a regra capitalista do lucro se constrói como uma nova regra cultural.
Inspirado pelos sofrimentos da nação, o diretor Yu Hyun-Mok invoca um caráter neo-realista e força a nação a confrontar, ao invés de evitar, as realidades nuas de seus muitos traumas. Através da estética do real, Yu espera instigar a crítica e suplantar diálogos que são necessários para encontrar e buscar soluções pessoais, que podem então transformarem-se em solução nacionais de forma democrática.
Obaltan foi censurado em 1962 pelo novo governo de Park, e só foi recuperado anos depois, pelo Korean Film Archive. O filme é uma marca de resistência do cinema realista sul-coreano e resgata um passado marcado por opressões e muito sofrimento. Não é de se estranhar que a crítica especializada o categorizou como melhor filme da história do país: é um retrato vivo da sociedade coreana em meio a opressão.
A Day Off
3.8 2A Day Off é uma das marcas da resistência do cinema não só como arte, mas também como fruto de um período de repressões e dificuldades na Coréia do Sul. Anos mais tarde, o filme também é uma importante marca no processo de recuperação do passado cinematográfico coreano e da história conturbada do país.
Na história do cinema sul-coreano desde sua criação até os anos 1979, é
possível afirmamos que o regime político teve importante impacto na produção
cinematográfica. Ao estudar as implicações da censura no cinema sul-coreano,é possível reconhecermos que a regulamentação política foi a maior barreira para o seu desenvolvimento. Especialmente no período sob o controle do presidente Park Chung-hee (1961-1979), o poder estatal uniu grandes esforços para censurar eventuais discordâncias acerca do governo a fim de impor um esquema uniforme de opinião pública e política.
Partindo do interesse do governo coreano em controlar o cinema, podemos analisar que os filmes passaram por uma série de regulamentações a fim de delimitá-los aos interesses do governo. A tomada de poder de Park em 1961 intensificou a censura: ele promulgou a Motion Picture Law em janeiro de 1962, a primeira lei relativa ao cinema decretada por um governo coreano. A imposição tinha o principal objetivo de afastar produtores de filmes independentes, forçando a indústria em um sistema de estúdio estilo Hollywood que era mais passível de controle estatal.
Para isso, o governo limitou o acesso aos meios de produção cinematográfica para garantir que os valores do partido se tornassem a ideologia dominante. Assim, todas as produtoras licenciadas deveriam cumprir exigências para funcionar legalmente. Além disso, a reforma de Park estimulou o cinema a seguir os valores da democracia e nacionalismo coreanos.
Sob o artigo um da Film Police Measure, que especifica que o cinema deveria realizar objetivos políticos e sociais designados pelo regime, a organização The Motion Picture Promotion Corporation (MPPC) regulava a quota de importação, obrigando as empresas a fazer quatro filmes para obter uma licença de importação. Ademais, a corporação legitimava suas estipulações através da Lei de Segurança Nacional que proibia atividades anti-estado.
Dessa maneira, a censura cinematográfica se concentrava nos filmes que pudessem perturbar a ordem existente e prejudicasse a dignidade da Coreia como nação. Logo, produções que elogiassem a Coreia do Norte ou a ideologia comunista, assim como as que criticavam o partido ou continham violência ou sexo, eram reprovados.
As medidas do presidente Park, portanto, além de limitar a produção e expressão cinematográfica, comumente aplicavam punições para os que subvertessem a regra, incluindo multas sobre os produtores, revogação de circulação de filmes, prisão de cineastas e até mesmo a anulação das produtoras responsáveis.
Dentre os diretores que sofreram perseguição por parte do governo, concedemos destaque a Man-Hee Lee. O realizador teve problemas com as autoridades mais de uma vez, e com o filme Seven Female POWs (1965), no qual retratou norte-coreanos resgatando enfermeiras sul-coreanas dos chineses durante a guerra da Coreia, teve sua prisão decretada. Três anos mais tarde, com A Day Off (1968) o diretor foi novamente censurado, dessa vez sem prisão.
A Day Off (1968) conta a história de um jovem casal sul-coreano dos anos 1960, que, em meio a ditadura de Park, enfrenta problemas econômicos e morais.
Heo-wook e Ji-yeon ainda não se casaram e, em um final de semana, descobrem que terão um filho. Sem condições de criar uma criança, o casal se vê forçado a aborta-la. Após visitarem o médico e serem avisados que Ji-yeon está em uma gravidez de risco, o dilema moral escapa de suas mãos.Após o procedimento, Heo-wook descobre que Ji-yeon não resistiu e faleceu.
Nunca lançado nos cinemas, A Day Off somente foi exibido ao público pela primeira vez 37 anos depois, na mostra do Korean Film Archive em 2005. Durante o período da ditadura, o governo sul-coreano tentou, por meio da repressão artística, apagar pensamentos e manifestações de seu povo. Lacunas criadas por esse silenciamento voltam à tona anos maistarde, por meio de tentativas de recuperação e acesso ao passado.
4:30 - Solidão a Dois
4.0 23Achei interessante como a trilha sonora, logo no início, dá tom ao resto do filme. Do rádio, conseguimos ouvir: “tristeza e mágoa me cercam... todos os dias rezo para que a solidão seja expulsa [...]”.
Adiante, com o desenrolar da trama, observamos Xiao Wu, que acorda quase que religiosamente todas as noites, exatamente às 4:30 da manhã, para observar Jung, um homem coreano que está hospedado em seu apartamento. O menino, a cada visita, constrói um relacionamento virtual com o homem, encontrando conforto para sua vida solitária.
Mas o ponto alto do filme não reside na narrativa, mas sim como ela é descrita através das imagens. Escasso de diálogos, Royston Tan nos apresenta dois personagens distintos conectados pela solidão e melancolia que assolam seus cotidianos. Suas performances se destacam e, a cada sequência, conseguimos capturar a profundidade emocional através de seus olhares e linguagem corporal.
Os planos nos carregam através do longa nos proporcionando um estado contemplativo. As cores, o som, a luz, o enquadramento e a espacialidade dos objetos entram em harmonia com a condição dos personagens, e o diretor, assim, transpõem o sentimento de solidão para o cinema, quase nos lembrando um filme de Tsai Ming-Liang.
A Broad Bellflower
2.5 1Não tenho certeza se os diretores desse filme são Shin Sang-ok e Choi Eun-hee. Pelo que pesquisei, esse filme é do diretor Kyun Soon Joo, que dirigiu unicamente esse longa.
Mas fora isso, "A Broad Bellflower" é um prato cheio para entender um pouco dos filmes da Coreia do Norte, que é um país tão fechado para o resto do mundo. Eu diria que o cinema norte-coreano, sem contar o cinema da União Soviética, é um dos objetos mais provilegiados para se pensar a relação entre cinema e política e as diversas configurações do realismo socialista.
A grosso modo, o realismo socialista nasceu em meados da década de 1930 na União Soviética com a prerrogativa de delimitar o cinema a uma forma de educar o proletariado através da doutrina socialista e do conceito da guerra de classes. Contudo, apesar de ter surgido como um método que deveria superar o realismo crítico (como o neorrealismo italiano), que se abstraia em denunciar os problemas da sociedade burguesa sem propor uma perspectiva de transformação, e o naturalismo, que apenas descrevia determinado setor da sociedade, ele se degenerou num “envernizamento da realidade”.
Claro que essa é uma visão simplória do que realmente foi e pode ser o realismo socialista. Depois da União Soviética, países como Vietnã, Albânia, China e Coreia do Norte adaptaram a ideia às suas diferentes realidades. No caso da Coreia do Norte, por exemplo, identificamos traços dessa estética mesclados à ideia do Juche, que é a ideologia dominante nas artes e em toda estrutura governamental, militar e política do país.
O Juche, apesar de ter nascido através das ideias marxistas-leninistas, adapta a filosofia política à realidade coreana. Sinteticamente, o Juche (que pode ser traduzido como “autossuficiência”) propõem que o proletariado é o próprio mestre de sua revolução, sendo ele o responsável pela materialização de sua independência. Nesse sentido, a massa deveria alcançar a revolução através de uma independência geopolítica, autossuficiência bélica e econômica, voluntarialismo, nacionalismo e, acima de tudo, culto à personalidade de Kim Il-sung e sua família.
O Juche impera em todas as áreas da Coreia do Norte e, por isso, não seria diferente com o cinema. A estética Juche no cinema tem suas raízes principalmente nos escritos de Kim Jong-il sobre o papel do filme na sociedade coreana.
Curiosamente, o segundo líder norte-coreano tinha grande interesse pelas artes cinematográficas e, por conta disso, dedicou parte de seu trabalho definindo qual seria a estética dominante - e única permitida - nos filmes do país. Em seu livro “On The Art of Cinema” é possível observamos uma série de orientações acerca de como seria o filme ideal: endereçado às massas, o cinema deveria cumprir um papel social de educar o proletariado quanto a luta de classes e a ideologia Juche.
Essas características se mostram bem claras ao assistimos "A Broad Bellflower". Despido de um cuidado estético e repleto de zoons - que me doíam a cabeça -, o longa é feito pelo governo diretamente para às massas. A narrativa é simples e lembra a estrutura canônica, com agente causal, início, meio e fim. As diversas inserções propagandísticas, que são usuais em todos os filmes norte-coreanos, se anexam a histórica quase como um argumento, onde no fim, tudo se resume a benéfica revolução socialista, que cai como uma luva para salvar toda a sociedade norte coreana dos males do capitalismo.
Tem disponível no Youtube.
O Cheiro do Papaia Verde
3.8 53 Assista Agora“O Cheiro do Papaia Verde” foi o primeiro filme do cinema vietnamita que tive a oportunidade de assistir. O diretor Anh Hung Tran resgata o Vietnã de sua infância e nos apresenta imagens de um país tranquilo, distante e intocado pela guerra que devastou seu território entre 1955 e 1975.
O filme, que acompanha Mui e a família a quem ela serve, se distancia dos problemas políticos para transferir para a tela questões morais e filosóficas. Para isso, o diretor franco-vietnamita reúne uma série de pequenas mudanças que tem como papel principal (re)organizar a vida dos residentes da casa. Ao mesmo tempo, o longa tem como plano de fundo a existência de Mui, que é moldada pelas tarefas diárias e o trabalho doméstico.
Mui é uma observadora e, gradualmente, enquanto floresce em sua puberdade, aprende a se comportar quase como um bom espírito, que protege, guarda e organiza o lar de seus devotos. Mas o ponto principal é como isso é narrado pelas imagens. Anh Hung Tran nos apresenta planos sequência milimetricamente organizados, que passeiam pela casa tendo a arquitetura vietnamita e tecidos de seda como suporte para emoldurar os personagens na tela, tornando a mise-en-scène um dos pontos mais altos da obra.
O ritmo do filme é quase como uma poesia visual e, sua narrativa, longe da poética aristotélica, pode decepcionar os que ainda sentem a necessidade de uma estrutura clássica, com um protagonista como agente causal e atos demarcados. Indo em direção divergente, o diretor quase se apoia num realismo sensorial, e os afetos causados no filme são subjetivos a cada indivíduo que o assiste.
Assim, o desenvolvimento da narrativa a partir de algum conflito ou problema cede espaço para uma estética de fluxo que privilegia imagem e som em seu estado mais puro, onde o pensamento dialético do cinema narrativo dá lugar a contemplação. Por isto, eu arriscaria dizer que os planos sequência, a grande atenção aos detalhes, a preocupação intensa com a mise-en-scène e a quase inexistência de uma narrativa me lembram o cinema realizado por outros diretores asiáticos como Tsai Ming Liang, Apitchapong Weerasethakul, Abbas Kiarostami e Hou Hsiao-Hsien.
Para além dessas características, outro tópico que chama minha atenção é o título da obra, que ao mesmo tempo que remete à infância do diretor, torna o mamão uma metáfora para o desabrochar de Mui. Para aos que não sabem, em alguns lugares da Ásia o papaia é considerado um legume quando está verde e, acredita-se que somente quando ele chega em sua fase madura ele se transformará em uma fruta. Semelhantemente segue a evolução de Mui na fina narrativa, como um mamão verde que se tornará um fruto doce após sua fase de crescimento.
Imperador Ketchup
3.7 48Assisti a “Imperador Ketchup” há algumas semanas e o filme continua reverberando em minha mente. Existe um paradoxo que faz com que eu me sinta aflito e, ao mesmo passo, maravilhado.
É certo que o filme se apoia em tendências experimentalistas e na revolução sexual e política japonesa dos anos 1970 e, por isso, era passível esperar certa perturbação. Mas, ao mesmo tempo, as situações controversas mostradas nos planos confrontam a normalidade e nossa ideia de moral.
Contudo, no fim, a genialidade dessa obra se encontra justamente no desconforto que ela causa. Ora, se um filme experimental não abalar o senso comum e a linguagem cinematográfica dominante, ele não alcança seu objetivo de subversão.
O cinema deveria atuar, por vezes, como um observador imparcial das mais variadas facetas da humanidade e não apenas como uma testemunha que se conforma com os modos convencionais de pensamento. E é nesse ponto que “Imperador Ketchup” se apoia.
Shuji Terayama, mesmo sendo ineficaz em invocar alguma mudança social, consegue ser revolucionário pois define os problemas sociais fora dos modos de pensamento convencional. Além disso, o diretor é capaz de capturar desses problemas uma interpretação que ilumina fatos, costumes e injustiças construídas socialmente.
Madam White Snake
3.4 2Temos essa e outras pérolas do cinema sul-coreano graças ao trabalho de restauração do Korean Film Archive que, entre outros trabalhos, vem dispobilizando obras que teriam sido perdidas no tempo. Inclusive, a quem possa interessar, a organização tem um canal no youtube com um acervo de filmes bem amplo: https://www.youtube.com/channel/UCvH6u_Qzn5RQdz9W198umDw
Ademais, é por essa iniciativa que tive a oportunidade de adentrar no mundo de Shin Sang-ok. O diretor tem sua filmografia produzida em três períodos: o primeiro engloba os filmes feitos na Coreia do Sul (1926–1978); o segundo reune obras realizadas na Coreia do Norte durante o sequestro orquestrado por Kim Jong-il para alavancar a indústria cinematografica do país (1978–1986); e, finalmente, o último período engloba os trabalhos estudanenses do diretor (1986–2002).
Em termos de qualidade da linguagem cinematográfica, se destaca a primeira parte de sua filmografia. Não que não existam outros pontos a serem discutidos em outros períodos (aliás, o período norte-coreano abre espaço para diálogos acerca de cinema, arte e política e das configurações do realismo socialista no país), mas é aqui que Shin se torna conhecido como um grande realizador.
Em Madam White Snake, por exemplo, somos apresentados com uma transposição do mito chinês "A Cobra Banca". Assim como outras obras do início do cinema de horror sul-coreano, Shin tem influências do cinema hollywoodiano no que diz respeito à estrutura narrativa e, principalmente, do cinema de horror japonês. Vale lembrar que foi somente na década de 40 que a Coreia deixou o colonialismo japonês e ainda nos anos 50/60 sofria grandes interferências da cultura estudanense.
Assistindo a esse filme, por exemplo, é visível a semelhança com os filmes de horror produzidos por Kenji Mizoguchi. Aqui, destaco principalmente "Contos da Lua Vaga" (1953), que nos traz a misteriosa Lady Wasaka como um ser demoníaco.
Assim, não só os temas se aproximam, mas como também as escolhas estéticas de Shin se assemellham às usadas por Mizoguchi. A montagem, por exemplo, trabalha com sobreposições de imagens que, ao serem usadas, servem como efeito especial, potencializando o poder da linguagem cinematográfica na construção do horror.
A Rua da Vergonha
4.2 25Nesse filme temos a oportunidade de dar um último olhar sob um dos temas mais recorrentes nos trabalhos de Mizoguchi. Comumente tratando das diversas problemáticas e dificuldades que circundam o mundo das mulheres no Japão, Mizogochi se difere de outros diretores, que costumavam romantizar suas personagens femininas e afasta-las da realidade. Ao contrário, Kenji proporciona um nuance na forma como as mulheres lutam – e sofrem – para sobreviverem em uma sociedade dominada pelos homens.
Esse, inclusive, é um dos pontos que mais merecem ser destacados em seu último filme. Indo em direção contrária a melodramatização dos fatos, o diretor preferiu se apoiar em um viés mais realista, tratando de problemas concretos vividos pelas prostitutas no Japão pós-guerra. Vindas dos mais diversos backgrounds, as mulheres que trabalhavam na Dreamland – como é chamado o prostíbulo – viviam cercadas de problemas econômicos, morais e familiares.
Nessa perspectiva, Mizoguchi demostra como a prostituição era cruel para com elas, mas, por outro lado, confirma que a vida delas não tem outra perspectiva se não essa. Ora, como elas iriam comer, sustentar suas famílias em meio àquela sociedade? Quão desastroso seria uma lei antiprostuição?
Não nos resta dúvidas em qual lado Mizoguchi está.
Quando Hanae encontra seu marido que está prestes a se suicidar, por exemplo, ela diz: “Ninguém pode acusar-nos de sermos pessoas más. Mas sem vender meu corpo não poderíamos viver. Não poderíamos nem comprar o leite para o bebê! Não vou me render, eu não penso em desistir. Penso em seguir adiante”.
Para além do cunho social do filme, Mizoguchi tem seus planos cuidadosamente planejados, mantendo o enquadramento conforme a câmera se move e acompanha os personagens. A mise-en-scene, apesar de o filme se aproximar de um realismo, faz com que os movimentos dos personagens e da câmera pareça natural, tornando as ações que compõem a narrativa quase que orgânicas.
No entanto, se compararmos aos seus filmes anteriores, não encontramos uma estética tão meticulosa. Isso, porque em geral, o lado visual dessa obra não se traduz como sendo uma característica tão importante. O foco de Mizoguchi aqui é o social.
Nanayo
3.9 19 Assista AgoraAos poucos estou conhecendo o trabalho de Naomi Kawase e ficando hipnotizado com seu cinema. Há alguns meses tive a oportunidade de assistir à ‘A Floresta dos Lamentos’ e fiquei num estado de contemplação com toda a estrutura que ela cria: desde a narrativa lenta (e sublime) à câmera bamba e inocente sob os personagens. O filme era de uma sutileza tão grande que resolvi tirar um tempo para reflexão antes de conferir suas outras obras.
Em ‘Nanayo’, esse sentimento ainda perdura. A narrativa é tímida e apresenta uma estrutura de flutuação, onde os enquadramentos e movimentos de câmera de Naomi nos carregam pela trama como ondas no oceano, tudo num estado contemplativo. A história é simples ao extremo: não sabemos muito sobre a vida das personagens, nem de seus objetivos e perspectivas. Todavia, essa condução e desenvolvimento geniais da diretora funcionam como um ótimo artifício e vão criando reflexões potentes acerca das relações humanas, o que torna tudo uma inexorável crônica sobre a (in)comunicabilidade e barreiras linguísticas.
Dentre todas as características de Naomi, o que mais me chama atenção é sua capacidade de transformar todo o filme num estado de espírito, onde o deslocamento e a sensação de pertencimento caminham de mãos dadas. Ninguém sabe a língua do outro, mas suas relações começam a mesclar-se para além da formalidade.
A sequência onde Toi some consegue ilustrar isso muito bem: é o ápice da barreira que se forma entre as personagens, sendo que ao mesmo tempo a busca pelo garoto é tudo que os une.
De resto, basta aceitar que precisarei de mais um tempinho para absorver essa experiência antes de me encontrar em outros de seus filmes
Baraka - Um Mundo Além das Palavras
4.5 136Baraka (Ron Frickea, 1992), palavra de origem Sufi que pode ser traduzida como “benção”, “sopro” ou “essência da vida”, é um documentário que propõe um retrato do nosso planeta. Não suportando diálogos em sua trama, o filme é conduzido por um álbum vertiginoso de imagens ao redor do globo, que se mescla a sons ambientes, conversas e cantos. Através de planos surpreendentes, que funcionam como um espelho perante a vastidão da Terra, o longa (re)constrói a variedade da natureza em sua mais bela e cruel forma, reproduzindo civilizações indígenas, rituais religiosos, destruição, pobreza, vida urbana, ruínas antigas e guerras. Em Baraka, o diretor perpassa por uma intensa busca para que cada quadro consiga capturar a grande pulsação da humanidade, interligando, dessa forma, nossas consciências e sentimentos numa só frequência.
Muito mais que somente um documentário, é necessário encarar a película como uma experiência sensorial de reflexão espiritual-artística que fala ao espectador de qualquer lugar ou de qualquer crença. Sendo assim, é um filme dialético, que depende da percepção e interpretação de quem vê. De modo não-linear e não-verbal, Baraka consegue discutir o sagrado e o humano; a ordem natural e a entropia; a santidade e o materialismo. É como se as energias universais resolvessem se debruçar e traçar um paralelo entre as suas diversas criações, transcorrendo por todo o planeta e construindo um olhar livre de julgamentos de seu yin e yang.
Sua estrutura poético-imagética nos possibilita, portanto, variadas leituras. E é nesse caminho que podemos identificar a hipótese de Gaia, de James Lovelock, como um dos reflexos desse prisma. Através de uma perspectiva que combina pesquisa científica e metafísica, o autor aponta que a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo formam um sistema autorregulador com capacidade para manter o planeta sadio por meio do controle do ambiente químico e físico. Essa estrutura, que age como um organismo vivo, é chamada de Gaia, em referência à deusa grega Terra.
O postulado de Gaia é uma hipótese que fornece suporte científico para a interconectividade da vida em nosso planeta. Uma vez que a Terra responde a influências externas, é possível dizer que ela incorpora uma forma de inteligência.
Baraka, da mesma forma, é um filme sobre a vida, um registro da humanidade e sua relação com seu lar. É livre da narrativa formal e diálogo, mas nunca vazio de emoção ou significado: é poesia da vida cotidiana, despertar para a vida e reconhecimento da desgraça de se estar indo rumo ao nada. Não importa quem você seja ou onde viva: você também está em Baraka.
O Segredo de Mary Reilly
3.3 112 Assista AgoraPara falar de Mary Reilly, primeiramente devemos voltar ao texto que inspira o livro: "O Médico e o Monstro", escrito em 1886, por Robert Louis Stevenson. A história é contada em relatos, através da perspectiva do advogado Utterson, que vai desvendado o caso ao decorrer da obra.
Utterson, advogado e amigo do Jekyll, recebe um testamento do Jekyll oferecendo todo seus pertences e dinheiro para um tal de Sr. Hyde, da qual ele não conhece e nunca ouviu falar. Ele começa a investigar, conhece o Hyde e não se agrada nada com o que vê, pois ele é reflexo do que a sociedade vitoriana abomina. Um ano se passa e um assassinato, cometido por Hyde, acontece. Mas ele some sem deixar rastros. Depois de um tempo, ao ser chamado pelo empregado do Dr. Jekyll. Utterson se depara com Hyde morto no laboratório de Jekyll e descobre toda a verdade através de uma carta escrita pelo próprio doutor.
A obra foi tão aterradora para a época, que dela vieram diversas transposições. No cinema a primeira versão foi de 1908, de Otis Turner. Depois dela vieram diversas outras. Além do cinema, muitas outras mídias fizeram releituras e tomaram como inspiração a história do Médico e o Monstro. Esse é o caso do livro escrito em 1990 por Valerie Martin, que foi transposto para o cinema Stephen Frears, 1996.
O filme consegue manter quase que fielmente os acontecimentos do livro (apesar de não ser uma característica importante para avaliarmos uma transposição). O livro, não traz muitos pontos adicionais para a narrativa em relação ao livro que o inspira. Temos a mesma história, só que contada através da perspectiva de outra pessoa, a empregada Mary Reilly, que não aparece no livro de Stevenson. O filme continua com essa perspectiva, mostrando Mary desvendando o que acontece ao longo da história. O filme é construído através dos olhares dela e de suas percepções.
Quando o personagem Jekyll aparece no texto, os ambientes quase sempre são fechados: ele sempre está dentro de casa. Frears seguiu o mesmo. O que é bastante interessante, porque a casa, simbolicamente representa sua própria mente: o fato de Jekyll ter uma entrada em sua residência por onde transita Mr. Hyde é uma alusão ao seu subconsciente, lugar onde “habita” esta outra personalidade que se apossa do seu consciente quando toma uma fórmula.
Outro ponto interessante é em relação ao personagem de Hyde. No livro, ele é um personagem construído para ser totalmente detestável: ele é grotesco, sem boas maneiras, violento e sinistro. No filme, como oposto do Dr Jekyll, ele continua mantendo essas características, mas o diretor optou por mostrar um outro lado mais “cativante” ao personagem que só Mary tem a capacidade de captar.
Assim, o cineasta continua emulando as estratégias do gótico, mas mescla o estilo gótico com um toque de romance entre Mary e Hyde, criando um jogo de sedução entre eles. O diretor aproveita-se da construção de Mary, que teve uma vida difícil e desde pequena conhece o mal das pessoas e da sociedade, criando uma fascinação estranha dela para com Hyde.
Millennium Mambo
4.0 44Assisti “Millenium Mambo” pela terceira vez em menos de dois meses, e a cada momento que vejo, o sentimento de vazio e incerteza vividos por Vicky crescem mais e mais em mim. Mambo é um filme que retrata a juventude urbana de Taipei, que se enclausura em bares, clubes e vive relacionamentos conturbados e sem significados. Para mim, Hou Hsiao-hsien, nesse filme, se mostra um dos melhores diretores da cena do cinema asiático contemporâneo. O taiwanês, aqui, demonstra um pulso muito mais vívido do que suas outras obras mais recentes: nesse longa, o sangue corre rápido através dos enquadramentos repletos de luminosidade, construindo uma fotografia que é impossível de transpassar por nossos olhos de forma despercebida.
O filme é desorientador, experimental e dissonante: a maioria das sequências realizadas por Hou são feitas em planos médios, em uma câmera quase autônoma que explora os espaços e personagens milimetricamente e paulatinamente. O espectador é direcionado por “Millenium Mambo” em tomadas lentas, em uma estrutura de flutuação. Por isso, para captar os pormenores que Hou Hsiao-hsien nos transpassa, sinto que devemos mergulhar nas águas profundas de seus quadros, nos deixando simplesmente levar pelo fluxo das imagens. Dessa forma, o diretor controla nossos olhares e nos revela que ele próprio parece estar em processo de descobrimento da trama ao longo do próprio filme. Mambo não deixa a desejar em seu roteiro porque simplesmente não propõem nos fazer experienciar uma história nos moldes clássicos, com começo, meio e fim, e outras características predominantes, principalmente, no cinema comercial hollywoodiano.
Dentre as outras particularidades que vemos ressoar no longa, devemos incluir a música que anda juntamente com os ciclos e cronologia espiral que o diretor cria. As cenas mais belas de Millenium Mambo acompanham trilha sonora, e dentre elas, não consigo deixar de destacar a cena (que para mim é uma das mais primorosas aberturas do cinema) em que Vicky, liricamente, anda sob as luzes neon em câmera lenta por um túnel que mais parece uma antecipação do vazio que está por vir. Outro ponto fascinante é a narração feita pela própria personagem dez anos mais velha, que potencializa o sentimento de desorientação perante a vida em que ela –e nós- está mergulhada.
Vôo Noturno
4.2 33Acho admirável quando o cinema funciona como ferramenta para compreender aspectos sociais. O filme chama atenção justamente por tratar a homossexualidade, a aceitação e a saída do armário em um país tão conservador como a Coreia do Sul. Num lugar onde sexo ainda é considerado um dos maiores tabus (a educação sexual coreana é tão falha que o país ainda apresenta poucas pessoas usando camisinha, o que leva ao alto contágio de doenças sexualmente transmissíveis, e uma falta de conhecimento de métodos contraceptivos, o que resulta em uma enorme taxa de abortos clandestinos), a população LGBTI e problemas vivenciados por ela encontra-se totalmente invisibilizados.
É interessante também como o filme mescla a temática LGBTI com outros problemas sociais vividos pelos jovens sul-coreanos, como a questão da pressão externa para a obtenção de notas extremamente altas -e quase inalcançáveis-, o que tem levado muitos estudantes ao suicídio. O filme dá uma aula sobre como a sociedade coreana tem levado a educação a níveis extremos, esquecendo-se de outros âmbitos como o combate a opressões, bullyng e homofobia.
Lanternas Vermelhas
4.3 200Lanternas Vermelhas foi o primeiro filme de Zhang Yimou que assisti e de cara fiquei impressionado com a destreza técnica com que o diretor conduz o filme. Vi aqui um completo domínio da mise-em-scene, que se mescla com um senso de estética quase que impecável. Yimou parece preocupar-se com cada pormenor do filme, tornando-o quase um quadro vivo: os enquadramentos formam composições fixas e simétricas em meio a arquitetura chinesa antiga, combinada com uma direção de arte que é atenta ao vestuário das personagens e cenários que habitam; os gestos das personagens são conduzidos através de uma cultura formal milenar, e marcada pelo confucionismo que reina em alguns países orientais e demarcam pirâmides hierárquicas; a fotografia estabelece o vermelho como marca que simboliza a trama, desenhando um contraste entre o brilho que é emanado da casa da esposa escolhida pelo mestre e a escuridão em que as outras mulheres são confinadas a viver a noite.
Atenção especial para as lanternas vermelhas e sua importância na construção dramática e visual. Elas conduzem todo o ritual que é mostrado no filme,
desde quando cintilam sua tonalidade, marcando a preferida da noite, até quando são cobertas por tecidos negros quase como um sinal de luto. As lanternas que iluminam a casa da concubina eleita é a alimentação do ódio entre as mulheres, tornando-se símbolo desse ciclo interminável em que vivem e do final trágico inevitável a que estão impostas.
Zhang Yimou, ao longo de todo o filme,
não mostra o rosto do mestre. Quando aparece, sempre o vemos de costas, por trás de véus, ou enquadrado de forma distante,
O Livro de Cabeceira
3.8 78 Assista Agora“O Livro de Cabeceira” (The Pillow Book; França/Holanda/Luxemburgo/ Reino Unido, 1996), é um longa-metragem do diretor britânico Peter Greenaway. A história gira em torno de Nagiko, filha de um escritor japonês. Seu pai, durante sua infância e adolescência, escreve versos sobre a criação do homem por deus em seu rosto e costas. Pela tia, a menina é apresentada ao “Livro de travesseiro” de Sei Shonagon, uma dama da corte na Dinastia Imperial Japonesa do século X.
O presente texto pretende analisar a plástica e a estética do filme exemplificada pela sequência do aniversário de seis anos da protagonista.
De início, a sequência retoma o ritual que seu pai fazia em seus aniversários e posteriormente, enquanto a garota treina caligrafia, uma voz narra que quando ela fez seis anos prometeu à tia que teria um diário, um “livro de travesseiro” de sua autoria. Trata-se da voz da Nagiko adulta, uma mulher que vive em busca de amantes que sejam bons calígrafos e consigam escrever sobre seu corpo, mantendo-a perto dessa necessidade do contado da tinta com a pele que aparece ao fim da sequência. Após a narração de Nagiko, uma voz, que seria de sua tia, lê “A lista das coisas esplêndidas” de Sei Shonagon. A menina vai ao encontro de seu pai que estava visitando seu editor em seu também aniversário. Assim, o espectador é apresentado ao ambiente de uma editora e ao futuro marido da protagonista.
A montagem do filme é sortida por recortes, sobreposições e superposições de imagens nas cenas. O diretor usa tais recursos para enaltecer a caligrafia como um discurso fílmico e reforça essa ideia ao introduzir as citações faladas, aliando, dessa forma, passado e futuro, aspecto e conteúdo. Ou seja, a palavra, ao ser apresentada escrita nos planos, interpõe com a que é falada, produzindo ritmo ao mesmo tempo que dialoga com as imagens que são mostradas, interligando a Nagiko adulta, a do passado e a mulher chamada de Sei Shonagon, sendo essa quem condiciona tal ligação.
Peter Greenaway considera-se um “catalogador”. Como forma de organização, tem-se na construção narrativa a utilização de algumas listas do “livro de travesseiro” original citada pela tia da protagonista. Tais intervenções não só organizam como preenchem o texto fílmico e quebram o ritmo que vinha antes, produzindo, como já dito, um outro ritmo. Trata-se nesse caso de um momento de contenção em que se evidencia por vezes uma não sincronização dos elementos falados com as legendas.
A própria sequência da qual se analisa pode ser vista como um “desacelerador” de ritmo até pelo efeito sonoro de rompimento acústico que é colocado ao final da sequência anterior. A inserção da citação sobre “A lista das coisas esplêndidas” da qual é feita pela tia preenche a narrativa.
Enquanto Nagiko está indo para a editora, se mesclam sobreposições da página do livro, superposição de um pequeno quadro no centro com a referência do que está sendo falando e que depois toma o lugar da imagem da menina para se sobrepor com a página do livro.
É importante notar que cada elemento, seja ele verbal, sonoro ou visual, estão em harmonia mesmo nessas diferentes colagens. Tratando-se de visualidade, percebe-se que tudo é bastante bem escolhido e costurado e se pode exemplificar a passagem final da sequência em que o pai diz que vai publicar um livro e que recebeu um presente do editor: uma nota de yen é sobreposta. O diretor opta por representar a vivência de Nagiko no Japão através do preto e branco, porém alguns objetos coloridos são posicionados em cena, como o próprio livro de Shonagon e a superposição da folha de lição de Nagiko que é azul, fazendo referência a uma parte da lista lida pela tia que diz que “qualquer coisa tingida de azul-escuro é esplêndida”.
Greenaway compartilha a ideia de John Cage de que a arte, consequentemente o cinema, só tem a ganhar ao se introduzir algo novo. Em vista disso, não há como não lembrar as vanguardas experimentais que revolucionaram os anos 20. Faz-se necessário, para essa análise, destacar o formalismo russo, visto que em dado momento da sequência, quando demonstra-se o ambiente editorial, um recorte é utilizado: a tela divide-se em quatro partes superpostas que descrevem ações acontecendo ao mesmo tempo. Também pode-se referenciar Sergei Eseinstein em seus estudos traçados entre o paralelo da imagem do cinema e um ideograma, contudo essa representatividade é feita pelo cineasta inglês de forma quase literal. Finalmente, segundo Greenaway, para se contar uma história de forma eficiente é preciso ser um escritor, portanto não há homenagem maior a essa arte milenar do que “O livro de cabeceira”.
Sem Fim
3.8 12 Assista AgoraDirigido por Krzysztof Kieślowski, Sem Fim (Bez Konca, 1985), narra a história de Ulla (Grazyna Szapolowska), uma tradutora viúva que perdeu seu marido e descobriu que o amava mais que do imaginava. No início temos o advogado Antek (Jerzy Radziwilowicz), marido de Ulla, anunciando detalhes de sua morte. O personagem não chega a ser um narrador oculto, contudo, serve como um entrelaçador das duas narrativas paralelas quando as acompanha. Ao mesmo passo em que Ulla deseja superar a tragédia e conseguir lidar com a perda, ela se encontra envolvida com o caso em que seu marido trabalhava, que dizia respeito à prisão de um integrante do “Solidariedade”, segunda história apresentada no longa.
A carreira de Kieślowski pode ser dividida em duas partes, das quais a primeira se refere às produções exclusivamente polonesas, enquanto a segunda se dá pelo estabelecimento de uma parceria com o produtor franco-romeno Marin Karmitz, fundador da companhia MK2. A última rendeu-lhe o lançamento de suas obras mais vivamente aclamadas: A Vida Dupla de Véronique (La double vie de Véronique, 1991), e a famosa Trilogia das Cores: A Liberdade é Azul (Trois couleurs: Bleu, 1993), A Igualdade é Branca (Trois couleurs: Blanc, 1994) e A Fraternidade é Vermelha (Trois couleurs: Rouge, 1994). Enquanto a primeira abriga, igualmente, outras grandes obras, das quais incluem-se Sem Fim (Bez Konca, 1985), Acaso (Przypadek, 1981), A Cicatriz (Brizna, 1976) e Cinemaníaco (Amator, 1979).
Em sua primeira fase, Kieślowski foi influenciado pelo sistema da época, abordando problemas como a burocracia governamental atrapalhando a economia do país, as greves e principalmente o cotidiano das cidades e cidadãos poloneses de uma maneira bastante direta. Realizando suas produções após a segunda grande Guerra, o diretor vivia em uma Europa em que a Cortina de Ferro ainda estava estabelecida, ou seja, ainda havia a segregação dos países influenciados pelos Estados Unidos, e do outro lado, das nações que seguiam a União Soviética, que era o caso da Polônia. Dessa maneira, o diretor critica o governo polonês realizando reflexões acerca de seu funcionamento através de suas obras, inserindo muita das vezes, um contexto político.
Sem fim não escapa desse ponto. Vivenciando um sistema extremamente repressivo, o personagem Derek (Artur Barcis), ex-cliente do marido de Ulla, que era advogado, luta contra um governo restritivo em oposição à lei marcial da Polônia, que durou de 1981 a 1983 e causou a morte de centenas de ativistas da oposição. Tal regime baseava-se em anular alguns dos direitos fundamentais do cidadão, como o direito de ir e vir, e principalmente o de se reunir e de manifestar opiniões contrárias acerca do governo. Decretou-se também que qualquer indivíduo que realizasse práticas a favor da conspiração opositora seria preso e enfrentaria um julgamento sumário por traição à nação, que poderia acarretar em até cinco anos de confinamento. Nesse sentido, Derek enfrenta um julgamento por tornar-se organizador de uma greve, opondo-se ao sistema.
Apesar de seu cunho político bastante explícito, pode ser árduo para o espectador que não está diretamente ligado ou vivenciou a época entender essa parcela da narrativa, pois Kieślowski não explica o contexto histórico. Isso porque não pretendia-se que Sem Fim fosse divulgado nos demais países europeus ou no mercado estadunidense, tornando-se mais acessível somente posteriormente à queda da Cortina de Ferro e dos governos totalitários do leste europeu.
O desempenho civil no filme de Kieślowski é mesclado com uma incursão no território sobrenatural juntamente com um aprofundamento dos sentimentos humanos. Isso porque o personagem de Antek –subtende-se que é seu espírito- perpassa toda a trama, observando as situações em que sua mulher enfrenta e seus pensamentos menos externalizados. Apesar de afirmar que não filma metáforas, o diretor cria situações e conexões em que o espectador consegue ler através do seu próprio olhar. Um paradoxo foi formado, pois essa inserção ao meio sobrenatural e o constante contato que a protagonista mantém com seu marido –através das sessões promovidas pelo hipnotismo- pode subtender que os fios sociais excluídos pela lei marcial continuam intactos noutra dimensão. E isso pode ser visualizado quando no começo, Antek indica esse contato prévio com Ulla.
No início da primeira sequência,
Antek é filmado sentado em uma cadeira contando detalhes de sua “passagem” enquanto sua mulher adormece, e logo, quando a câmera deixa de mostra-lo, com um plano médio em Ulla, e após voltar a mostrar toda a extensão do quarto, ele some. Tal fato ocorre porque ele é quem manterá esse laço vivo, e somente durante as sessões de hipnose, em momentos em que um cão o vê, ou quando Ulla comete suicídio no final do roteiro, é que sua presença será sentida. Devemos ressaltar que somente quando seu antigo cliente é liberto após o julgamento, fazendo uma analogia, é que os laços de Antek e Ulla se reavivam novamente.
Essas conexões de Kieślowski tornam Sem Fim uma de suas mais poéticas obras. Os sentimentos da protagonista feminina, suas relações e principalmente a conexão entre Ulla e Antek é uma das causas disso. Não conseguimos identificar se a protagonista possui a capacidade de sentir o marido a todo instante – assim como ele sente ela. Não obstante, ao mesmo tempo ela constata-se impulsionada a ter um envolvimento com o caso de Derek. Portanto a estrutura define as conexões entre os personagens e suas histórias, o que torna a trama frágil nesse sentido.
Ainda durante a primeira sequência, percebemos a quebra da “quarta parede” existente no cinema. Na narrativa clássica, os personagens tendem a receber a orientação de não olhar para a câmera, formando assim, uma parede virtual que é chamada de quarta parede. Contudo, há uma quebra na narrativa canônica em relação a isso.
Já na primeira sequência conseguimos observar que Antek conta sua história direcionando seu olhar diretamente para as lentes de filmagem. Após o telefone tocar e Ulla entrar em quadro, a câmera passa a substituir a percepção visual do recém-falecido. Todavia, só conseguimos observar que a história é contada sob o olhar de Antek – que torna-se o narrador quando não está em quadro- na cena em que Ulla vai ao cemitério. Durante a visita ela acende algumas velas e quebra a parede virtual olhando para a câmera, e logo após diz as palavras “eu te amo”, repetindo as falas posteriormente do mesmo modo.
Ao mesmo tempo em que o filme ocorre sob o olhar de Antek, sua paleta de cores também reflete o sentimento e a situação do personagem. Com a predominância de cores pastéis e principalmente do cinza, as cenas manifestam certa melancolia, isso porque Antek se encontra impossibilitado de manter um contato direto com sua família e não consegue interferir em ações ou situações em que perpassam. Contudo, as cores vão muito além da percepção de Antek. Representam também o olhar de Ulla, Derek, e o de sua mulher. Ulla está passando por um momento desesperador, no qual ao mesmo tempo em que deseja superar a morte do marido, tenta manter determinada aproximação de seu último caso. A mulher de Derek e ele estão impossibilitados de manter contato por conta da prisão, possibilitando que o ar de tristeza e dificuldades apareçam sob suas vidas. Ademais, as cores faz alusão à situação política da Polônia, que estava mergulhada no sistema comunista que reprimia seus cidadãos. Portanto, toda a forma do filme funciona como um reflexo dos personagens, seus sentimentos e contexto histórico em que vivem.
Powaqqatsi - A Vida Em Transformação
4.1 25O segundo filme que compõem a trilogia Qatsi, em contraponto com o anterior, apresenta cores mais quentes. Reggio, em Koyaanisqatsi, se abstém nos grandes centros urbanos, por isso disponibiliza muitas imagens noturnas, assim, temos muitas cores frias em termo de temperatura de cor. O primeiro longa tem enquadramentos mais amplos, e possui em si uma constância de imagens aceleradas e pouco destaque para o indivíduo. Enquanto que em Powaqatsi, o diretor dá enfoque ao terceiro mundo, que predominantemente se encontra em zonas tropicais – daí vem a predominância de cores mais quentes. Também em Powaqatsi encontramos um ritmo extremamente lento. Mesmo nos pontos em que as imagens não estejam propriamente em câmera lenta, o próprio ritmo da montagem, o tempo dos planos, o tempo que ele deixa as ações transcorrendo e própria predominância de cores deixa isso bem explícito.
Reggio, em Powaqwatsi busca mostrar não a questão da organicidade do planeta, mas sim em que em meio a uma extrema pobreza, temos uma humanidade no terceiro mundo que está ausente nos grandes centros urbanos do primeiro mundo, como no Koyaanisqatsi.
Em termos de narrativa cinematográfica, os dois filmes apresentam um primeiro momento em que se estabelece o que era modo de vivência antes de alguma intervenção. A vida anterior, em Powaqatsi, é equilibrada, e depois disso se estabelece o desequilíbrio, e assim a questão transformação é explicada. Portanto, Reggio mostra um modo de vida anterior que possui uma quebra muito clara quando você tem uma forma devorando a outra.
Bling Ring - A Gangue de Hollywood
3.0 1,7K Assista AgoraSenti que Sofia Coppola tentou criticar a sociedade do consumo, o capitalismo e o estilo de vida dos famosos. Contudo, a mensagem não foi enviada com sucesso, haha.