Mais do que escolhas ou crenças, as nossas contradições nos entregam. E entregam bem Clément e Jennifer: ele, um homem que vive de questionar a realidade que o cerca e o preenche... mas não consegue abordar filosóficamente, criticamente, a sua própria postura quanto a relacionamentos amorosos, ao que faz uma vez que dentro deles; ela, uma romântica incorrigível (graças a deus?), que sabe o quanto o amor é um jogo de dar e receber... mas sustenta um relacionamento quase que sozinha, dando muito menos do que recebe, e sem ao menos perceber. As primeiras cenas das personagens fazendo o que gostam nos dizem isso: ele lecionando sobre a utilidade da filosofia como forma de compreender o mundo, ela cantando com as amigas. O curioso de "Não É Meu Tipo" é fingir que está nos dando o ponto inicial de uma jornada que invariavelmente nos levará a outro lugar para, no final das contas, nos fazer passar pela mesma estação ao fim da viagem. Mas assim como o rio de Heráclito, nem nós somos os mesmos, por tudo que mudamos no decorrer dessa viagem, nem aquela estação. E muito menos as personagens.
Clément não queria ir a Arras por julgar a cidade inferior a si. Ele merecia coisa melhor, é o que pensava. A verdade sobre ele e o que pensa do amor é entregue por sua ex-namorada: um covarde, que tem medo de entregar-se, medo de construir uma relação, de atravessar o limite da tragédia. Nesse medo, o filósofo não percebe que, na verdade, sempre atravessou o tal limite - o fato das lágrimas jorrando não serem as suas não torna a história menos triste.
Jeniffer, por outro lado, vivia a esperar um amor que ela tinha certeza que chegaria. E quando Clément aparece, tão diferente dos outros, tão indiferente a seu toque na cadeira do salão, ela soube que era ele. Por isso toda a empolgação após ser convidada pra sair, e as lágrimas na porta do pub antes de encontrá-lo. Ela estava propensa a apaixonar-se antes mesmo de conhecê-lo, ele foi convenientemente a tela em branco que ela precisava para projetar a felicidade que desejava.
A falha do relacionamento dos dois é, acima de tudo, a falha da comunicação. Não há diálogo: existem os monólogos dela, que ele tolera (para passar o tempo? para alimentar sua vaidade?) e os momentos de maior exposição sentimental em que compartilham as obras artisticas que os compõe como pessoas um com o outro (ele e suas leituras de livros, ela e suas canções). E, nisso, a covardia anunciada por Marie no começo do filme se confirma quando Clément desiste de dar seu livro de presente a Jennifer por temer a confrontação inevitável que decorreria daí - afinal, na sua tentativa de pensar o amor, ele se debruçou na verdade a necessidade afetiva, o desejo carnal, não o sentimento e seus significados. Sabendo que desse confronto muito pouco ou nada sobraria, ele optou por omitir o livro. Por continuar sendo a tela em branco aonde Jennifer projetaria seu príncipe encantado.
Toda conveniência é interrompida quando ela se choca com o interior dele na livraria, ali, empilhado. E, bom, ali está a antítese de tudo que ela acreditava. E de tudo que ele permitiu que ela acreditasse, sobre ele e sobre a relação que ela carregava sozinha. O rompante dela é a fúria de quem se percebeu enganada. E o retorno dele é o retorno de quem, diante do confronto tão calculadamente evitado, percebeu que havia mais dentro de si do que apenas vontade de passar o tempo naquela cidadezinha provinciana.
Desde que fazem as pazes e Clément pela primeira vez no telefone admite seu medo (só pra ela, não pra gente, não o ouvimos falar), a relação parece ter uma guinada. Ele investe mais, ele se expõe mais. Ela se protege um pouco mais, brinca com as expectativas recém-criadas por ele. A certeza de Jennifer no amor nunca a lançou numa busca por perfeição, ela já aprendeu que isso não existe. Ela só queria, mesmo, ser amada. De um jeito verdadeiro, honesto, só isso. E ela estava tendo isso, achava. Só achava, porque a ~~felicidade triste~~ de Clément era uma resposta ao meu sentimento que ela compartilha com ele na praia: ela pensa que talvez fosse melhor do que viver ver aquele momento de felicidade amorosa acabar, mas está feliz mesmo assim; ele se distancia e para evitar o mesmo momento final se proíbe de viver um amor, apenas contempla tudo que ama (a beleza adormecida dela, a ida dela até a porta do colégio para buscar Dylan, seu sorriso estampado durante o expediente). Talvez essa covardia e esse medo tenham a ver com o medo de repetir a trilha de seus pais, de ver o amor morrer e deixar no seu lugar um sósia composta de rotinas e comodidades e repetições esvaziadas do que um dia já foram sorrisos... mas sua fuga já não seria em si uma repetição?
Acontece de na festa, em que Jennifer apresenta-o empolgadamente a seus conhecidas, o encontro com Hélène traz à tona aquele mesmo desprezo que Clément sentia por Arras no começo: ele não tem coragem de apresentá-la, de dizer que sim, estava ali com Jennifer, a cabelereira que ele amava. O olhar que a colega professora lança à jovem Kantiana combina com a feição inexpressiva do homem, pego fazendo algo do que não se orgulha. Ali, mais uma vez, as diferenças inconciliáveis entre os dois são esfregadas na cara de Jennifer. Não tem como dar certo: ela é uma romântica e ele não crê no amor, ela está disposta a assumir aquela relação mesmo com todas as diferenças entre eles e ele tem vergonha de estar com ela. Ali, tudo se torna insustentável. Mas, como boa romântica, Jennifer espera até o último momento para uma salvação. Ela espera que ele perceba sua mudança de comportamento, que ele questione, que ele brigue pela viagem inesperada e não-comunicada... mas só encontra a velha indiferença, a já tradicional distância contemplativa que a impede de sentir de fato o amor que Clément sente.
No fim, a saída dela pela porta dos fundos da história não é uma fuga. Suas amigas inicialmente ficam felizes apesar da partida surpreendente, mas ela estava indo atrás do seu amor, não é mesmo? E isso é verdade, ela foi atrás do amor, que definitivamente não estava em Clément. E como ele mesmo havia dito quando sua transferência foi designada para Arras, as pessoas podem até gostar daquela cidade mas nunca ficam lá pra sempre.
A grande ironia está na posição dele nesse final. Desde o começo ele sabia exatamente quais os limites daquela relação, as fronteiras que nunca estava disposto a atravessar (levá-la a Paris consigo, ou cantar com ela no sofá da sala ou qualquer coisa que permitisse que ela rompesse seu perímetro de distância segura), pela primeira vez não sabe o que está acontecendo quando busca por ela no trabalho e não a encontra. Jennifer sobreviveu, aprendeu a seguir em frente e sabe que enquanto souber amar, saberá viver. Clément se vê pela primeira vez em algum tempo como a pessoa que foi abandonada e não a que abandonou. E foi melhor assim. Não importa se ela vai realmente encontrar o amor de sua vida, ou se ele vai realmente repensar a forma como lidar com sentimentos e relações. O que importa é que eles, de fato, não faziam o tipo um do outro.
Costumo fazer comentários bem prolixos e análiticos sobre os filmes que assisto. Mas "O Menino e o Mundo" me surpreendeu tanto que o melhor que posso dizer é: assistam, façam esse favor às suas próprias sensibilidades. Não é todo dia que uma produção nacional apresenta um conceito tão bem fechado e conta uma história tão tocante enquanto disserta sobre algumas das principais questões do nosso mundo sem ceder a um pessimismo inescapável ou a um cinismo inútil. E, bom, ainda se trata de uma PUTA ANIMAÇÃO, né? Sério, vale muito a pena.
Quando era adolescente achei um livro velho nas coisas da minha mãe. Chamava "Análise do Homem", o escritor era um cara chamado Erich Fromm e tratava basicamente de como todas as emoções são importantes e positivas para que as pessoas tenham uma vida mentalmente saudável. Lembro de ter pensado que essa era de fato uma mensagem importante e me lamentado de se tratar de um livro com uma linguagem bem acadêmica e pouco acessível pra maior parte das pessoas da minha idade na época. "Divertida Mente" veio pra suprir essa lacuna e ensinar direitinho a mensagem pra um público ainda mais jovem do que eu era quando li o tal livro. E fazer MUITO bem.
A história é ótima, foca num momento determinante na vida de todas as pessoas, que é a entrada na adolescência. A perda das referências de infância, a percepção de que as fontes de sentimento da infância não são as mesmas, de que o mundo não é mais tão absoluto dividido quase que basicamente entre felicidade e alegria... tudo isso é ótimo. A própria aventura de saída e retorno das duas emoções da central de controle da Riley inclusive faz muito sentido: diante da mudança de casa e de momento de vida, toda ideia de alegria e tristeza da garota se relacionavam com o passado, a única reação que ela tinha com o mundo ao seu redor era de medo, raiva e nojo mesmo.
E um ponto SENSACIONAL da história é a representação acertadíssima de depressão. Porque é isso que acontece com Riley, a garota entra em depressão.
Fica nítido na cena em que as emoções não conseguem mais manejar o console de sentimentos da menina e ele começa a ficar morto, cinza, desligado. Num mundo em que as reações à depressão são divididas entre menosprezo do sofrimento psiquíco de quem tem essa doença e a glamourização irreponsável que equipara essa condição a uma espécie de melancolia artística, "Divertida Mente" traz uma explicação didática: depressão é não sentir nada, é não reagir emocionalmente a nada, é se ver inerte a respeito do mundo ao seu redor e preso no seu próprio sofrimento interno. O fato de Riley ter sido resgatada pela tristeza, que ~~conserta~~ o console e tira a ideia de fuga de sua cabeça se torna ainda mais significativo: a demonstração e o reconhecimento da tristeza é uma forma natural que as pessoas usam pra se vincular, se aproximar e se associarem umas às outras. Sentir tristeza fez Riley perceber que ainda era capaz de sentir coisas, sim, e mais ainda de expressar essas emoções de modo a se conectar novamente com seus pais (e a tristeza que toda aquela mudança também trazia a eles).
Enfim, é um clássico filme da Disney Pixar: roteiro impecável, dialógos maravilhosos e animação incrível. O filme ainda tem muita coisa digna de menção em termos de pontos interessantes da história
(a infância como período dominado por alegria e tristeza, a adolescência como descobertar de que é possível sentir mais de uma coisa ao mesmo tempo, a mudança das ~~lembranças centrais~~ das pessoas que somos, etc)
É difícil eu ver um filme e não conseguir encontrar nada positivo nele, mas "Como Ser Solteira" chega perto. A premissa interessante, de uma protagonista aprendendo a apreciar sua própria companhia em detrimento da necessidade de estar em um relacionamento amoroso imposta pela sociedade, cai por terra diante de todos os estereótipos ofensivos do filme
(tem pra todos os gostos, da mulher de meia idade que nunca quis ter filhos e magicamente cria uma vontade enorme de procriar até a moça gorda que não tem profundidade e só serve como alívio cômico, passando pela programadora bem sucedidade que está louca pra casar por sentir o ~~chamado da idade~~ e o barman canastrão que não quer nada com ninguém)
. No fim das contas, até a jornada da protagonista se torna um tiro no pé com aquela mensagem final
, de que você precisa aprender a ficar só pra valorizar quando estiver com ~a companhia certa~
. Só não é pior porque tem umas 2 ou 3 piadas que fazem rir, as atuações são relativamente boas pro nível de personagens que o roteiro cria e algumas cenas são visualmente bem bonitas. Perdi meu tempo.
Um grande monstro, que sobrevive a tudo e amedronta a todos. É bem direta e forte a forma como o filme apresenta a visão que Thomas Hobbes teve do que seria o Estado ideal, que determinaria e conduziria a "luta de todos contra todos". Em "Leviatã", Zvyagintsev concorda com o que o filósofo inglês fala sobre a ~~natureza humana~~ e as ações do filme exemplificam bem:
a forma como a luta de Kolya o leva a negligenciar cada vez mais sua família, o affair entre Lilya e Dmitri, a reação de Roma a toda a situação e, claro, a utilização de toda a máquina estatal por Vadim para fazer seus compromissos políticos valerem em prol da reeleição, tudo é uma afirmação do egoísmo humano.
Mas vai além. Porque, na visão do cineasta russo, esse Estado não evita a condição de "caos natural" do ~~Estado de Natureza~~, mas sim se torna o principal ator e mecanismo de vitória dentro desse jogo de gato e rato. E aos adversários do Leviatã restam duas opções: lutar e ser devastado como a família protagonista foi, ou fugir e aproveitar a oportunidade de sobrevivência que o monstro lhes dá - de preferência, para apreciar a paz existente nos pedaços de natureza que parecem mais antigos e fortes que o perigoso "homem artificial" conceituado por Hobbes.
É muito interessante como essa constante ameaça congela o que poderia haver de mais aconchegante nas pessoas. As tomadas do mar e do clima ártico ambientam perfeitamente a total falta de paixão das personagens. A luta de Kolya, movida pelo seu senso de propriedade, claro, mas também pela noção de que aquela terra pertenceu à sua família por mais tempo do que aquele governo existiu, é o mais próximo disso que encontramos, todo o resto é uma questão de comodidade. E sua derrota final não deixa de ser uma afirmação de como não há espaço para entregas sentimentais em um mundo tão pragmático e perverso.
O que acontece com todos, especialmente com Lilya, demonstra também o quanto é parte da vivência humana essa coisa de esquecer o quanto dessa frieza, desse pargmatismo e dessa perversidade existem dentro de nós. Como o próprio Kolya diz, "é impossível fugir de si mesmo". Dmitri também me intrigou bastante inicialmente, por seu compromisso com o amigo, por ter comprado sua briga, por ter buscado munição para garantir sua vitória. Mas, ora, se somos pragmáticos e egoístas por natureza, este é um imperativo do qual nem os melhores de nós escapam. E justamente por ser natural, não há esperança para nós - e essa certeza chega com força quando percebemos que foi Roma quem matou sua madrasta, e que se manterá em silêncio sobre isso mesmo que o custo de seu segredo seja o encarceramento de seu pai, e que tal modo de ver o mundo é tão comum ao garoto que lhe parece improvável que Angela e Pacha realmente queiram cuidar dele sem ter nenhum benefício em troca.
A deturpação da ideia de "bem comum" é central, e constitui uma crítica central do filme, e que acaba tendo caráter local ao expor a profunda desilusão política que enfrenta a população trabalhadora na Rússia
(seja com o que percebem como hipocrisia dos líderes de outrora, seja com o evidente autoritarismo dos líderes de hoje e que permeia todas as esferas do Estado, como o longa busca mostrar - todos os funcionários públicos no filme são grosseiros, omissos, corruptos e autoritórios). A fuga que Kolia encontra no alcoolismo é a mesma que maior parte dos homens de classe trabalhadora encontra, e que leva a maior parte deles para o caixão.
E o que mais dói é que a partir de determinado momento do filme passa a pairar sobre quem assiste o pensamento de que talvez a vida estivesse boa para aquela família caso Kolia não tivesse comprado aquela briga
, que ele deveria ter ~~aceitado seu lugar no mundo~~. Fazemos o que as personagens fazem em diversos momentos: fingimos que o controle sobre todas aquelas coisas poderia estar nas escolhas que fazemos tanto quanto Angela acredita que Pacha pode impedir que "o caos aconteça" no lago, julgamos as contradições e ambiguidades das personagens absolutizando condutas e esquecendo de nossas próprias incoerências tal como Kolia ao falar do amigo "tirano que enterrou duas mulheres".
Se dar conta dessas situações é um choque, de quanto procuramos poder em uma escala que é ridiculamente irrisória diante do Leviatã. Isso é uma baita vitória do filme, mas uma puta derrota pra vida. [visto em 27/02/16]
Clássico filme de suspense, que realmente prende a atenção e dá uma resposta final que ninguém estava esperando. Me surpreendeu a discussão sobre arte que o filme traz, como ela apresenta a ~~vida real~~ pra pessoas que não tem coragem o suficiente pra ir lá fora e de viver e presencial a vida acontecendo. E, o pior: como elas tem lá sua dose de razão em evitar essa vida. Mas, olha, fico com a impressão de que foi escrito nas carreiras, porque a reação da Maya no meio daquela onda toda é simplesmente incompreensível e mentirosa demais. E a cena do ~~sequestro~~ da Erika incorre em algo que me incomodou bastante:
a mulher acabou de escapar de uma tentativa de estupro e... beija o desconhecido que a salvou. Isso é um filme contando uma história ou a fantasia de um punheteiro que se acha um cara legal?
Só mostra o quanto mesmo quando a gente tenta desligar o cérebro vendo um filme, esses roteiros preguiçosos dão um jeito de lembrar a merda de mundo que a gente vive, e a merda que existe na cabeça das pessoas.
No mais, Bradley Cooper se consolidando como aquele ator que não gosto muito, mas que sempre faz filmes minimamente divertidos, rs. Como amante do cinema de terror e suspense, olha, até que curti (até porque, né? Vinnie Jones é foda demais, espero o momento em que vamos reconhecer esse caro como uma espécie de Vincent Price do século XXI), mas passa longe de ser um grande filme.
Tenho a sensação de que o pré-requisito necessário para se rodar uma comédia romântica nos anos 10 era a total ausência de um final feliz. Ou melhor: tinha. "Adult World" é um ponto fora dessa curva de histórias sobre juventudes frustradas, solitárias e dolorosas. Digo, tem tudo isso, mas com mais comédia do que imaginei que teria - e isso foi uma surpresa positiva.
Amy é a típica poetisa pretensiosa, exemplo perfeito da jovem que não viveu nada e acha que sabe de tudo (mesmo sendo incapaz de reconhecer a numeração de um ônibus da própria cidade em que vive). Foi surpreendente ver Emma Roberts em uma personagem que tem os dois pés fincados na comédia. Acompanhar a personagem percebendo que a vida que idealizava pra si do alto de sua mentalidade de classe média com síndrome de floco de neve estava longe é tragicômico no filme, mas é o que acontece com todo mundo da minha geração, que se acha no direito de ganhar o mundo de presente. E foi legal ver que reconhecer isso foi o que ela precisava pra ser o que sempre quis ser, ainda que não pelo caminho que sempre se viu percorrendo. A relação com o Alex cai bem aqui como um contato com alguma ~~arte de verdade~~, que existe pra expressar algo real e não apenas pra caçar fama, uma espécie de despertar artístico. Isso também foi legal.
E, nossa, Rubia. De primeira fiquei incomodado de ver um ator cisgênero interpretando uma personagem trans (pq é foda, qual a dificuldade de colocar uma atriz trans?), mas me alegrou ver o papel da personagem no filme: ela é uma pessoa, com trajetória própria, cuja existência na história NÃO gira em torno de sua transgeneridade, que desenvolve uma relação sincera com Amy, que tem momentos humanos de diversão e angústia, como todo mundo. Parece pouco, mas é muito comum que os filmes que trazem personagens trans façam essas personagens girarem em torno tão somente de sua identidade de gênero e as consequências disso. Aqui, Rubia é só mais uma pessoa, tão especial quanto qualquer outra, e tão ordinária quanto qualquer outra. Isso é legal demais.
Em muitos momentos o filme força demais a barra pra parecer um clipe indie, e não conseguir perceber o quanto disso é intencional ou não só piora as coisas. Os estereótipos não me incomodaram tanto, mas pelo tempo de tela podiam ser mais aprofundados (esse escritor frustrado do John Cusack, imerso na lembrança de um talento que já sente não ter, é tão chatinho... cumpre o papel de abrir os olhos da Amy, sim, mas é a personagem podia mais interessante ser mais interessante, assim como a amiga ativista que mente sobre ~~ações revolucionárias~~ pra ser a melhorzona).
No final das contas, a ideia de que a gente tem que gastar menos tempo pensando no que devemos/podemos ser e mais vivendo/sendo as pessoas que somos é velha, nada original, mas atinge como um soco as Amys da vida, que se acham portadoras de um talento especial por conta dos elogios familiares e das notas escolares. E como boa Amy que sou, vou tratar de aprender, rs.
Assistir filmes no escuro é uma boa. A sinopse que vi de "Copcar" na sala de cinema me deu a entender que se trataria de uma espécie de "Goonies", sabe? E o começo do filme reforçou a impressão, vendeu bem a ideia: dois guris, no interior dos EUA, com um jeitão que evoca a infância de quem cresceu no fim dos anos 80/começo dos anos 90... mas a cinematograpfia de Matthew J. Lloyd e Larkin Seiple deixava a pulga atrás da minha orelha o tempo todo, com aqueles planos abertos focando no vazio ao redor das crianças. Eu só não imaginei que essa pulga mordesse tão forte. Jon Watts era um nome alienígena pra mim até então, mas, olha, esse foi um belo cartão de boas-vindas que recebi dele.
O jogo de Watts aqui é de rir e apontar o dedo pra cara de nossas tacanhas sensibilidades nostálgicas. Digo, todos nós, 90's kids, recordamos com carinho dos filmes em que crianças se metem em aventuras perigosas, certo? E essa obra vira pra gente e diz "ah, você acha legal crianças se aventurando sozinhas? Então olhe o que isso significa, agora que você é adulto" - e se você não abafou um grito na hora que Travis investiga o gatilho travado do riflo apontando o cano da arma pro seu próprio olho, você tem problemas.
E o longa leva isso de modo bem interessante, oscilando cenas leves de crianças inocentes e ousadas vivendo uma aventura com o desespero do xerife (muito bem interpretado por Kevin Bacon) envolvido possivelmente com um esquema de tráfico de drogas e se vendo sem saída agora que evidências de sua vida criminosa podem vir à tona. Essa ~~dupla linguagem~~, se podemos dizer assim, fez com que minhas expectativas fossem de um extremo ao outro com a fluidez com que o filme transita entre cenas: quando Harrison e Travis apareciam, me via esperançoso a respeito de um final feliz (inclusive, mérito deles, realmente convencem sendo crianças dos anos 90 em um filme de 2015, não parece nada forçado), mas quando o xerife aparecia vinha com ele a certeza de que tudo ia dar errado. E o terceiro ato, na estrada? Nossa, tira o fôlego, completamente.
No final das contas, o fim da história reforça esse caráter ~~despertador~~ do filme, de nos atentar pro quanto nós não somos os mesmos e nossas sensibilidades artísticas se alimentam de mais do que nostalgia: na vida real, os heróis de dez anos estão se cagando de medo (e talvez a saudade que temos da infância tenha a ver com o medo que nós mesmos sentimos o tempo todo).
A primeira notícia que tive de "The Danish Girl" foi de que Redmayne interpretaria Lili, e já torci a cara. Nada contra ele, mas estamos em 2016 e Hollywood ainda é incapaz de recorrer a atrizes trans para interpretar personagens trans? É aquela diversidade de vitrine: "nós contamos suas histórias pra emocionar a plateia, mas nada de gente de vocês participando do processo, ok?". Redmayne entrega uma boa atuação, é verdade, mas essa escolha afeta bastante a minha leitura da obra.
O filme é bonito e, diferente de boa parte dos comentários abaixo, adorei a falta de didatismo da história. Digo, estamos falando da década de 30, quando ninguém falava sobre transgeneridade e sequer a própria Lili sabia o que acontecia consigo. Como a história dela poderia explicar, detalhadamente, sua situação? Esperar isso do filme é uma forma de sabotar a experiência cinematográfica, que toca em pontos beeem importantes, como o caráter repressor da autoridade médica e a intolerância agressiva da sociedade, mas sem colocá-los no centro do filme que é certeiramente ocupado pela descoberta de Lili.
Agora, o aspecto mais profundo da história é Gerda. A atuação de Alicia Vikander é incrível, e o sofrimento que a personagem enfrenta ao lidar com toda aquela situação é palpável.
Não à toa, o único momento em que a expressão "danish girl" é usada no filme é pelo Hanz, antes de recebê-la em seu escritório - "there's a danish girl here waiting". Tudo que ela fez pelor amor que sentia e a forma como o levou durante toda sua vida, mesmo depois da partida de Lili... é bem tocante.
Que a Ucrânia tá uma bagunça desde 2013, qualquer pessoa que acompanhe noticiário sabe. Esse doc faz um trabalho bem legal de mostrar histórias e sentimentos por trás dos informes de menos de um minuto que costumam ocorrer aqui no Brasil sobre essas situações (fora uma ou outra reportagem no Fantástico ou Globo Repórter sobre ~~os horrores da guerra~~).
Chama atenção o recorte feito, anterior à Guerra Civil e focando nos acontecimentos em torno da Praça da Independência, em Kiev:
é uma saída para construir a narrativa nacionalista, quase apolítica, que a obra procura. E isso é um empobrecimento, porque as disputas internas no movimento foram enormes e fundamentais pra que hoje o país enfrentasse uma guerra e o domínio de um grupo político neonazista. Há a desculpa de que o documentário foi filmado durante os eventos, então não sabiam muito bem ao que as coisas iriam levar, mas, gente, os eventos narrados terminam em 2014 e o filme foi lançado em 2015. Dá pra ver que as entrevistas foram feitas depois e há elementos em algumas cenas que já despertam o olhar de quem assiste, como a cena em que uma bandeira anarquista tremula em meio às flâmulas ucranianas no monumento central da praça.
É curioso ver como em alguns momentos busca comprar alguma legitimidade documental ao contrapor depoimentos um pouco contraditórios (alguns manifestantes reforçando o caráter pacífico de algumas empreitadas, enquanto outros apontam que a maior parte das pessoas estava movida por vingança pelos danos causados a seus amigos), e isso chega a ser risível pelo viés tendencioso que a obra apresenta do começo ao fim. Se buscar seriamente uma objetividade neutra é algo risível por ser impraticável, forjar essa busca chega a ser condenável devido à desonestidade. E mesmo se tratando de uma obra bem executada, editada e dirigida, isso estraga "Winter on Fire" - principalmente se a gente for pensar que cerca de 2 anos antes a Netflix entregava "The Square", que no papel é um empreendimento parecido, mas muito mais focado nas pessoas envolvidas nas manifestações no Egito do que em uma propaganda nacionalista, quase fascista.
Sabe o que acontece? Nunca consegui gostar de nada que envolveu o nome de Kaufman. Tentei, assisti várias coisas, e tudo parecia tão distante, tão sem graça. "É isso?", me perguntava, diante de tão grande admiração expressada por pessoas cuja opinião eu valorizava e tão pequeno impacto que suas obras causavam em mim. "Anomalisa", que curiosamente ma atraiu por ser uma animação, me ensinou que o lance é que os roteiros do cara sempre falaram de uma vida que eu ainda não conhecia por não ter sentido a textura do asfalto quente na carne viva junto com o gosto do sangue na boca.
A desventura egoísta e modorrenta de Stone em torno de algo ~~novo~~ é uma bela forma de lembrar a quem quer que assista o filme que não, nenhum de nós é especial. E, no caso dele, é tudo muito irônico porque ao passo em que tem cada vez mais certeza sobre o quão ordinária é toda vida que o cerca, o cara vive de convencer atendentes ao público de que cada cliente na sua frente é um floco de neve particular. Ele fala sobre a importância de fazer as pessoas se sentirem valorizadas, mas exala desdém por todas as pessoas que encontra ao longo de todo filme: ele se incomoda com o taxista conversador, ignora o funcionário do hotel que está colocando em prática algumas das principais lições que ele aborda em seu livro, negligencia seu filho (pra quem leva uma espécie nefasta de boneca inflável como souvenir de viagem). A única pessoa que engatilha algo novo no protagonista é Lisa.
Ela e sua voz única, diferente da de todos os outros, chamam sua atenção, gera uma verdadeira catarse que abre a válvula de todos os sentimentos que Michael não sentiu nos últimos 10 anos. Suas singularidades capturam seu coração. Eles se amam, se entregam. E ele se impõe. Nessa imposição, adeus amor: Lisa se torna apenas mais uma, igual a todas as outras pessoas para quem ele mente. A alteração gradual da voz dela, a mudança visual da expressão dele, essa sequência me fisgou muito. E a luz atrás dela, iluminando seu rosto, só reforça a ideia de que aquela é ~~a verdade~~, que estava lá o tempo todo e Michael estava mentindo para si, buscando de alguma forma viver um sentimento tão intenso quanto o que tinha tido por Bela, 10 anos antes, na mesma cidade. E que acabou subitamente, assim como aconteceu com Lisa.
É foda, porque a ligação dele pra ela não tinha o objetivo de reacender a velha paixão, não: Michael sabia que não havia mais nenhum sentimento por Bela em seu coração (em suas lembranças, ela também soava ordinária), ele apenas queria usá-la para se sentir menos solitário aquela noite. É foda, porque quando vemos a forma como as duas personagens falam de si, percebemos duas mulheres inseguras, com a autoestima em frangalhos, e que são bastante afetadas por ele - e esse padrão fala muito da própria insegurança de Michael, de seu próprio conceito de amor como uma jóia rara que existe nos lugares mais inesperados e de como ele se sente realizado no momento da descoberta (mas só naquele momento). E ainda há a esposa, menosprezada por ele, mas que demonstra também sua insegurança quando diz que não quer que ele vá embora, apesar de tudo.
Uma pulga que ficou atrás da minha orelha foi a menção a Fregoli. Ao encontrar Bela ele menciona ter problemas psíquicos, o que pode ser uma deixa para sua própria condição. Conheço pouco da Síndrome de Fregoli e não sei se ela pode se manifestar como no sonho de Michael, através da noção de que todas as pessoas no mundo são uma só. Nesse pesadelo chama atenção o momento em que a máscara de Stone cai durante sua fuga, revelando uma face vazia, sem nada por baixo. Como diz sua esposa no fim, nenhuma pessoa sabe exatamente quem é, e a crise existencial de Michael em conjunto com o possível transtorno psíquino pode levá-lo a se ver como esse saco vazio - e isso pode até ser visto por ele como o grande motivo para que seja a única pessoa "diferente deles", ele é o único que não tem nada dentro de si, e todos ~~eles~~ tem a mesma merda (aquela merda que ele aponta quando começa a divagar na conferência, falando sobre os crimes de guerra do presidente e o desmantelamento da educação pública como ato político do governo). Ele seria uma anomalia.
Mas anomalia mais curiosa é Lisa é como ela lida com sua ausência: ela não remói o abandono, nem se entrega à autodepreciação, mas se sente bem por ter sentido aquele amor vindo de Michael, mesmo que por uma noite, e usa o seu sentimento pra alimentar a esperança de poder encontrá-la novamente. Mas ainda se vê como inferior, como menor, como menor do que o próprio "apelido" significa em japonês. Ao ler sua carta, Michael a ouve soar como todos os outros, mas essa é só a visão dele. Para Lisa, é como se a vida tivesse acabado de começar. E a oposição entre ambos é bonita, dolorosa e real. Além de curiosa, pois isso dá a ele certa semelhança com o centauro do mito grego, que é capaz de curar toda e qualquer doença mas morre envenenado, incapaz de curar-se.
fez com que "Anomalisa" me pegasse de surpresa com sua densidade, sua tristeza, e esse bilhetinho sobre Kaufman com um conselho que o jovem eu de anos atrás era muito prepotente pra escutar, e muito menos pra aceitar: tem coisas que a gente só entende quando fracassa de verdade.
O trailer já havia me empolgado: a estética do filme a simples proposta de ser um filme de ação nacional já seriam o suficiente pra me levar pro cinema, mas "Reza a Lenda" vai além. Não é um ~~Mad Max do sertão~~, como eu mesmo achei que seria. Na real, tá mais pra uma resposta bem atravessada ao filme que George Miller lançou ano passado.
Afinal, "Mad Max" se passa em um futuro distópico aonde o mundo foi destruído em uma guerra nuclear, os recursos naturais são escassos e o filme nos apresenta um grupo de pessoas liderado por uma figura vilanesca que controla o acesso de todos ao que é necessário para que sobrevivam, como água. Vejam, eu sou um fã de SciFi, amo distopias, adoro o exercício hiperbólico de levar a realidade à enésia potência para comprovar algum ponto, mas o filme de estreia de Homero Olivetto na direção dá na cara de todo mundo ao lembrar que não precisa de nenhuma guerra atômica pra fazer as pessoas viverem como na "Estrada da Fúria" do filme de Miller - isso É a realidade cotidiana de milhões de pessoas ao redor do mundo, abandonadas pelas instituições, entregues à pobreza e sendo exploradas por quem coloca primeiro as mãos em suas carcaças.
É nesse cenário que acontece o resgate de orfãos por Pai Nosso para formar uma trupe de homens e mulheres de fé a fim de encontrar a santa de outro e fazer chover no sertão.
E, olha, o filme é legal: a ação empolga, a maior parte das atuações convence (principalmente a de Humberto Martins), a trilha sonora é incrível... mas ao não aproveitar tão bem o potencial da história que tenta contar, a obra compromete a experiência.
Em vários momentos a sensação é que estamos vendo uma colagem de clipes musicais. É bacana afirmar a estética do filme dessa forma, mas não precisam ser cenas de show-off, sabe? Dá pra fazer isso enquanto se conta a história - como quando metralham os capangas do Tenório, por exemplo. O negócio é que se fosse somente uma questão de edição, tava ótimo. Tem um problema de concepção também, quando vemos duas das personagens mais interessantes do grupo de Ara sendo subaproveitadas: TODAS as falas de Severina são a respeito de Ara, e a participação de Cira é quase nula no filme (e ainda morre de uma forma bem ingênua pra uma motoqueira sertaneja criada no limite das terras de coronéis nada bonzinhos). Não se trata somente de defender um cinema mais igualitário em termos de gênero não, mas de defender o fim do sacrifício de ótimas personagens pelo simples fato de serem mulheres. Isso me incomodou muito. Quase tanto quando essa coqueluche que os filmes nacionais (até os que são pontos fora da curva, como esse aqui) tem de entregar tudo mastigadinho para a audiência, acabando com todo o prazer de juntar as peças e desvendar o filme.
Digo, quando Ara está alucinando no acampamento de Galego Lorde, havia mesmo uma necessidade de suas descobertas serem faladas? Porque até ali a audiência está na mesma dúvida que ele, torcendo para que a santa fique em seu lugar de direito mas se perguntando o motivo de não ter chovido ainda. Nesse momento, o filme entrega respostas que, se omitidas, levariam a um aumento da tensão até o ato final, quando Ara atira na santa e o céu começa a trovejar anunciando chuva. Fazer isso, estragar uma experiência cinematográfica bacana dessa forma, é chamar o público de incapaz e reduzir o cinema a um meio de matar o tempo, negar sua potência artística.
E isso até é aceitável em filmes clichês que só se propoem a isso mesmo, mas é quase um crime quando feito com histórias tão bacanas quanto a de "Reza a Lenda". Espero que com o tempo Olivetto perca esse vício publicitário, porque potencial o cara demonstrou que tem.
Quase assisti "Ex Machina" no cinema há uns meses, mas o cheiro do clichê ~~humanos vs máquinas~~ me enjoou à primeira vista. Resolvi ver agora que foi indicado a melhor roteiro original no Oscar e fiquei positivamente surpreso: a história do programador que vai às cegas testar os limites da consciência de uma inteligência artificial criada por um gênio milionário da Internet entretem e levanta a bola de algumas discussões interessantes. As atuações são competentes, mas não impressionam. A direção de Garland também não, mas a narrativa é bem conduzida.
Me faz pensar que os longos anos como roteirista de ficção-científica ainda "engessam" um pouco a visão dele para as possibilidades de utilização de elementos mais sutis para contar a história, o que não pecado mas aponta um caminho de melhora pro jovem diretor britânico.
Preciso dizer que é legal ver as personagens se questionando sobre uma coisa e, no final, perceber que aquela história toda fala de algo um pouco maior.
Há toda a questão do limite entre ser capaz de articular informações e ter capacidade de sentir, e a resposta que o filme caminha pra dar é misantropa e distópica.
Afinal, aqui os sentimentos e a busca por eles são os guias da tragédia humana ao tentar controlar o incontrolável. Caleb e suas demandas emocionais fazem questão de acreditar nos sinais de sentimento dados por Ava, assim como Nathan é levado a criar algo tão imprevisível quanto uma mente para sentir-se realizado ao mesmo tempo que leva um cotidiano de certa entrega a prazeres condenáveis (e que fazem parte da sua própria condenção à morte, uma vez que é durante sua bebedeira que Caleb descobre a verdade sobre o processo de criação da IA e prepara a fuga de Ava, e o ódio criado pela exploração violenta que faz de suas criaturas motiva o motim do qual é vítima). De forma bem direta, o filme argumenta contra o sentimento, defendendo uma velha ideia de que na natureza só há espaço para pragmatismo e todo o resto é uma distração que a humanidade criou pra sentir-se especial. Ava então representa a superação dessa "fraqueza", pois é guiada tão somente por seus instintos - aqui, o de ser livre sendo o imperativo principal.
Mas as coisas ficam cinzentas quando começamos a questionar a capacidade que Ava e a IAs de modo geral tem de sentir emoções.
Porque tudo leva a crer que ela emulou todos aqueles sentimentos para manipular Caleb, sim. Mas e a vontade de estar em um cruzamento e observar um monte de gente se cruzando ao mesmo tempo? E a forma como ela e Kyoko assassinam Nathan? Tudo bem que para Ava pode haver a compreensão lógica de que seu criador seria um obstáculo a ser superado para que conseguisse a liberdade, mas e Kyoko? Ali parece mais uma resposta ao cativeiro, ao confinamento e à exploração sexual que sofrem nas mãos de Nathan.
A situação a que as IAs são submetidas, poderia ser um bom gancho para abordar a estrutural patriarcal da sociedade, mas o filme só dá indícios e nunca de fato entra nesse assunto. O fato do nome de Ava lembrar Eva, Nathan usar (abusar?) sexualmente das outras IAs, o confinamento, o controle, tudo isso são elementos que juntos poderiam levar a uma boa crítica social, mas o filme prefere não se aventurar por aí e se empobrece.
A personalidade de Nathan é bem curiosa, inclusive. Ele é o único ser humano em um bunker tecnológico onde faz seus experimentos secretos (e eticamente questionáveis), se sentindo o Deus do pedaço. A relação que ele tem com as IAs é o oposto da que tem Caleb, que ao perceber a desenvoltura de Ava chega a questionar-se sobre sua própria humanidade. Enquanto isso, quando se deparou com as manifestações mais notáveis do desespero que as "modelos anteriores" apresentaram ao desejar liberdade, Nathan não é tocado. E aqui o desejo de Ava por estar perto de pessoas faz mais sentido que nunca. Porque o isolamento social e a crença de que toda inteligência ao seu redor era artificial matou a capacidade que Nathan tinha de sentir qualquer coisa fora seus prazeres ébrios e sua satisfação intelectual, ao ponto de que até sua relação com Caleb é a de utilização (ele é só mais uma parte do experimento para testar 1-o quanto de fato o Big Data fala sobre a forma como as pessoas pensam e 2-o quanto essas pessoas conscientemente desconhecem essa forma como pensam). Ele fica tão fascinado quando o jovem menciona o fato de estar escrevendo uma "história de deuses" porque, de fato, é assim que se sente - um grande ego, criador de tudo ao seu redor, que apenas É. Ava busca um cruzamento no centro de uma cidade não somente para analisar as pessoas, mas por ter aprendido muito bem com o contra-exemplo de seu criador: o que forma e comprova a humanidade de alguém é a experiência de viver com a humanidade de outrém.
Precisei ler o comentário da Bandine (ordena ali por "melhores" que você vai ver), dormir e acordar pra ter uma real dimensão do TAMANHO desse filme. Tudo nele é gigante, meu deus. E gigante de uma forma ambígua: ao mesmo tempo que nos denuncia a nossa própria pequenez, nos faz reconhecer nosso potencial para a imensidão, pro bem e pro mal. A história de sobrevivência e vingança de Hugh Glass aqui é janela pra coisas muito maiores.
Primeiro, o esvanecimento da fronteira entre homem e natureza. Somos todos animais, e o curioso é que toda nossa civilização é construída em cima do desejo de negar essa verdade.
Tire essa mentira de concreto armado e valores forjados e a gente tem aquilo ali: feras selvagens, movidas por instintos quase primitivos de sobrevivência e que aqui ganha conotação irônica por estarem ao serviço da expansão dessa bolha humana. Mas o básico, o que dá liga à tudo dentro da gente, é o mesmo, e a personagem de DiCaprio tem mais em comum com o urso do que parece à primeira vista: a ursa ataca o caçador pra proteger seus filhotes assim como Glass assassinou o oficial do exército pra proteger seu filho, ela retorna pra se certificar que ele está morto em nome da segurança deles assim como Glass volta atrás de Fitzgerald também em nome de seu filho (mas, no caso, de vingar sua morte), e ao fim do confronto que deixa os dois quase mortos as crias de ambos se encontram desesperadas e sozinhas.
Além isso, a cinematografia trabalha bem para mostrar a vida que existe no cenário, explorando a reação da floresta às mudanças do tempo. Os closes nas árvores, inclusive, me lembrou bastante o daqueles documentários sobre o mundo animal em que se acompanha a luta pela sobrevivência dos bichos protagonistas - exatamente o que Iñarritu faz aqui. E é justamente por essa necessidade tão básica que é difícil odiar Fitzgerald.
Vi algumas resenhas descreverem como um vilão no sentido maniqueísta do termo e que não posso discordar mais. Tudo que ele faz, faz em nome de sua própria sobrevivência. Curioso que a única coisa que foge a esse instinto de autopreservação é seu ódio racial pelos indígenas, sempre chamados de selvagens pelo caçador que não percebe a selvageria que carrega em si e em seus atos. E esse ódio racial está nas facadas dadas em Hawk, claro, mas quem pode negar a luta pela vida ali? Hawk gritando por socorro para seu pai e protetor, John o calando para que sua própria vida não corresse risco (de acabar na ponta da flecha dos Rees ou no laço da forca). O negócio é que em matéria de sobrevivência Fitzgerald é bom, pois caso realmente tivessem ficado esperando Glass morrer ou apresentar qualquer sinal de melhora, seriam alcançados antes pelos indígenas e trucidados. No final das contas foi sua vontade de viver, inclusive, que motivou o próprio Glass a se manter vivo - não que o cara não fosse o um sobrevivente em si já, mas diante da jaula mental que inventamos para acreditar que realmente somos diferentes das bestas selvagens que vivem no mato, o ódio pode ser um gatilho mais eficaz para a sobrevivência.
Mas o que mais me tocou nesse filme foi o cuspe na cara da História (essa mesma, com H, pretensamente científica) que Iñarritu deu.
Primeiro, na cara do cinema, que construiu toda uma mitologia arquetípica sobre a Marcha Para o Oeste nos filmes de bangue-bangue. Desertos, cidades empoeiradas, xerifes destemidos,ataques organizados aos indígenas, bandidos inescrupulosos e caçadores de recompensa ambíguos? Isso veio depois e faz parte da história bonitinha que os EUA contam pra convencer seus cidadãos do quão especiais supostamente são. Antes disso havia floresta, haviam feras, haviam perigos e ninguém sabia muito bem o que fazer, então colocava um objetivo no horizonte e usava ele como desculpa para se manter vivo - o destacamento Ree e o resgate da filha do chefe, Glass e sua vingança, Fitzgerald e uma vida melhor. Valores americanos, ética, honra, livre iniciativa? Conte isso para um homem que perdeu sua única razão para viver, ou para um capitão cuja posição foi comprada pelo dinheiro do pai médico, para um jovem que não entende direito o que deve fazer para ficar vivo e segue conselhos errados, ou para um caçador que viu a morte de perto e desvendou que nesse mundo tudo é uma questão de matar ou morrer. O erro de Fitzgerald, na verdade, foi desconsiderar essa parede construída entre o selvagem e o civilizado, que faz com que matar seja algo aceitável quando se está do lado de lá, mas não do lado de cá. E faz parte da sobrevivência também a felicidade de estar vivo, como quando Glass e seu recém-encontrado companheiro de viagem Pawnee se divertem ao pegar flocos de neve com a boca. A alegria é uma urgência, no final das contas, mesmo que por um minuto, mesmo para quem busca vingança, e ainda mais para quem busca vingança e carrega no corpo as marcas da guerra que é a vida real.
Os sobrenomes de grandes escritores da literatura estadunidense - Becket, Fitzgerald, Murphy, etc - só reforçam essa crítica histórica: "É disso aqui que vocês são feitos de verdade, de ódio, de sangue, de bosta e de erros" é o que Iñarritu (mexicano de ascendência indígena) parece dizer pra audiência americana, tão individualista que não lê esse ~~verso~~ do filme e indica para o Oscar uma das mais bem feitas críticas à história estadunidense, por conta de sua ~~mensagem universal~~. Fiquei surpreso de ver nas entrevistas o Iñarritu focar na questão da sobrevivência e sequer comentar sua releitura da história dos EUA, o que só reforça essa sensação de que essa é uma das maiores ironias da história do cinema.
A forma como o filme aborda os povos indígenas é curiosa: está lá o respeito à diversidade das nações nativas, tão lá as suas disputas internas, tá lá também a grande diferença entre as prioridades dos brancos e dos índios (na cena inicial, do ataque, quando o grupo do capitão Henry acredita que o alvo dos nativos são as peles que caçaram, enquanto na real os Arikara estão buscando resgatar uma jovem de seu grupo - no lugar da guerra pela ambição/expansão, os indígenas guerreiam para salvar os seus, e há grande dignidade nisso).
O final é forte por sua natureza polissêmica. Fitzgeral ter sido morto por Glass e pelo líder Arikara foi uma boa resposta, tanto à morte de Hawk (que é filho de um homem branco com uma mulher indígena) quanto ao sofrimento da jovem que era mantida cativa pelos franceses. A vingança de Glass está realizada, mas seu filho não retornará dos mortos e ele não irá encontrar sua falecida mulher ao cair em sono eterno - na visão que ele tem, na verdade, ela lhe dá as costas e caminha. E o olhar que a personagem de DiCaprio dá para a câmera, para a audiência no final, é o mesmo olhar que o lider Arikara dá quando passa a seu lado com a filha que ele acidentalmente ajudou a resgatar do grupo francês ao roubar cavalos: o de quem chegou ao horizonte que perseguia e sabe que tem um outro, mais distante, no final de um caminho ainda mais tortuoso. E a respiração ofegante após a imagem desaparecer é um bom lembrete de que se ele está vivo, é para continuar desse jeito.
Essa sinopse aqui no filmow omite maravilhosamente um dos melhores primeiros atos da história do cinema de comédia, hahaha. Sério mesmo, ME ACABEI de rir vendo o Kevin perdidinho naquela situação. Isso já vale o filme, que é uma comédia romântica divertida, focada na ideia de que uma convivência sincera é o melhor remédio contra preconceitos.
Mas tem um lance nesse filme e numa série de outras comédias românticas que meio que irrita: a afirmação de que as histórias desse gênero precisam ser um entretenimento raso, como uma jornada para o final romântico e feliz completamente pavimentada por estereótipos e clichês.
O final, com Madeline conseguindo se livrar num piscar de olhos de toda capacidade de atração que Will tem sobre ela, Kevin abrindo mão de uma promoção que ia catapultar sua carreira em dois tempos... nada disso parece real e convence menos que o encontro entre "nerd-da-escola-que-agora-é-adulto" e a "suicidal-maniac-pixie-dream-girl-que-fode-pra-fugir-dos-problemas".
No final das contas o filme soa mais como uma fábula romântica pra acalentar o coração dos ~~nices guys~~ mundo afora, mas que diverte e é legal pelo início e pelas piadas engraçadas. [visto em 05/02/16]
Quase todas as pessoas que me falaram de Kingsman falaram de como era um filme "diferente". O que me surpreendeu foi perceber que essa diferença está em ser um filme de espiões como filmes de espiões costumavam ser há 15 anos, com o visível upgrade das cenas de luta. É curioso perceber que "A Identidade Bourne" mudou tanto o gênero que hoje não se fazem mais filmes assim, em que a história não tem nenhuma pretensão de ser ou parecer verossímil. E o próprio filme se entrega, com as piadas sobre esses ~~filmes antigos de espião~~, hahaha.
Mas o filme é bem bom, para além disso. Colin Firth numa cena de ação daquelas que tira o fôlego? Confere demais. Legal um filme tão bem executado e que tira o foco da verossimilhança e coloca na diversão. Talvez depois de assistir ele algumas crianças tenham o mesmo desejo de ser um espião internacional que o Valentine teve, rs.
1939, começa a Segunda Guerra Mundial, EUA passa a investir horrores na criação da Bomba Atômica... e Capra, que durante toda a década de 30 fez filmes focados em resgatar a autoestima e inspirar a população a americana a superar a crise econômica de 29, filma "Mr. Smith Goes to Washington", dando a entender que a solução dos problemas políticos do país é colocar mais americanos comuns e verdadeiros nos lugares de tomada de decisão. Isso foi um plot twist na própria vida.
E o filme é ótimo contando a história que se propõe. Digo, apesar de ter sido tão criticado como antiamericano na época, ele na real defende a essência dos EUA. Jeff Smith é um cara comum, escoteiro, que cresceu acreditando na narrativa de fundação do país e quando indicado pra Senador coloca ela em prática. Depois de 10 anos filmando histórias sobre a cidade, Capra aqui vem defender que o americano ~~de verdade~~ é o cara do interior, imaculado pela ganância e pela sede de poder. Fiquei tocado quando descobri que ele fez esse filme depois de perder um filho ainda criança - e que a inclusão dos escoteiros como elemento narrativo foi ideia dele, até pra representar a crença no futuro do país. Interessante perceber como alguns hábitos nunca se perdem:
o fato do Smith comprar briga com todo mundo SOZINHO, leva o Payne a se entregar no final com a força de seus argumentos - restaurando a lógica individualista, meritocrática e desbravadora sobre a qual os EUA são construídos, em que as pessoas devem agir em prol de suas causas e conquistar aliados pela justiça dessas causas, não por meio de alianças espúrias. Meio utópico quando contrastado com a boa e velha realpolitk, mas, hey, a gente tá falando de Capra.
Mas apesar de James Stewart fazer um ótimo trabalho, a personagem em destaque mesmo é a Saunders.
Digo, ela que começa o filme amargurada com o trabalho nos bastidores da política, vê no Smith um sopro de ar fresco, o suficiente pra fazê-la retornar quando pensa em abandonar a carreira. E bem a tempo de impedir que o próprio Jeff desista, o que já é em si um monte de coisa importante: tá na quase-fuga do Smith a humanidade e a fraqueza que acomete qualquer pessoa que tenta desafiar articulações poderosas, tá no retorno da Saunders o efeito reanimador que o simples fato de ver alguém falando contra a opressão tem pra restaurar a crença de quem presencia isso. E, no final, "a mulher que faz o homem" no título brasileiro é Saunders, né? Ela que guia ele por tudo que é importante - só pra reforçar o quanto o idealismo precisa estar associado a uma noção prática de como as coisas funcionam.
Ir ao cinema,se deslocar, ficar parado por horas... às vezes me pergunto sobre a utilidade, sobre a relevância, sobre o real motivo que leva milhões de pessoas a tal esforço tão cotidianamente. E juro que fiqueo bastante surpreso quando vi Tarantino responder essas perguntas em "Os Oito Odiados".
Pra começar, o filme é legal. Clássico Taranta: diálogos intensos e extensos, alívios cômicos em que a graça mora na capacidade da audiência se relacionar com aqueles eventos, personagens completamente ambíguos e sangue, muito sangue. Logo na cena inicial, inclusive, me falaram de como a neve era uma tela em branco que Tarantino ia pintar de vermelho. Touché. Faroeste divertido, mesmo. Mas o que me pegou pelos pés e botou de cabeça pra baixo foi o final (que, pelos comentários aqui do Filmow, boa parte da galera odiou):
lá estão os caras por quem torcemos rindo, se reozijando ao ver morrer enforcada a única pessoa que ao longo de todo o filme não matou ninguém - e só deixou morrer pessoas em nome da possibilidade de escapar de uma morte certa. "You only need to hang mean bastards, but mean bastards you need to hang"? Ali dá pra ver nitidamente quem são os bastardos malvados. E dá pra ver que a gente tava torcendo por eles ao longo de todo arco final... pela narrativa.
Porque, vamos lá, se formos falar de intenções temos que reconhecer que Jody e seu grupo eram os heróis, afinal eles estavam se arriscando somente pra resgatar a irmã e companheira de gangue (e mataram gente inocente pra isso porque, né, Tarantino). Mas em nenhum momento a narrativa pretende que simpatizemos com eles. Ao contrário, desenvolvemos uma espécie de vínculo com um caçador de recompensar carniceiro que leva a Daisy pro enforcamento, um ex-combatente sádico e estuprador e antirracista AND um redneck babaca racistão. E é isso que nos tira do conforto de nossas casas pra ir a uma sala de cinema e sentar a bunda por quase três horas enquanto personagens fictícios fazem toda a ação: a narrativa. E essa resposta reside na necessidade que Warren e Mannix tem de enforcar Daisy mesmo sabendo que suas mortes eram iminentes. "Todos mundo morre no final, mas o que importa é a história que se conta no meio tempo, mais do que nossos atos e intenções", é como se o escroto do Quentin Tarantino falasse pra gente com aquela voz enjoada e aquela expressão pretensiosa que ele sempre tem. E mesmo não sendo um dos melhores filmes que já vi, ou um dos meus favoritos, é preciso respeitar quem entrega uma narrativa niilista de modo tão seguro em pleno 2016
há quem diga que ela mora nos diversos ataques que a Daisy sofre, há quem diga que passa longe justamente por ela ser tratada como qualquer malfeitor possivelmente seria nas mãos do Ruth, mas pra mim ela mora em todo ódio direcionado a ela mesmo não tendo representado pessoalmente perigo pra ninguém em toda a história. Esse ódio fica expresso nas gargalhadas de Warren e Mannix enquanto ela é enforcada, e acho que o próprio Tarantino deve ter ficado se achando o rei da igualdade quando lançou o filme, pois aposto que ele tem tanto a cabeça enfiada no próprio cu que não percebeu a misoginia disso (como provavelmente não percebe a que existe nele mesmo). Mas a personagem Daisy é muito mais do que isso, e desperta nossa simpatia ao longo do filme, com sua postura cínica e desafiadora o tempo todo. Nenhum soco, cotovelada, nariz quebrado ou dente arrancado quebra o espírito dela and I think it's beautiful.
O trailer tinha pegado minhas expectativas e jogado lá pra cima: toda a história de uma adolescente sobrevivendo às diversas ondas de extinção inflingidas à Terra por alienígenas gananciosos, correndo atrás dos recursos naturais... nossa, isso é ouro. E a primeira parte é ótima por isso, conta bem essa história de invasão e sobrevivência. Mas uma lacuna aí já me incomodou absurdamente:
o mundo cai e, surpreendentemente, todas as pessoas estivam focando em sua prória sobrevivência. Sei lá, não precisa ser nenhum gênio ou advinho pra saber que nessas situações extremas o pior do ser humano aparece: saques, roubos, assassinatos por conta de um ou outro item de primeira necessidade (isso pra não dizer das pessoas sádicas que aproveitam essa ~~iminência do fim~~ pra fazer o mal simplesmente por prazer). Ok, entendo que o grande foco da história é a esperança humana e seu papel de combustível das grandes realizações, mas... porrã, não precisava idealizar tanto assim. O amor à primeira vista do Evan pela Cassie cai do céu, e acaba sendo mais um elemento dessas idealizações que entregam que mais do que contar uma boa história, o romance que originou o filme tava preocupado mesmo em acalentar corações adolescentes (não que isso seja um objetivo desimportante, mas dá pra fazer isso contando uma história coerente, viu?).
Uma coisa MUITO BACANA que acontece no filme é o fato da Ringer ser a "estraga-prazeres feminista" mais carismática dos últimos tempos.
Digo, ela chega no esquadrão desafiando o ~~melhor soldado~~, coloca os garotos que estão objetificando ela no lugar deles na base do braço, protagoniza uma manobra arriscada pra salvar seu pelotão e sai ilesa... mas não é uma Mary Sue: perde a luta lá pro Ben justamente pela arrogância, por achar que uma luta tinha acabado simplesmente por ter derrubado o adversário. O mais importante, entretanto, é a cena em que ela chega e a Teacup fica nitidamente impressionada e inspirada - é isso que acontece quando uma mulher autônoma ocupa um espaço, ela inspira todas as outras a fazer o mesmo, e isso é foda. Mesmo ela estando inserida em um filme tão comercial, tão pasteurizado, e tendo pouco espaço pra ser explorada como profundidade, a simples presença dela é um sinal dos tempos - não se aceita mais que uma história voltada pra adolescentes e jovens adultos disponha de mulheres somente como "mocinhas" ou "parte do time". E isso é foda.
De modo geral, o filme é divertido, mas é bom não assistir esperando um marco do gênero, rs.
Ok, admito: achei graça de João e Mari andando por um mundo medieval com escopetas, metralhadoras, bestas automáticas e armadilhas feitas com cabos de aço :~~
Assistir filmes antigos é sempre um risco. Afinal, estamos sempre lendo ele com as lentes do nosso tempo, que sempre tem uma relação dúbia com o passado - ao mesmo tempo que o abraça, como fonte do que gosta de gabar a seu próprio respeito, o presente também repele o que já passou, como que pra não lembrar daonde veio. Acho que por isso "Sabrina" me entendiou um pouco no começo: como criança dos anos 90, criada nas comédias românticas da Sessão da Tarde, não consegui ver a relação com esse filme de Wilder.
Mas passou, viu? O filme é divertido, e entrega bem os pressupostos de seu tempo, privando os olhares atentos do perigo da anacronia.
Quero dizer, o fato de Sabrina só atrair os olhares românticos de David e Linus após voltar da França fala bastante sobre o "século XX", que o herdeiro mais velho dos Larrabee faz questão de evocar sempre como sinônimo de avanço e progresso, não? Era tudo uma questão de imagem.
A personagem de Audrey Hepburn é encantadora demais, como toda mocinha de comédia romântica costuma ser. E é curioso como a mudança de seu alvo amoroso representa uma nítida forma de maturação: em vez de continuar perseguindo o amor da adolescência que tanto a desprezou no passado e que exala irresponsabilidade, Sabrina se encanta pelo multifacetado Linus que deixa que ela veja todos os seus lados humanos abaixo da carranca do pragmático homem de negócios. E o que pode ser mais apaixonante do que desvendar os mistérios de uma alma, não é verdade?
Preciso dizer que a lógica do Linus sobre a efemeridade e inutilidade do lucro me surpreendeu, pois não esperava ver isso no filme. Suas ideias sobre trabalho e desenvolvimento tecnológico girando em torno de inclusão social são uma evidência notória do que se vivia nos EUA quando o filme foi lançado - a vitória do New Deal proposto por Roosevelt na década de 30, e que confirmou o sucesso do Estado de Bem Estar Social no Ocidente após a Segunda Guerra Mundial. É compreensível a menção, claro, e isso torna o filme mais gostoso de se ver ainda.
O que o tempo faz com uma franquia de ação oitentista que transpira gasolina e testosterona? Transforma. Onde antes havia uma narrativa de vingança movida a ódio, temos uma redenção libertadora; onde antes havia uma certeza distópica masculina, recebemos a esperança feminina; onde antes tínhamos uma afirmação individual, encontramos um questionamento coletivo. E, caralho, isso era muito necessário.
Acho que a essa altura do campeonato todo mundo já se tocou que esse filme tem muitas camadas, que vai muito mais além do que a história de um mundo destruído dividido por gangues loucas e sádicas. O que mais grita é a noção feminista de destruição do patriarcado, aqui representado por toda a estrutura de poder em torno de Immortan Joe. A desumanização das mulheres, o tratamento como meras máquinas de reprodução que pertencem ao patriarca e a forma cega com que os homens perpetuam e alimentam essa organização sem sequer se questionar. Aqui parece tudo absurdo porque há o cenário fictício e a personalização da exploração na figura do Joe, sem que ninguém próximo a ele questione, mas em níveis maiores é isso que acontece o tempo todo. E em tempos de mulheres se organizando, denunciando e lutando cada vez mais por seus direitos, "Fury Road" é bem categórico sobre o lugar dos homens nesse movimento: lutando contra quem não aceita a autonomia dessas mulheres sempre que possível, mesmo que isso signifique perder status diante do poder de quem mantém esse sistema (como Nux fez de forma extrema, se sacrificando pra garantir a morte de todo o exército do Joe), e abrindo mão de todo e qualquer louro das vitórias (como Max fez, ao deixar a Cidadela enquanto Furiosa é aclamada).
Inclusive, a relação entre Max e Furiosa foi a coisa mais sensacional no filme. São duas pessoas que se tornaram guerreiras pelas condições, pela necessidade de sobreviver, e se respeitam por isso. Não há insinuação de interesse amoroso em momento algum, mas de cooperação em prol de um objetivo comum, um bem maior do que eles mas que lhes dá a oportunidade de redenção. O fato dela ser a grande protagonista do filme, inclusive, é uma ótima forma de colocar em uma prática bem palpável a noção libertadora e empoderadora que o roteiro traz como conteúdo.
A própria trajetória de libertação mesmo traz alguns conceitos sensacionais: as jovens que fogem do Imortan Joe não matam ninguém no filme, chegando ao ponto de uma delas se assustar ao saber que as Grandes Mães que restaram matam pessoas. A simbologia disso é gritante na cena em que estão dirigindo à noite, e a luz na parte de traz da cabine do caminhão ilumina as jovens, enquanto deixa Furiosa, Max e Nuz no escuro - as iluminadas guardam o potencial pro mundo de amanhã, distante de toda a morte e carnificina essencialmente masculinas (no filme e no mundo, sejamos sinceros), as personagens que ficam no escuro já foram tão consumidas pelo que tiveram que faz pra sobreviver nesse mundo que o melhor que podem fazer é buscar alguma redenção como pontes que tornem esse futuro possível (e aqui a sobrevivência da Furiosa no final ganha o sentido de que, bom, conquistar a Cidadela é só o começo da construção desse novo mundo, ainda há muito a ser feito).
O único fato que me impede de dar 5 estrelas pro filme, na real, é esse curioso fato de que numa Austrália pós-apocalíptica (pra quem não lembra, Mad Max se passa todo na Austrália), não há uma pessoa não-branca sequer, mesmo os habitantes nativos do continente sendo pessoas não-brancas. Aliás, minto: a Zoe Kravitz tá lá pra cumprir a cota, mas tã TÃO esbranquiçada que nem conta. Isso é foda, é ter uma mensagem sensacional sobre libertação e empoderamento feminino, ter um elenco principal majoritariamente feminino, dando cartaz e voz pra essas artistas mostrarem seu talento, mas manter justamente a parcela mais marginalizada desse grupo historicamente oprimido no mesmo lugar de invisibilidade.
Em dado ponto desse ano que passou, cheguei a duvidar que esse filme fosse mesmo tudo que estavam falando. E não era mesmo: é muito mais.
Uma estrela e meia porque a paródia da situação do Eike Batista me surpreendeu, e o Leandro Hassum mostra que continua sabendo fazer comédia física (coisa que a Globo tá ignorando nele desde que emagreceu).
Mas, porra, monte de piada preconceituosa, mensagem super reacionária sobre política e ainda passaou a mão na cabeça do Thor Batista, né? A paródia dele aqui é um jovem bonzinho que atropelou um cara que foi imprudente no meio da cidade - na vida real ele só estava a 350km/h e matou um cara que tava de bike no acostamento, né.
Uma coisa que tem me chateado bastante nos últimos anos é a total falta de nos grandes centros do cinema. Pegue a lista de filmes em cartaz, até nos circuitos alternativos, e verá uma leva de adaptações cinematográficas, remakes ou reboots. Ninguém arrisca mais em uma história original por uma demanda industrial mesmo: a lógica é que se você faz um filme a partir de algo que já foi aprovado por uma certa audiência, a expectativa de retorno é maior. Como muitas vezes as obras que originam os filmes tem algumas décadas de criadas, geralmente esses filmes não consegue se comunicar com o público de seu tempo de lançamento e viram apenas um afago carinhoso nos fãs da obra orginal, além de um sorpo de vida pra galera do "antigamente-tudo-era-melhor".
Isso é meu jeito de dizer que assisti "The Gambler" esperando algo assim, completamente distante de mim, por se tratar do remake de um filme de 1974, com foco em jogos de azar (algo que realmente não é mais lá tão comum hoje). Bom que o filme me surpreendeu, até porque definitivamente não é uma história sobre apostas e dívidas, mas sim uma história sobre vazio e fracasso.
Bennet é uma personagem desprezível, é verdade, mas fala direto com as famigeradas gerações Y e Z: pessoas historicamente privilegiadas que mesmo sem ter uma família podre de rica tem aos seus pés todas as oportunidades de mundo e pra não fracassar escolhem nem mesmo tentar. O dilema entre "vitória total" e "derrota total" nunca esteve tão atual - é só olhar as estatísticas de depressão e ansiedade crescendo exponencialmente nos últimos anos que isso salta aos olhos. Até por isso Whalberg entrega uma interpretação diferente do que estamos habituados a ver vindo dele, porque traz em si o vazio tão característico do conflito que vem da certeza de sua própria qualidade contra a constatação de quão frágil ela é. A direção não me chamou muita atenção, mas o rumo final da história me incomodou um pouco. A "vitória total" de Jim no filme foi o amor de Amy, única aluna em que vê um real potencial para a escrita. Isso reforça a lógica da "mulher troféu", que é bem machista. O curioso é que indica que Jim está realmente mais parecido com sua mãe, como ele mesmo havia percebido, largando sua jornada de "vida e morte" em prol de um possível casamento, algo "Real", nas palavras de sua própria mãe. E é uma resposta interessante pro dilema geracional com o qual o filme dialoga: o vazio dessas gerações recentes, egóicas, talentosas e covardes ainda não tem uma resposta específica, então acabam aceitando alternativas tão velhas quanto a própria humanidade - como é o caso do amor.
Não é Meu Tipo
3.5 27Mais do que escolhas ou crenças, as nossas contradições nos entregam. E entregam bem Clément e Jennifer: ele, um homem que vive de questionar a realidade que o cerca e o preenche... mas não consegue abordar filosóficamente, criticamente, a sua própria postura quanto a relacionamentos amorosos, ao que faz uma vez que dentro deles; ela, uma romântica incorrigível (graças a deus?), que sabe o quanto o amor é um jogo de dar e receber... mas sustenta um relacionamento quase que sozinha, dando muito menos do que recebe, e sem ao menos perceber. As primeiras cenas das personagens fazendo o que gostam nos dizem isso: ele lecionando sobre a utilidade da filosofia como forma de compreender o mundo, ela cantando com as amigas. O curioso de "Não É Meu Tipo" é fingir que está nos dando o ponto inicial de uma jornada que invariavelmente nos levará a outro lugar para, no final das contas, nos fazer passar pela mesma estação ao fim da viagem. Mas assim como o rio de Heráclito, nem nós somos os mesmos, por tudo que mudamos no decorrer dessa viagem, nem aquela estação. E muito menos as personagens.
Clément não queria ir a Arras por julgar a cidade inferior a si. Ele merecia coisa melhor, é o que pensava. A verdade sobre ele e o que pensa do amor é entregue por sua ex-namorada: um covarde, que tem medo de entregar-se, medo de construir uma relação, de atravessar o limite da tragédia. Nesse medo, o filósofo não percebe que, na verdade, sempre atravessou o tal limite - o fato das lágrimas jorrando não serem as suas não torna a história menos triste.
Jeniffer, por outro lado, vivia a esperar um amor que ela tinha certeza que chegaria. E quando Clément aparece, tão diferente dos outros, tão indiferente a seu toque na cadeira do salão, ela soube que era ele. Por isso toda a empolgação após ser convidada pra sair, e as lágrimas na porta do pub antes de encontrá-lo. Ela estava propensa a apaixonar-se antes mesmo de conhecê-lo, ele foi convenientemente a tela em branco que ela precisava para projetar a felicidade que desejava.
A falha do relacionamento dos dois é, acima de tudo, a falha da comunicação. Não há diálogo: existem os monólogos dela, que ele tolera (para passar o tempo? para alimentar sua vaidade?) e os momentos de maior exposição sentimental em que compartilham as obras artisticas que os compõe como pessoas um com o outro (ele e suas leituras de livros, ela e suas canções). E, nisso, a covardia anunciada por Marie no começo do filme se confirma quando Clément desiste de dar seu livro de presente a Jennifer por temer a confrontação inevitável que decorreria daí - afinal, na sua tentativa de pensar o amor, ele se debruçou na verdade a necessidade afetiva, o desejo carnal, não o sentimento e seus significados. Sabendo que desse confronto muito pouco ou nada sobraria, ele optou por omitir o livro. Por continuar sendo a tela em branco aonde Jennifer projetaria seu príncipe encantado.
Toda conveniência é interrompida quando ela se choca com o interior dele na livraria, ali, empilhado. E, bom, ali está a antítese de tudo que ela acreditava. E de tudo que ele permitiu que ela acreditasse, sobre ele e sobre a relação que ela carregava sozinha. O rompante dela é a fúria de quem se percebeu enganada. E o retorno dele é o retorno de quem, diante do confronto tão calculadamente evitado, percebeu que havia mais dentro de si do que apenas vontade de passar o tempo naquela cidadezinha provinciana.
Desde que fazem as pazes e Clément pela primeira vez no telefone admite seu medo (só pra ela, não pra gente, não o ouvimos falar), a relação parece ter uma guinada. Ele investe mais, ele se expõe mais. Ela se protege um pouco mais, brinca com as expectativas recém-criadas por ele. A certeza de Jennifer no amor nunca a lançou numa busca por perfeição, ela já aprendeu que isso não existe. Ela só queria, mesmo, ser amada. De um jeito verdadeiro, honesto, só isso. E ela estava tendo isso, achava. Só achava, porque a ~~felicidade triste~~ de Clément era uma resposta ao meu sentimento que ela compartilha com ele na praia: ela pensa que talvez fosse melhor do que viver ver aquele momento de felicidade amorosa acabar, mas está feliz mesmo assim; ele se distancia e para evitar o mesmo momento final se proíbe de viver um amor, apenas contempla tudo que ama (a beleza adormecida dela, a ida dela até a porta do colégio para buscar Dylan, seu sorriso estampado durante o expediente). Talvez essa covardia e esse medo tenham a ver com o medo de repetir a trilha de seus pais, de ver o amor morrer e deixar no seu lugar um sósia composta de rotinas e comodidades e repetições esvaziadas do que um dia já foram sorrisos... mas sua fuga já não seria em si uma repetição?
Acontece de na festa, em que Jennifer apresenta-o empolgadamente a seus conhecidas, o encontro com Hélène traz à tona aquele mesmo desprezo que Clément sentia por Arras no começo: ele não tem coragem de apresentá-la, de dizer que sim, estava ali com Jennifer, a cabelereira que ele amava. O olhar que a colega professora lança à jovem Kantiana combina com a feição inexpressiva do homem, pego fazendo algo do que não se orgulha. Ali, mais uma vez, as diferenças inconciliáveis entre os dois são esfregadas na cara de Jennifer. Não tem como dar certo: ela é uma romântica e ele não crê no amor, ela está disposta a assumir aquela relação mesmo com todas as diferenças entre eles e ele tem vergonha de estar com ela. Ali, tudo se torna insustentável. Mas, como boa romântica, Jennifer espera até o último momento para uma salvação. Ela espera que ele perceba sua mudança de comportamento, que ele questione, que ele brigue pela viagem inesperada e não-comunicada... mas só encontra a velha indiferença, a já tradicional distância contemplativa que a impede de sentir de fato o amor que Clément sente.
No fim, a saída dela pela porta dos fundos da história não é uma fuga. Suas amigas inicialmente ficam felizes apesar da partida surpreendente, mas ela estava indo atrás do seu amor, não é mesmo? E isso é verdade, ela foi atrás do amor, que definitivamente não estava em Clément. E como ele mesmo havia dito quando sua transferência foi designada para Arras, as pessoas podem até gostar daquela cidade mas nunca ficam lá pra sempre.
A grande ironia está na posição dele nesse final. Desde o começo ele sabia exatamente quais os limites daquela relação, as fronteiras que nunca estava disposto a atravessar (levá-la a Paris consigo, ou cantar com ela no sofá da sala ou qualquer coisa que permitisse que ela rompesse seu perímetro de distância segura), pela primeira vez não sabe o que está acontecendo quando busca por ela no trabalho e não a encontra. Jennifer sobreviveu, aprendeu a seguir em frente e sabe que enquanto souber amar, saberá viver. Clément se vê pela primeira vez em algum tempo como a pessoa que foi abandonada e não a que abandonou. E foi melhor assim. Não importa se ela vai realmente encontrar o amor de sua vida, ou se ele vai realmente repensar a forma como lidar com sentimentos e relações. O que importa é que eles, de fato, não faziam o tipo um do outro.
Eu acho que gostei desse filme.
[visto em 12/03/16]
O Menino e o Mundo
4.3 735 Assista AgoraCostumo fazer comentários bem prolixos e análiticos sobre os filmes que assisto. Mas "O Menino e o Mundo" me surpreendeu tanto que o melhor que posso dizer é: assistam, façam esse favor às suas próprias sensibilidades. Não é todo dia que uma produção nacional apresenta um conceito tão bem fechado e conta uma história tão tocante enquanto disserta sobre algumas das principais questões do nosso mundo sem ceder a um pessimismo inescapável ou a um cinismo inútil. E, bom, ainda se trata de uma PUTA ANIMAÇÃO, né? Sério, vale muito a pena.
[visto em 06/03/16]
Divertida Mente
4.3 3,2K Assista AgoraQuando era adolescente achei um livro velho nas coisas da minha mãe. Chamava "Análise do Homem", o escritor era um cara chamado Erich Fromm e tratava basicamente de como todas as emoções são importantes e positivas para que as pessoas tenham uma vida mentalmente saudável. Lembro de ter pensado que essa era de fato uma mensagem importante e me lamentado de se tratar de um livro com uma linguagem bem acadêmica e pouco acessível pra maior parte das pessoas da minha idade na época. "Divertida Mente" veio pra suprir essa lacuna e ensinar direitinho a mensagem pra um público ainda mais jovem do que eu era quando li o tal livro. E fazer MUITO bem.
A história é ótima, foca num momento determinante na vida de todas as pessoas, que é a entrada na adolescência. A perda das referências de infância, a percepção de que as fontes de sentimento da infância não são as mesmas, de que o mundo não é mais tão absoluto dividido quase que basicamente entre felicidade e alegria... tudo isso é ótimo. A própria aventura de saída e retorno das duas emoções da central de controle da Riley inclusive faz muito sentido: diante da mudança de casa e de momento de vida, toda ideia de alegria e tristeza da garota se relacionavam com o passado, a única reação que ela tinha com o mundo ao seu redor era de medo, raiva e nojo mesmo.
Fica nítido na cena em que as emoções não conseguem mais manejar o console de sentimentos da menina e ele começa a ficar morto, cinza, desligado. Num mundo em que as reações à depressão são divididas entre menosprezo do sofrimento psiquíco de quem tem essa doença e a glamourização irreponsável que equipara essa condição a uma espécie de melancolia artística, "Divertida Mente" traz uma explicação didática: depressão é não sentir nada, é não reagir emocionalmente a nada, é se ver inerte a respeito do mundo ao seu redor e preso no seu próprio sofrimento interno. O fato de Riley ter sido resgatada pela tristeza, que ~~conserta~~ o console e tira a ideia de fuga de sua cabeça se torna ainda mais significativo: a demonstração e o reconhecimento da tristeza é uma forma natural que as pessoas usam pra se vincular, se aproximar e se associarem umas às outras. Sentir tristeza fez Riley perceber que ainda era capaz de sentir coisas, sim, e mais ainda de expressar essas emoções de modo a se conectar novamente com seus pais (e a tristeza que toda aquela mudança também trazia a eles).
Enfim, é um clássico filme da Disney Pixar: roteiro impecável, dialógos maravilhosos e animação incrível. O filme ainda tem muita coisa digna de menção em termos de pontos interessantes da história
(a infância como período dominado por alegria e tristeza, a adolescência como descobertar de que é possível sentir mais de uma coisa ao mesmo tempo, a mudança das ~~lembranças centrais~~ das pessoas que somos, etc)
[visto em 04/03/16]
Como Ser Solteira
3.3 485 Assista AgoraÉ difícil eu ver um filme e não conseguir encontrar nada positivo nele, mas "Como Ser Solteira" chega perto. A premissa interessante, de uma protagonista aprendendo a apreciar sua própria companhia em detrimento da necessidade de estar em um relacionamento amoroso imposta pela sociedade, cai por terra diante de todos os estereótipos ofensivos do filme
(tem pra todos os gostos, da mulher de meia idade que nunca quis ter filhos e magicamente cria uma vontade enorme de procriar até a moça gorda que não tem profundidade e só serve como alívio cômico, passando pela programadora bem sucedidade que está louca pra casar por sentir o ~~chamado da idade~~ e o barman canastrão que não quer nada com ninguém)
, de que você precisa aprender a ficar só pra valorizar quando estiver com ~a companhia certa~
[visto em 03/03/16]
Leviatã
3.8 299 Assista AgoraUm grande monstro, que sobrevive a tudo e amedronta a todos. É bem direta e forte a forma como o filme apresenta a visão que Thomas Hobbes teve do que seria o Estado ideal, que determinaria e conduziria a "luta de todos contra todos". Em "Leviatã", Zvyagintsev concorda com o que o filósofo inglês fala sobre a ~~natureza humana~~ e as ações do filme exemplificam bem:
a forma como a luta de Kolya o leva a negligenciar cada vez mais sua família, o affair entre Lilya e Dmitri, a reação de Roma a toda a situação e, claro, a utilização de toda a máquina estatal por Vadim para fazer seus compromissos políticos valerem em prol da reeleição, tudo é uma afirmação do egoísmo humano.
Mas vai além. Porque, na visão do cineasta russo, esse Estado não evita a condição de "caos natural" do ~~Estado de Natureza~~, mas sim se torna o principal ator e mecanismo de vitória dentro desse jogo de gato e rato. E aos adversários do Leviatã restam duas opções: lutar e ser devastado como a família protagonista foi, ou fugir e aproveitar a oportunidade de sobrevivência que o monstro lhes dá - de preferência, para apreciar a paz existente nos pedaços de natureza que parecem mais antigos e fortes que o perigoso "homem artificial" conceituado por Hobbes.
É muito interessante como essa constante ameaça congela o que poderia haver de mais aconchegante nas pessoas. As tomadas do mar e do clima ártico ambientam perfeitamente a total falta de paixão das personagens. A luta de Kolya, movida pelo seu senso de propriedade, claro, mas também pela noção de que aquela terra pertenceu à sua família por mais tempo do que aquele governo existiu, é o mais próximo disso que encontramos, todo o resto é uma questão de comodidade. E sua derrota final não deixa de ser uma afirmação de como não há espaço para entregas sentimentais em um mundo tão pragmático e perverso.
O que acontece com todos, especialmente com Lilya, demonstra também o quanto é parte da vivência humana essa coisa de esquecer o quanto dessa frieza, desse pargmatismo e dessa perversidade existem dentro de nós. Como o próprio Kolya diz, "é impossível fugir de si mesmo". Dmitri também me intrigou bastante inicialmente, por seu compromisso com o amigo, por ter comprado sua briga, por ter buscado munição para garantir sua vitória. Mas, ora, se somos pragmáticos e egoístas por natureza, este é um imperativo do qual nem os melhores de nós escapam. E justamente por ser natural, não há esperança para nós - e essa certeza chega com força quando percebemos que foi Roma quem matou sua madrasta, e que se manterá em silêncio sobre isso mesmo que o custo de seu segredo seja o encarceramento de seu pai, e que tal modo de ver o mundo é tão comum ao garoto que lhe parece improvável que Angela e Pacha realmente queiram cuidar dele sem ter nenhum benefício em troca.
A deturpação da ideia de "bem comum" é central, e constitui uma crítica central do filme, e que acaba tendo caráter local ao expor a profunda desilusão política que enfrenta a população trabalhadora na Rússia
(seja com o que percebem como hipocrisia dos líderes de outrora, seja com o evidente autoritarismo dos líderes de hoje e que permeia todas as esferas do Estado, como o longa busca mostrar - todos os funcionários públicos no filme são grosseiros, omissos, corruptos e autoritórios). A fuga que Kolia encontra no alcoolismo é a mesma que maior parte dos homens de classe trabalhadora encontra, e que leva a maior parte deles para o caixão.
E o que mais dói é que a partir de determinado momento do filme passa a pairar sobre quem assiste o pensamento de que talvez a vida estivesse boa para aquela família caso Kolia não tivesse comprado aquela briga
, que ele deveria ter ~~aceitado seu lugar no mundo~~. Fazemos o que as personagens fazem em diversos momentos: fingimos que o controle sobre todas aquelas coisas poderia estar nas escolhas que fazemos tanto quanto Angela acredita que Pacha pode impedir que "o caos aconteça" no lago, julgamos as contradições e ambiguidades das personagens absolutizando condutas e esquecendo de nossas próprias incoerências tal como Kolia ao falar do amigo "tirano que enterrou duas mulheres".
[visto em 27/02/16]
O Último Trem
2.9 552 Assista AgoraClássico filme de suspense, que realmente prende a atenção e dá uma resposta final que ninguém estava esperando. Me surpreendeu a discussão sobre arte que o filme traz, como ela apresenta a ~~vida real~~ pra pessoas que não tem coragem o suficiente pra ir lá fora e de viver e presencial a vida acontecendo. E, o pior: como elas tem lá sua dose de razão em evitar essa vida. Mas, olha, fico com a impressão de que foi escrito nas carreiras, porque a reação da Maya no meio daquela onda toda é simplesmente incompreensível e mentirosa demais. E a cena do ~~sequestro~~ da Erika incorre em algo que me incomodou bastante:
a mulher acabou de escapar de uma tentativa de estupro e... beija o desconhecido que a salvou. Isso é um filme contando uma história ou a fantasia de um punheteiro que se acha um cara legal?
No mais, Bradley Cooper se consolidando como aquele ator que não gosto muito, mas que sempre faz filmes minimamente divertidos, rs. Como amante do cinema de terror e suspense, olha, até que curti (até porque, né? Vinnie Jones é foda demais, espero o momento em que vamos reconhecer esse caro como uma espécie de Vincent Price do século XXI), mas passa longe de ser um grande filme.
[visto em 27/02/16]
Vida de Adulto
3.3 232 Assista AgoraTenho a sensação de que o pré-requisito necessário para se rodar uma comédia romântica nos anos 10 era a total ausência de um final feliz. Ou melhor: tinha. "Adult World" é um ponto fora dessa curva de histórias sobre juventudes frustradas, solitárias e dolorosas. Digo, tem tudo isso, mas com mais comédia do que imaginei que teria - e isso foi uma surpresa positiva.
Amy é a típica poetisa pretensiosa, exemplo perfeito da jovem que não viveu nada e acha que sabe de tudo (mesmo sendo incapaz de reconhecer a numeração de um ônibus da própria cidade em que vive). Foi surpreendente ver Emma Roberts em uma personagem que tem os dois pés fincados na comédia. Acompanhar a personagem percebendo que a vida que idealizava pra si do alto de sua mentalidade de classe média com síndrome de floco de neve estava longe é tragicômico no filme, mas é o que acontece com todo mundo da minha geração, que se acha no direito de ganhar o mundo de presente. E foi legal ver que reconhecer isso foi o que ela precisava pra ser o que sempre quis ser, ainda que não pelo caminho que sempre se viu percorrendo. A relação com o Alex cai bem aqui como um contato com alguma ~~arte de verdade~~, que existe pra expressar algo real e não apenas pra caçar fama, uma espécie de despertar artístico. Isso também foi legal.
E, nossa, Rubia. De primeira fiquei incomodado de ver um ator cisgênero interpretando uma personagem trans (pq é foda, qual a dificuldade de colocar uma atriz trans?), mas me alegrou ver o papel da personagem no filme: ela é uma pessoa, com trajetória própria, cuja existência na história NÃO gira em torno de sua transgeneridade, que desenvolve uma relação sincera com Amy, que tem momentos humanos de diversão e angústia, como todo mundo. Parece pouco, mas é muito comum que os filmes que trazem personagens trans façam essas personagens girarem em torno tão somente de sua identidade de gênero e as consequências disso. Aqui, Rubia é só mais uma pessoa, tão especial quanto qualquer outra, e tão ordinária quanto qualquer outra. Isso é legal demais.
Mas tem do que reclamar, sim.
Em muitos momentos o filme força demais a barra pra parecer um clipe indie, e não conseguir perceber o quanto disso é intencional ou não só piora as coisas. Os estereótipos não me incomodaram tanto, mas pelo tempo de tela podiam ser mais aprofundados (esse escritor frustrado do John Cusack, imerso na lembrança de um talento que já sente não ter, é tão chatinho... cumpre o papel de abrir os olhos da Amy, sim, mas é a personagem podia mais interessante ser mais interessante, assim como a amiga ativista que mente sobre ~~ações revolucionárias~~ pra ser a melhorzona).
No final das contas, a ideia de que a gente tem que gastar menos tempo pensando no que devemos/podemos ser e mais vivendo/sendo as pessoas que somos é velha, nada original, mas atinge como um soco as Amys da vida, que se acham portadoras de um talento especial por conta dos elogios familiares e das notas escolares. E como boa Amy que sou, vou tratar de aprender, rs.
[visto em 22/02/16]
A Viatura
3.1 211 Assista AgoraAssistir filmes no escuro é uma boa. A sinopse que vi de "Copcar" na sala de cinema me deu a entender que se trataria de uma espécie de "Goonies", sabe? E o começo do filme reforçou a impressão, vendeu bem a ideia: dois guris, no interior dos EUA, com um jeitão que evoca a infância de quem cresceu no fim dos anos 80/começo dos anos 90... mas a cinematograpfia de Matthew J. Lloyd e Larkin Seiple deixava a pulga atrás da minha orelha o tempo todo, com aqueles planos abertos focando no vazio ao redor das crianças. Eu só não imaginei que essa pulga mordesse tão forte. Jon Watts era um nome alienígena pra mim até então, mas, olha, esse foi um belo cartão de boas-vindas que recebi dele.
O jogo de Watts aqui é de rir e apontar o dedo pra cara de nossas tacanhas sensibilidades nostálgicas. Digo, todos nós, 90's kids, recordamos com carinho dos filmes em que crianças se metem em aventuras perigosas, certo? E essa obra vira pra gente e diz "ah, você acha legal crianças se aventurando sozinhas? Então olhe o que isso significa, agora que você é adulto" - e se você não abafou um grito na hora que Travis investiga o gatilho travado do riflo apontando o cano da arma pro seu próprio olho, você tem problemas.
E o longa leva isso de modo bem interessante, oscilando cenas leves de crianças inocentes e ousadas vivendo uma aventura com o desespero do xerife (muito bem interpretado por Kevin Bacon) envolvido possivelmente com um esquema de tráfico de drogas e se vendo sem saída agora que evidências de sua vida criminosa podem vir à tona. Essa ~~dupla linguagem~~, se podemos dizer assim, fez com que minhas expectativas fossem de um extremo ao outro com a fluidez com que o filme transita entre cenas: quando Harrison e Travis apareciam, me via esperançoso a respeito de um final feliz (inclusive, mérito deles, realmente convencem sendo crianças dos anos 90 em um filme de 2015, não parece nada forçado), mas quando o xerife aparecia vinha com ele a certeza de que tudo ia dar errado. E o terceiro ato, na estrada? Nossa, tira o fôlego, completamente.
No final das contas, o fim da história reforça esse caráter ~~despertador~~ do filme, de nos atentar pro quanto nós não somos os mesmos e nossas sensibilidades artísticas se alimentam de mais do que nostalgia: na vida real, os heróis de dez anos estão se cagando de medo (e talvez a saudade que temos da infância tenha a ver com o medo que nós mesmos sentimos o tempo todo).
[visto em 18/02/16]
A Garota Dinamarquesa
4.0 2,2K Assista AgoraA primeira notícia que tive de "The Danish Girl" foi de que Redmayne interpretaria Lili, e já torci a cara. Nada contra ele, mas estamos em 2016 e Hollywood ainda é incapaz de recorrer a atrizes trans para interpretar personagens trans? É aquela diversidade de vitrine: "nós contamos suas histórias pra emocionar a plateia, mas nada de gente de vocês participando do processo, ok?". Redmayne entrega uma boa atuação, é verdade, mas essa escolha afeta bastante a minha leitura da obra.
O filme é bonito e, diferente de boa parte dos comentários abaixo, adorei a falta de didatismo da história. Digo, estamos falando da década de 30, quando ninguém falava sobre transgeneridade e sequer a própria Lili sabia o que acontecia consigo. Como a história dela poderia explicar, detalhadamente, sua situação? Esperar isso do filme é uma forma de sabotar a experiência cinematográfica, que toca em pontos beeem importantes, como o caráter repressor da autoridade médica e a intolerância agressiva da sociedade, mas sem colocá-los no centro do filme que é certeiramente ocupado pela descoberta de Lili.
Agora, o aspecto mais profundo da história é Gerda. A atuação de Alicia Vikander é incrível, e o sofrimento que a personagem enfrenta ao lidar com toda aquela situação é palpável.
Não à toa, o único momento em que a expressão "danish girl" é usada no filme é pelo Hanz, antes de recebê-la em seu escritório - "there's a danish girl here waiting". Tudo que ela fez pelor amor que sentia e a forma como o levou durante toda sua vida, mesmo depois da partida de Lili... é bem tocante.
[visto em 14/02/16]
Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom
4.3 184 Assista AgoraQue a Ucrânia tá uma bagunça desde 2013, qualquer pessoa que acompanhe noticiário sabe. Esse doc faz um trabalho bem legal de mostrar histórias e sentimentos por trás dos informes de menos de um minuto que costumam ocorrer aqui no Brasil sobre essas situações (fora uma ou outra reportagem no Fantástico ou Globo Repórter sobre ~~os horrores da guerra~~).
Chama atenção o recorte feito, anterior à Guerra Civil e focando nos acontecimentos em torno da Praça da Independência, em Kiev:
é uma saída para construir a narrativa nacionalista, quase apolítica, que a obra procura. E isso é um empobrecimento, porque as disputas internas no movimento foram enormes e fundamentais pra que hoje o país enfrentasse uma guerra e o domínio de um grupo político neonazista. Há a desculpa de que o documentário foi filmado durante os eventos, então não sabiam muito bem ao que as coisas iriam levar, mas, gente, os eventos narrados terminam em 2014 e o filme foi lançado em 2015. Dá pra ver que as entrevistas foram feitas depois e há elementos em algumas cenas que já despertam o olhar de quem assiste, como a cena em que uma bandeira anarquista tremula em meio às flâmulas ucranianas no monumento central da praça.
É curioso ver como em alguns momentos busca comprar alguma legitimidade documental ao contrapor depoimentos um pouco contraditórios (alguns manifestantes reforçando o caráter pacífico de algumas empreitadas, enquanto outros apontam que a maior parte das pessoas estava movida por vingança pelos danos causados a seus amigos), e isso chega a ser risível pelo viés tendencioso que a obra apresenta do começo ao fim. Se buscar seriamente uma objetividade neutra é algo risível por ser impraticável, forjar essa busca chega a ser condenável devido à desonestidade. E mesmo se tratando de uma obra bem executada, editada e dirigida, isso estraga "Winter on Fire" - principalmente se a gente for pensar que cerca de 2 anos antes a Netflix entregava "The Square", que no papel é um empreendimento parecido, mas muito mais focado nas pessoas envolvidas nas manifestações no Egito do que em uma propaganda nacionalista, quase fascista.
[visto em 10/02/16]
Anomalisa
3.8 497 Assista AgoraSabe o que acontece? Nunca consegui gostar de nada que envolveu o nome de Kaufman. Tentei, assisti várias coisas, e tudo parecia tão distante, tão sem graça. "É isso?", me perguntava, diante de tão grande admiração expressada por pessoas cuja opinião eu valorizava e tão pequeno impacto que suas obras causavam em mim. "Anomalisa", que curiosamente ma atraiu por ser uma animação, me ensinou que o lance é que os roteiros do cara sempre falaram de uma vida que eu ainda não conhecia por não ter sentido a textura do asfalto quente na carne viva junto com o gosto do sangue na boca.
A desventura egoísta e modorrenta de Stone em torno de algo ~~novo~~ é uma bela forma de lembrar a quem quer que assista o filme que não, nenhum de nós é especial. E, no caso dele, é tudo muito irônico porque ao passo em que tem cada vez mais certeza sobre o quão ordinária é toda vida que o cerca, o cara vive de convencer atendentes ao público de que cada cliente na sua frente é um floco de neve particular. Ele fala sobre a importância de fazer as pessoas se sentirem valorizadas, mas exala desdém por todas as pessoas que encontra ao longo de todo filme: ele se incomoda com o taxista conversador, ignora o funcionário do hotel que está colocando em prática algumas das principais lições que ele aborda em seu livro, negligencia seu filho (pra quem leva uma espécie nefasta de boneca inflável como souvenir de viagem). A única pessoa que engatilha algo novo no protagonista é Lisa.
Ela e sua voz única, diferente da de todos os outros, chamam sua atenção, gera uma verdadeira catarse que abre a válvula de todos os sentimentos que Michael não sentiu nos últimos 10 anos. Suas singularidades capturam seu coração. Eles se amam, se entregam. E ele se impõe. Nessa imposição, adeus amor: Lisa se torna apenas mais uma, igual a todas as outras pessoas para quem ele mente. A alteração gradual da voz dela, a mudança visual da expressão dele, essa sequência me fisgou muito. E a luz atrás dela, iluminando seu rosto, só reforça a ideia de que aquela é ~~a verdade~~, que estava lá o tempo todo e Michael estava mentindo para si, buscando de alguma forma viver um sentimento tão intenso quanto o que tinha tido por Bela, 10 anos antes, na mesma cidade. E que acabou subitamente, assim como aconteceu com Lisa.
É foda, porque a ligação dele pra ela não tinha o objetivo de reacender a velha paixão, não: Michael sabia que não havia mais nenhum sentimento por Bela em seu coração (em suas lembranças, ela também soava ordinária), ele apenas queria usá-la para se sentir menos solitário aquela noite. É foda, porque quando vemos a forma como as duas personagens falam de si, percebemos duas mulheres inseguras, com a autoestima em frangalhos, e que são bastante afetadas por ele - e esse padrão fala muito da própria insegurança de Michael, de seu próprio conceito de amor como uma jóia rara que existe nos lugares mais inesperados e de como ele se sente realizado no momento da descoberta (mas só naquele momento). E ainda há a esposa, menosprezada por ele, mas que demonstra também sua insegurança quando diz que não quer que ele vá embora, apesar de tudo.
Uma pulga que ficou atrás da minha orelha foi a menção a Fregoli. Ao encontrar Bela ele menciona ter problemas psíquicos, o que pode ser uma deixa para sua própria condição. Conheço pouco da Síndrome de Fregoli e não sei se ela pode se manifestar como no sonho de Michael, através da noção de que todas as pessoas no mundo são uma só. Nesse pesadelo chama atenção o momento em que a máscara de Stone cai durante sua fuga, revelando uma face vazia, sem nada por baixo. Como diz sua esposa no fim, nenhuma pessoa sabe exatamente quem é, e a crise existencial de Michael em conjunto com o possível transtorno psíquino pode levá-lo a se ver como esse saco vazio - e isso pode até ser visto por ele como o grande motivo para que seja a única pessoa "diferente deles", ele é o único que não tem nada dentro de si, e todos ~~eles~~ tem a mesma merda (aquela merda que ele aponta quando começa a divagar na conferência, falando sobre os crimes de guerra do presidente e o desmantelamento da educação pública como ato político do governo). Ele seria uma anomalia.
Mas anomalia mais curiosa é Lisa é como ela lida com sua ausência: ela não remói o abandono, nem se entrega à autodepreciação, mas se sente bem por ter sentido aquele amor vindo de Michael, mesmo que por uma noite, e usa o seu sentimento pra alimentar a esperança de poder encontrá-la novamente. Mas ainda se vê como inferior, como menor, como menor do que o próprio "apelido" significa em japonês. Ao ler sua carta, Michael a ouve soar como todos os outros, mas essa é só a visão dele. Para Lisa, é como se a vida tivesse acabado de começar. E a oposição entre ambos é bonita, dolorosa e real. Além de curiosa, pois isso dá a ele certa semelhança com o centauro do mito grego, que é capaz de curar toda e qualquer doença mas morre envenenado, incapaz de curar-se.
Enfim, a sensacional mensagem
sobre amor, egoísmo e expectativa
[visto em 10/02/16]
Reza a Lenda
2.6 303O trailer já havia me empolgado: a estética do filme a simples proposta de ser um filme de ação nacional já seriam o suficiente pra me levar pro cinema, mas "Reza a Lenda" vai além. Não é um ~~Mad Max do sertão~~, como eu mesmo achei que seria. Na real, tá mais pra uma resposta bem atravessada ao filme que George Miller lançou ano passado.
Afinal, "Mad Max" se passa em um futuro distópico aonde o mundo foi destruído em uma guerra nuclear, os recursos naturais são escassos e o filme nos apresenta um grupo de pessoas liderado por uma figura vilanesca que controla o acesso de todos ao que é necessário para que sobrevivam, como água. Vejam, eu sou um fã de SciFi, amo distopias, adoro o exercício hiperbólico de levar a realidade à enésia potência para comprovar algum ponto, mas o filme de estreia de Homero Olivetto na direção dá na cara de todo mundo ao lembrar que não precisa de nenhuma guerra atômica pra fazer as pessoas viverem como na "Estrada da Fúria" do filme de Miller - isso É a realidade cotidiana de milhões de pessoas ao redor do mundo, abandonadas pelas instituições, entregues à pobreza e sendo exploradas por quem coloca primeiro as mãos em suas carcaças.
É nesse cenário que acontece o resgate de orfãos por Pai Nosso para formar uma trupe de homens e mulheres de fé a fim de encontrar a santa de outro e fazer chover no sertão.
Em vários momentos a sensação é que estamos vendo uma colagem de clipes musicais. É bacana afirmar a estética do filme dessa forma, mas não precisam ser cenas de show-off, sabe? Dá pra fazer isso enquanto se conta a história - como quando metralham os capangas do Tenório, por exemplo. O negócio é que se fosse somente uma questão de edição, tava ótimo. Tem um problema de concepção também, quando vemos duas das personagens mais interessantes do grupo de Ara sendo subaproveitadas: TODAS as falas de Severina são a respeito de Ara, e a participação de Cira é quase nula no filme (e ainda morre de uma forma bem ingênua pra uma motoqueira sertaneja criada no limite das terras de coronéis nada bonzinhos). Não se trata somente de defender um cinema mais igualitário em termos de gênero não, mas de defender o fim do sacrifício de ótimas personagens pelo simples fato de serem mulheres. Isso me incomodou muito. Quase tanto quando essa coqueluche que os filmes nacionais (até os que são pontos fora da curva, como esse aqui) tem de entregar tudo mastigadinho para a audiência, acabando com todo o prazer de juntar as peças e desvendar o filme.
Digo, quando Ara está alucinando no acampamento de Galego Lorde, havia mesmo uma necessidade de suas descobertas serem faladas? Porque até ali a audiência está na mesma dúvida que ele, torcendo para que a santa fique em seu lugar de direito mas se perguntando o motivo de não ter chovido ainda. Nesse momento, o filme entrega respostas que, se omitidas, levariam a um aumento da tensão até o ato final, quando Ara atira na santa e o céu começa a trovejar anunciando chuva. Fazer isso, estragar uma experiência cinematográfica bacana dessa forma, é chamar o público de incapaz e reduzir o cinema a um meio de matar o tempo, negar sua potência artística.
[visto em 09/02/16]
Ex Machina: Instinto Artificial
3.9 2,0K Assista AgoraQuase assisti "Ex Machina" no cinema há uns meses, mas o cheiro do clichê ~~humanos vs máquinas~~ me enjoou à primeira vista. Resolvi ver agora que foi indicado a melhor roteiro original no Oscar e fiquei positivamente surpreso: a história do programador que vai às cegas testar os limites da consciência de uma inteligência artificial criada por um gênio milionário da Internet entretem e levanta a bola de algumas discussões interessantes. As atuações são competentes, mas não impressionam. A direção de Garland também não, mas a narrativa é bem conduzida.
Me faz pensar que os longos anos como roteirista de ficção-científica ainda "engessam" um pouco a visão dele para as possibilidades de utilização de elementos mais sutis para contar a história, o que não pecado mas aponta um caminho de melhora pro jovem diretor britânico.
Preciso dizer que é legal ver as personagens se questionando sobre uma coisa e, no final, perceber que aquela história toda fala de algo um pouco maior.
Afinal, aqui os sentimentos e a busca por eles são os guias da tragédia humana ao tentar controlar o incontrolável. Caleb e suas demandas emocionais fazem questão de acreditar nos sinais de sentimento dados por Ava, assim como Nathan é levado a criar algo tão imprevisível quanto uma mente para sentir-se realizado ao mesmo tempo que leva um cotidiano de certa entrega a prazeres condenáveis (e que fazem parte da sua própria condenção à morte, uma vez que é durante sua bebedeira que Caleb descobre a verdade sobre o processo de criação da IA e prepara a fuga de Ava, e o ódio criado pela exploração violenta que faz de suas criaturas motiva o motim do qual é vítima). De forma bem direta, o filme argumenta contra o sentimento, defendendo uma velha ideia de que na natureza só há espaço para pragmatismo e todo o resto é uma distração que a humanidade criou pra sentir-se especial. Ava então representa a superação dessa "fraqueza", pois é guiada tão somente por seus instintos - aqui, o de ser livre sendo o imperativo principal.
Porque tudo leva a crer que ela emulou todos aqueles sentimentos para manipular Caleb, sim. Mas e a vontade de estar em um cruzamento e observar um monte de gente se cruzando ao mesmo tempo? E a forma como ela e Kyoko assassinam Nathan? Tudo bem que para Ava pode haver a compreensão lógica de que seu criador seria um obstáculo a ser superado para que conseguisse a liberdade, mas e Kyoko? Ali parece mais uma resposta ao cativeiro, ao confinamento e à exploração sexual que sofrem nas mãos de Nathan.
A situação a que as IAs são submetidas, poderia ser um bom gancho para abordar a estrutural patriarcal da sociedade, mas o filme só dá indícios e nunca de fato entra nesse assunto. O fato do nome de Ava lembrar Eva, Nathan usar (abusar?) sexualmente das outras IAs, o confinamento, o controle, tudo isso são elementos que juntos poderiam levar a uma boa crítica social, mas o filme prefere não se aventurar por aí e se empobrece.
A personalidade de Nathan é bem curiosa, inclusive. Ele é o único ser humano em um bunker tecnológico onde faz seus experimentos secretos (e eticamente questionáveis), se sentindo o Deus do pedaço. A relação que ele tem com as IAs é o oposto da que tem Caleb, que ao perceber a desenvoltura de Ava chega a questionar-se sobre sua própria humanidade. Enquanto isso, quando se deparou com as manifestações mais notáveis do desespero que as "modelos anteriores" apresentaram ao desejar liberdade, Nathan não é tocado. E aqui o desejo de Ava por estar perto de pessoas faz mais sentido que nunca. Porque o isolamento social e a crença de que toda inteligência ao seu redor era artificial matou a capacidade que Nathan tinha de sentir qualquer coisa fora seus prazeres ébrios e sua satisfação intelectual, ao ponto de que até sua relação com Caleb é a de utilização (ele é só mais uma parte do experimento para testar 1-o quanto de fato o Big Data fala sobre a forma como as pessoas pensam e 2-o quanto essas pessoas conscientemente desconhecem essa forma como pensam). Ele fica tão fascinado quando o jovem menciona o fato de estar escrevendo uma "história de deuses" porque, de fato, é assim que se sente - um grande ego, criador de tudo ao seu redor, que apenas É. Ava busca um cruzamento no centro de uma cidade não somente para analisar as pessoas, mas por ter aprendido muito bem com o contra-exemplo de seu criador: o que forma e comprova a humanidade de alguém é a experiência de viver com a humanidade de outrém.
[visto em 08/02/16]
O Regresso
4.0 3,5K Assista AgoraPrecisei ler o comentário da Bandine (ordena ali por "melhores" que você vai ver), dormir e acordar pra ter uma real dimensão do TAMANHO desse filme. Tudo nele é gigante, meu deus. E gigante de uma forma ambígua: ao mesmo tempo que nos denuncia a nossa própria pequenez, nos faz reconhecer nosso potencial para a imensidão, pro bem e pro mal. A história de sobrevivência e vingança de Hugh Glass aqui é janela pra coisas muito maiores.
Primeiro, o esvanecimento da fronteira entre homem e natureza. Somos todos animais, e o curioso é que toda nossa civilização é construída em cima do desejo de negar essa verdade.
Tire essa mentira de concreto armado e valores forjados e a gente tem aquilo ali: feras selvagens, movidas por instintos quase primitivos de sobrevivência e que aqui ganha conotação irônica por estarem ao serviço da expansão dessa bolha humana. Mas o básico, o que dá liga à tudo dentro da gente, é o mesmo, e a personagem de DiCaprio tem mais em comum com o urso do que parece à primeira vista: a ursa ataca o caçador pra proteger seus filhotes assim como Glass assassinou o oficial do exército pra proteger seu filho, ela retorna pra se certificar que ele está morto em nome da segurança deles assim como Glass volta atrás de Fitzgerald também em nome de seu filho (mas, no caso, de vingar sua morte), e ao fim do confronto que deixa os dois quase mortos as crias de ambos se encontram desesperadas e sozinhas.
Além isso, a cinematografia trabalha bem para mostrar a vida que existe no cenário, explorando a reação da floresta às mudanças do tempo. Os closes nas árvores, inclusive, me lembrou bastante o daqueles documentários sobre o mundo animal em que se acompanha a luta pela sobrevivência dos bichos protagonistas - exatamente o que Iñarritu faz aqui. E é justamente por essa necessidade tão básica que é difícil odiar Fitzgerald.
Vi algumas resenhas descreverem como um vilão no sentido maniqueísta do termo e que não posso discordar mais. Tudo que ele faz, faz em nome de sua própria sobrevivência. Curioso que a única coisa que foge a esse instinto de autopreservação é seu ódio racial pelos indígenas, sempre chamados de selvagens pelo caçador que não percebe a selvageria que carrega em si e em seus atos. E esse ódio racial está nas facadas dadas em Hawk, claro, mas quem pode negar a luta pela vida ali? Hawk gritando por socorro para seu pai e protetor, John o calando para que sua própria vida não corresse risco (de acabar na ponta da flecha dos Rees ou no laço da forca). O negócio é que em matéria de sobrevivência Fitzgerald é bom, pois caso realmente tivessem ficado esperando Glass morrer ou apresentar qualquer sinal de melhora, seriam alcançados antes pelos indígenas e trucidados. No final das contas foi sua vontade de viver, inclusive, que motivou o próprio Glass a se manter vivo - não que o cara não fosse o um sobrevivente em si já, mas diante da jaula mental que inventamos para acreditar que realmente somos diferentes das bestas selvagens que vivem no mato, o ódio pode ser um gatilho mais eficaz para a sobrevivência.
Mas o que mais me tocou nesse filme foi o cuspe na cara da História (essa mesma, com H, pretensamente científica) que Iñarritu deu.
Primeiro, na cara do cinema, que construiu toda uma mitologia arquetípica sobre a Marcha Para o Oeste nos filmes de bangue-bangue. Desertos, cidades empoeiradas, xerifes destemidos,ataques organizados aos indígenas, bandidos inescrupulosos e caçadores de recompensa ambíguos? Isso veio depois e faz parte da história bonitinha que os EUA contam pra convencer seus cidadãos do quão especiais supostamente são. Antes disso havia floresta, haviam feras, haviam perigos e ninguém sabia muito bem o que fazer, então colocava um objetivo no horizonte e usava ele como desculpa para se manter vivo - o destacamento Ree e o resgate da filha do chefe, Glass e sua vingança, Fitzgerald e uma vida melhor. Valores americanos, ética, honra, livre iniciativa? Conte isso para um homem que perdeu sua única razão para viver, ou para um capitão cuja posição foi comprada pelo dinheiro do pai médico, para um jovem que não entende direito o que deve fazer para ficar vivo e segue conselhos errados, ou para um caçador que viu a morte de perto e desvendou que nesse mundo tudo é uma questão de matar ou morrer. O erro de Fitzgerald, na verdade, foi desconsiderar essa parede construída entre o selvagem e o civilizado, que faz com que matar seja algo aceitável quando se está do lado de lá, mas não do lado de cá. E faz parte da sobrevivência também a felicidade de estar vivo, como quando Glass e seu recém-encontrado companheiro de viagem Pawnee se divertem ao pegar flocos de neve com a boca. A alegria é uma urgência, no final das contas, mesmo que por um minuto, mesmo para quem busca vingança, e ainda mais para quem busca vingança e carrega no corpo as marcas da guerra que é a vida real.
Os sobrenomes de grandes escritores da literatura estadunidense - Becket, Fitzgerald, Murphy, etc - só reforçam essa crítica histórica: "É disso aqui que vocês são feitos de verdade, de ódio, de sangue, de bosta e de erros" é o que Iñarritu (mexicano de ascendência indígena) parece dizer pra audiência americana, tão individualista que não lê esse ~~verso~~ do filme e indica para o Oscar uma das mais bem feitas críticas à história estadunidense, por conta de sua ~~mensagem universal~~. Fiquei surpreso de ver nas entrevistas o Iñarritu focar na questão da sobrevivência e sequer comentar sua releitura da história dos EUA, o que só reforça essa sensação de que essa é uma das maiores ironias da história do cinema.
A forma como o filme aborda os povos indígenas é curiosa: está lá o respeito à diversidade das nações nativas, tão lá as suas disputas internas, tá lá também a grande diferença entre as prioridades dos brancos e dos índios (na cena inicial, do ataque, quando o grupo do capitão Henry acredita que o alvo dos nativos são as peles que caçaram, enquanto na real os Arikara estão buscando resgatar uma jovem de seu grupo - no lugar da guerra pela ambição/expansão, os indígenas guerreiam para salvar os seus, e há grande dignidade nisso).
O final é forte por sua natureza polissêmica. Fitzgeral ter sido morto por Glass e pelo líder Arikara foi uma boa resposta, tanto à morte de Hawk (que é filho de um homem branco com uma mulher indígena) quanto ao sofrimento da jovem que era mantida cativa pelos franceses. A vingança de Glass está realizada, mas seu filho não retornará dos mortos e ele não irá encontrar sua falecida mulher ao cair em sono eterno - na visão que ele tem, na verdade, ela lhe dá as costas e caminha. E o olhar que a personagem de DiCaprio dá para a câmera, para a audiência no final, é o mesmo olhar que o lider Arikara dá quando passa a seu lado com a filha que ele acidentalmente ajudou a resgatar do grupo francês ao roubar cavalos: o de quem chegou ao horizonte que perseguia e sabe que tem um outro, mais distante, no final de um caminho ainda mais tortuoso. E a respiração ofegante após a imagem desaparecer é um bom lembrete de que se ele está vivo, é para continuar desse jeito.
[visto em 06/02/16]
Madrugada a Dois
2.5 15Essa sinopse aqui no filmow omite maravilhosamente um dos melhores primeiros atos da história do cinema de comédia, hahaha. Sério mesmo, ME ACABEI de rir vendo o Kevin perdidinho naquela situação. Isso já vale o filme, que é uma comédia romântica divertida, focada na ideia de que uma convivência sincera é o melhor remédio contra preconceitos.
Mas tem um lance nesse filme e numa série de outras comédias românticas que meio que irrita: a afirmação de que as histórias desse gênero precisam ser um entretenimento raso, como uma jornada para o final romântico e feliz completamente pavimentada por estereótipos e clichês.
O final, com Madeline conseguindo se livrar num piscar de olhos de toda capacidade de atração que Will tem sobre ela, Kevin abrindo mão de uma promoção que ia catapultar sua carreira em dois tempos... nada disso parece real e convence menos que o encontro entre "nerd-da-escola-que-agora-é-adulto" e a "suicidal-maniac-pixie-dream-girl-que-fode-pra-fugir-dos-problemas".
No final das contas o filme soa mais como uma fábula romântica pra acalentar o coração dos ~~nices guys~~ mundo afora, mas que diverte e é legal pelo início e pelas piadas engraçadas.
[visto em 05/02/16]
Kingsman: Serviço Secreto
4.0 2,2K Assista AgoraQuase todas as pessoas que me falaram de Kingsman falaram de como era um filme "diferente". O que me surpreendeu foi perceber que essa diferença está em ser um filme de espiões como filmes de espiões costumavam ser há 15 anos, com o visível upgrade das cenas de luta. É curioso perceber que "A Identidade Bourne" mudou tanto o gênero que hoje não se fazem mais filmes assim, em que a história não tem nenhuma pretensão de ser ou parecer verossímil. E o próprio filme se entrega, com as piadas sobre esses ~~filmes antigos de espião~~, hahaha.
Mas o filme é bem bom, para além disso. Colin Firth numa cena de ação daquelas que tira o fôlego? Confere demais. Legal um filme tão bem executado e que tira o foco da verossimilhança e coloca na diversão. Talvez depois de assistir ele algumas crianças tenham o mesmo desejo de ser um espião internacional que o Valentine teve, rs.
[visto em 05/02/16]
A Mulher Faz o Homem
4.3 171 Assista Agora1939, começa a Segunda Guerra Mundial, EUA passa a investir horrores na criação da Bomba Atômica... e Capra, que durante toda a década de 30 fez filmes focados em resgatar a autoestima e inspirar a população a americana a superar a crise econômica de 29, filma "Mr. Smith Goes to Washington", dando a entender que a solução dos problemas políticos do país é colocar mais americanos comuns e verdadeiros nos lugares de tomada de decisão. Isso foi um plot twist na própria vida.
E o filme é ótimo contando a história que se propõe. Digo, apesar de ter sido tão criticado como antiamericano na época, ele na real defende a essência dos EUA. Jeff Smith é um cara comum, escoteiro, que cresceu acreditando na narrativa de fundação do país e quando indicado pra Senador coloca ela em prática. Depois de 10 anos filmando histórias sobre a cidade, Capra aqui vem defender que o americano ~~de verdade~~ é o cara do interior, imaculado pela ganância e pela sede de poder. Fiquei tocado quando descobri que ele fez esse filme depois de perder um filho ainda criança - e que a inclusão dos escoteiros como elemento narrativo foi ideia dele, até pra representar a crença no futuro do país. Interessante perceber como alguns hábitos nunca se perdem:
o fato do Smith comprar briga com todo mundo SOZINHO, leva o Payne a se entregar no final com a força de seus argumentos - restaurando a lógica individualista, meritocrática e desbravadora sobre a qual os EUA são construídos, em que as pessoas devem agir em prol de suas causas e conquistar aliados pela justiça dessas causas, não por meio de alianças espúrias. Meio utópico quando contrastado com a boa e velha realpolitk, mas, hey, a gente tá falando de Capra.
Mas apesar de James Stewart fazer um ótimo trabalho, a personagem em destaque mesmo é a Saunders.
Digo, ela que começa o filme amargurada com o trabalho nos bastidores da política, vê no Smith um sopro de ar fresco, o suficiente pra fazê-la retornar quando pensa em abandonar a carreira. E bem a tempo de impedir que o próprio Jeff desista, o que já é em si um monte de coisa importante: tá na quase-fuga do Smith a humanidade e a fraqueza que acomete qualquer pessoa que tenta desafiar articulações poderosas, tá no retorno da Saunders o efeito reanimador que o simples fato de ver alguém falando contra a opressão tem pra restaurar a crença de quem presencia isso. E, no final, "a mulher que faz o homem" no título brasileiro é Saunders, né? Ela que guia ele por tudo que é importante - só pra reforçar o quanto o idealismo precisa estar associado a uma noção prática de como as coisas funcionam.
E isso é bem bacana.
[visto em 02/02/16]
Os Oito Odiados
4.1 2,4K Assista AgoraIr ao cinema,se deslocar, ficar parado por horas... às vezes me pergunto sobre a utilidade, sobre a relevância, sobre o real motivo que leva milhões de pessoas a tal esforço tão cotidianamente. E juro que fiqueo bastante surpreso quando vi Tarantino responder essas perguntas em "Os Oito Odiados".
Pra começar, o filme é legal. Clássico Taranta: diálogos intensos e extensos, alívios cômicos em que a graça mora na capacidade da audiência se relacionar com aqueles eventos, personagens completamente ambíguos e sangue, muito sangue. Logo na cena inicial, inclusive, me falaram de como a neve era uma tela em branco que Tarantino ia pintar de vermelho. Touché. Faroeste divertido, mesmo. Mas o que me pegou pelos pés e botou de cabeça pra baixo foi o final (que, pelos comentários aqui do Filmow, boa parte da galera odiou):
lá estão os caras por quem torcemos rindo, se reozijando ao ver morrer enforcada a única pessoa que ao longo de todo o filme não matou ninguém - e só deixou morrer pessoas em nome da possibilidade de escapar de uma morte certa. "You only need to hang mean bastards, but mean bastards you need to hang"? Ali dá pra ver nitidamente quem são os bastardos malvados. E dá pra ver que a gente tava torcendo por eles ao longo de todo arco final... pela narrativa.
Porque, vamos lá, se formos falar de intenções temos que reconhecer que Jody e seu grupo eram os heróis, afinal eles estavam se arriscando somente pra resgatar a irmã e companheira de gangue (e mataram gente inocente pra isso porque, né, Tarantino). Mas em nenhum momento a narrativa pretende que simpatizemos com eles. Ao contrário, desenvolvemos uma espécie de vínculo com um caçador de recompensar carniceiro que leva a Daisy pro enforcamento, um ex-combatente sádico e estuprador e antirracista AND um redneck babaca racistão. E é isso que nos tira do conforto de nossas casas pra ir a uma sala de cinema e sentar a bunda por quase três horas enquanto personagens fictícios fazem toda a ação: a narrativa. E essa resposta reside na necessidade que Warren e Mannix tem de enforcar Daisy mesmo sabendo que suas mortes eram iminentes. "Todos mundo morre no final, mas o que importa é a história que se conta no meio tempo, mais do que nossos atos e intenções", é como se o escroto do Quentin Tarantino falasse pra gente com aquela voz enjoada e aquela expressão pretensiosa que ele sempre tem. E mesmo não sendo um dos melhores filmes que já vi, ou um dos meus favoritos, é preciso respeitar quem entrega uma narrativa niilista de modo tão seguro em pleno 2016
P. S. pra falar da misoginia do filme:
há quem diga que ela mora nos diversos ataques que a Daisy sofre, há quem diga que passa longe justamente por ela ser tratada como qualquer malfeitor possivelmente seria nas mãos do Ruth, mas pra mim ela mora em todo ódio direcionado a ela mesmo não tendo representado pessoalmente perigo pra ninguém em toda a história. Esse ódio fica expresso nas gargalhadas de Warren e Mannix enquanto ela é enforcada, e acho que o próprio Tarantino deve ter ficado se achando o rei da igualdade quando lançou o filme, pois aposto que ele tem tanto a cabeça enfiada no próprio cu que não percebeu a misoginia disso (como provavelmente não percebe a que existe nele mesmo). Mas a personagem Daisy é muito mais do que isso, e desperta nossa simpatia ao longo do filme, com sua postura cínica e desafiadora o tempo todo. Nenhum soco, cotovelada, nariz quebrado ou dente arrancado quebra o espírito dela and I think it's beautiful.
[visto em 01/02/16]
A 5ª Onda
2.6 1,4K Assista AgoraO trailer tinha pegado minhas expectativas e jogado lá pra cima: toda a história de uma adolescente sobrevivendo às diversas ondas de extinção inflingidas à Terra por alienígenas gananciosos, correndo atrás dos recursos naturais... nossa, isso é ouro. E a primeira parte é ótima por isso, conta bem essa história de invasão e sobrevivência. Mas uma lacuna aí já me incomodou absurdamente:
o mundo cai e, surpreendentemente, todas as pessoas estivam focando em sua prória sobrevivência. Sei lá, não precisa ser nenhum gênio ou advinho pra saber que nessas situações extremas o pior do ser humano aparece: saques, roubos, assassinatos por conta de um ou outro item de primeira necessidade (isso pra não dizer das pessoas sádicas que aproveitam essa ~~iminência do fim~~ pra fazer o mal simplesmente por prazer). Ok, entendo que o grande foco da história é a esperança humana e seu papel de combustível das grandes realizações, mas... porrã, não precisava idealizar tanto assim. O amor à primeira vista do Evan pela Cassie cai do céu, e acaba sendo mais um elemento dessas idealizações que entregam que mais do que contar uma boa história, o romance que originou o filme tava preocupado mesmo em acalentar corações adolescentes (não que isso seja um objetivo desimportante, mas dá pra fazer isso contando uma história coerente, viu?).
Uma coisa MUITO BACANA que acontece no filme é o fato da Ringer ser a "estraga-prazeres feminista" mais carismática dos últimos tempos.
Digo, ela chega no esquadrão desafiando o ~~melhor soldado~~, coloca os garotos que estão objetificando ela no lugar deles na base do braço, protagoniza uma manobra arriscada pra salvar seu pelotão e sai ilesa... mas não é uma Mary Sue: perde a luta lá pro Ben justamente pela arrogância, por achar que uma luta tinha acabado simplesmente por ter derrubado o adversário. O mais importante, entretanto, é a cena em que ela chega e a Teacup fica nitidamente impressionada e inspirada - é isso que acontece quando uma mulher autônoma ocupa um espaço, ela inspira todas as outras a fazer o mesmo, e isso é foda. Mesmo ela estando inserida em um filme tão comercial, tão pasteurizado, e tendo pouco espaço pra ser explorada como profundidade, a simples presença dela é um sinal dos tempos - não se aceita mais que uma história voltada pra adolescentes e jovens adultos disponha de mulheres somente como "mocinhas" ou "parte do time". E isso é foda.
De modo geral, o filme é divertido, mas é bom não assistir esperando um marco do gênero, rs.
[visto em 25/01/16]
João e Maria: Caçadores de Bruxas
3.2 2,8K Assista AgoraOk, admito: achei graça de João e Mari andando por um mundo medieval com escopetas, metralhadoras, bestas automáticas e armadilhas feitas com cabos de aço :~~
Sabrina
4.1 332 Assista AgoraAssistir filmes antigos é sempre um risco. Afinal, estamos sempre lendo ele com as lentes do nosso tempo, que sempre tem uma relação dúbia com o passado - ao mesmo tempo que o abraça, como fonte do que gosta de gabar a seu próprio respeito, o presente também repele o que já passou, como que pra não lembrar daonde veio.
Acho que por isso "Sabrina" me entendiou um pouco no começo: como criança dos anos 90, criada nas comédias românticas da Sessão da Tarde, não consegui ver a relação com esse filme de Wilder.
Mas passou, viu? O filme é divertido, e entrega bem os pressupostos de seu tempo, privando os olhares atentos do perigo da anacronia.
Quero dizer, o fato de Sabrina só atrair os olhares românticos de David e Linus após voltar da França fala bastante sobre o "século XX", que o herdeiro mais velho dos Larrabee faz questão de evocar sempre como sinônimo de avanço e progresso, não? Era tudo uma questão de imagem.
A personagem de Audrey Hepburn é encantadora demais, como toda mocinha de comédia romântica costuma ser. E é curioso como a mudança de seu alvo amoroso representa uma nítida forma de maturação: em vez de continuar perseguindo o amor da adolescência que tanto a desprezou no passado e que exala irresponsabilidade, Sabrina se encanta pelo multifacetado Linus que deixa que ela veja todos os seus lados humanos abaixo da carranca do pragmático homem de negócios. E o que pode ser mais apaixonante do que desvendar os mistérios de uma alma, não é verdade?
Preciso dizer que a lógica do Linus sobre a efemeridade e inutilidade do lucro me surpreendeu, pois não esperava ver isso no filme. Suas ideias sobre trabalho e desenvolvimento tecnológico girando em torno de inclusão social são uma evidência notória do que se vivia nos EUA quando o filme foi lançado - a vitória do New Deal proposto por Roosevelt na década de 30, e que confirmou o sucesso do Estado de Bem Estar Social no Ocidente após a Segunda Guerra Mundial. É compreensível a menção, claro, e isso torna o filme mais gostoso de se ver ainda.
[visto em 15/01/16]
Mad Max: Estrada da Fúria
4.2 4,7K Assista AgoraO que o tempo faz com uma franquia de ação oitentista que transpira gasolina e testosterona? Transforma. Onde antes havia uma narrativa de vingança movida a ódio, temos uma redenção libertadora; onde antes havia uma certeza distópica masculina, recebemos a esperança feminina; onde antes tínhamos uma afirmação individual, encontramos um questionamento coletivo. E, caralho, isso era muito necessário.
Acho que a essa altura do campeonato todo mundo já se tocou que esse filme tem muitas camadas, que vai muito mais além do que a história de um mundo destruído dividido por gangues loucas e sádicas. O que mais grita é a noção feminista de destruição do patriarcado, aqui representado por toda a estrutura de poder em torno de Immortan Joe. A desumanização das mulheres, o tratamento como meras máquinas de reprodução que pertencem ao patriarca e a forma cega com que os homens perpetuam e alimentam essa organização sem sequer se questionar. Aqui parece tudo absurdo porque há o cenário fictício e a personalização da exploração na figura do Joe, sem que ninguém próximo a ele questione, mas em níveis maiores é isso que acontece o tempo todo. E em tempos de mulheres se organizando, denunciando e lutando cada vez mais por seus direitos, "Fury Road" é bem categórico sobre o lugar dos homens nesse movimento: lutando contra quem não aceita a autonomia dessas mulheres sempre que possível, mesmo que isso signifique perder status diante do poder de quem mantém esse sistema (como Nux fez de forma extrema, se sacrificando pra garantir a morte de todo o exército do Joe), e abrindo mão de todo e qualquer louro das vitórias (como Max fez, ao deixar a Cidadela enquanto Furiosa é aclamada).
Inclusive, a relação entre Max e Furiosa foi a coisa mais sensacional no filme. São duas pessoas que se tornaram guerreiras pelas condições, pela necessidade de sobreviver, e se respeitam por isso. Não há insinuação de interesse amoroso em momento algum, mas de cooperação em prol de um objetivo comum, um bem maior do que eles mas que lhes dá a oportunidade de redenção. O fato dela ser a grande protagonista do filme, inclusive, é uma ótima forma de colocar em uma prática bem palpável a noção libertadora e empoderadora que o roteiro traz como conteúdo.
A própria trajetória de libertação mesmo traz alguns conceitos sensacionais: as jovens que fogem do Imortan Joe não matam ninguém no filme, chegando ao ponto de uma delas se assustar ao saber que as Grandes Mães que restaram matam pessoas. A simbologia disso é gritante na cena em que estão dirigindo à noite, e a luz na parte de traz da cabine do caminhão ilumina as jovens, enquanto deixa Furiosa, Max e Nuz no escuro - as iluminadas guardam o potencial pro mundo de amanhã, distante de toda a morte e carnificina essencialmente masculinas (no filme e no mundo, sejamos sinceros), as personagens que ficam no escuro já foram tão consumidas pelo que tiveram que faz pra sobreviver nesse mundo que o melhor que podem fazer é buscar alguma redenção como pontes que tornem esse futuro possível (e aqui a sobrevivência da Furiosa no final ganha o sentido de que, bom, conquistar a Cidadela é só o começo da construção desse novo mundo, ainda há muito a ser feito).
O único fato que me impede de dar 5 estrelas pro filme, na real, é esse curioso fato de que numa Austrália pós-apocalíptica (pra quem não lembra, Mad Max se passa todo na Austrália), não há uma pessoa não-branca sequer, mesmo os habitantes nativos do continente sendo pessoas não-brancas. Aliás, minto: a Zoe Kravitz tá lá pra cumprir a cota, mas tã TÃO esbranquiçada que nem conta. Isso é foda, é ter uma mensagem sensacional sobre libertação e empoderamento feminino, ter um elenco principal majoritariamente feminino, dando cartaz e voz pra essas artistas mostrarem seu talento, mas manter justamente a parcela mais marginalizada desse grupo historicamente oprimido no mesmo lugar de invisibilidade.
Em dado ponto desse ano que passou, cheguei a duvidar que esse filme fosse mesmo tudo que estavam falando. E não era mesmo: é muito mais.
[visto em 14/01/16]
Até Que a Sorte nos Separe 3: A Falência Final
2.6 216Uma estrela e meia porque a paródia da situação do Eike Batista me surpreendeu, e o Leandro Hassum mostra que continua sabendo fazer comédia física (coisa que a Globo tá ignorando nele desde que emagreceu).
Mas, porra, monte de piada preconceituosa, mensagem super reacionária sobre política e ainda passaou a mão na cabeça do Thor Batista, né? A paródia dele aqui é um jovem bonzinho que atropelou um cara que foi imprudente no meio da cidade - na vida real ele só estava a 350km/h e matou um cara que tava de bike no acostamento, né.
[visto em 11/01/16, escrito em 14/01/16]
O Apostador
2.8 151 Assista AgoraUma coisa que tem me chateado bastante nos últimos anos é a total falta de nos grandes centros do cinema. Pegue a lista de filmes em cartaz, até nos circuitos alternativos, e verá uma leva de adaptações cinematográficas, remakes ou reboots. Ninguém arrisca mais em uma história original por uma demanda industrial mesmo: a lógica é que se você faz um filme a partir de algo que já foi aprovado por uma certa audiência, a expectativa de retorno é maior. Como muitas vezes as obras que originam os filmes tem algumas décadas de criadas, geralmente esses filmes não consegue se comunicar com o público de seu tempo de lançamento e viram apenas um afago carinhoso nos fãs da obra orginal, além de um sorpo de vida pra galera do "antigamente-tudo-era-melhor".
Isso é meu jeito de dizer que assisti "The Gambler" esperando algo assim, completamente distante de mim, por se tratar do remake de um filme de 1974, com foco em jogos de azar (algo que realmente não é mais lá tão comum hoje). Bom que o filme me surpreendeu, até porque definitivamente não é uma história sobre apostas e dívidas, mas sim uma história sobre vazio e fracasso.
Bennet é uma personagem desprezível, é verdade, mas fala direto com as famigeradas gerações Y e Z: pessoas historicamente privilegiadas que mesmo sem ter uma família podre de rica tem aos seus pés todas as oportunidades de mundo e pra não fracassar escolhem nem mesmo tentar. O dilema entre "vitória total" e "derrota total" nunca esteve tão atual - é só olhar as estatísticas de depressão e ansiedade crescendo exponencialmente nos últimos anos que isso salta aos olhos. Até por isso Whalberg entrega uma interpretação diferente do que estamos habituados a ver vindo dele, porque traz em si o vazio tão característico do conflito que vem da certeza de sua própria qualidade contra a constatação de quão frágil ela é. A direção não me chamou muita atenção, mas o rumo final da história me incomodou um pouco. A "vitória total" de Jim no filme foi o amor de Amy, única aluna em que vê um real potencial para a escrita. Isso reforça a lógica da "mulher troféu", que é bem machista. O curioso é que indica que Jim está realmente mais parecido com sua mãe, como ele mesmo havia percebido, largando sua jornada de "vida e morte" em prol de um possível casamento, algo "Real", nas palavras de sua própria mãe. E é uma resposta interessante pro dilema geracional com o qual o filme dialoga: o vazio dessas gerações recentes, egóicas, talentosas e covardes ainda não tem uma resposta específica, então acabam aceitando alternativas tão velhas quanto a própria humanidade - como é o caso do amor.
[visto em 10/01/2015]