A Netflix me recomendou e eu fui ver qual era. Achei constrangedor de ruim, dos poucos filmes na vida que não consegui assistir até o fim. Uma pena, pois os atores envolvidos são, em sua maioria, brilhantes.
Quem é cria de "Fringe" (série) ou de Coherence (filme) não viu algo que seja exatamente inovador. Esse filme soa modernão mas possivelmente será carta marcada na sessão da tarde daqui a alguns anos.
A mensagem que ele parece querer passar é clichê? Sim! Já vimos isso antes no cinema? Uma infinidade de vezes, em diferentes roupagens. No entanto, o mérito está na forma acessível com a qual o roteiro tratou
e na criativa direção que engancha o telespectador em suas mais de duas horas de história. Foi um filme que me divertiu e me alienou durante toda a sua execução e que merecidamente está sendo reconhecido nas premiações.
Drive my car é um drama japonês de 2021 dirigido por Ryusuke Hamaguchi com roteiro adaptado pelo mesmo diretor, a partir de um conto homônimo de Haruki Murakami (2014). Tem como protagonistas Hidetoshi Nishijima no papel de um ator e diretor de teatro (Fukaku Yusuke) e Toko Miura no papel da jovem motorista Watari Misaki. O filme foi premiado no Festival de Cannes em 2021 na categoria de Melhor Roteiro, no Oscar 2022 na categoria de melhor filme internacional e na 79ª edição do Globo de Ouro, vitorioso na categoria de melhor filme estrangeiro.
Na tentativa de sintetizar Drive my car em algumas palavras me vem à cabeça dizer que é um filme sobre luto e afeto, que se utiliza de um carro em trânsito e uma peça de teatro como fundos para contar sua história. A escolha desses dois cenários possibilitam ao telespectador uma série de associações e metáforas com a narrativa que está sendo ali contada. Nas quase três horas de filme o telespectador é capaz de desvendar as motivações de cada personagem, partindo inicialmente quase que exclusivamente à partir do olhar de Fukaku Yusuke e posteriormente na relação que é construída entre os protagonistas Fukaku Yusuke e Misaki Watari.
Das singularidades (ou excentricidades) de cada personagens que conferem também uma singularidade a Drive my car, vale apontar quatro deles:
- Fukaku Yusuke é um diretor de teatro que tem como processo criativo o ritual de memorizar suas falas enquanto dirige o seu carro, através da voz de sua esposa, presencialmente (quando ela era viva) ou em gravações de fita cassete (após a sua morte). Para isso, ele gosta de morar um pouco distanciado de seu local de trabalho de modo a ter tempo hábil para ouvir as fitas e dialogar com as gravações. De tal ritual Fukaku Yusuke não abre mão. Na trama vemos em um primeiro momento, Fukaku Yusuke em sua vida conjugal com Oto Yusuke e após a morte da sua esposa vemos o efeito desse evento traumático em sua vida e como ele dirige para reconstruí-la.
- Oto é uma roteirista que ativa seu processo criativo após ter relações sexuais. Sempre que transa com o marido, o diretor e ator Fukaku Yusuke (supradescrito), ela elabora e enuncia oralmente uma história que vai surgindo em sua mente. No entanto, ela não recorda dessa criação no dia seguinte e cabe a seu marido memorizar e fazer o registro da história que foi criada. Dessa forma, percebe-se que Yusuke e Oto formam um casal que, à primeira vista, carrega um certo registro de complementaridade e codependência em suas respectivas vidas. A completude, no entanto, não é afirmada, uma vez que Oto apresenta como arranjo sintomático manter relações extraconjugais que são escondidas do marido. Logo na parte inicial da trama, Oto perde a sua vida em decorrência de uma hemorragia cerebral e Fukaku Yusuke é convocado a dirigir a sua vida e o seu carro sozinho.
- Lee Yoo Rim é interpretada pela atriz sul coreana Park Yoo-Rim e na história convive com uma deficiência física que não a permite utilizar sua voz. Ela se comunica através da linguagem de sinais coreana e é uma atriz de teatro. Ao dirigir uma adaptação de Tchekov da peça "Tio Vânia", Fukaku Yusuke seleciona Lee Yoo Rim para o elenco e ela se demonstra muito grata pela oportunidade, dizendo que participar da peça e interpretar aquele texto a colocou em movimento como há muito tempo não acontecia em sua vida.
- Watari Misaki é uma jovem motorista de 23 anos que achou na direção uma maneira de dar sentido a sua vida. Sua mãe a criou em um contexto de violência e abuso e dirigir um carro para essa mãe aparece inicialmente como uma imposição e posteriormente como seu modo de “ganhar a vida”. Durante a trama de "Drive my Car”, Watari Misaki é vista após cinco anos da morte dessa mãe. Por um lado, ela sempre está dirigindo para uma outra pessoa, atividade que ela encontrou como uma profissão que garante a sua sobrevivência e, por outro, ela anula a sua existência ao estar objetificada nesse lugar, ocupando-o como se não existisse. Watari Misaki parece internalizar uma falta de valor que foi apontada por sua mãe durante toda a sua constituição.
Em Drive my car os caminhos de Fukaku Yusuke e Watari Misaki se encontram quando o ator vai dirigir uma peça de teatro e tem como imposição que a motorista passe a dirigir o seu carro. Desse encontro vai se construindo uma relação que parte do estranhamento para a complementaridade e é sobre essa construção que passo a me debruçar nessa reflexão.
Inicialmente a jovem aparece nas cenas mecanizada, apenas cumprindo silenciosamente a sua função, tal como fazia na presença de sua mãe. Uma fissura em seu modus operandi, no entanto, aparece quando Fukaku Yusuke atribui excelência ao seu modo de dirigir, algo que sua mãe jamais teria feito. Ao ver alguém atribuindo valor à sua (não) existência, Watari Misaki é inevitavelmente deslocada para um outro lugar subjetivo e inevitavelmente é convocada a criar um novo agir que reflita esse reconhecimento que partiu externamente de uma outra pessoa, algo inédito em sua vida. E é a partir desse momento, que Watari Misaki cria uma pequena abertura para se relacionar com Fukaku Yusuke, também como um sujeito, conferindo a ele uma certa confiança para compartilhar a sua história de vida.
É simbólico o momento em que Fukaku Yusuke deixa de sentar no banco traseiro do carro e passa a sentar à frente, junto com Watari Misak, como se a partir dali houvesse o reconhecimento de que estavam compartilhando uma mesma estrada, ou, pelo menos, pontos de identificação em suas histórias. Watari Misak e Fukaku Yusuke encontram nas palavras trazidas pela confissão um do outro certo suporte simbólico para reconhecimento do luto e dos afetos mal elaborados referente à perda de seus entes queridos.
Vale reforçar outro ponto da complementaridade sobre essa relação entre ele que pode ter sido facilitada dentro de uma ordem imaginária. Watari e Fukaku Yusuke tem a mesma formação familiar em suas respectivas famílias nucleares: um casal heterossexual e uma filha.
As similaridades não param por aí! Watari Misak tem 23 anos, exatamente a idade que teria a filha de Fukaku Yusuke naquele momento, caso ela não tivesse falecido em decorrência de uma pneumonia aos 4 anos de idade. Dessa forma, do ponto de vista de Fukaku Yusuke, a imagem da filha aos 23 anos é apenas uma sombra em seu imaginário e, de alguma forma, Watari pode ter dado uma certa materialidade ao ocupar partes desse lugar subjetivamente inscrito.
Do ponto de vista de Watari Misak, não há menção ou substância à figura de seu pai biológico. No entanto, Fukaku Yusuke pode ter ocupado em partes o lugar da sombra de uma figura paterna. No entanto, essa suposição corre o risco de ser um pouco forçada.
Sobre a relação entre eles, Watari e Fukaku Yusuke passam pelo luto da perda de um familiar. Na conversa entre eles são compartilhadas memórias e sentimentos em relação a mãe de Watari Misak e a esposa de Fukaku Yusuke, o que fortalece a identificação e a relação entre eles, principalmente ao se considerar o grau de parentesco que eles ocupam dentro de uma família, sendo filha e pai que vivem o luto pela perda de uma mãe e uma esposa, respectivamente.
Há, dessa maneira, uma certa construção de um laço familiar simbólico entre eles em torno de uma “mesma” sombra da figura dessa mãe e dessa esposa que foram perdidas.
A sombra dessa “mulher perdida” produz em ambos alguns efeitos semelhantes e no diálogo entre eles, floresce uma certa elaboração que aponta para a similaridade desses sentimentos, destacados a seguir:
- Culpa: Ele se culpa pela morte da esposa e ela se culpa pela morte da mãe. Ele fantasia que poderia ter chegado mais cedo em casa e ter socorrido a tempo a esposa que foi vitimada por uma hemorragia cerebral. Watari, por outro lado, poderia ter salvo a mãe de um desabamento que invadiu a sua casa e, no entanto, se viu paralisada, como se a tivesse deixado para a morte. É consenso entre eles que ambos carregam a hipótese de terem “matado” esposa e mãe.
- Ressentimento: Fukaku Yusuke carrega um ressentimento acerca das traições de sua esposa, pareado ao desejo não realizado em ter revelado a ela sobre o fato de seu conhecimento acerca dessas relações extraconjugais. Watari é ressentida pelo fato da mãe ter lhe tratado por toda a vida de uma forma muito violenta. Há um trecho constantemente repetido nos ensaios para a peça do “Tia Vânia” que simboliza bem esse sentimento de ambos, dizendo respeito ao desperdício dos melhores anos de suas vidas ao lado das pessoas das quais agora eles ressentem.
- Cisão e ambiguidade: O Eu dessa figura feminina na vida de ambos parece cindido, provocando neles um sentimento ambíguo. A esposa de Fukaku Yusuke ocupava um certo espaço ideal de esposa, mas escondia um lado de seu eu que a afastava desse ideal monogâmico, quando se satisfazia também em relações extraconjugais. Arrisco a dizer que tal divisão do eu em Oto ocorria pela via de uma neurose. A mãe de Watari, no entanto, apresentava duas personalidades bastante polarizadas, acredito eu que isso ocorria pela via de uma psicose. A primeira personalidade da mãe, que se manifestava na maior parte do tempo, era violenta e rejeitava a existência da filha, enquanto a segunda aparecia com expressão de uma figura infantil, em momentos subsequentes aos episódios violentos, manifestando uma persona carinhosa e amiga. Watari revela que no ato do desabamento que vitimou sua mãe, ela desejou poder salvar apenas essa personalidade infantil e amorosa da mãe e que, no entanto, pareceu prevalecer o desejo de não salvar a personalidade ruim que era indissociável dela e, assim, a mãe acabou soterrada. Tais “cisões de eus” que conferiam a identidade de seus entes despertam nesses debates filosóficos sobre a disposição ao redor do que eles conheciam e aceitavam na relação com uma outra pessoa e, ambos se esbarram na impossibilidade de amar e conhecer um outro em sua totalidade.
- Luto e redenção: Ambos parecem capturados pela morte de seus entes, em meio a todos os sentimentos supracitados que eram mal elaborados e os deixavam estáticos na vida, fechados à possibilidade de formar novos laços ou de criar novos arranjos na vida. Quando um compartilha a história para o outro, há um importante reconhecimento externo do sofrimento alheio e uma partilha da ideia de que deveriam prosseguir com a vida. Há a construção de um esperançar que se direciona para o outro e que ganha efeito também na própria história. E sobre esse aspecto, são marcantes as cenas em que Fukaku Yusuke convoca Watari Misak para o perdão e o movimento. Tais cenas ocorrem em cima da casa da jovem, que agora está soterrada pela neve. Tal acolhimento mútuo tem como efeito um certo tom de redenção a esses dois personagens.
Após um breve tempo desses acontecimentos, Fukaku Yusuke volta a atuar na peça do “Tia Vânia”. É simbólico que ele deixe de dirigir a atuação de outros e retorne a ser um ator, agindo também duplamente na direção e ação da própria vida. E Watari Misak é agora vista em cenas sozinha, cuidando de suas demandas e dirigindo o carro sozinha, como se dirigisse sua vida não mais apenas para outros, mas também na direção da satisfação de seus desejos.
A redenção de ambos os personagens é embelezada pela cena final da peça “Tia Vânia”, quando a personagem Lee Yoo Rim encena o texto utilizando-se da linguagem de sinais. O texto sem voz, que emerge através de seus gestos, permite que cada telespectador no filme e fora dele aprofunde o contato com a palavra e o escute mentalmente com a voz familiar que oferece um maior conforto. O encerramento da peça e do filme acaba sendo sobre isso: conforto, ressignificação e movimento.
Drive my car aponta para o Sinthoma Lacaniano, dizendo sobre reconhecer o seu modo de agir no mundo e sobre construir um saber que permita utilizá-lo ao seu favor, algo que na trama é realizado através de uma profunda ressignificação do passado e na construção do laço social. É um filme sobre diferentes trajetórias que se cruzam e que se colocam dentro de um mesmo carro. O telespectador que se permitiu entrar dentro desse duplo veículo (carro e roteiro) e que elaborou questões pessoais através do encontro da palavra na relação de Fukaku Yusuke e Watari Misak e dos textos da peça de Tchekov, pode ter realizado uma viagem que foi longa, mas inesquecível.
(Este texto foi redigido para o Rascunhagem. No ato da escrita, realizada em fevereiro de 2023, o filme Drive My Car está disponível no Brasil na plataforma de streaming Mubi.)
Assisti esse documentário há um tempo e ele é de fato marcante. Percebe-se a lógica perversa nos processos de colonização ainda vigente na contemporaneidade e aponta para a destruição de culturas e histórias em nome do capitalismo e de uma falta proposta de civilização. O documentário marca muito como contextos de guerra e milícias empregam a destruição do laço comunitário e o faz através de uma violência que incide com mais força sobre o corpo das mulheres. É desolador ouvir as histórias e os relatos das situações traumáticas pelas quais essas mulheres foram submetidas. É um absurdo que a contemporaneidade ainda abrigue situações como essa do Congo e em como esses processos são invisibilizados. Não muito diferente, é o que acontece atualmente em território nacional, debaixo do nosso nariz com os Yanomamis, um grupo de povos originários que vinham sendo violentados dentro de uma política do Estado com uma lógica necropolítica. Em nome da extração de minerais, deixam um povo sem assistência, sem condições de satisfação das necessidades básicas (como saúde e alimentação) e ainda violentam mulheres e crianças, destruindo os laços comunitários que sustentam aquele grupo de pessoas. Em outras palavras, os deixam para a morte. Voltando ao documentário, City of Joy é um local formado por um grupo de profissionais multidisciplinares que acolhem temporariamente mulheres vítimas da violência oriunda das invasões coloniais no Congo. Há assistência médica, psicológica, educação sexual e treinamentos para autodefesa. Fiquei um pouco incomodado com o modo como essa educação sexual aconteceu, em grupo, dado que pode esse método pode representar uma violenta simbólica ao se considerar a singularidade e história de cada mulher que estava ali. No entanto me pareceu também que dada a grande demanda para uma quantidade limitada de recursos, foi a saída que o grupo de interventores achou para assistir ao maior número possível de mulheres. Mas isso é apenas uma suposição. Ao passar um tempo na City of Joy, espera-se que essas mulheres reconstruam suas vidas, agora com laços comunitários mais fortalecidos e maior capacidade de autodefesa, estando também munidas de mais informação acerca de seus direitos. CIty of Joy é uma iniciativa admirável. No entanto, aparece para combater uma situação totalmente evitável. A atenção das organizações internacionais devem estar voltadas para impedir o florescimento desse mal, cortando-o pela raiz. E o enfrentamento enérgico sobre qualquer forma que ainda replique essa violência costumaz em contextos de guerra.
Desde quando entrei na graduação de Psicologia ouço falar muito sobre esse filme e só agora tive a motivação em assisti-lo, quando percebi que ele sairá em breve do catálogo da Mubi.
Talvez por ter recebido tanta indicação no meio acadêmico, minha expectativa tenha ficado alta demais e eu esperei um maior aprofundamento e cuidado na construção subjetiva dos personagens.
De certa forma, isso está ali, mas correndo o risco em cair em explicações reduzidas e fantasiosas que tentam explicar certas condições. Exemplo: há uma mulher que não está muita certa sobre o seu desejo de ser mãe. Vamos culpá-la pela perversão do filho?
Gostei da saída criativa para narrar a história, ao se investir em uma ordem não cronológica dos fatos. Em mim deu o efeito de rememorar, no presente, uma história juntamente com Eva e, talvez, tenha sido isso que mais tenha me fisgado: o interesse em desvendar o que levou Eva a situação psicossocial precária, em que ela se encontra em sua vida atual. E assim, com peças do passado e do presente, é possível ir montando esse quebra-cabeças e entender melhor a imensa tragédia que rodeia a vida daquela personagem.
Esse é o primeiro filme que assisto do Malick e me surpreendeu ao saber da repercussão que teve ao redor do mundo em festivais, salas de cinema e fóruns na internet, quando despertou sentimentos tão polarizados, quase como aqueles da política atual.
Não foi o filme da minha vida mas também não sinto que desperdicei meu tempo assistindo-o. Pelo contrário. É plasticamente muito agradável e a história permite uma variedade imensa de reflexões sob diferentes lentes teóricas e existenciais. Li alguns poucos comentários por aí e "A árvore da vida" me remeteu pra um lugar muito diferente de tudo que eu li e acho que arte é sobre isso.
Falando brevemente, o filme remonta ao início do nosso universo até a sua destruição, saindo da representação de um nada e caindo nesse mesmo nada no final. Nada esse que nem as mentes mais brilhantes conseguem simbolizar. Uma frase que me veio a cabeça quando terminei de assisti-lo está na música "Esse filme que passou foi bom" da Letrux e diz sobre o estranhamento de saber que nossa vida termina no mesmo ponto em que começou: do desconhecido ao mesmo desconhecido.
Para retratar o início da vida, Malick lança mão das teorias científicas mais aceitas que envolvem o Big Bang, o início da vida nas águas, os dinossauros, o meteoro que os dizimou e toda a vida posterior que se dividiu em diferentes espécies. Para retratar o fim da vida, Malick simboliza a morte espiritualmente sob o olhar de um dos personagens principais, quando ele no fim reflete sobre sua trajetória e reencontra seus familiares nesse plano espiritual. Enquanto isso, o mundo físico se destrói gradualmente com o aquecimento da Terra e sua posterior destruição, impossibilitando qualquer continuidade da vida tal como experimentamos hoje.
E durante esse percurso do início do universo até sua destruição, Malick intercala na tela os eventos maiores desse universo com a trajetória de uma família nuclear representada por um casal heterossexual e seus três filhos homens. É através dessa historinha familiar que cada telespectador vai se espelhar e tecer suas próprias reflexões.
Ao inserir esses personagens em meio a todo o evento do universo, o diretor aponta para a pequenez, para a efemeridade e a insignificância da nossa vida. E ao mesmo tempo, aponta que significar e conferir tanta importância a essa vida é algo puramente humano, que carrega em si uma noção existencial ainda baseada no antropocentrismo.
Ao demonstrar a separação da vida em espécies, Malick chega a um ponto em que demarca bem duas grandes divisões entre essas espécies: a vida humana e a vida animal. Tanto que durante toda a história os personagens estarão interagindo em meio a uma diversidade de animais que domesticados ou selvagens, vez o outra tomam a tela, mas sem esboçar qualquer protagonismo sob o nosso olhar humano. É realçado o modo como a vida humana se colocou acima das demais. E ao dar um certo enfoque ao ser humano, Malick ainda faz outras duas divisões, sustentando um ar maniqueísta e binário, ao atribuir a esse ser duas possibilidades de existência, uma centralizada na natureza e a outra centralizada na graça. A primeira tem ares de vilania e é representada e aprendida pelos personagens masculinos e a segunda fica mais circunscrita ao feminino. As crianças, no entanto, parecem na história abrigar um pouco dessas duas possibilidades.
Ao construir esse núcleo familiar Malick parece ter bebido das águas da psicanálise freudiana e todas as significações que essa traz para a constituição do sujeito. Não vou me estender aqui, mas Malick aponta para a historinha edipiana do garoto que deseja a mãe e que tem sentimentos ambíguos pelo pai. Aponta para a constituição psíquica desses sujeitos através das mais diversas identificações no núcleo de uma família conservadora e com papéis de gênero muito demarcados. Daria para se estender para outros caminhos, fazendo uma análise da estupidez humana em hierarquizar as condições de vida dentro da mesma espécie através de diferentes construções psicossociais. E sob esse prisma, a existência humana carregaria como estruturação dominante a possibilidade supracitada da natureza.
O telespectador que se apegou a essa história familiar esperando que algo de surpreendente ocorresse ali, pode ter ficado muito decepcionado. E fica claro ao se ver o todo que o enfoque do diretor foi dar a essa família, com todas suas questões, sofrimentos e demais eventos, a mesma significância aos olhos do universo, da vida de uma borboleta que teve menos de 10 segundos de tempo de tela e que provavelmente viveu apenas por poucas semanas. Talvez Malick tenha tentado nos deslocar de nossas crenças estruturantes para observar a existência a partir desse olhar do universo, distanciado do olhar humano, o que pode ter sido surpreendente para algumas pessoas, angustiante ou entediante para outras. Remonto aqui certo binarismo que é cultural e do qual não consigo me escapar na maioria das vezes.
Aftersun é um filme inglês sobre memória e parentalidade que tem como fundo principal a rememoração de uma viagem de férias entre um jovem pai divorciado e sua filha de 11 anos. Os personagens centrais são Calum Paterson, interpretado pelo ator Paul Mescal, e Sophie Paterson, interpretada por Frankie Corio em sua versão infantil e por Celia Rowlson-Hall em sua versão adulta.
Considerando os momentos iniciais, Aftersun se desenha como um filme doce que causa admiração ao, em certa medida, subverter o estereótipo socialmente construído da masculinidade e, sobretudo, da paternidade, quando esboça em Calum um pai que demonstra afetividade, conexão e profundo interesse pela vida de sua filha pré adolescente. O tempo de tela do filme privilegia a rememoração dessa relação entre pai e filha que, sob o olhar de uma menina de 11 anos, se apresenta quase como ideal.
Algumas pequenas fissuras, no entanto, vão aparecendo e apontando para uma tensão crescente na trama, o que provoca no telespectador ávido a expectativa de que alguma tragédia estaria na iminência de acontecer a qualquer momento, ainda naquela viagem. E assim o telespectador se sente à beira de um abismo em diversas cenas que aquecem esse ponto de tensão. E realmente através das câmeras de Wells e longe dos olhos de Sophie, há uma situação limítrofe por detrás de tudo, que vai se revelando a conta gotas para o telespectador.
Ao contrário de uma certa cronologia lógica do filme, vou aqui polarizar um pouco a reflexão iniciando pelo belo antes de dar espaço a emergente angústia que vai ocupando a história.
E assim, é preciso começar destacando uma das maiores belezuras de Aftersun: o conforto e a honestidade na relação entre Calum e Sophie. Ele se interessa profundamente pela filha. Quer conhecer seus desejos, saber mais sobre sua vida escolar e sobre suas atividades preferidas. Ao contrário de muitos homens e pais que objetificam mulheres e filh@s, Calum cria a atmosfera para que ela se constitua também como um sujeito, permitindo que ela se identifique e se separe oportunamente dele na construção de sua própria personalidade. Dito em outras palavras, é um pai que parece não atribuir à filha a responsabilidade de atender às suas expectativas paternas, tampouco às expectativas sociais. Ele oferece um registro de permissividade, acolhimento e amor incondicional.
Quero me estender um pouco mais da boniteza dessa relação. Calum não se esquiva de conversar com Sophie assuntos considerados tabus. Ele constrói um lugar existencial que é seguro para que ela se expresse. É simbólica e plasticamente bonita a cena em que Sophie reflete sobre seu primeiro beijo quando estão em uma pequena ilha artificial na imensidão oceânica. E ao mesmo tempo, a ilha em que a filha está com o pai é, sob o olhar dela, como a relação entre eles: chão firme, mas apenas uma parte de sua vida em meio a um vasto oceano em que ela poderia experimentar. Oceano que Calum a empurra e promete companhia.
Ao mesmo tempo que essa relação encanta ao tomar o plano principal do filme, o roteiro vai dando dicas que Calum pode estar vivenciado um grande confronto interno. Nos diversos não ditos e em breves cenas em que Calum está distanciado de Sophie, vai emergindo um estado melancólico que parece posicioná-lo em uma situação limítrofe na vida. E dessa parte sombria, Calum busca blindar Sophie, mas, obviamente isso fica inscrito apenas no campo da intenção.
Esse outro lado de Calum que não é explicitamente manifesto, vai se revelando em pequenas peças, que isoladas, indicariam a normalidade de uma vida que não é felicidade plena ou de uma relação que tem os seus desentendimentos. A questão é que quando se monta o quebra cabeça com todas essas partes juntas, elas apontam para o mesmo lugar. É possível observar em Calum uma pessoa que está ruindo, esgarçando cada vez mais o frágil fio que o conecta à vida.
Calum é, naquela viagem, ferida aberta! E assim, qualquer questionamento de Sophie parece provocar dores que ele não sabe bem de onde vem. O telespectador, porém, é capaz de intuir sobre a origem dessas, em companhia da versão adulta de Sophie, que através de sonhos e memórias busca desvendar a verdade sobre o seu pai.
Das feridas físicas, Calum tem o pulso quebrado e uma grande cicatriz no ombro. Ao ser questionado sobre o contexto de cada fratura, ele responde sem rodeios: não sabe de onde vem. Esse registro físico também aponta para o não saber de suas feridas psíquicas que estão ali, disfarçadas, mas eclodindo em sinais como os de um vulcão prestes a entrar em erupção. É possível intuir que seu sofrimento atual é em parte determinado por eventos de sua infância, quando em uma conversa com Sophie, dotado de uma constrangida honestidade, ele revela que teve uma infância possivelmente negligenciada. Uma das vias de interpretação é de que Calum tenha criado a exigência de ser com a filha o avesso daquilo que seus pais foram com ele. Exigência que parece se cumprir em certa medida, ao ponto em que Sophie diz se sentir confortável àquela altura de sua vida em contraponto a Calum dizendo sobre o seu sentimento de não pertencimento ao lugar em que cresceu.
Pode-se afirmar que antes de esvair, Calum foi um lutador. Percebe-se isso em toda a boa intenção em fortalecer o laço com a filha, na sua prática de Tai Chui e em outros elementos que remetem a sua espiritualidade. Não à toa, ele esteve em uma jornada pessoal buscando pelo próprio equilíbrio.
Ao mesmo tempo em que Calum consegue episodicamente ser o pai ideal que forjou, há sinais de que isso não se valida integralmente. E Sophie aponta para isso, com certa conformação, ao dizer que o pai fazia promessas as quais não conseguiria cumprir. A fala de Sophie revela ao telespectador que Calum tem sérios problemas em sua vida financeira que não o permitem seguir com os planos que sonhou. Supõe-se também que ele passa por algum tipo de adicção, o que explicaria não entender a origem dos machucados que marcam a destruição de seu próprio corpo.
Há uma passagem no filme em que uma ruptura parece prestes a acontecer na relação entre os dois. Na noite em que estão em um karaokê, Calum não consegue esconder da filha seu mal estar, algo que ele tinha se esforçado para fazer até então. Alegando não estar bem naquela noite em específico, ele rompe com a tradição de subir ao palco e cantar uma música na companhia da garota, como havia feito nos anos anteriores. Sophie banca então uma performance solo de “Losing My Religion” do R.E.M, como se estivesse entoando cada palavra para o seu pai, numa letra que é bem oportuna para a situação. Logo após a apresentação, o pai informa que sua noite acabou, mas Sophie está inconformada e quer ficar um pouco mais, ainda que sozinha, na área do hotel, desejo consentido pelo pai.
Nessa separação momentânea, cada um parece seguir em direções opostas. Longe do olhar do pai, Sophie experimenta e verifica possibilidades para a sua vida na observação e interação com outras pessoas do hotel. Calum por outro lado, não consegue lidar com o vazio quando se vê sozinho em seu quarto e sai caminhando, aparentemente entorpecido e sem destino. Rompendo com todo o cuidado que ele sustentou a filha até então, ele apaga, embriagado, e a deixa trancada sozinha do lado de fora do quarto de hotel. Sophie adormece na recepção, posicionada entre uma certa apatia e conformação.
A essa altura do filme, o telespectador atento começa a ressignificar diálogos que antes pareciam apenas bonitinhos. Há uma cena em que Calum afaga Sophia dizendo sobre como ela teria tempo de vida para descobrir o que gostaria de fazer dela. Entendemos agora que essa fala aparentemente amorosa e inofensiva, poderia abrigar seu sentimento autodepreciativo de que para ele, esse tempo não existiria mais.
A cena da última dança entre pai e filha é apoiada nos versos da música "Under Pressure” de Bowie e Queen, sendo uma das passagens mais intensas do cinema contemporâneo. Em uma sacada brilhante da direção, a dança ocorre sob o olhar da menina de 11 anos e vai se desfigurando ao misturar-se com um sonho de Sophie já adulta, que a essa altura, era assombrada ao fantasiar os sinais de sofrimento por detrás da aparência amorosa de seu pai. Não se sabe ao certo o destino de Calum após aquela viagem, mas ao considerar a narrativa, a angústia no sonho de Sophie e a trilha sonora que expõe esse momento, pode-se imaginar que Calum caminhou até sua destruição, ideia suportada na letra de “Under Pressure" que brilhantemente serve como trilha:
“This is our last dance This is ourselves Under Pressure”
Além de uma fotografia espetacular, outro ponto alto de Aftersun é a trilha sonora que serve como suporte imaginário para a interpretação da narrativa.
Sobre Sophia não podemos afirmar exatamente como todo o acontecido reverbera em sua vida atual. Mas temos alguns elementos nas cenas de sua vida adulta que nos oferecem alguma informação para criar suposições. Pode ser que ela seja mãe. Ao que tudo indica, está em um relacionamento homoafetivo e amoroso, com alguém que a acorda celebrando seu aniversário tal como fazia o pai. Talvez ela se culpe em não ter percebido o desespero do pai naquela que possivelmente fora sua última viagem na companhia dele. É possível que ela sinta um vazio com a ausência de Calum, buscando tampona-lo nos fragmentos de memórias em seus sonhos, vídeos e em sua câmera mental.
É uma história doce invadida pelo acre no final. É absolutamente lindo entrar em contato com a cumplicidade e a conexão entre Calum e Sophia, vê-lo impulsionando-a a experimentar a vida e fazer as próprias escolhas sob o manto de uma aceitação incondicional. Mas é brutal saber que, ao que tudo indica, a promessa de que ele estaria com a filha em cada decisão, foi mais uma intenção acima do que ele conseguiria cumprir.
Aftersun inevitavelmente nos faz pensar em quem somos e o que nos determina. Aponta para o que fazemos, falamos ou deixamos de falar e no que percebemos ou deixamos de perceber. Nos leva a questionar a nossa sociedade e o modelo de nossas relações. Permite ao telespectador criar diversas identificações, sob diferentes prismas e assim passamos a refletir também sobre a nossa própria história.
Aftersun é um filme inglês dirigido e roteirizado por Charlotte Wells. No ato deste texto, escrito em janeiro de 2023, ele está disponível no Brasil pela plataforma de streaming Mubi.
Este texto foi redigido para o Rascunhagem, instagram: @rascunhagem_
Esse filme tinha um efeito mais impactante quando saiu, mas depois de séries como black mirror e depois da revolução digital que tivemos desde então ele perde um pouco do inusitado que carregava em sua história, para aquelas pessoas que o assistem pela primeira vez agora.
De toda forma é ainda uma boa história para reflexão ou até mesmo para uma diversão sem maiores pretensões.
Há quem o justifique como um filme romântico e há quem crie debates psicossociais sobretudo sobre os determinismos constitutivos de cada um e a nossa limitada autonomia diante eles.
Não vou me estender muito nesse comentário. Great Freedom é um filme brilhantemente dirigido e com boas atuações. É uma história romântica que tem como pano de fundo o fato histórico da manutenção do artigo 175 que criminalizou a homossexualidade mesmo após o Terceiro Reich. E pasmem, tal artigo foi retirado da legislação integralmente apenas em 1994.
É impossível pensar no filme e na motivação dos personagens com justiça estando o telespectador constituído subjetivamente em um contexto tão diferente daquele da história, quando os personagens estão vivenciando um período logo após a dissolução da Alemanha Nazista. O final é chocante, quando percebemos
que Viktor voltou ao cárcere "por escolha", para viver uma história de amor que carrega uma posição longe do ideário social atual
. Liberdade ou prisão? Escolha ou a saída possível? Renúncia ou apropriação do próprio desejo? São questões que entre outras inevitavelmente provocam um tanto de angústia no telespectador.
Aftersun é um filme inglês sobre memória e parentalidade que tem como fundo principal a rememoração de uma viagem de férias entre um jovem pai divorciado e sua filha de 11 anos. Os personagens centrais são Calum Paterson, interpretado pelo ator Paul Mescal, e Sophie Paterson, interpretada por Frankie Corio em sua versão infantil e por Celia Rowlson-Hall em sua versão adulta.
Considerando os momentos iniciais, Aftersun se desenha como um filme doce que causa admiração ao, em certa medida, subverter o estereótipo socialmente construído da masculinidade e, sobretudo, da paternidade, quando esboça em Calum um pai que demonstra afetividade, conexão e profundo interesse pela vida de sua filha pré adolescente. O tempo de tela do filme privilegia a rememoração dessa relação entre pai e filha que, sob o olhar de uma menina de 11 anos, se apresenta quase como ideal.
Algumas pequenas fissuras, no entanto, vão aparecendo e apontando para uma tensão crescente na trama, o que provoca no telespectador ávido a expectativa de que alguma tragédia estaria na iminência de acontecer a qualquer momento, ainda naquela viagem. E assim o telespectador se sente à beira de um abismo em diversas cenas que aquecem esse ponto de tensão. E realmente através das câmeras de Wells e longe dos olhos de Sophie, há uma situação limítrofe por detrás de tudo, que vai se revelando a conta gotas para o telespectador.
Ao contrário de uma certa cronologia lógica do filme, vou aqui polarizar um pouco a reflexão iniciando pelo belo antes de dar espaço a emergente angústia que vai ocupando a história.
E assim, é preciso começar destacando uma das maiores belezuras de Aftersun: o conforto e a honestidade na relação entre Calum e Sophie. Ele se interessa profundamente pela filha. Quer conhecer seus desejos, saber mais sobre sua vida escolar e sobre suas atividades preferidas. Ao contrário de muitos homens e pais que objetificam mulheres e filh@s, Calum cria a atmosfera para que ela se constitua também como um sujeito, permitindo que ela se identifique e se separe oportunamente dele na construção de sua própria personalidade. Dito em outras palavras, é um pai que parece não atribuir à filha a responsabilidade de atender às suas expectativas paternas, tampouco às expectativas sociais. Ele oferece um registro de permissividade, acolhimento e amor incondicional.
Quero me estender um pouco mais da boniteza dessa relação. Calum não se esquiva de conversar com Sophie assuntos considerados tabus. Ele constrói um lugar existencial que é seguro para que ela se expresse. É simbólica e plasticamente bonita a cena em que Sophie reflete sobre seu primeiro beijo quando estão em uma pequena ilha artificial na imensidão oceânica. E ao mesmo tempo, a ilha em que a filha está com o pai é, sob o olhar dela, como a relação entre eles: chão firme, mas apenas uma parte de sua vida em meio a um vasto oceano em que ela poderia experimentar. Oceano que Calum a empurra e promete companhia.
Ao mesmo tempo que essa relação encanta ao tomar o plano principal do filme, o roteiro vai dando dicas que Calum pode estar vivenciado um grande confronto interno. Nos diversos não ditos e em breves cenas em que Calum está distanciado de Sophie, vai emergindo um estado melancólico que parece posicioná-lo em uma situação limítrofe na vida. E dessa parte sombria, Calum busca blindar Sophie, mas, obviamente isso fica inscrito apenas no campo da intenção.
Esse outro lado de Calum que não é explicitamente manifesto, vai se revelando em pequenas peças, que isoladas, indicariam a normalidade de uma vida que não é felicidade plena ou de uma relação que tem os seus desentendimentos. A questão é que quando se monta o quebra cabeça com todas essas partes juntas, elas apontam para o mesmo lugar. É possível observar em Calum uma pessoa que está ruindo, esgarçando cada vez mais o frágil fio que o conecta à vida.
Calum é, naquela viagem, ferida aberta! E assim, qualquer questionamento de Sophie parece provocar dores que ele não sabe bem de onde vem. O telespectador, porém, é capaz de intuir sobre a origem dessas, em companhia da versão adulta de Sophie, que através de sonhos e memórias busca desvendar a verdade sobre o seu pai.
Das feridas físicas, Calum tem o pulso quebrado e uma grande cicatriz no ombro. Ao ser questionado sobre o contexto de cada fratura, ele responde sem rodeios: não sabe de onde vem. Esse registro físico também aponta para o não saber de suas feridas psíquicas que estão ali, disfarçadas, mas eclodindo em sinais como os de um vulcão prestes a entrar em erupção. É possível intuir que seu sofrimento atual é em parte determinado por eventos de sua infância, quando em uma conversa com Sophie, dotado de uma constrangida honestidade, ele revela que teve uma infância possivelmente negligenciada. Uma das vias de interpretação é de que Calum tenha criado a exigência de ser com a filha o avesso daquilo que seus pais foram com ele. Exigência que parece se cumprir em certa medida, ao ponto em que Sophie diz se sentir confortável àquela altura de sua vida em contraponto a Calum dizendo sobre o seu sentimento de não pertencimento ao lugar em que cresceu.
Pode-se afirmar que antes de esvair, Calum foi um lutador. Percebe-se isso em toda a boa intenção em fortalecer o laço com a filha, na sua prática de Tai Chui e em outros elementos que remetem a sua espiritualidade. Não à toa, ele esteve em uma jornada pessoal buscando pelo próprio equilíbrio.
Ao mesmo tempo em que Calum consegue episodicamente ser o pai ideal que forjou, há sinais de que isso não se valida integralmente. E Sophie aponta para isso, com certa conformação, ao dizer que o pai fazia promessas as quais não conseguiria cumprir. A fala de Sophie revela ao telespectador que Calum tem sérios problemas em sua vida financeira que não o permitem seguir com os planos que sonhou. Supõe-se também que ele passa por algum tipo de adicção, o que explicaria não entender a origem dos machucados que marcam a destruição de seu próprio corpo.
Há uma passagem no filme em que uma ruptura parece prestes a acontecer na relação entre os dois. Na noite em que estão em um karaokê, Calum não consegue esconder da filha seu mal estar, algo que ele tinha se esforçado para fazer até então. Alegando não estar bem naquela noite em específico, ele rompe com a tradição de subir ao palco e cantar uma música na companhia da garota, como havia feito nos anos anteriores. Sophie banca então uma performance solo de “Losing My Religion” do R.E.M, como se estivesse entoando cada palavra para o seu pai, numa letra que é bem oportuna para a situação. Logo após a apresentação, o pai informa que sua noite acabou, mas Sophie está inconformada e quer ficar um pouco mais, ainda que sozinha, na área do hotel, desejo consentido pelo pai.
Nessa separação momentânea, cada um parece seguir em direções opostas. Longe do olhar do pai, Sophie experimenta e verifica possibilidades para a sua vida na observação e interação com outras pessoas do hotel. Calum por outro lado, não consegue lidar com o vazio quando se vê sozinho em seu quarto e sai caminhando, aparentemente entorpecido e sem destino. Rompendo com todo o cuidado que ele sustentou a filha até então, ele apaga, embriagado, e a deixa trancada sozinha do lado de fora do quarto de hotel. Sophie adormece na recepção, posicionada entre uma certa apatia e conformação.
A essa altura do filme, o telespectador atento começa a ressignificar diálogos que antes pareciam apenas bonitinhos. Há uma cena em que Calum afaga Sophia dizendo sobre como ela teria tempo de vida para descobrir o que gostaria de fazer dela. Entendemos agora que essa fala aparentemente amorosa e inofensiva, poderia abrigar seu sentimento autodepreciativo de que para ele, esse tempo não existiria mais.
A cena da última dança entre pai e filha é apoiada nos versos da música "Under Pressure” de Bowie e Queen, sendo uma das passagens mais intensas do cinema contemporâneo. Em uma sacada brilhante da direção, a dança ocorre sob o olhar da menina de 11 anos e vai se desfigurando ao misturar-se com um sonho de Sophie já adulta, que a essa altura, era assombrada ao fantasiar os sinais de sofrimento por detrás da aparência amorosa de seu pai. Não se sabe ao certo o destino de Calum após aquela viagem, mas ao considerar a narrativa, a angústia no sonho de Sophie e a trilha sonora que expõe esse momento, pode-se imaginar que Calum caminhou até sua destruição, ideia suportada na letra de “Under Pressure" que brilhantemente serve como trilha:
“This is our last dance This is ourselves Under Pressure”
Além de uma fotografia espetacular, outro ponto alto de Aftersun é a trilha sonora que serve como suporte imaginário para a interpretação da narrativa.
Sobre Sophia não podemos afirmar exatamente como todo o acontecido reverbera em sua vida atual. Mas temos alguns elementos nas cenas de sua vida adulta que nos oferecem alguma informação para criar suposições. Pode ser que ela seja mãe. Ao que tudo indica, está em um relacionamento homoafetivo e amoroso, com alguém que a acorda celebrando seu aniversário tal como fazia o pai. Talvez ela se culpe em não ter percebido o desespero do pai naquela que possivelmente fora sua última viagem na companhia dele. É possível que ela sinta um vazio com a ausência de Calum, buscando tampona-lo nos fragmentos de memórias em seus sonhos, vídeos e em sua câmera mental.
É uma história doce invadida pelo acre no final. É absolutamente lindo entrar em contato com a cumplicidade e a conexão entre Calum e Sophia, vê-lo impulsionando-a a experimentar a vida e fazer as próprias escolhas sob o manto de uma aceitação incondicional. Mas é brutal saber que, ao que tudo indica, a promessa de que ele estaria com a filha em cada decisão, foi mais uma intenção acima do que ele conseguiria cumprir.
Aftersun inevitavelmente nos faz pensar em quem somos e o que nos determina. Aponta para o que fazemos, falamos ou deixamos de falar e no que percebemos ou deixamos de perceber. Nos leva a questionar a nossa sociedade e o modelo de nossas relações. Permite ao telespectador criar diversas identificações, sob diferentes prismas e assim passamos a refletir também sobre a nossa própria história.
Aftersun é um filme inglês dirigido e roteirizado por Charlotte Wells. No ato deste texto, escrito em janeiro de 2023, ele está disponível no Brasil pela plataforma de streaming Mubi.
Este texto foi redigido para o Rascunhagem, instagram: @rascunhagem_
O filme transmite de forma sublime as sensações de desenvolver uma sexualidade que ainda não é socialmente aceita e o quanto isso pode te levar para um local solitário. Tais sensações são ampliadas pelo plot de um primeiro amor que é mais platônico que correspondido e pela angústia de sua vivência caótica.
Com o decorrer dos fatos, Merab se recusa a fazer parte de um caminho que conduziria ao que ele mais ama fazer, mas que seria à custas da impossibilidade de ser quem ele de fato é e através da dança ele se recusa a viver com mais esta opressão. Esta cena final, que é tensa mas ao mesmo tempo catártica, ele parece pela primeira vez apoderar-se de si. E Então Nós Dançamos, é sobre encontrar a liberdade que é possível, sobre o encontro de si consigo mesmo.
Gostei da linguagem do filme e de como ele retratou o desespero humano em uma existência central. No caso deste Yoav, um ser desejante, errante e desesperado por pertencimento.
Percebo que sua busca consiste em encontrar algum espaço social no qual ele se reconheça, que acalme a sua pulsante inquietação. O plano macro é despir-se de seu passado israelense para dar lugar a uma existência impecavelmente francesa. Para sustentação do plano macro, existem vários planos micros dentro dos quais ele tateia e descobre o funcionamento daquela cultura. Na medida em que as diversas tentativas micros falham e que os ideais imaginados de cada tentativa são desconstruídos, vem a fúria de não se encaixar em nenhuma das realidades e a constatação que seu plano macro não passara de uma ilusão. Cai o ideal de pertencimento a sociedade francesa, que como qualquer existência advinda do homem, é cheia dos paradoxos e contradições. Uma sociedade que diz acolher a todos, com os lemas de liberdade, igualdade e fraternidade e que no próprio hino nacional carrega uma mensagem clara de poder e segregação, ao dizer que os impuros, tal como ele é, carreguem os arados. A cena nos bastidores da orquestra é a catarse da elaboração de que seu ideal francês não existe e ele busca um engajamento coletivo dentro de sua revolta, mostrando as contradições das promessas de uma sociedade versus as possibilidades que cada um tem. No entanto, as pessoas parecem estar relativamente em paz com suas existências em meio às contradições, que são insuportáveis a ponto de fazer com que o Yoav decida ir embora de vez. Nem a amizade por Émile sobrevive, levando Yoav à fúria ao encontrar pela primeira vez as portas fechadas.
* Mesmo que Yoav quisesse apagar seu passado, ele permite que Émile se aproprie de tais histórias. Além do piercing, era tudo que ele tinha! Foi interessante que já quase no momento final da história, ele sentiu a necessidade de se reapropriar de seu passado, na medida que aquele presente não o sustentava mais. E de como isso foi em conjunto com um certo desinteresse de Émile.
o banho de sangue típico de suas sagas. Quem está acostumado a assistí-lo pode achar que tais cenas violentas tenham sido curtas e que à partir daquela invasão dos hippies na casa do personagem do Di Capprio algo muito maior viria acontecer, envolvendo inclusive o núcleo da personagem da Robbie. E este algo muito maior não aconteceu, podendo dar uma sensação de que o filme não contou uma história. No entanto, ela está ali!
Li que muita gente não gostou de algumas atuações, pois eu já achei o ponto alto do filme. Parece por vezes ser um documentário, à partir de imagem de pessoas reais. A palavra que me veio à cabeça em muitos momentos do longa foi desamparo :( Ele escancara as desigualdades sociais no Brasil, o desvalor da força de trabalho e a ineficiência das políticas públicas.
Esse foi um dos documentários mais tocantes que já assisti em toda a vida. Agnès Varda e JR não se encontram pelo acaso. Não é na padaria, no ponto de ônibus ou numa estrada, o encontro aconteceu pois assim desejaram. Um buscou o outro e posteriormente decidiram fazer um projeto que se tornou um presente para tantas pessoas, tanto para aqueles que foram homenageados com as fotos quanto quem pôde encontrar este documentário-filme precioso para assistir. E na caminhada, onde Agnès parece também fazer uma revisão de sua vida, ela demarca alguns posicionamentos preciosos para mantermos em mente de quem ela é e o que aprendeu com sua caminhada, e assim ela ressalta o valor do trabalhador, dá visibilidade à mulher, levanta a bandeira da proteção da vida animal, da arte, da amizade e do amor.
Acredito que seja bastante aceitável questionar a execução do filme, não dá para negar, porém, que ele faça circular reflexões sobre o nosso funcionamento como uma sociedade que é complexa e desigual. Se você se ater a buscar uma compreensão da história em sua literalidade, corre-se o risco de perder boa parte de suas possibilidades. Opto em começar este texto descrevendo um pouco sobre a anatomia do poço e mais adiante conversamos sobre sua fisiologia. Na ficção de Galder Gaztelu-Urrutia o poço é uma espécie de prisão, onde pessoas encarceradas dividem “celas”, sendo duas pessoas por cela e uma cela por andar. A cela cujo piso fica seis metros abaixo do nível zero, é a cela de número 1. 6 metros abaixo, a cela de número dois. Seria assim por diante, até a cela de número 200. No entanto, com o decorrer da história, é percebido que existem níveis mais profundos a este ducentésimo e mais adiante voltarei neste ponto. Antes de serem escolhidas para o Poço, as pessoas respondem a uma série de perguntas, entre elas, sobre o prato de comida favorito. O prato de comida favorito de todas as pessoas “admitidas” é então posto em uma plataforma que parte do nível 1 até o nível mais baixo do poço.
Dentro de um funcionamento consciente, onde cada um consome o seu prato escolhido, haveria comida para todos. No entanto o que acontece ali é que as pessoas dos níveis mais superiores comem mais do que necessitam, de modo a não sobrar nada para os níveis mais inferiores. Você também pensou ser possível fazer uma analogia do poço à sociedade capitalista¿ Sistema este, que opera dentro de um mundo onde se tem recursos para todos mas que no entanto, as pessoas dos níveis superiores consomem mais que as que estão nos níveis mais inferiores¿ O que se vê nos níveis mais inferiores, é uma luta insana pela sobrevivência, em um lugar em que no poço, a solidariedade não toca. E este é um ponto do roteiro que se faz necessário uma ponderação se quisermos continuar a interpretar o filme à partir da nossa sociedade. Recordo de uma história que meu pai conta sobre um tio que estava em situação de fome, com a esposa e o filho bebê, a dias sem ter o que comer. Além de terem o filho pequeno em casa, ainda acolhiam meu pai que estava sem ter onde morar. O restante da família percebeu a situação precária e juntaram forçar para comprar uma cesta básica. Quando meu tio recebeu a cesta, a primeira coisa que fez antes mesmo de saciar a própia fome, foi repartir todos os alimentos em duas partes, levando a metade da cesta para um amigo que também estava em apuros. Histórias como esta não são exceções entre as pessoas com poucos recursos na nossa sociedade. De alguma forma, pessoas que não experimentaram os luxos desnecessários proporcionados pelo acúmulo de capital parecem ser mais atentas à convivência com o outro, à comunhão dos bens e dos recursos. Recordo do ideal de Marx, que dizia acreditar no homem que por essência é solidário. É claro que se a situação chega a um nível extremo, onde o luxo de uns tampona totalmente a possibilidade do outro, possivelmente a necessidade de suprimento do básico pela sobrevivência tamponará qualquer possibilidade deste em ser solidário também. Em pouco mais de noventa minutos, o telespectador pode se ver num exercício para entender as motivações de cada personagem e, dessa forma, não dá para culpar tanto o cara que tá em um nível mais inferior e que precisa comer a carne do outro para sobreviver, ou o cara que tá em um dos níveis mais altos e que por ter experimentado níveis tão baixos, entende que naquele momento ele deve acumular, comer mais que o necessário, pois sente medo de futuramente acordar novamente em um ponto mais profundo. Este ponto revela que um certo desconforto é presente em qualquer nível do poço. Ele não é saudável para ninguém, ainda que pior para as pessoas nos níveis mais profundos. E dentro de tempos líquidos, a permanência em determinado ponto uma vez alcançado, não é garantido.
Não é difícil perceber também, que quanto mais profundo for o nível, menor será a possibilidade de vida e qualquer dignidade à vida. Nos níveis mais baixos, dificilmente se encontra vida nas celas e quando se encontra, é tomada pela violência e pela loucura, em situações onde a fome já ultrapassou qualquer possibilidade de pensamento racional e coletivo. Outro ponto interessante é a crença que circula de que o poço teria apenas 200 níveis. Uma interpretação para a manutenção dessa crença, seria pensar que ninguém volta com vida se presencia um nível tão inferior, com total privação de recursos. O sistema de funcionamento do Poço não te dá qualquer possibilidade de ascensão dependendo do nível em que você é colocado. Meritocracia, uma ova! E quem está em níveis superiores, dificilmente pensa sobre a possibilidade de uma situação muito pior daquela que já experimentou ou enxergou pelos próprios olhos. Quem acaba de entrar no poço até esboça o desejo de mudar a situação, fazendo com que haja comida para todos. Mas existe dificuldade de diálogo até mesmo com os níveis imediatamente abaixo ou acima: “Os de cima não escutam, pois não tem como cagar para cima”. Existe uma condição de poder explícita que vai se esvaziando quanto mais profundo o indivíduo se encontra. É interessante perceber que o sábio aparece na história ocupando um nível intermediário do poço. Mesmo as pessoas mais intelectualizadas, apresentam soluções que de alguma formam não abarcam a complexidade da sociedade e que, portanto, fracassam. Como enviar uma mensagem que seja entendida, se as pessoas que a receberão não são as pessoas que experimentam as condições do poço¿ A mensagem não circula entre as pessoas que estão no poder e não pode ser decifrada, pois as pessoas do poder não experimentaram as mazelas do poço e parecem não articular entre si. Ao receber a panacota, a interpretação é de que ela não foi consumida pois tinha um cabelo. Os trabalhadores do sistema, da cozinha, parecem não ter noção do sistema voraz que alimentam. E por fim, compartilho a dúvida acerca do simbolismo da criança que aparece no nível de 333. No meu entendimento o personagem principal morreu no conflito mais enérgico. A criança sendo posta como a mensagem perfeita para a administração do poço, simbolizaria a crença de que os mais novos salvarão a humanidade – o que não passa de um delírio se não considerarmos uma mudança que começa em nós mesmos, com uma mudança radical nas leis que regem o nosso sistema de interação.
Musical francês mais orgânico que a maioria. Tenho dificuldade de captar narrativas de musicais, neste caso no entanto, senti que as músicas integraram-se bem à história contada.
Não tenho propriedade pra falar dos pontos históricos e contextuais que este filme carrega, então vou me ater de destacar a atuação da garotinha Nadia, quanta formosura! "O Sol Enganador" foi meu primeiro filme russo e representou um bom começo.
a partida da matriarca de uma família como fio condutor da história. Gosto de como o roteirista o desenvolve, designando funções centrais a diferentes personagens em cada uma dessas partes: de início tudo é basicamente autocentrado em Hélena, sendo os demais personagens alegorias para que ela manifeste os seus desejos, a sua força e a sua fragilidade; diante a sua morte, a história prossegue centrada no personagem de Charles Berling, desembocando por fim na neta, Sylvie, que detém a função de encerrar a narrativa. Por mais que em cada parte, determinado personagem detenha maior tempo de tela, o protagonismo é todo de Edith Scob. Mesmo diante da morte de sua personagem, ou seja, da representação física, ela permanece presente e ressoando em todos os demais personagens, de maneira mais forte nos filhos - que parecem seguir à risca suas orientações- e já de maneira mais fraca na neta- nesta, através de recordações e afeto. A dissonância da festa que abre o filme com a festa que fecha a história é coerente com o apagamento progressivo da existência de Hélena, que nunca mais será evocada em sua totalidade.
"Falei-lhe da minha morte. Há que pensar nisso. Têm as vidas deles, motivos de preocupações que não são os meus. Muitas coisas desaparecerão comigo: recordações, segredos, histórias que já não interessam a ninguém."
Refletir sobre a morte é inevitável. E evidencia que apesar da partida física de alguém, este permanece existindo enquanto existir a memória daqueles com quem conviveu.
exceto quando Adrien evoca suas memórias envolvendo sua convivência com Frantz. A ideia que fica é de que estas memórias significavam a vida dele, mais que qualquer momento presente. As cores indicam a vivacidade da lembrança. No final, quando à frente da obra de Manet, Anna encontra aquele rapaz e as cores para além de tons de cinza voltam a tela, dá-se a ideia de que ali naquele momento sua vida ganhou novamente algum significado na direção de uma certa felicidade, dando a entender que uma trajetória próspera a ela foi designada.
E por fim lembrei-me de Cazuza e de sua composição que diz sobre as mentiras sinceras que interessam. No caso do filme, apesar de estancada a revelação acerca da morte de Frantz, as mentiras permitiram certo desfecho feliz para os pais do soldado. O filho permanecia vivo em suas memórias e sobrevivente na relação inventada entre Anna e Adrien.
Talvez elabore essa ideia melhor futuramente para realizar um comentário mais decente, no entanto entendo que através de "Morte em Veneza" vemos o artista Gustav
perdido em sua própria melancolia, a ponto de se apaixonar por Tadzio, que representa idealmente o que ele já perdeu e que, tendo perdido, poderia ter somente através de um outro: a beleza,a juventude, o amor e a saúde.
“Sabe qual a base daquilo que agrada à todos? A mediocridade.”
"A realidade apenas nos distrai e degrada. Sabe, às vezes penso que os artistas mais se parecem com caçadores que miram no escuro. Nem sabem qual é seu alvo, tampouco se o atingiram. Mas não se pode esperar que a vida ilumine o alvo e estabilize sua mira."
Existe uma cena que aparece em Blue e se repete em White onde um idoso tenta com muita dificuldade descartar uma garrafa na lixeira comunitária das cidades e os personagens centrais apenas os observam. No primeiro, prevalece a liberdade na escolha em não ajudá-lo. No segundo, parece faltar ainda algum elemento para que a cena se modifique,
elemento este evocado apenas no terceiro filme, quando a personagem central de forma fraterna auxilia o idoso a realizar o seu descarte. A fraternidade é vermelha, traz em sua atrativa paleta de cores com um vermelho pulsante para encerrar a reflexão que Kieslowski propõe. De todos foi a parte da trilogia que mais me afeiçoei.
À princípio desconfiei que ali aconteciam duas linhas de tempo, uma dedicada à vida de Valentine e outra dedicada à memória do Juiz, no entanto consolidou-se no final que de fato presenciamos uma linha de tempo contínua.
O diálogo entre o Juiz e Valentine sobre as pedras lançadas à janela pareceu solucionar o dilema apresentado no White. Quando interrogado se atiraria a pedra da mesma forma que seus vizinhos estavam fazendo, ele sabiamente diz: "- Se estivesse no lugar deles? Claro! E o mesmo princípio se aplica a todas as pessoas que julguei. Se tivesse as vidas deles, e nas condições deles, também roubaria, mataria, mentiria, com certeza." Vale lembrar de todo esforço de Karol para fazer a amada Dominique entender sua situação à partir de sua perspectiva.
Viajei na ideia de que no final do filme, uma barca afunda levando à fatalidade a grande maioria de sua tripulação. Somente os protagonistas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não a toa a tríade da Revolução Francesa, sobrevivem. Seria uma forma de Kieslowski resgatar a memória de um compromisso histórico firmado à custa de tanto sangue? E que de alguma forma, sem estes ideais, somos uma sociedade fadada ao próprio naufrágio?
Observação: A atuação de Jean-Louis Trintignant é um primor, tão pontual quanto em Amour.
Sai de Baixo - O Filme
2.2 203 Assista AgoraA Netflix me recomendou e eu fui ver qual era. Achei constrangedor de ruim, dos poucos filmes na vida que não consegui assistir até o fim. Uma pena, pois os atores envolvidos são, em sua maioria, brilhantes.
Tudo em Todo O Lugar ao Mesmo Tempo
4.0 2,1K Assista AgoraQuem é cria de "Fringe" (série) ou de Coherence (filme) não viu algo que seja exatamente inovador. Esse filme soa modernão mas possivelmente será carta marcada na sessão da tarde daqui a alguns anos.
A mensagem que ele parece querer passar é clichê? Sim! Já vimos isso antes no cinema? Uma infinidade de vezes, em diferentes roupagens. No entanto, o mérito está na forma acessível com a qual o roteiro tratou
a ideia de metaverso
Drive My Car
3.8 388 Assista AgoraDrive my car é um drama japonês de 2021 dirigido por Ryusuke Hamaguchi com roteiro adaptado pelo mesmo diretor, a partir de um conto homônimo de Haruki Murakami (2014). Tem como protagonistas Hidetoshi Nishijima no papel de um ator e diretor de teatro (Fukaku Yusuke) e Toko Miura no papel da jovem motorista Watari Misaki. O filme foi premiado no Festival de Cannes em 2021 na categoria de Melhor Roteiro, no Oscar 2022 na categoria de melhor filme internacional e na 79ª edição do Globo de Ouro, vitorioso na categoria de melhor filme estrangeiro.
Na tentativa de sintetizar Drive my car em algumas palavras me vem à cabeça dizer que é um filme sobre luto e afeto, que se utiliza de um carro em trânsito e uma peça de teatro como fundos para contar sua história. A escolha desses dois cenários possibilitam ao telespectador uma série de associações e metáforas com a narrativa que está sendo ali contada. Nas quase três horas de filme o telespectador é capaz de desvendar as motivações de cada personagem, partindo inicialmente quase que exclusivamente à partir do olhar de Fukaku Yusuke e posteriormente na relação que é construída entre os protagonistas Fukaku Yusuke e Misaki Watari.
Das singularidades (ou excentricidades) de cada personagens que conferem também uma singularidade a Drive my car, vale apontar quatro deles:
- Fukaku Yusuke é um diretor de teatro que tem como processo criativo o ritual de memorizar suas falas enquanto dirige o seu carro, através da voz de sua esposa, presencialmente (quando ela era viva) ou em gravações de fita cassete (após a sua morte). Para isso, ele gosta de morar um pouco distanciado de seu local de trabalho de modo a ter tempo hábil para ouvir as fitas e dialogar com as gravações. De tal ritual Fukaku Yusuke não abre mão. Na trama vemos em um primeiro momento, Fukaku Yusuke em sua vida conjugal com Oto Yusuke e após a morte da sua esposa vemos o efeito desse evento traumático em sua vida e como ele dirige para reconstruí-la.
- Oto é uma roteirista que ativa seu processo criativo após ter relações sexuais. Sempre que transa com o marido, o diretor e ator Fukaku Yusuke (supradescrito), ela elabora e enuncia oralmente uma história que vai surgindo em sua mente. No entanto, ela não recorda dessa criação no dia seguinte e cabe a seu marido memorizar e fazer o registro da história que foi criada. Dessa forma, percebe-se que Yusuke e Oto formam um casal que, à primeira vista, carrega um certo registro de complementaridade e codependência em suas respectivas vidas. A completude, no entanto, não é afirmada, uma vez que Oto apresenta como arranjo sintomático manter relações extraconjugais que são escondidas do marido. Logo na parte inicial da trama, Oto perde a sua vida em decorrência de uma hemorragia cerebral e Fukaku Yusuke é convocado a dirigir a sua vida e o seu carro sozinho.
- Lee Yoo Rim é interpretada pela atriz sul coreana Park Yoo-Rim e na história convive com uma deficiência física que não a permite utilizar sua voz. Ela se comunica através da linguagem de sinais coreana e é uma atriz de teatro. Ao dirigir uma adaptação de Tchekov da peça "Tio Vânia", Fukaku Yusuke seleciona Lee Yoo Rim para o elenco e ela se demonstra muito grata pela oportunidade, dizendo que participar da peça e interpretar aquele texto a colocou em movimento como há muito tempo não acontecia em sua vida.
- Watari Misaki é uma jovem motorista de 23 anos que achou na direção uma maneira de dar sentido a sua vida. Sua mãe a criou em um contexto de violência e abuso e dirigir um carro para essa mãe aparece inicialmente como uma imposição e posteriormente como seu modo de “ganhar a vida”. Durante a trama de "Drive my Car”, Watari Misaki é vista após cinco anos da morte dessa mãe. Por um lado, ela sempre está dirigindo para uma outra pessoa, atividade que ela encontrou como uma profissão que garante a sua sobrevivência e, por outro, ela anula a sua existência ao estar objetificada nesse lugar, ocupando-o como se não existisse. Watari Misaki parece internalizar uma falta de valor que foi apontada por sua mãe durante toda a sua constituição.
Em Drive my car os caminhos de Fukaku Yusuke e Watari Misaki se encontram quando o ator vai dirigir uma peça de teatro e tem como imposição que a motorista passe a dirigir o seu carro. Desse encontro vai se construindo uma relação que parte do estranhamento para a complementaridade e é sobre essa construção que passo a me debruçar nessa reflexão.
Inicialmente a jovem aparece nas cenas mecanizada, apenas cumprindo silenciosamente a sua função, tal como fazia na presença de sua mãe. Uma fissura em seu modus operandi, no entanto, aparece quando Fukaku Yusuke atribui excelência ao seu modo de dirigir, algo que sua mãe jamais teria feito. Ao ver alguém atribuindo valor à sua (não) existência, Watari Misaki é inevitavelmente deslocada para um outro lugar subjetivo e inevitavelmente é convocada a criar um novo agir que reflita esse reconhecimento que partiu externamente de uma outra pessoa, algo inédito em sua vida. E é a partir desse momento, que Watari Misaki cria uma pequena abertura para se relacionar com Fukaku Yusuke, também como um sujeito, conferindo a ele uma certa confiança para compartilhar a sua história de vida.
É simbólico o momento em que Fukaku Yusuke deixa de sentar no banco traseiro do carro e passa a sentar à frente, junto com Watari Misak, como se a partir dali houvesse o reconhecimento de que estavam compartilhando uma mesma estrada, ou, pelo menos, pontos de identificação em suas histórias. Watari Misak e Fukaku Yusuke encontram nas palavras trazidas pela confissão um do outro certo suporte simbólico para reconhecimento do luto e dos afetos mal elaborados referente à perda de seus entes queridos.
Vale reforçar outro ponto da complementaridade sobre essa relação entre ele que pode ter sido facilitada dentro de uma ordem imaginária. Watari e Fukaku Yusuke tem a mesma formação familiar em suas respectivas famílias nucleares: um casal heterossexual e uma filha.
As similaridades não param por aí! Watari Misak tem 23 anos, exatamente a idade que teria a filha de Fukaku Yusuke naquele momento, caso ela não tivesse falecido em decorrência de uma pneumonia aos 4 anos de idade. Dessa forma, do ponto de vista de Fukaku Yusuke, a imagem da filha aos 23 anos é apenas uma sombra em seu imaginário e, de alguma forma, Watari pode ter dado uma certa materialidade ao ocupar partes desse lugar subjetivamente inscrito.
Do ponto de vista de Watari Misak, não há menção ou substância à figura de seu pai biológico. No entanto, Fukaku Yusuke pode ter ocupado em partes o lugar da sombra de uma figura paterna. No entanto, essa suposição corre o risco de ser um pouco forçada.
Sobre a relação entre eles, Watari e Fukaku Yusuke passam pelo luto da perda de um familiar. Na conversa entre eles são compartilhadas memórias e sentimentos em relação a mãe de Watari Misak e a esposa de Fukaku Yusuke, o que fortalece a identificação e a relação entre eles, principalmente ao se considerar o grau de parentesco que eles ocupam dentro de uma família, sendo filha e pai que vivem o luto pela perda de uma mãe e uma esposa, respectivamente.
Há, dessa maneira, uma certa construção de um laço familiar simbólico entre eles em torno de uma “mesma” sombra da figura dessa mãe e dessa esposa que foram perdidas.
A sombra dessa “mulher perdida” produz em ambos alguns efeitos semelhantes e no diálogo entre eles, floresce uma certa elaboração que aponta para a similaridade desses sentimentos, destacados a seguir:
- Culpa: Ele se culpa pela morte da esposa e ela se culpa pela morte da mãe. Ele fantasia que poderia ter chegado mais cedo em casa e ter socorrido a tempo a esposa que foi vitimada por uma hemorragia cerebral. Watari, por outro lado, poderia ter salvo a mãe de um desabamento que invadiu a sua casa e, no entanto, se viu paralisada, como se a tivesse deixado para a morte. É consenso entre eles que ambos carregam a hipótese de terem “matado” esposa e mãe.
- Ressentimento: Fukaku Yusuke carrega um ressentimento acerca das traições de sua esposa, pareado ao desejo não realizado em ter revelado a ela sobre o fato de seu conhecimento acerca dessas relações extraconjugais. Watari é ressentida pelo fato da mãe ter lhe tratado por toda a vida de uma forma muito violenta. Há um trecho constantemente repetido nos ensaios para a peça do “Tia Vânia” que simboliza bem esse sentimento de ambos, dizendo respeito ao desperdício dos melhores anos de suas vidas ao lado das pessoas das quais agora eles ressentem.
- Cisão e ambiguidade: O Eu dessa figura feminina na vida de ambos parece cindido, provocando neles um sentimento ambíguo. A esposa de Fukaku Yusuke ocupava um certo espaço ideal de esposa, mas escondia um lado de seu eu que a afastava desse ideal monogâmico, quando se satisfazia também em relações extraconjugais. Arrisco a dizer que tal divisão do eu em Oto ocorria pela via de uma neurose. A mãe de Watari, no entanto, apresentava duas personalidades bastante polarizadas, acredito eu que isso ocorria pela via de uma psicose. A primeira personalidade da mãe, que se manifestava na maior parte do tempo, era violenta e rejeitava a existência da filha, enquanto a segunda aparecia com expressão de uma figura infantil, em momentos subsequentes aos episódios violentos, manifestando uma persona carinhosa e amiga. Watari revela que no ato do desabamento que vitimou sua mãe, ela desejou poder salvar apenas essa personalidade infantil e amorosa da mãe e que, no entanto, pareceu prevalecer o desejo de não salvar a personalidade ruim que era indissociável dela e, assim, a mãe acabou soterrada. Tais “cisões de eus” que conferiam a identidade de seus entes despertam nesses debates filosóficos sobre a disposição ao redor do que eles conheciam e aceitavam na relação com uma outra pessoa e, ambos se esbarram na impossibilidade de amar e conhecer um outro em sua totalidade.
- Luto e redenção: Ambos parecem capturados pela morte de seus entes, em meio a todos os sentimentos supracitados que eram mal elaborados e os deixavam estáticos na vida, fechados à possibilidade de formar novos laços ou de criar novos arranjos na vida. Quando um compartilha a história para o outro, há um importante reconhecimento externo do sofrimento alheio e uma partilha da ideia de que deveriam prosseguir com a vida. Há a construção de um esperançar que se direciona para o outro e que ganha efeito também na própria história. E sobre esse aspecto, são marcantes as cenas em que Fukaku Yusuke convoca Watari Misak para o perdão e o movimento. Tais cenas ocorrem em cima da casa da jovem, que agora está soterrada pela neve. Tal acolhimento mútuo tem como efeito um certo tom de redenção a esses dois personagens.
Após um breve tempo desses acontecimentos, Fukaku Yusuke volta a atuar na peça do “Tia Vânia”. É simbólico que ele deixe de dirigir a atuação de outros e retorne a ser um ator, agindo também duplamente na direção e ação da própria vida. E Watari Misak é agora vista em cenas sozinha, cuidando de suas demandas e dirigindo o carro sozinha, como se dirigisse sua vida não mais apenas para outros, mas também na direção da satisfação de seus desejos.
A redenção de ambos os personagens é embelezada pela cena final da peça “Tia Vânia”, quando a personagem Lee Yoo Rim encena o texto utilizando-se da linguagem de sinais. O texto sem voz, que emerge através de seus gestos, permite que cada telespectador no filme e fora dele aprofunde o contato com a palavra e o escute mentalmente com a voz familiar que oferece um maior conforto. O encerramento da peça e do filme acaba sendo sobre isso: conforto, ressignificação e movimento.
Drive my car aponta para o Sinthoma Lacaniano, dizendo sobre reconhecer o seu modo de agir no mundo e sobre construir um saber que permita utilizá-lo ao seu favor, algo que na trama é realizado através de uma profunda ressignificação do passado e na construção do laço social. É um filme sobre diferentes trajetórias que se cruzam e que se colocam dentro de um mesmo carro. O telespectador que se permitiu entrar dentro desse duplo veículo (carro e roteiro) e que elaborou questões pessoais através do encontro da palavra na relação de Fukaku Yusuke e Watari Misak e dos textos da peça de Tchekov, pode ter realizado uma viagem que foi longa, mas inesquecível.
(Este texto foi redigido para o Rascunhagem. No ato da escrita, realizada em fevereiro de 2023, o filme Drive My Car está disponível no Brasil na plataforma de streaming Mubi.)
City of Joy - Onde Vive a Esperança
4.4 14 Assista AgoraAssisti esse documentário há um tempo e ele é de fato marcante. Percebe-se a lógica perversa nos processos de colonização ainda vigente na contemporaneidade e aponta para a destruição de culturas e histórias em nome do capitalismo e de uma falta proposta de civilização.
O documentário marca muito como contextos de guerra e milícias empregam a destruição do laço comunitário e o faz através de uma violência que incide com mais força sobre o corpo das mulheres. É desolador ouvir as histórias e os relatos das situações traumáticas pelas quais essas mulheres foram submetidas.
É um absurdo que a contemporaneidade ainda abrigue situações como essa do Congo e em como esses processos são invisibilizados. Não muito diferente, é o que acontece atualmente em território nacional, debaixo do nosso nariz com os Yanomamis, um grupo de povos originários que vinham sendo violentados dentro de uma política do Estado com uma lógica necropolítica. Em nome da extração de minerais, deixam um povo sem assistência, sem condições de satisfação das necessidades básicas (como saúde e alimentação) e ainda violentam mulheres e crianças, destruindo os laços comunitários que sustentam aquele grupo de pessoas. Em outras palavras, os deixam para a morte.
Voltando ao documentário, City of Joy é um local formado por um grupo de profissionais multidisciplinares que acolhem temporariamente mulheres vítimas da violência oriunda das invasões coloniais no Congo. Há assistência médica, psicológica, educação sexual e treinamentos para autodefesa. Fiquei um pouco incomodado com o modo como essa educação sexual aconteceu, em grupo, dado que pode esse método pode representar uma violenta simbólica ao se considerar a singularidade e história de cada mulher que estava ali. No entanto me pareceu também que dada a grande demanda para uma quantidade limitada de recursos, foi a saída que o grupo de interventores achou para assistir ao maior número possível de mulheres. Mas isso é apenas uma suposição.
Ao passar um tempo na City of Joy, espera-se que essas mulheres reconstruam suas vidas, agora com laços comunitários mais fortalecidos e maior capacidade de autodefesa, estando também munidas de mais informação acerca de seus direitos.
CIty of Joy é uma iniciativa admirável. No entanto, aparece para combater uma situação totalmente evitável. A atenção das organizações internacionais devem estar voltadas para impedir o florescimento desse mal, cortando-o pela raiz. E o enfrentamento enérgico sobre qualquer forma que ainda replique essa violência costumaz em contextos de guerra.
Precisamos Falar Sobre o Kevin
4.1 4,2K Assista AgoraDesde quando entrei na graduação de Psicologia ouço falar muito sobre esse filme e só agora tive a motivação em assisti-lo, quando percebi que ele sairá em breve do catálogo da Mubi.
Talvez por ter recebido tanta indicação no meio acadêmico, minha expectativa tenha ficado alta demais e eu esperei um maior aprofundamento e cuidado na construção subjetiva dos personagens.
De certa forma, isso está ali, mas correndo o risco em cair em explicações reduzidas e fantasiosas que tentam explicar certas condições. Exemplo: há uma mulher que não está muita certa sobre o seu desejo de ser mãe. Vamos culpá-la pela perversão do filho?
Gostei da saída criativa para narrar a história, ao se investir em uma ordem não cronológica dos fatos. Em mim deu o efeito de rememorar, no presente, uma história juntamente com Eva e, talvez, tenha sido isso que mais tenha me fisgado: o interesse em desvendar o que levou Eva a situação psicossocial precária, em que ela se encontra em sua vida atual. E assim, com peças do passado e do presente, é possível ir montando esse quebra-cabeças e entender melhor a imensa tragédia que rodeia a vida daquela personagem.
A Árvore da Vida
3.4 3,1K Assista AgoraEsse é o primeiro filme que assisto do Malick e me surpreendeu ao saber da repercussão que teve ao redor do mundo em festivais, salas de cinema e fóruns na internet, quando despertou sentimentos tão polarizados, quase como aqueles da política atual.
Não foi o filme da minha vida mas também não sinto que desperdicei meu tempo assistindo-o. Pelo contrário. É plasticamente muito agradável e a história permite uma variedade imensa de reflexões sob diferentes lentes teóricas e existenciais. Li alguns poucos comentários por aí e "A árvore da vida" me remeteu pra um lugar muito diferente de tudo que eu li e acho que arte é sobre isso.
Falando brevemente, o filme remonta ao início do nosso universo até a sua destruição, saindo da representação de um nada e caindo nesse mesmo nada no final. Nada esse que nem as mentes mais brilhantes conseguem simbolizar. Uma frase que me veio a cabeça quando terminei de assisti-lo está na música "Esse filme que passou foi bom" da Letrux e diz sobre o estranhamento de saber que nossa vida termina no mesmo ponto em que começou: do desconhecido ao mesmo desconhecido.
Para retratar o início da vida, Malick lança mão das teorias científicas mais aceitas que envolvem o Big Bang, o início da vida nas águas, os dinossauros, o meteoro que os dizimou e toda a vida posterior que se dividiu em diferentes espécies. Para retratar o fim da vida, Malick simboliza a morte espiritualmente sob o olhar de um dos personagens principais, quando ele no fim reflete sobre sua trajetória e reencontra seus familiares nesse plano espiritual. Enquanto isso, o mundo físico se destrói gradualmente com o aquecimento da Terra e sua posterior destruição, impossibilitando qualquer continuidade da vida tal como experimentamos hoje.
E durante esse percurso do início do universo até sua destruição, Malick intercala na tela os eventos maiores desse universo com a trajetória de uma família nuclear representada por um casal heterossexual e seus três filhos homens. É através dessa historinha familiar que cada telespectador vai se espelhar e tecer suas próprias reflexões.
Ao inserir esses personagens em meio a todo o evento do universo, o diretor aponta para a pequenez, para a efemeridade e a insignificância da nossa vida. E ao mesmo tempo, aponta que significar e conferir tanta importância a essa vida é algo puramente humano, que carrega em si uma noção existencial ainda baseada no antropocentrismo.
Ao demonstrar a separação da vida em espécies, Malick chega a um ponto em que demarca bem duas grandes divisões entre essas espécies: a vida humana e a vida animal. Tanto que durante toda a história os personagens estarão interagindo em meio a uma diversidade de animais que domesticados ou selvagens, vez o outra tomam a tela, mas sem esboçar qualquer protagonismo sob o nosso olhar humano. É realçado o modo como a vida humana se colocou acima das demais. E ao dar um certo enfoque ao ser humano, Malick ainda faz outras duas divisões, sustentando um ar maniqueísta e binário, ao atribuir a esse ser duas possibilidades de existência, uma centralizada na natureza e a outra centralizada na graça. A primeira tem ares de vilania e é representada e aprendida pelos personagens masculinos e a segunda fica mais circunscrita ao feminino. As crianças, no entanto, parecem na história abrigar um pouco dessas duas possibilidades.
Ao construir esse núcleo familiar Malick parece ter bebido das águas da psicanálise freudiana e todas as significações que essa traz para a constituição do sujeito. Não vou me estender aqui, mas Malick aponta para a historinha edipiana do garoto que deseja a mãe e que tem sentimentos ambíguos pelo pai. Aponta para a constituição psíquica desses sujeitos através das mais diversas identificações no núcleo de uma família conservadora e com papéis de gênero muito demarcados. Daria para se estender para outros caminhos, fazendo uma análise da estupidez humana em hierarquizar as condições de vida dentro da mesma espécie através de diferentes construções psicossociais. E sob esse prisma, a existência humana carregaria como estruturação dominante a possibilidade supracitada da natureza.
O telespectador que se apegou a essa história familiar esperando que algo de surpreendente ocorresse ali, pode ter ficado muito decepcionado. E fica claro ao se ver o todo que o enfoque do diretor foi dar a essa família, com todas suas questões, sofrimentos e demais eventos, a mesma significância aos olhos do universo, da vida de uma borboleta que teve menos de 10 segundos de tempo de tela e que provavelmente viveu apenas por poucas semanas. Talvez Malick tenha tentado nos deslocar de nossas crenças estruturantes para observar a existência a partir desse olhar do universo, distanciado do olhar humano, o que pode ter sido surpreendente para algumas pessoas, angustiante ou entediante para outras. Remonto aqui certo binarismo que é cultural e do qual não consigo me escapar na maioria das vezes.
Aftersun
4.1 714Aftersun é um filme inglês sobre memória e parentalidade que tem como fundo principal a rememoração de uma viagem de férias entre um jovem pai divorciado e sua filha de 11 anos. Os personagens centrais são Calum Paterson, interpretado pelo ator Paul Mescal, e Sophie Paterson, interpretada por Frankie Corio em sua versão infantil e por Celia Rowlson-Hall em sua versão adulta.
Considerando os momentos iniciais, Aftersun se desenha como um filme doce que causa admiração ao, em certa medida, subverter o estereótipo socialmente construído da masculinidade e, sobretudo, da paternidade, quando esboça em Calum um pai que demonstra afetividade, conexão e profundo interesse pela vida de sua filha pré adolescente. O tempo de tela do filme privilegia a rememoração dessa relação entre pai e filha que, sob o olhar de uma menina de 11 anos, se apresenta quase como ideal.
Algumas pequenas fissuras, no entanto, vão aparecendo e apontando para uma tensão crescente na trama, o que provoca no telespectador ávido a expectativa de que alguma tragédia estaria na iminência de acontecer a qualquer momento, ainda naquela viagem. E assim o telespectador se sente à beira de um abismo em diversas cenas que aquecem esse ponto de tensão. E realmente através das câmeras de Wells e longe dos olhos de Sophie, há uma situação limítrofe por detrás de tudo, que vai se revelando a conta gotas para o telespectador.
Ao contrário de uma certa cronologia lógica do filme, vou aqui polarizar um pouco a reflexão iniciando pelo belo antes de dar espaço a emergente angústia que vai ocupando a história.
E assim, é preciso começar destacando uma das maiores belezuras de Aftersun: o conforto e a honestidade na relação entre Calum e Sophie. Ele se interessa profundamente pela filha. Quer conhecer seus desejos, saber mais sobre sua vida escolar e sobre suas atividades preferidas. Ao contrário de muitos homens e pais que objetificam mulheres e filh@s, Calum cria a atmosfera para que ela se constitua também como um sujeito, permitindo que ela se identifique e se separe oportunamente dele na construção de sua própria personalidade. Dito em outras palavras, é um pai que parece não atribuir à filha a responsabilidade de atender às suas expectativas paternas, tampouco às expectativas sociais. Ele oferece um registro de permissividade, acolhimento e amor incondicional.
Quero me estender um pouco mais da boniteza dessa relação. Calum não se esquiva de conversar com Sophie assuntos considerados tabus. Ele constrói um lugar existencial que é seguro para que ela se expresse. É simbólica e plasticamente bonita a cena em que Sophie reflete sobre seu primeiro beijo quando estão em uma pequena ilha artificial na imensidão oceânica. E ao mesmo tempo, a ilha em que a filha está com o pai é, sob o olhar dela, como a relação entre eles: chão firme, mas apenas uma parte de sua vida em meio a um vasto oceano em que ela poderia experimentar. Oceano que Calum a empurra e promete companhia.
Ao mesmo tempo que essa relação encanta ao tomar o plano principal do filme, o roteiro vai dando dicas que Calum pode estar vivenciado um grande confronto interno. Nos diversos não ditos e em breves cenas em que Calum está distanciado de Sophie, vai emergindo um estado melancólico que parece posicioná-lo em uma situação limítrofe na vida. E dessa parte sombria, Calum busca blindar Sophie, mas, obviamente isso fica inscrito apenas no campo da intenção.
Esse outro lado de Calum que não é explicitamente manifesto, vai se revelando em pequenas peças, que isoladas, indicariam a normalidade de uma vida que não é felicidade plena ou de uma relação que tem os seus desentendimentos. A questão é que quando se monta o quebra cabeça com todas essas partes juntas, elas apontam para o mesmo lugar. É possível observar em Calum uma pessoa que está ruindo, esgarçando cada vez mais o frágil fio que o conecta à vida.
Calum é, naquela viagem, ferida aberta! E assim, qualquer questionamento de Sophie parece provocar dores que ele não sabe bem de onde vem. O telespectador, porém, é capaz de intuir sobre a origem dessas, em companhia da versão adulta de Sophie, que através de sonhos e memórias busca desvendar a verdade sobre o seu pai.
Das feridas físicas, Calum tem o pulso quebrado e uma grande cicatriz no ombro. Ao ser questionado sobre o contexto de cada fratura, ele responde sem rodeios: não sabe de onde vem. Esse registro físico também aponta para o não saber de suas feridas psíquicas que estão ali, disfarçadas, mas eclodindo em sinais como os de um vulcão prestes a entrar em erupção. É possível intuir que seu sofrimento atual é em parte determinado por eventos de sua infância, quando em uma conversa com Sophie, dotado de uma constrangida honestidade, ele revela que teve uma infância possivelmente negligenciada. Uma das vias de interpretação é de que Calum tenha criado a exigência de ser com a filha o avesso daquilo que seus pais foram com ele. Exigência que parece se cumprir em certa medida, ao ponto em que Sophie diz se sentir confortável àquela altura de sua vida em contraponto a Calum dizendo sobre o seu sentimento de não pertencimento ao lugar em que cresceu.
Pode-se afirmar que antes de esvair, Calum foi um lutador. Percebe-se isso em toda a boa intenção em fortalecer o laço com a filha, na sua prática de Tai Chui e em outros elementos que remetem a sua espiritualidade. Não à toa, ele esteve em uma jornada pessoal buscando pelo próprio equilíbrio.
Ao mesmo tempo em que Calum consegue episodicamente ser o pai ideal que forjou, há sinais de que isso não se valida integralmente. E Sophie aponta para isso, com certa conformação, ao dizer que o pai fazia promessas as quais não conseguiria cumprir. A fala de Sophie revela ao telespectador que Calum tem sérios problemas em sua vida financeira que não o permitem seguir com os planos que sonhou. Supõe-se também que ele passa por algum tipo de adicção, o que explicaria não entender a origem dos machucados que marcam a destruição de seu próprio corpo.
Há uma passagem no filme em que uma ruptura parece prestes a acontecer na relação entre os dois. Na noite em que estão em um karaokê, Calum não consegue esconder da filha seu mal estar, algo que ele tinha se esforçado para fazer até então. Alegando não estar bem naquela noite em específico, ele rompe com a tradição de subir ao palco e cantar uma música na companhia da garota, como havia feito nos anos anteriores. Sophie banca então uma performance solo de “Losing My Religion” do R.E.M, como se estivesse entoando cada palavra para o seu pai, numa letra que é bem oportuna para a situação. Logo após a apresentação, o pai informa que sua noite acabou, mas Sophie está inconformada e quer ficar um pouco mais, ainda que sozinha, na área do hotel, desejo consentido pelo pai.
Nessa separação momentânea, cada um parece seguir em direções opostas. Longe do olhar do pai, Sophie experimenta e verifica possibilidades para a sua vida na observação e interação com outras pessoas do hotel. Calum por outro lado, não consegue lidar com o vazio quando se vê sozinho em seu quarto e sai caminhando, aparentemente entorpecido e sem destino. Rompendo com todo o cuidado que ele sustentou a filha até então, ele apaga, embriagado, e a deixa trancada sozinha do lado de fora do quarto de hotel. Sophie adormece na recepção, posicionada entre uma certa apatia e conformação.
A essa altura do filme, o telespectador atento começa a ressignificar diálogos que antes pareciam apenas bonitinhos. Há uma cena em que Calum afaga Sophia dizendo sobre como ela teria tempo de vida para descobrir o que gostaria de fazer dela. Entendemos agora que essa fala aparentemente amorosa e inofensiva, poderia abrigar seu sentimento autodepreciativo de que para ele, esse tempo não existiria mais.
A cena da última dança entre pai e filha é apoiada nos versos da música "Under Pressure” de Bowie e Queen, sendo uma das passagens mais intensas do cinema contemporâneo. Em uma sacada brilhante da direção, a dança ocorre sob o olhar da menina de 11 anos e vai se desfigurando ao misturar-se com um sonho de Sophie já adulta, que a essa altura, era assombrada ao fantasiar os sinais de sofrimento por detrás da aparência amorosa de seu pai. Não se sabe ao certo o destino de Calum após aquela viagem, mas ao considerar a narrativa, a angústia no sonho de Sophie e a trilha sonora que expõe esse momento, pode-se imaginar que Calum caminhou até sua destruição, ideia suportada na letra de “Under Pressure" que brilhantemente serve como trilha:
“This is our last dance
This is ourselves
Under Pressure”
Além de uma fotografia espetacular, outro ponto alto de Aftersun é a trilha sonora que serve como suporte imaginário para a interpretação da narrativa.
Sobre Sophia não podemos afirmar exatamente como todo o acontecido reverbera em sua vida atual. Mas temos alguns elementos nas cenas de sua vida adulta que nos oferecem alguma informação para criar suposições. Pode ser que ela seja mãe. Ao que tudo indica, está em um relacionamento homoafetivo e amoroso, com alguém que a acorda celebrando seu aniversário tal como fazia o pai. Talvez ela se culpe em não ter percebido o desespero do pai naquela que possivelmente fora sua última viagem na companhia dele. É possível que ela sinta um vazio com a ausência de Calum, buscando tampona-lo nos fragmentos de memórias em seus sonhos, vídeos e em sua câmera mental.
É uma história doce invadida pelo acre no final. É absolutamente lindo entrar em contato com a cumplicidade e a conexão entre Calum e Sophia, vê-lo impulsionando-a a experimentar a vida e fazer as próprias escolhas sob o manto de uma aceitação incondicional. Mas é brutal saber que, ao que tudo indica, a promessa de que ele estaria com a filha em cada decisão, foi mais uma intenção acima do que ele conseguiria cumprir.
Aftersun inevitavelmente nos faz pensar em quem somos e o que nos determina. Aponta para o que fazemos, falamos ou deixamos de falar e no que percebemos ou deixamos de perceber. Nos leva a questionar a nossa sociedade e o modelo de nossas relações. Permite ao telespectador criar diversas identificações, sob diferentes prismas e assim passamos a refletir também sobre a nossa própria história.
Aftersun é um filme inglês dirigido e roteirizado por Charlotte Wells. No ato deste texto, escrito em janeiro de 2023, ele está disponível no Brasil pela plataforma de streaming Mubi.
Este texto foi redigido para o Rascunhagem, instagram: @rascunhagem_
Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças
4.3 4,7K Assista AgoraEsse filme tinha um efeito mais impactante quando saiu, mas depois de séries como black mirror e depois da revolução digital que tivemos desde então ele perde um pouco do inusitado que carregava em sua história, para aquelas pessoas que o assistem pela primeira vez agora.
De toda forma é ainda uma boa história para reflexão ou até mesmo para uma diversão sem maiores pretensões.
Há quem o justifique como um filme romântico e há quem crie debates psicossociais sobretudo sobre os determinismos constitutivos de cada um e a nossa limitada autonomia diante eles.
Great Freedom
4.0 58 Assista AgoraNão vou me estender muito nesse comentário. Great Freedom é um filme brilhantemente dirigido e com boas atuações. É uma história romântica que tem como pano de fundo o fato histórico da manutenção do artigo 175 que criminalizou a homossexualidade mesmo após o Terceiro Reich. E pasmem, tal artigo foi retirado da legislação integralmente apenas em 1994.
É impossível pensar no filme e na motivação dos personagens com justiça estando o telespectador constituído subjetivamente em um contexto tão diferente daquele da história, quando os personagens estão vivenciando um período logo após a dissolução da Alemanha Nazista. O final é chocante, quando percebemos
que Viktor voltou ao cárcere "por escolha", para viver uma história de amor que carrega uma posição longe do ideário social atual
Aftersun
4.1 714Aftersun é um filme inglês sobre memória e parentalidade que tem como fundo principal a rememoração de uma viagem de férias entre um jovem pai divorciado e sua filha de 11 anos. Os personagens centrais são Calum Paterson, interpretado pelo ator Paul Mescal, e Sophie Paterson, interpretada por Frankie Corio em sua versão infantil e por Celia Rowlson-Hall em sua versão adulta.
Considerando os momentos iniciais, Aftersun se desenha como um filme doce que causa admiração ao, em certa medida, subverter o estereótipo socialmente construído da masculinidade e, sobretudo, da paternidade, quando esboça em Calum um pai que demonstra afetividade, conexão e profundo interesse pela vida de sua filha pré adolescente. O tempo de tela do filme privilegia a rememoração dessa relação entre pai e filha que, sob o olhar de uma menina de 11 anos, se apresenta quase como ideal.
Algumas pequenas fissuras, no entanto, vão aparecendo e apontando para uma tensão crescente na trama, o que provoca no telespectador ávido a expectativa de que alguma tragédia estaria na iminência de acontecer a qualquer momento, ainda naquela viagem. E assim o telespectador se sente à beira de um abismo em diversas cenas que aquecem esse ponto de tensão. E realmente através das câmeras de Wells e longe dos olhos de Sophie, há uma situação limítrofe por detrás de tudo, que vai se revelando a conta gotas para o telespectador.
Ao contrário de uma certa cronologia lógica do filme, vou aqui polarizar um pouco a reflexão iniciando pelo belo antes de dar espaço a emergente angústia que vai ocupando a história.
E assim, é preciso começar destacando uma das maiores belezuras de Aftersun: o conforto e a honestidade na relação entre Calum e Sophie. Ele se interessa profundamente pela filha. Quer conhecer seus desejos, saber mais sobre sua vida escolar e sobre suas atividades preferidas. Ao contrário de muitos homens e pais que objetificam mulheres e filh@s, Calum cria a atmosfera para que ela se constitua também como um sujeito, permitindo que ela se identifique e se separe oportunamente dele na construção de sua própria personalidade. Dito em outras palavras, é um pai que parece não atribuir à filha a responsabilidade de atender às suas expectativas paternas, tampouco às expectativas sociais. Ele oferece um registro de permissividade, acolhimento e amor incondicional.
Quero me estender um pouco mais da boniteza dessa relação. Calum não se esquiva de conversar com Sophie assuntos considerados tabus. Ele constrói um lugar existencial que é seguro para que ela se expresse. É simbólica e plasticamente bonita a cena em que Sophie reflete sobre seu primeiro beijo quando estão em uma pequena ilha artificial na imensidão oceânica. E ao mesmo tempo, a ilha em que a filha está com o pai é, sob o olhar dela, como a relação entre eles: chão firme, mas apenas uma parte de sua vida em meio a um vasto oceano em que ela poderia experimentar. Oceano que Calum a empurra e promete companhia.
Ao mesmo tempo que essa relação encanta ao tomar o plano principal do filme, o roteiro vai dando dicas que Calum pode estar vivenciado um grande confronto interno. Nos diversos não ditos e em breves cenas em que Calum está distanciado de Sophie, vai emergindo um estado melancólico que parece posicioná-lo em uma situação limítrofe na vida. E dessa parte sombria, Calum busca blindar Sophie, mas, obviamente isso fica inscrito apenas no campo da intenção.
Esse outro lado de Calum que não é explicitamente manifesto, vai se revelando em pequenas peças, que isoladas, indicariam a normalidade de uma vida que não é felicidade plena ou de uma relação que tem os seus desentendimentos. A questão é que quando se monta o quebra cabeça com todas essas partes juntas, elas apontam para o mesmo lugar. É possível observar em Calum uma pessoa que está ruindo, esgarçando cada vez mais o frágil fio que o conecta à vida.
Calum é, naquela viagem, ferida aberta! E assim, qualquer questionamento de Sophie parece provocar dores que ele não sabe bem de onde vem. O telespectador, porém, é capaz de intuir sobre a origem dessas, em companhia da versão adulta de Sophie, que através de sonhos e memórias busca desvendar a verdade sobre o seu pai.
Das feridas físicas, Calum tem o pulso quebrado e uma grande cicatriz no ombro. Ao ser questionado sobre o contexto de cada fratura, ele responde sem rodeios: não sabe de onde vem. Esse registro físico também aponta para o não saber de suas feridas psíquicas que estão ali, disfarçadas, mas eclodindo em sinais como os de um vulcão prestes a entrar em erupção. É possível intuir que seu sofrimento atual é em parte determinado por eventos de sua infância, quando em uma conversa com Sophie, dotado de uma constrangida honestidade, ele revela que teve uma infância possivelmente negligenciada. Uma das vias de interpretação é de que Calum tenha criado a exigência de ser com a filha o avesso daquilo que seus pais foram com ele. Exigência que parece se cumprir em certa medida, ao ponto em que Sophie diz se sentir confortável àquela altura de sua vida em contraponto a Calum dizendo sobre o seu sentimento de não pertencimento ao lugar em que cresceu.
Pode-se afirmar que antes de esvair, Calum foi um lutador. Percebe-se isso em toda a boa intenção em fortalecer o laço com a filha, na sua prática de Tai Chui e em outros elementos que remetem a sua espiritualidade. Não à toa, ele esteve em uma jornada pessoal buscando pelo próprio equilíbrio.
Ao mesmo tempo em que Calum consegue episodicamente ser o pai ideal que forjou, há sinais de que isso não se valida integralmente. E Sophie aponta para isso, com certa conformação, ao dizer que o pai fazia promessas as quais não conseguiria cumprir. A fala de Sophie revela ao telespectador que Calum tem sérios problemas em sua vida financeira que não o permitem seguir com os planos que sonhou. Supõe-se também que ele passa por algum tipo de adicção, o que explicaria não entender a origem dos machucados que marcam a destruição de seu próprio corpo.
Há uma passagem no filme em que uma ruptura parece prestes a acontecer na relação entre os dois. Na noite em que estão em um karaokê, Calum não consegue esconder da filha seu mal estar, algo que ele tinha se esforçado para fazer até então. Alegando não estar bem naquela noite em específico, ele rompe com a tradição de subir ao palco e cantar uma música na companhia da garota, como havia feito nos anos anteriores. Sophie banca então uma performance solo de “Losing My Religion” do R.E.M, como se estivesse entoando cada palavra para o seu pai, numa letra que é bem oportuna para a situação. Logo após a apresentação, o pai informa que sua noite acabou, mas Sophie está inconformada e quer ficar um pouco mais, ainda que sozinha, na área do hotel, desejo consentido pelo pai.
Nessa separação momentânea, cada um parece seguir em direções opostas. Longe do olhar do pai, Sophie experimenta e verifica possibilidades para a sua vida na observação e interação com outras pessoas do hotel. Calum por outro lado, não consegue lidar com o vazio quando se vê sozinho em seu quarto e sai caminhando, aparentemente entorpecido e sem destino. Rompendo com todo o cuidado que ele sustentou a filha até então, ele apaga, embriagado, e a deixa trancada sozinha do lado de fora do quarto de hotel. Sophie adormece na recepção, posicionada entre uma certa apatia e conformação.
A essa altura do filme, o telespectador atento começa a ressignificar diálogos que antes pareciam apenas bonitinhos. Há uma cena em que Calum afaga Sophia dizendo sobre como ela teria tempo de vida para descobrir o que gostaria de fazer dela. Entendemos agora que essa fala aparentemente amorosa e inofensiva, poderia abrigar seu sentimento autodepreciativo de que para ele, esse tempo não existiria mais.
A cena da última dança entre pai e filha é apoiada nos versos da música "Under Pressure” de Bowie e Queen, sendo uma das passagens mais intensas do cinema contemporâneo. Em uma sacada brilhante da direção, a dança ocorre sob o olhar da menina de 11 anos e vai se desfigurando ao misturar-se com um sonho de Sophie já adulta, que a essa altura, era assombrada ao fantasiar os sinais de sofrimento por detrás da aparência amorosa de seu pai. Não se sabe ao certo o destino de Calum após aquela viagem, mas ao considerar a narrativa, a angústia no sonho de Sophie e a trilha sonora que expõe esse momento, pode-se imaginar que Calum caminhou até sua destruição, ideia suportada na letra de “Under Pressure" que brilhantemente serve como trilha:
“This is our last dance
This is ourselves
Under Pressure”
Além de uma fotografia espetacular, outro ponto alto de Aftersun é a trilha sonora que serve como suporte imaginário para a interpretação da narrativa.
Sobre Sophia não podemos afirmar exatamente como todo o acontecido reverbera em sua vida atual. Mas temos alguns elementos nas cenas de sua vida adulta que nos oferecem alguma informação para criar suposições. Pode ser que ela seja mãe. Ao que tudo indica, está em um relacionamento homoafetivo e amoroso, com alguém que a acorda celebrando seu aniversário tal como fazia o pai. Talvez ela se culpe em não ter percebido o desespero do pai naquela que possivelmente fora sua última viagem na companhia dele. É possível que ela sinta um vazio com a ausência de Calum, buscando tampona-lo nos fragmentos de memórias em seus sonhos, vídeos e em sua câmera mental.
É uma história doce invadida pelo acre no final. É absolutamente lindo entrar em contato com a cumplicidade e a conexão entre Calum e Sophia, vê-lo impulsionando-a a experimentar a vida e fazer as próprias escolhas sob o manto de uma aceitação incondicional. Mas é brutal saber que, ao que tudo indica, a promessa de que ele estaria com a filha em cada decisão, foi mais uma intenção acima do que ele conseguiria cumprir.
Aftersun inevitavelmente nos faz pensar em quem somos e o que nos determina. Aponta para o que fazemos, falamos ou deixamos de falar e no que percebemos ou deixamos de perceber. Nos leva a questionar a nossa sociedade e o modelo de nossas relações. Permite ao telespectador criar diversas identificações, sob diferentes prismas e assim passamos a refletir também sobre a nossa própria história.
Aftersun é um filme inglês dirigido e roteirizado por Charlotte Wells. No ato deste texto, escrito em janeiro de 2023, ele está disponível no Brasil pela plataforma de streaming Mubi.
Este texto foi redigido para o Rascunhagem, instagram: @rascunhagem_
O Ornitólogo
3.5 85"Porque vocês não vivem em águas menos turvas, onde poderiam ver seu caminho?"
E Então Nós Dançamos
4.0 85 Assista AgoraO filme transmite de forma sublime as sensações de desenvolver uma sexualidade que ainda não é socialmente aceita e o quanto isso pode te levar para um local solitário. Tais sensações são ampliadas pelo plot de um primeiro amor que é mais platônico que correspondido e pela angústia de sua vivência caótica.
Com o decorrer dos fatos, Merab se recusa a fazer parte de um caminho que conduziria ao que ele mais ama fazer, mas que seria à custas da impossibilidade de ser quem ele de fato é e através da dança ele se recusa a viver com mais esta opressão. Esta cena final, que é tensa mas ao mesmo tempo catártica, ele parece pela primeira vez apoderar-se de si. E Então Nós Dançamos, é sobre encontrar a liberdade que é possível, sobre o encontro de si consigo mesmo.
Sinônimos
3.4 50 Assista AgoraGostei da linguagem do filme e de como ele retratou o desespero humano em uma existência central. No caso deste Yoav, um ser desejante, errante e desesperado por pertencimento.
Percebo que sua busca consiste em encontrar algum espaço social no qual ele se reconheça, que acalme a sua pulsante inquietação. O plano macro é despir-se de seu passado israelense para dar lugar a uma existência impecavelmente francesa. Para sustentação do plano macro, existem vários planos micros dentro dos quais ele tateia e descobre o funcionamento daquela cultura. Na medida em que as diversas tentativas micros falham e que os ideais imaginados de cada tentativa são desconstruídos, vem a fúria de não se encaixar em nenhuma das realidades e a constatação que seu plano macro não passara de uma ilusão. Cai o ideal de pertencimento a sociedade francesa, que como qualquer existência advinda do homem, é cheia dos paradoxos e contradições. Uma sociedade que diz acolher a todos, com os lemas de liberdade, igualdade e fraternidade e que no próprio hino nacional carrega uma mensagem clara de poder e segregação, ao dizer que os impuros, tal como ele é, carreguem os arados. A cena nos bastidores da orquestra é a catarse da elaboração de que seu ideal francês não existe e ele busca um engajamento coletivo dentro de sua revolta, mostrando as contradições das promessas de uma sociedade versus as possibilidades que cada um tem. No entanto, as pessoas parecem estar relativamente em paz com suas existências em meio às contradições, que são insuportáveis a ponto de fazer com que o Yoav decida ir embora de vez.
Nem a amizade por Émile sobrevive, levando Yoav à fúria ao encontrar pela primeira vez as portas fechadas.
* Mesmo que Yoav quisesse apagar seu passado, ele permite que Émile se aproprie de tais histórias. Além do piercing, era tudo que ele tinha! Foi interessante que já quase no momento final da história, ele sentiu a necessidade de se reapropriar de seu passado, na medida que aquele presente não o sustentava mais. E de como isso foi em conjunto com um certo desinteresse de Émile.
Paterson
3.9 353 Assista Agoraum filme é como um espelho
que reflete de maneira imprecisa
nossos pensamentos
nossos desejos
nossos sentimentos
para uns, monotonia
> para outros, pura poesia <
Era Uma Vez em... Hollywood
3.8 2,3K Assista AgoraTarantino privilegia a construção subjetiva dos três personagens centrais e encerra o filme com
o banho de sangue típico de suas sagas. Quem está acostumado a assistí-lo pode achar que tais cenas violentas tenham sido curtas e que à partir daquela invasão dos hippies na casa do personagem do Di Capprio algo muito maior viria acontecer, envolvendo inclusive o núcleo da personagem da Robbie. E este algo muito maior não aconteceu, podendo dar uma sensação de que o filme não contou uma história. No entanto, ela está ali!
Arábia
4.2 169 Assista AgoraLi que muita gente não gostou de algumas atuações, pois eu já achei o ponto alto do filme. Parece por vezes ser um documentário, à partir de imagem de pessoas reais.
A palavra que me veio à cabeça em muitos momentos do longa foi desamparo :(
Ele escancara as desigualdades sociais no Brasil, o desvalor da força de trabalho e a ineficiência das políticas públicas.
Visages, Villages
4.4 161 Assista AgoraEsse foi um dos documentários mais tocantes que já assisti em toda a vida.
Agnès Varda e JR não se encontram pelo acaso. Não é na padaria, no ponto de ônibus ou numa estrada, o encontro aconteceu pois assim desejaram. Um buscou o outro e posteriormente decidiram fazer um projeto que se tornou um presente para tantas pessoas, tanto para aqueles que foram homenageados com as fotos quanto quem pôde encontrar este documentário-filme precioso para assistir.
E na caminhada, onde Agnès parece também fazer uma revisão de sua vida, ela demarca alguns posicionamentos preciosos para mantermos em mente de quem ela é e o que aprendeu com sua caminhada, e assim ela ressalta o valor do trabalhador, dá visibilidade à mulher, levanta a bandeira da proteção da vida animal, da arte, da amizade e do amor.
O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraAcredito que seja bastante aceitável questionar a execução do filme, não dá para negar, porém, que ele faça circular reflexões sobre o nosso funcionamento como uma sociedade que é complexa e desigual. Se você se ater a buscar uma compreensão da história em sua literalidade, corre-se o risco de perder boa parte de suas possibilidades. Opto em começar este texto descrevendo um pouco sobre a anatomia do poço e mais adiante conversamos sobre sua fisiologia.
Na ficção de Galder Gaztelu-Urrutia o poço é uma espécie de prisão, onde pessoas encarceradas dividem “celas”, sendo duas pessoas por cela e uma cela por andar. A cela cujo piso fica seis metros abaixo do nível zero, é a cela de número 1. 6 metros abaixo, a cela de número dois. Seria assim por diante, até a cela de número 200. No entanto, com o decorrer da história, é percebido que existem níveis mais profundos a este ducentésimo e mais adiante voltarei neste ponto. Antes de serem escolhidas para o Poço, as pessoas respondem a uma série de perguntas, entre elas, sobre o prato de comida favorito. O prato de comida favorito de todas as pessoas “admitidas” é então posto em uma plataforma que parte do nível 1 até o nível mais baixo do poço.
Dentro de um funcionamento consciente, onde cada um consome o seu prato escolhido, haveria comida para todos. No entanto o que acontece ali é que as pessoas dos níveis mais superiores comem mais do que necessitam, de modo a não sobrar nada para os níveis mais inferiores. Você também pensou ser possível fazer uma analogia do poço à sociedade capitalista¿ Sistema este, que opera dentro de um mundo onde se tem recursos para todos mas que no entanto, as pessoas dos níveis superiores consomem mais que as que estão nos níveis mais inferiores¿ O que se vê nos níveis mais inferiores, é uma luta insana pela sobrevivência, em um lugar em que no poço, a solidariedade não toca. E este é um ponto do roteiro que se faz necessário uma ponderação se quisermos continuar a interpretar o filme à partir da nossa sociedade. Recordo de uma história que meu pai conta sobre um tio que estava em situação de fome, com a esposa e o filho bebê, a dias sem ter o que comer. Além de terem o filho pequeno em casa, ainda acolhiam meu pai que estava sem ter onde morar. O restante da família percebeu a situação precária e juntaram forçar para comprar uma cesta básica. Quando meu tio recebeu a cesta, a primeira coisa que fez antes mesmo de saciar a própia fome, foi repartir todos os alimentos em duas partes, levando a metade da cesta para um amigo que também estava em apuros. Histórias como esta não são exceções entre as pessoas com poucos recursos na nossa sociedade. De alguma forma, pessoas que não experimentaram os luxos desnecessários proporcionados pelo acúmulo de capital parecem ser mais atentas à convivência com o outro, à comunhão dos bens e dos recursos. Recordo do ideal de Marx, que dizia acreditar no homem que por essência é solidário. É claro que se a situação chega a um nível extremo, onde o luxo de uns tampona totalmente a possibilidade do outro, possivelmente a necessidade de suprimento do básico pela sobrevivência tamponará qualquer possibilidade deste em ser solidário também.
Em pouco mais de noventa minutos, o telespectador pode se ver num exercício para entender as motivações de cada personagem e, dessa forma, não dá para culpar tanto o cara que tá em um nível mais inferior e que precisa comer a carne do outro para sobreviver, ou o cara que tá em um dos níveis mais altos e que por ter experimentado níveis tão baixos, entende que naquele momento ele deve acumular, comer mais que o necessário, pois sente medo de futuramente acordar novamente em um ponto mais profundo. Este ponto revela que um certo desconforto é presente em qualquer nível do poço. Ele não é saudável para ninguém, ainda que pior para as pessoas nos níveis mais profundos. E dentro de tempos líquidos, a permanência em determinado ponto uma vez alcançado, não é garantido.
Não é difícil perceber também, que quanto mais profundo for o nível, menor será a possibilidade de vida e qualquer dignidade à vida. Nos níveis mais baixos, dificilmente se encontra vida nas celas e quando se encontra, é tomada pela violência e pela loucura, em situações onde a fome já ultrapassou qualquer possibilidade de pensamento racional e coletivo.
Outro ponto interessante é a crença que circula de que o poço teria apenas 200 níveis. Uma interpretação para a manutenção dessa crença, seria pensar que ninguém volta com vida se presencia um nível tão inferior, com total privação de recursos. O sistema de funcionamento do Poço não te dá qualquer possibilidade de ascensão dependendo do nível em que você é colocado. Meritocracia, uma ova! E quem está em níveis superiores, dificilmente pensa sobre a possibilidade de uma situação muito pior daquela que já experimentou ou enxergou pelos próprios olhos.
Quem acaba de entrar no poço até esboça o desejo de mudar a situação, fazendo com que haja comida para todos. Mas existe dificuldade de diálogo até mesmo com os níveis imediatamente abaixo ou acima: “Os de cima não escutam, pois não tem como cagar para cima”. Existe uma condição de poder explícita que vai se esvaziando quanto mais profundo o indivíduo se encontra.
É interessante perceber que o sábio aparece na história ocupando um nível intermediário do poço. Mesmo as pessoas mais intelectualizadas, apresentam soluções que de alguma formam não abarcam a complexidade da sociedade e que, portanto, fracassam. Como enviar uma mensagem que seja entendida, se as pessoas que a receberão não são as pessoas que experimentam as condições do poço¿ A mensagem não circula entre as pessoas que estão no poder e não pode ser decifrada, pois as pessoas do poder não experimentaram as mazelas do poço e parecem não articular entre si. Ao receber a panacota, a interpretação é de que ela não foi consumida pois tinha um cabelo. Os trabalhadores do sistema, da cozinha, parecem não ter noção do sistema voraz que alimentam.
E por fim, compartilho a dúvida acerca do simbolismo da criança que aparece no nível de 333. No meu entendimento o personagem principal morreu no conflito mais enérgico. A criança sendo posta como a mensagem perfeita para a administração do poço, simbolizaria a crença de que os mais novos salvarão a humanidade – o que não passa de um delírio se não considerarmos uma mudança que começa em nós mesmos, com uma mudança radical nas leis que regem o nosso sistema de interação.
Canções de Amor
4.1 829 Assista AgoraMusical francês mais orgânico que a maioria.
Tenho dificuldade de captar narrativas de musicais, neste caso no entanto, senti que as músicas integraram-se bem à história contada.
"Não me ame tanto, mas me ame por um tempo"
O Sol Enganador
4.0 25Não tenho propriedade pra falar dos pontos históricos e contextuais que este filme carrega, então vou me ater de destacar a atuação da garotinha Nadia, quanta formosura!
"O Sol Enganador" foi meu primeiro filme russo e representou um bom começo.
Horas de Verão
3.7 35 Assista AgoraEntendo que o filme seja divido em três partes, tendo
a partida da matriarca de uma família como fio condutor da história. Gosto de como o roteirista o desenvolve, designando funções centrais a diferentes personagens em cada uma dessas partes: de início tudo é basicamente autocentrado em Hélena, sendo os demais personagens alegorias para que ela manifeste os seus desejos, a sua força e a sua fragilidade; diante a sua morte, a história prossegue centrada no personagem de Charles Berling, desembocando por fim na neta, Sylvie, que detém a função de encerrar a narrativa. Por mais que em cada parte, determinado personagem detenha maior tempo de tela, o protagonismo é todo de Edith Scob. Mesmo diante da morte de sua personagem, ou seja, da representação física, ela permanece presente e ressoando em todos os demais personagens, de maneira mais forte nos filhos - que parecem seguir à risca suas orientações- e já de maneira mais fraca na neta- nesta, através de recordações e afeto. A dissonância da festa que abre o filme com a festa que fecha a história é coerente com o apagamento progressivo da existência de Hélena, que nunca mais será evocada em sua totalidade.
"Falei-lhe da minha morte. Há que pensar nisso. Têm as vidas deles, motivos de preocupações que não são os meus. Muitas coisas desaparecerão comigo: recordações, segredos, histórias que já não interessam a ninguém."
Refletir sobre a morte é inevitável. E evidencia que apesar da partida física de alguém, este permanece existindo enquanto existir a memória daqueles com quem conviveu.
Frantz
4.1 120 Assista AgoraPara além da história, gosto de como as cores são utilizadas neste filme. A todo tempo presente, ele se passa nas cores preto e branco,
exceto quando Adrien evoca suas memórias envolvendo sua convivência com Frantz. A ideia que fica é de que estas memórias significavam a vida dele, mais que qualquer momento presente. As cores indicam a vivacidade da lembrança.
No final, quando à frente da obra de Manet, Anna encontra aquele rapaz e as cores para além de tons de cinza voltam a tela, dá-se a ideia de que ali naquele momento sua vida ganhou novamente algum significado na direção de uma certa felicidade, dando a entender que uma trajetória próspera a ela foi designada.
E por fim lembrei-me de Cazuza e de sua composição que diz sobre as mentiras sinceras que interessam. No caso do filme, apesar de estancada a revelação acerca da morte de Frantz, as mentiras permitiram certo desfecho feliz para os pais do soldado. O filho permanecia vivo em suas memórias e sobrevivente na relação inventada entre Anna e Adrien.
Morte em Veneza
4.0 210 Assista AgoraTalvez elabore essa ideia melhor futuramente para realizar um comentário mais decente, no entanto entendo que através de "Morte em Veneza" vemos o artista Gustav
perdido em sua própria melancolia, a ponto de se apaixonar por Tadzio, que representa idealmente o que ele já perdeu e que, tendo perdido, poderia ter somente através de um outro: a beleza,a juventude, o amor e a saúde.
“Sabe qual a base daquilo que agrada à todos? A mediocridade.”
"A realidade apenas nos distrai e degrada. Sabe, às vezes penso que os artistas mais se parecem com caçadores que miram no escuro. Nem sabem qual é seu alvo, tampouco se o atingiram. Mas não se pode esperar que a vida ilumine o alvo e estabilize sua mira."
A Fraternidade é Vermelha
4.2 439 Assista AgoraExiste uma cena que aparece em Blue e se repete em White onde um idoso tenta com muita dificuldade descartar uma garrafa na lixeira comunitária das cidades e os personagens centrais apenas os observam. No primeiro, prevalece a liberdade na escolha em não ajudá-lo. No segundo, parece faltar ainda algum elemento para que a cena se modifique,
elemento este evocado apenas no terceiro filme, quando a personagem central de forma fraterna auxilia o idoso a realizar o seu descarte. A fraternidade é vermelha, traz em sua atrativa paleta de cores com um vermelho pulsante para encerrar a reflexão que Kieslowski propõe.
De todos foi a parte da trilogia que mais me afeiçoei.
À princípio desconfiei que ali aconteciam duas linhas de tempo, uma dedicada à vida de Valentine e outra dedicada à memória do Juiz, no entanto consolidou-se no final que de fato presenciamos uma linha de tempo contínua.
O diálogo entre o Juiz e Valentine sobre as pedras lançadas à janela pareceu solucionar o dilema apresentado no White. Quando interrogado se atiraria a pedra da mesma forma que seus vizinhos estavam fazendo, ele sabiamente diz:
"- Se estivesse no lugar deles? Claro! E o mesmo princípio se aplica a todas as pessoas que julguei. Se tivesse as vidas deles, e nas condições deles, também roubaria, mataria, mentiria, com certeza."
Vale lembrar de todo esforço de Karol para fazer a amada Dominique entender sua situação à partir de sua perspectiva.
Viajei na ideia de que no final do filme, uma barca afunda levando à fatalidade a grande maioria de sua tripulação. Somente os protagonistas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não a toa a tríade da Revolução Francesa, sobrevivem. Seria uma forma de Kieslowski resgatar a memória de um compromisso histórico firmado à custa de tanto sangue? E que de alguma forma, sem estes ideais, somos uma sociedade fadada ao próprio naufrágio?
Observação: A atuação de Jean-Louis Trintignant é um primor, tão pontual quanto em Amour.