Que filme, que narrativa atiçada, que narrador mais em estado de catarse psicológica, pensando, refletindo, matutando planos com o desejo de se "sujar", como ele mesmo diz e como ele mesmo pensa que os outros dizem ao lançar o olhar da moral sobre ele: mas como um cara tão simpático pode se lançar assim tão arduamente à sujeira? A sublimação da confinação burguesa, os elementos do suspense hitchcockiano, a perspectiva em primeira pessoa dos acontecimentos da narrativa. É uma trama que exercita o prazer pela tortura, pelas nossas aventuras mais humanas. Chabrol no auge do seu maneirismo.
Heartbreaking, pulsante, um filme carente e que abraça o espectador como uma mãe que encontra o filho perdido na praia, lembra da abertura sirkiana de Imitação da vida?.... Tal como a versão que diva Barbara Stanwyck participou na década de 30, o auge da história se dá no momento em que a mãe se sacrifica em prol de sua cria. A performance como um todo de Bette Midler é um espetáculo à parte, o corpo e a voz em cena de uma mulher que transborda em emoção genuína. Contudo, o filme foi recebido na época com críticas medíocres que podem ter destruído a notoriedade da obra, mas que não se enganam ao apontar as deficiências quanto à consistência da narrativa. As amarras temporais fluem de maneira precária e a impressão de acompanhar o envelhecimento dos personagens parece forçada a tal que ponto que talvez teria sido mais interessante se o filme tivesse os 40 minutos minutos iniciais cortados e substituídos por um estudo do quotidiano dos personagens, algo que apeteceria o padrão comercial hollywoodiano se não fosse essa ganância de querer representar milhões de anos sucessivos de seus personagens. Tirando os pequenos problemas de narrativa, o resultado como um todo agrada facilmente um melodrama lover.
Imagina poder assistir cotidianamente programas como este: Renoir comenta Lumière ao lado de um dos grandes colecionadores cinéfilos de todos os tempos, Henri Langlois. Direção de Rohmer. Isso é a primazia do cinema francês numa hora de aula de história.
Louvor a um filme que nos impele ao contrário do que propõe seu título. Não fechamos, mas abrimos o olhar às nuanças psicológicas de um casal em crise: a estabilidade ditada pelos modelos de vida burguesa se confundem com um mundo em que angústias torturam por meio de perguntas sem respostas. Basta uma intriga de traição para despertar o abismo em nosso personagem. Ainda não consegui superar a magnitude onírica e a riqueza de símbolos que Kubrick dava a sua obra, neste capítulo final particularmente cheio de elementos teatrais e de uma desconstrução quintessencial do idealismo romântico.
É isso mesmo que você está lendo: a orgia da vida.
Publicação de minha contribuição ao site do Festival Indie 2014 que fez uma retrospectiva Eugène Green, começando em BH e que segue em breve rumo a SP. LE MONDE VIVANT foi exibido numa cópica conservada em 35 mm.
"É o mundo de Eugène Green. Dentro de seu universo particular, em que a palavra tem um palco para si e a linguagem convida o espectador a adentrá-lo, uma narrativa arquetípica de contos de fadas representada pelo avesso. /O Mundo dos Vivos/ pode ser visto como um exemplo de obra cinematográfica contemporânea cujo realizador se destaca pela versatilidade artística. Green cresceu em Nova York e se mudou para a França no final dos anos 60, fundando alguns anos depois a companhia de teatro barroco Théâtre de la Sapience, que se apropriava de textos medievais para nele articular adaptações. Cineasta, escritor, dramaturgo, ensaísta e roteirista, Green tem experiência com releituras em cima da dicção tradicional dos textos que monta, impregnando aquelas palavras com discussões do campo da linguagem e de contemporaneidades. [...]"
LEIA MAIS http://www.indiefestival.com.br/2014/bh/club.php?cod=58
Contextualizado na Polônia do início da década de 60, “Ida” estabelece um jogo de fluidez entre os seus personagens. A protagonista pretende se tornar oficialmente uma freira, mas para isso precisa voltar à origem e descobrir a causa da morte de seus pais. Ela encontra a tia que parece ser o seu inverso e a partir desta oposição questiona suas crenças. Pawlikowski coloca em crise a ideia de fé e traz à tona uma significação de memória, expressas tanto pela cinematografia em preto e branco, como pelo uso de retratos que cobrem uma mesa de lembranças. A personagem coleta aos poucos as pistas que desvendam a dor de sua história.
Shirley é interpretada por Stephannie Cumming como o corpus essencial da narrativa, ela transita pelos objetos cênicos com sutilezas expressas por meio de seu gestual icônico. Dando a forma de seus contornos em cada plano que aparece, a personagem vive o seu dilema – parece encaixar-se perfeitamente no universo que lhe contempla com nada senão decepções.
Estabelecendo uma relação de dominação em que os indivíduos revezam a posse do poder, “Garotos do Leste” experimenta sem freios a poesia que as imagens lhe permitem.
Revisto pela 3x e maravilhado com a versatilidade técnica, em toda sua capacidade de trabalhar com o suspense do oculto, do desconhecido e daquilo que sabemos ter uma força superior a nossa. JAWS [1975] tem o seu título que funciona muito melhor no seu original do que em qualquer outra tradução. É a mandíbula da fera que aparece nos quadros mais diversos e ao mesmo tempo sem mostrar com realismo o seu todo, ao menos antes da metade do filme, que cria de fato uma experiência de imaginação que Spielberg nunca conseguiu refazer em sua carreira com a mesma maestria e com a mesma linguagem. Estão diante de uma obra cujo conflito praiano permanecerá com os nossos calafrios.
Encantado com este trabalho comum às comédias de relacionamentos de Woody Allen, onda há química entre personagens cheios de espontaneidade e, no caso desta pérola de 1982, também uma bem trabalhada intertextualidade com o grande Shakespeare. Muitas vezes este filme é dito menos expressivo, mas o fato não surpreende em vista de uma obra tão vasta e icônica. Ouso dizer ainda assim que este me parece ser um de seus trabalhos mais autorais, inclusive como ator. Os diálogos estão frescos, os enquadramentos são sugestivos e suscitam uma viagem ao tempo. Os elementos da fantasia postos diante da decepção que se revela a realidade: a lanterna mágica, símbolo de amor metafórico do cinema si, a projeção de imagens com a brincadeira da luz. Aposto que aqui tem herança da teatralidade bergmaniana.
[Sinhá moçoila veracruzense rumo à LIBERDADE Porém..."Será que estes negros não sossegam?"... 05' 40'']
A simbólica questão posta no início do filme me parece ser fatal nesta causa de Sinhá Moça, a disputa política que dá conta de três grupos sociais em relação à escravidão: aqueles que são contra, os que são a favor e, finalmente, aqueles que não estão nem aí.
A trama do filme se engendra a partir da fuga frequente dos escravos pela qual a competição toma conta, de um lado os coronéis que se sentem desde já afetados pelas consequências de uma possível abolição e, por outro, os idealistas com o desejo de mudança, os personagens da civilização como Sinhá Moça, que voltam da cidade grande com a cabeça pipocando de ideias.
Ao meu ver, Sinhá Moça é um dos filmes mais brasileiros que Vera Cruz produziu, ainda sabendo que seja naturalmente inspirado pelo senso de aventura estadunidense, construída pelo que Glauber Rocha coloca como uma mistura de Zorro com Castro Alves que revive a capa-espada americana, estão diante de filme delicioso.
A sutileza com a qual o romance entre os personagens de Eliane Lage e Anselmo Duarte acontece é bárbara, tendo em vista a cena do leilão, a suspeita construída em torno da figura de Anselmo, se ele é ou não a favor da abolição. Ah, quem dera se todo símbolo de liberdade fosse proclamado com um beijo ! ! !
[Vera Cruz com fotografia premiada: a atmosfera NOIR & a selva de pedra] Na senda - ou na rotina, no quotidiano - do crime, uma gangue de criminosos planejam assaltos para se dar bem e obter grana imediata. A trama se constrói nos termos do "filmaço", engendra-se de maneira ágil com uma duração relativamente curta. Em 1 hora e 12 minutos, o espectador acompanha as peripécias de Vera Cruz pela codificação noir.
Temos um anti-herói com paixonite por duas moças, uma delas é a terna Jurema que chega tarde de noitadas e toma esporro do irmão, ela é corajosa e devota ao seu amado. A segunda é Margot, uma femme fatale típica que deseja encontrar um pretendente cheio da grana, ela é dançarina, formosa e rodeada de galanteios.
Nossa protagonista, interpretada pelo esbelto Miro Cerni, atravessa ruas desertas e rapidamente se vê envolvido nas patifarias de gangue, aparecendo em becos mal iluminados e envolvido por uma atmosfera que só uma história inspirada pelo hard-boiled clássico americano poderia engendrar. As cenas de perseguição e ação valorizam a montagem perspicaz de Oswald e Edith Hafenrichter.
Duas cenas em específico são o cartão postal desta obra enquanto peça policial triunfante de nossa história: o assalto no cinema e a polícia que persegue o protagonista no desfecho. Cenas imortais que com suas composições sonoras impactantes não perderão jamais a oportunidade de prender o espectador na cadeira.
["...Há criaturas que até no amor são como os mortos, sempre sós..."]
Um exemplo bárbaro e atípico do nosso cinema clássico brasileiro, esta mistura da vontade de enaltecer raízes culturais com as ambições de deixar de ser um universo subdesenvolvido para poder alcançar "as telas do mundo".
Apesar das pretensões internacionais de Vera Cruz que talvez possam ter contribuído grandemente para o próprio declínio, os filmes produzidos por Cavalcanti ocultam um charme singular, mas uma atmosfera nem sempre crível ao espectador das gerações sucessoras.
É preciso pensar os filmes iniciais da Vera Cruz num contexto específico para podermos admirar suas qualidades, tudo aquilo que os fazem únicos dentro de uma época, e para disseminar suas contribuições: os dramas de época, as adaptações de romances e os filmes regionais que revelaram ao mundo regiões e personalidades cômicas.
ÂNGELA é uma heroína sulista vivida de maneira intensa por Eliane Lage, uma mulher que faz escolhas por amor e que comanda a história, mas o seu controle ficcional não está atrelado aos atributos femininos de sedução e persuasão. Nossa protagonista clássica e romântica é devota incondicionalmente ao seu parceiro, que em troca lhe oferece desgosto e dívidas. Os planos iniciais e finais comprovam a estrutura clássica e universal vislumbrada pela Vera Cruz, numa maneira de contar que se engendra através de diálogos poéticos e de um alto nível qualitativo técnico na hora de fundir imagem e emoção, na hora de representar os devaneios de sua protagonista. Não dá para perder esta produção, menos ainda as participações de um elenco mais que espetacular: Inezita Barroso, a nossa dama da viola, que estreia ao lado de Ruth de Souza, como madame e servente, Mário Sérgio como o amor sacrificado da protagonista, o emblemático Abílio Pereira de Almeida, Luciano Salce como um comparsa gringo e outros muitos. Ângela é a primeira história escolhida livremente por Cavalcanti na Vera Cruz e tinha sido assim planejada como a primeira produção na cia. a ser dirigida por um brasileiro. No fim, os desentendimentos com o maioral do estúdio Franco Zamparini implicou em substituições. Ainda me pergunto como seria se o olhar nacional tivesse prevalecido, talvez as representações culturais como a briga de galo, a corrida dos cavalos e alguns outros detalhes teriam sido mais amplamente trabalhados.
[Cacilda & Jardel no centro do mundo, Vera Cruz numa tragédia pequeno-burguesa] "Floradas na Serra" [1954] é aquele tipo de filme que pede para ser revisto antes mesmo de chegar ao meio, pois me pareceu riquíssimo de detalhes, além de que a única questão que poderia nos impedir de admirar este universo maravilhoso de Cacilda Becker tem que ser necessariamente o som que envelheceu mau, algo que requer de seu espectador um nível elevado de atenção. Quando isto é feito, a experiência potencializada da sessão nos deixa indubitavelmente maravilhados com a poesia do folhetim. Uma doença como a tuberculose, que não seria mencionada casualmente nas conversas de rodas ou naquelas festas idílicas de aniversário com direito ao jogo da cadeira, aparece no filme dispensando mil palavras, trazendo a dor de se ver à espreita da morte com uma textura profunda e intrigante. A personagem Lucilia se ampara no robusto Jardel e nas qualidades protetoras de seu personagem. No entanto, o ato final comprova a dificuldade humana em saciar suas vontades, para além mesmo do fervor de uma paixão, falamos aqui da eterna insatisfação com o outro. Estes FLOREIOS de Vera Cruz a serem revistos, obrigatoriamente com fones de ouvido.
[Humoresque nas terras de TUPI, Vera Cruz & a música clássica] Constata-se de cara pelo título que não será um filme popularesco e de fato não o é, APPASSIONATA [1952] se ajoelha esteticamente diante dos filmes mais enigmáticos de suspense norteamericanos. Contempla seu espectador com uma música deleitosa, uma protagonista quase que sucumbida aos delírios folhetinescos que deveriam polular nos imaginários daquelas donas-de-casa cinquentistas. É um filme cheio de características femininas, acompanhamos uma mulher que deseja alavancar sua carreira longe da sombra de seu marido assassinado. Como todo bom folhetim, ela é vista como a principal suspeita de sua morte. A fuga do grande centro urbano, como escape da pressão moral e da acusação dos companheiros, a ilustríssima personagem de Tônia Carrero se dá ao desfrute de um romance interiorano e retorna revigorada para enfrentar o mundo.
Abre-alas que a VERA CRUZ queria passar com "Caiçara" [1950], um filme até baita brasileiro para uma história que foi contada por olhares estrangeiros.
Uma contribuição de três diretores - sendo o italiano Adolfo Celi, o argentino Tom Payne e o americano John Waterhouse. Desde o início da sessão desta aventureira estreia do estúdio cinematográfico paulista, fiquei completamente tomado pelo conceito de significação inicial do título e ao abrir para as cenas praianas, entre homens à beira-mar e pescadores asiáticos, senti-me convidado a uma atmosfera mística da intitulada Ilhaverde. O paraíso tropical se engradece naquela fotografia ensolarada e os personagens mostram a sua pele brasileira.
Uma sinhá felicidade lança as macumbas para que a querida heroína branca Eliane Lage, na selva, possa viver um romance delicioso com o robusto Mario Sergio. Os coadjuvantes abrangem figuras clássicas da nossa cultura popular, a criança dos recados, a sogra recriminada, os bêbados fanfarrões, a religião do terreiro e, especialmente, a estética de jinga. Tens aqui um belo filme e que merece ser revisto. Para além das críticas glauberianas e das dores-de-cotovelo do cinema novo...
Somente a sequência de discussão da beleza e da feiúra já valem pela entrega completa a esta sessão. Minha parte preferida do conceito desta obra-prima rohmeriana não pode ser nada senão o paradigma entre colecionar objetos e colecionar relações com outros seres humanos.... De uma questão a ser digerida apenas na próxima encarnação!
Soberbo do início ao fim! Estes personagens rohmerianos se entrelaçam de uma maneira pouco vista no Cinema, a elegância ao contar a história não demanda de fato o uso de muitas técnicas do cinema reconhecidas pela emoção. Rohmer era conhecido por desgostar de utilizar música e grandes close-ups em seus filmes, pois dominava uma sensibilidade imagética incomum, buscando construir representações extremamente expressivas e extraindo o máximo da corporeidade de seus atores em cena. É de um frescor difícil de se transpor em palavras e de uma experiência igualmente inesquecível.
Há poucas coisas mais deleitosas no cinema de Éric Rohmer que os momentos de reunião dos personagens para discutir aquilo que dificilmente vemos ocorrer no plano da realidade: os sentimentos e como eles nos afetam. É a maneira com a qual o diretor organiza sua mise en scène com toda simplicidade para pessoas de idades e propósitos diferentes que ali compartilham - umas com as outras - desejos, expectativas, decepções. Seus personagens vulneráveis ao olhar do outro desabrocham as mais profundas banalidades de um gesto, mostrando a importância que o diretor atribui ao trivial. Estas preocupações ordinárias se tornavam a alma filosófica do cinema autoral rohmeriano.
"Paris m'a séduit, Paris m'a trahi..." - Canta Arielle Dombasle ao desfecho do filme que abre o segundo ciclo de Eric Rohmer, abrindo o coração para este imenso amor que inebria o diretor sobre Paris. Pensando nesta obra como uma homenagem ao trabalho de Marcel Carné e com o intuito engajado de tornar a capital francesa um estúdio a céu aberto, um dos diretores mais autorais da nouvelle vague nos oferece este deleite.
Emanam da tela milhares de sensações provocadas por um olhar seco tão característico do ponto de vista documental, trabalhando o encanto do cotidiano e do banal. LA FEMME DE L'AVIATEUR (1981) se pauta no improvisto, na ânsia imediata de extirpar de seus personagens pensantes e ambulantes a simplicidade do gesto, o improviso de uma emoção que chega ao espectador com auges de naturalismo.
Sua personagem principal, uma mulher tão perspicaz e ao mesmo tempo presa às inseguranças de seus relacionamentos, exigente e sistemática, símbolo da mulher que pontua um dos principais argumentos do filme: aquela que escolhe e define suas relações amorosas. O seu romance do passado, representado como um fantasma é visto à distância, mas está presente no filme de tal maneira que poderíamos imagina-lo discutir.
Em Buttes-Chaumont e sua grama montanhesca, um encontro entre estranhos potencializa a poesia deste pequeno filme de Rohmer. Tamanha a sutileza e a simplicidade no diálogo entre François e Lucie, ele que se lamenta pelos desencontros de sua vida amorosa e ela que suporta-o com todo frescor de uma astuta persona rohmeriana naquela farsa espiatória. O resultado com a chuva imprevista sob andanças parisienses enobrecem por fim uma obra charmosa como nunca e autoral em cada palavra, num universo em que pensamos sempre, sempre, sempre nalguma coisa....
A obra de Rosa von Praunheim ainda nos é distante e desconhecida. Lembrado como um grande representante do cinema gay dos anos 70 na Alemanha, Rosa tem seu lugar especial no museu da história do cinema alemão em Berlim. Escreveu em torno de dez livros e produziu mais do que imaginamos, do que sonhamos em obter traduzido para o nosso idioma. Seu principal filme, o mais polêmico, intitula-se "Não é o homossexual que é perverso, mas a situação em que ele se encontra" (1971).
Produzido bem no início da década conhecida pelo glamour das discotecas e das roupas brilhantes, depois de grandes revoluções sociais e sexuais, um filme-manifesto queer com sua linguagem marcada por elementos que constituíam a linguagem da propaganda nazista, a oratória exaustiva e a construção do discurso parcial, pleno de julgamentos. Talvez a mais valiosa característica do filme seja o fato de que ele não se tornou ultrapassado: seus questionamentos dialogam com o que vivemos.
A opressão entre indivíduos de uma mesma minoria marginalizada, a efemeridade de relações sexuais esvaziadas de afeto, o estilo de vida e de comportamento do homossexual, ao longo de sua luta existencial por afirmação de sua própria identidade.
O desfecho marca uma sentença: saia do banheirão e vá para as ruas. Está propriamente no cerne do manifesto deste diretor schwul a intenção de provocar aquilo que a cultura gay nos estabelece, cínica em sua verve apocalíptica e adorniana em suas críticas à indústria cultural na qual ele mesmo se insere.
Miou Miou e Isabelle Huppert estão inesquecíveis neste filme que trata às claras o relacionamento de duas mulheres dos anos 50. Apesar de alguns problemas e da falta de ousadia que permeia alguns momentos do filme, em que praticamente não há beijos, além da complicada manipulação tomada pela narrativa que nos facilita muito a renegar o papel do marido e a se identificar com as protagonistas, desconsiderando o outro lado, o filme se mostra interessado em manifestar a sensibilidade daquela relação e, mais do que isso, com belíssimos traços de autobiografia e uma linda maison de couture...
Por curiosidade, COUP DE FOUDRE em francês quer dizer se apaixonar à primeira vista...
Alegorias do subdesenvolvimento: TERRA EM TRANSE transformaria o cinema brasileiro e merece ser considerado um ponto de transição, o início do cinema político moderno na história do nosso cinema. Maravilhoso, bem executado e fluente na transmissão de sua mensagem principal: o despotismo diante de um povo desemparado que come o pão amassado pelo diabo, destruído pelo paradoxo de suas vidas - eles elegeram aquele indivíduo. Uma obra-prima de GLAUBER que apesar de rechaçada pela censura da época conseguira atravessar o tempo com seu poder da PALAVRA.
O Olho do Mal
3.9 6Que filme, que narrativa atiçada, que narrador mais em estado de catarse psicológica, pensando, refletindo, matutando planos com o desejo de se "sujar", como ele mesmo diz e como ele mesmo pensa que os outros dizem ao lançar o olhar da moral sobre ele: mas como um cara tão simpático pode se lançar assim tão arduamente à sujeira? A sublimação da confinação burguesa, os elementos do suspense hitchcockiano, a perspectiva em primeira pessoa dos acontecimentos da narrativa. É uma trama que exercita o prazer pela tortura, pelas nossas aventuras mais humanas. Chabrol no auge do seu maneirismo.
Stella: Uma Prova de Amor
3.2 3Heartbreaking, pulsante, um filme carente e que abraça o espectador como uma mãe que encontra o filho perdido na praia, lembra da abertura sirkiana de Imitação da vida?.... Tal como a versão que diva Barbara Stanwyck participou na década de 30, o auge da história se dá no momento em que a mãe se sacrifica em prol de sua cria. A performance como um todo de Bette Midler é um espetáculo à parte, o corpo e a voz em cena de uma mulher que transborda em emoção genuína. Contudo, o filme foi recebido na época com críticas medíocres que podem ter destruído a notoriedade da obra, mas que não se enganam ao apontar as deficiências quanto à consistência da narrativa. As amarras temporais fluem de maneira precária e a impressão de acompanhar o envelhecimento dos personagens parece forçada a tal que ponto que talvez teria sido mais interessante se o filme tivesse os 40 minutos minutos iniciais cortados e substituídos por um estudo do quotidiano dos personagens, algo que apeteceria o padrão comercial hollywoodiano se não fosse essa ganância de querer representar milhões de anos sucessivos de seus personagens. Tirando os pequenos problemas de narrativa, o resultado como um todo agrada facilmente um melodrama lover.
Louis Lumière
4.1 2Imagina poder assistir cotidianamente programas como este: Renoir comenta Lumière ao lado de um dos grandes colecionadores cinéfilos de todos os tempos, Henri Langlois. Direção de Rohmer. Isso é a primazia do cinema francês numa hora de aula de história.
De Olhos Bem Fechados
3.9 1,5K Assista AgoraLouvor a um filme que nos impele ao contrário do que propõe seu título. Não fechamos, mas abrimos o olhar às nuanças psicológicas de um casal em crise: a estabilidade ditada pelos modelos de vida burguesa se confundem com um mundo em que angústias torturam por meio de perguntas sem respostas. Basta uma intriga de traição para despertar o abismo em nosso personagem. Ainda não consegui superar a magnitude onírica e a riqueza de símbolos que Kubrick dava a sua obra, neste capítulo final particularmente cheio de elementos teatrais e de uma desconstrução quintessencial do idealismo romântico.
É isso mesmo que você está lendo: a orgia da vida.
O Mundo Vivente
4.0 22Publicação de minha contribuição ao site do Festival Indie 2014 que fez uma retrospectiva Eugène Green, começando em BH e que segue em breve rumo a SP.
LE MONDE VIVANT foi exibido numa cópica conservada em 35 mm.
"É o mundo de Eugène Green. Dentro de seu universo particular, em que a palavra tem um palco para si e a linguagem convida o espectador a adentrá-lo, uma narrativa arquetípica de contos de fadas representada pelo avesso. /O Mundo dos Vivos/ pode ser visto como um exemplo de obra cinematográfica contemporânea cujo realizador se destaca pela versatilidade artística. Green cresceu em Nova York e se mudou para a França no final dos anos 60, fundando alguns anos depois a companhia de teatro barroco Théâtre de la Sapience, que se apropriava de textos medievais para nele articular adaptações. Cineasta, escritor, dramaturgo, ensaísta e roteirista, Green tem experiência com releituras em cima da dicção tradicional dos textos que monta, impregnando aquelas palavras com discussões do campo da linguagem e de contemporaneidades. [...]"
LEIA MAIS
http://www.indiefestival.com.br/2014/bh/club.php?cod=58
Ida
3.7 439Contextualizado na Polônia do início da década de 60, “Ida” estabelece um jogo de fluidez entre os seus personagens. A protagonista pretende se tornar oficialmente uma freira, mas para isso precisa voltar à origem e descobrir a causa da morte de seus pais. Ela encontra a tia que parece ser o seu inverso e a partir desta oposição questiona suas crenças. Pawlikowski coloca em crise a ideia de fé e traz à tona uma significação de memória, expressas tanto pela cinematografia em preto e branco, como pelo uso de retratos que cobrem uma mesa de lembranças. A personagem coleta aos poucos as pistas que desvendam a dor de sua história.
Shirley - Visões da Realidade
3.7 12 Assista AgoraShirley é interpretada por Stephannie Cumming como o corpus essencial da narrativa, ela transita pelos objetos cênicos com sutilezas expressas por meio de seu gestual icônico. Dando a forma de seus contornos em cada plano que aparece, a personagem vive o seu dilema – parece encaixar-se perfeitamente no universo que lhe contempla com nada senão decepções.
Garotos do Leste
3.5 52 Assista AgoraEstabelecendo uma relação de dominação em que os indivíduos revezam a posse do poder, “Garotos do Leste” experimenta sem freios a poesia que as imagens lhe permitem.
Tubarão
3.7 1,2K Assista AgoraRevisto pela 3x e maravilhado com a versatilidade técnica, em toda sua capacidade de trabalhar com o suspense do oculto, do desconhecido e daquilo que sabemos ter uma força superior a nossa. JAWS [1975] tem o seu título que funciona muito melhor no seu original do que em qualquer outra tradução. É a mandíbula da fera que aparece nos quadros mais diversos e ao mesmo tempo sem mostrar com realismo o seu todo, ao menos antes da metade do filme, que cria de fato uma experiência de imaginação que Spielberg nunca conseguiu refazer em sua carreira com a mesma maestria e com a mesma linguagem. Estão diante de uma obra cujo conflito praiano permanecerá com os nossos calafrios.
Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão
3.4 103Encantado com este trabalho comum às comédias de relacionamentos de Woody Allen, onda há química entre personagens cheios de espontaneidade e, no caso desta pérola de 1982, também uma bem trabalhada intertextualidade com o grande Shakespeare. Muitas vezes este filme é dito menos expressivo, mas o fato não surpreende em vista de uma obra tão vasta e icônica. Ouso dizer ainda assim que este me parece ser um de seus trabalhos mais autorais, inclusive como ator. Os diálogos estão frescos, os enquadramentos são sugestivos e suscitam uma viagem ao tempo. Os elementos da fantasia postos diante da decepção que se revela a realidade: a lanterna mágica, símbolo de amor metafórico do cinema si, a projeção de imagens com a brincadeira da luz. Aposto que aqui tem herança da teatralidade bergmaniana.
Sinhá Moça
3.5 14[Sinhá moçoila veracruzense rumo à LIBERDADE
Porém..."Será que estes negros não sossegam?"... 05' 40'']
A simbólica questão posta no início do filme me parece ser fatal nesta causa de Sinhá Moça, a disputa política que dá conta de três grupos sociais em relação à escravidão: aqueles que são contra, os que são a favor e, finalmente, aqueles que não estão nem aí.
A trama do filme se engendra a partir da fuga frequente dos escravos pela qual a competição toma conta, de um lado os coronéis que se sentem desde já afetados pelas consequências de uma possível abolição e, por outro, os idealistas com o desejo de mudança, os personagens da civilização como Sinhá Moça, que voltam da cidade grande com a cabeça pipocando de ideias.
Ao meu ver, Sinhá Moça é um dos filmes mais brasileiros que Vera Cruz produziu, ainda sabendo que seja naturalmente inspirado pelo senso de aventura estadunidense, construída pelo que Glauber Rocha coloca como uma mistura de Zorro com Castro Alves que revive a capa-espada americana, estão diante de filme delicioso.
A sutileza com a qual o romance entre os personagens de Eliane Lage e Anselmo Duarte acontece é bárbara, tendo em vista a cena do leilão, a suspeita construída em torno da figura de Anselmo, se ele é ou não a favor da abolição. Ah, quem dera se todo símbolo de liberdade fosse proclamado com um beijo ! ! !
Na Senda do Crime
3.5 6[Vera Cruz com fotografia premiada: a atmosfera NOIR & a selva de pedra]
Na senda - ou na rotina, no quotidiano - do crime, uma gangue de criminosos planejam assaltos para se dar bem e obter grana imediata. A trama se constrói nos termos do "filmaço", engendra-se de maneira ágil com uma duração relativamente curta. Em 1 hora e 12 minutos, o espectador acompanha as peripécias de Vera Cruz pela codificação noir.
Temos um anti-herói com paixonite por duas moças, uma delas é a terna Jurema que chega tarde de noitadas e toma esporro do irmão, ela é corajosa e devota ao seu amado. A segunda é Margot, uma femme fatale típica que deseja encontrar um pretendente cheio da grana, ela é dançarina, formosa e rodeada de galanteios.
Nossa protagonista, interpretada pelo esbelto Miro Cerni, atravessa ruas desertas e rapidamente se vê envolvido nas patifarias de gangue, aparecendo em becos mal iluminados e envolvido por uma atmosfera que só uma história inspirada pelo hard-boiled clássico americano poderia engendrar. As cenas de perseguição e ação valorizam a montagem perspicaz de Oswald e Edith Hafenrichter.
Duas cenas em específico são o cartão postal desta obra enquanto peça policial triunfante de nossa história: o assalto no cinema e a polícia que persegue o protagonista no desfecho. Cenas imortais que com suas composições sonoras impactantes não perderão jamais a oportunidade de prender o espectador na cadeira.
Ângela
3.9 4["...Há criaturas que até no amor são como os mortos, sempre sós..."]
Um exemplo bárbaro e atípico do nosso cinema clássico brasileiro, esta mistura da vontade de enaltecer raízes culturais com as ambições de deixar de ser um universo subdesenvolvido para poder alcançar "as telas do mundo".
Apesar das pretensões internacionais de Vera Cruz que talvez possam ter contribuído grandemente para o próprio declínio, os filmes produzidos por Cavalcanti ocultam um charme singular, mas uma atmosfera nem sempre crível ao espectador das gerações sucessoras.
É preciso pensar os filmes iniciais da Vera Cruz num contexto específico para podermos admirar suas qualidades, tudo aquilo que os fazem únicos dentro de uma época, e para disseminar suas contribuições: os dramas de época, as adaptações de romances e os filmes regionais que revelaram ao mundo regiões e personalidades cômicas.
ÂNGELA é uma heroína sulista vivida de maneira intensa por Eliane Lage, uma mulher que faz escolhas por amor e que comanda a história, mas o seu controle ficcional não está atrelado aos atributos femininos de sedução e persuasão. Nossa protagonista clássica e romântica é devota incondicionalmente ao seu parceiro, que em troca lhe oferece desgosto e dívidas. Os planos iniciais e finais comprovam a estrutura clássica e universal vislumbrada pela Vera Cruz, numa maneira de contar que se engendra através de diálogos poéticos e de um alto nível qualitativo técnico na hora de fundir imagem e emoção, na hora de representar os devaneios de sua protagonista. Não dá para perder esta produção, menos ainda as participações de um elenco mais que espetacular: Inezita Barroso, a nossa dama da viola, que estreia ao lado de Ruth de Souza, como madame e servente, Mário Sérgio como o amor sacrificado da protagonista, o emblemático Abílio Pereira de Almeida, Luciano Salce como um comparsa gringo e outros muitos. Ângela é a primeira história escolhida livremente por Cavalcanti na Vera Cruz e tinha sido assim planejada como a primeira produção na cia. a ser dirigida por um brasileiro. No fim, os desentendimentos com o maioral do estúdio Franco Zamparini implicou em substituições. Ainda me pergunto como seria se o olhar nacional tivesse prevalecido, talvez as representações culturais como a briga de galo, a corrida dos cavalos e alguns outros detalhes teriam sido mais amplamente trabalhados.
Floradas na Serra
3.7 19[Cacilda & Jardel no centro do mundo, Vera Cruz numa tragédia pequeno-burguesa]
"Floradas na Serra" [1954] é aquele tipo de filme que pede para ser revisto antes mesmo de chegar ao meio, pois me pareceu riquíssimo de detalhes, além de que a única questão que poderia nos impedir de admirar este universo maravilhoso de Cacilda Becker tem que ser necessariamente o som que envelheceu mau, algo que requer de seu espectador um nível elevado de atenção. Quando isto é feito, a experiência potencializada da sessão nos deixa indubitavelmente maravilhados com a poesia do folhetim. Uma doença como a tuberculose, que não seria mencionada casualmente nas conversas de rodas ou naquelas festas idílicas de aniversário com direito ao jogo da cadeira, aparece no filme dispensando mil palavras, trazendo a dor de se ver à espreita da morte com uma textura profunda e intrigante. A personagem Lucilia se ampara no robusto Jardel e nas qualidades protetoras de seu personagem. No entanto, o ato final comprova a dificuldade humana em saciar suas vontades, para além mesmo do fervor de uma paixão, falamos aqui da eterna insatisfação com o outro. Estes FLOREIOS de Vera Cruz a serem revistos, obrigatoriamente com fones de ouvido.
Appassionata
3.6 4[Humoresque nas terras de TUPI, Vera Cruz & a música clássica]
Constata-se de cara pelo título que não será um filme popularesco e de fato não o é, APPASSIONATA [1952] se ajoelha esteticamente diante dos filmes mais enigmáticos de suspense norteamericanos. Contempla seu espectador com uma música deleitosa, uma protagonista quase que sucumbida aos delírios folhetinescos que deveriam polular nos imaginários daquelas donas-de-casa cinquentistas. É um filme cheio de características femininas, acompanhamos uma mulher que deseja alavancar sua carreira longe da sombra de seu marido assassinado. Como todo bom folhetim, ela é vista como a principal suspeita de sua morte. A fuga do grande centro urbano, como escape da pressão moral e da acusação dos companheiros, a ilustríssima personagem de Tônia Carrero se dá ao desfrute de um romance interiorano e retorna revigorada para enfrentar o mundo.
Caiçara
3.5 13Abre-alas que a VERA CRUZ queria passar com "Caiçara" [1950], um filme até baita brasileiro para uma história que foi contada por olhares estrangeiros.
Uma contribuição de três diretores - sendo o italiano Adolfo Celi, o argentino Tom Payne e o americano John Waterhouse. Desde o início da sessão desta aventureira estreia do estúdio cinematográfico paulista, fiquei completamente tomado pelo conceito de significação inicial do título e ao abrir para as cenas praianas, entre homens à beira-mar e pescadores asiáticos, senti-me convidado a uma atmosfera mística da intitulada Ilhaverde. O paraíso tropical se engradece naquela fotografia ensolarada e os personagens mostram a sua pele brasileira.
Uma sinhá felicidade lança as macumbas para que a querida heroína branca Eliane Lage, na selva, possa viver um romance delicioso com o robusto Mario Sergio. Os coadjuvantes abrangem figuras clássicas da nossa cultura popular, a criança dos recados, a sogra recriminada, os bêbados fanfarrões, a religião do terreiro e, especialmente, a estética de jinga. Tens aqui um belo filme e que merece ser revisto.
Para além das críticas glauberianas e das dores-de-cotovelo do cinema novo...
A Colecionadora
3.8 49 Assista AgoraSomente a sequência de discussão da beleza e da feiúra já valem pela entrega completa a esta sessão. Minha parte preferida do conceito desta obra-prima rohmeriana não pode ser nada senão o paradigma entre colecionar objetos e colecionar relações com outros seres humanos.... De uma questão a ser digerida apenas na próxima encarnação!
O Joelho de Claire
3.9 77 Assista AgoraSoberbo do início ao fim! Estes personagens rohmerianos se entrelaçam de uma maneira pouco vista no Cinema, a elegância ao contar a história não demanda de fato o uso de muitas técnicas do cinema reconhecidas pela emoção. Rohmer era conhecido por desgostar de utilizar música e grandes close-ups em seus filmes, pois dominava uma sensibilidade imagética incomum, buscando construir representações extremamente expressivas e extraindo o máximo da corporeidade de seus atores em cena. É de um frescor difícil de se transpor em palavras e de uma experiência igualmente inesquecível.
Pauline na Praia
3.9 64Há poucas coisas mais deleitosas no cinema de Éric Rohmer que os momentos de reunião dos personagens para discutir aquilo que dificilmente vemos ocorrer no plano da realidade: os sentimentos e como eles nos afetam. É a maneira com a qual o diretor organiza sua mise en scène com toda simplicidade para pessoas de idades e propósitos diferentes que ali compartilham - umas com as outras - desejos, expectativas, decepções. Seus personagens vulneráveis ao olhar do outro desabrocham as mais profundas banalidades de um gesto, mostrando a importância que o diretor atribui ao trivial. Estas preocupações ordinárias se tornavam a alma filosófica do cinema autoral rohmeriano.
A Mulher do Aviador
4.0 26"Paris m'a séduit, Paris m'a trahi..." - Canta Arielle Dombasle ao desfecho do filme que abre o segundo ciclo de Eric Rohmer, abrindo o coração para este imenso amor que inebria o diretor sobre Paris. Pensando nesta obra como uma homenagem ao trabalho de Marcel Carné e com o intuito engajado de tornar a capital francesa um estúdio a céu aberto, um dos diretores mais autorais da nouvelle vague nos oferece este deleite.
Emanam da tela milhares de sensações provocadas por um olhar seco tão característico do ponto de vista documental, trabalhando o encanto do cotidiano e do banal. LA FEMME DE L'AVIATEUR (1981) se pauta no improvisto, na ânsia imediata de extirpar de seus personagens pensantes e ambulantes a simplicidade do gesto, o improviso de uma emoção que chega ao espectador com auges de naturalismo.
Sua personagem principal, uma mulher tão perspicaz e ao mesmo tempo presa às inseguranças de seus relacionamentos, exigente e sistemática, símbolo da mulher que pontua um dos principais argumentos do filme: aquela que escolhe e define suas relações amorosas. O seu romance do passado, representado como um fantasma é visto à distância, mas está presente no filme de tal maneira que poderíamos imagina-lo discutir.
Em Buttes-Chaumont e sua grama montanhesca, um encontro entre estranhos potencializa a poesia deste pequeno filme de Rohmer. Tamanha a sutileza e a simplicidade no diálogo entre François e Lucie, ele que se lamenta pelos desencontros de sua vida amorosa e ela que suporta-o com todo frescor de uma astuta persona rohmeriana naquela farsa espiatória. O resultado com a chuva imprevista sob andanças parisienses enobrecem por fim uma obra charmosa como nunca e autoral em cada palavra, num universo em que pensamos sempre, sempre, sempre nalguma coisa....
Não é o Homossexual que é Perverso, mas a Situação …
4.1 46A obra de Rosa von Praunheim ainda nos é distante e desconhecida. Lembrado como um grande representante do cinema gay dos anos 70 na Alemanha, Rosa tem seu lugar especial no museu da história do cinema alemão em Berlim. Escreveu em torno de dez livros e produziu mais do que imaginamos, do que sonhamos em obter traduzido para o nosso idioma. Seu principal filme, o mais polêmico, intitula-se "Não é o homossexual que é perverso, mas a situação em que ele se encontra" (1971).
Produzido bem no início da década conhecida pelo glamour das discotecas e das roupas brilhantes, depois de grandes revoluções sociais e sexuais, um filme-manifesto queer com sua linguagem marcada por elementos que constituíam a linguagem da propaganda nazista, a oratória exaustiva e a construção do discurso parcial, pleno de julgamentos. Talvez a mais valiosa característica do filme seja o fato de que ele não se tornou ultrapassado: seus questionamentos dialogam com o que vivemos.
A opressão entre indivíduos de uma mesma minoria marginalizada, a efemeridade de relações sexuais esvaziadas de afeto, o estilo de vida e de comportamento do homossexual, ao longo de sua luta existencial por afirmação de sua própria identidade.
O desfecho marca uma sentença: saia do banheirão e vá para as ruas. Está propriamente no cerne do manifesto deste diretor schwul a intenção de provocar aquilo que a cultura gay nos estabelece, cínica em sua verve apocalíptica e adorniana em suas críticas à indústria cultural na qual ele mesmo se insere.
Coup de Foudre
3.6 11Miou Miou e Isabelle Huppert estão inesquecíveis neste filme que trata às claras o relacionamento de duas mulheres dos anos 50. Apesar de alguns problemas e da falta de ousadia que permeia alguns momentos do filme, em que praticamente não há beijos, além da complicada manipulação tomada pela narrativa que nos facilita muito a renegar o papel do marido e a se identificar com as protagonistas, desconsiderando o outro lado, o filme se mostra interessado em manifestar a sensibilidade daquela relação e, mais do que isso, com belíssimos traços de autobiografia e uma linda maison de couture...
Por curiosidade, COUP DE FOUDRE em francês quer dizer se apaixonar à primeira vista...
Terra em Transe
4.1 286 Assista AgoraAlegorias do subdesenvolvimento: TERRA EM TRANSE transformaria o cinema brasileiro e merece ser considerado um ponto de transição, o início do cinema político moderno na história do nosso cinema. Maravilhoso, bem executado e fluente na transmissão de sua mensagem principal: o despotismo diante de um povo desemparado que come o pão amassado pelo diabo, destruído pelo paradoxo de suas vidas - eles elegeram aquele indivíduo. Uma obra-prima de GLAUBER que apesar de rechaçada pela censura da época conseguira atravessar o tempo com seu poder da PALAVRA.
Fome de Amor
3.3 16FOME DE AMOR
subtítulo: Você nunca tomou banho de sol inteiramente nua?