Algo atiça a atenção à experiência fotográfica, acima até da própria linguagem de cinema em DOCE AMIANTO com seus planos experimentais silenciosos e sua pegada de interiorizar o espectador na personagem. É uma obra cuja beleza está em sua pessoalidade, aparenta carregar um diálogo exuberante com a trajetória do seu autor. Não poderia buscar um nome para isso diferente de autoral, pois cada personagem aparece singularizado neste universo fantástico que pode ser o fundo da cabeça de sua protagonista Amianto. Dentro dos seus elementos dramatúrgicos, a forma como a direção fotográfica dá luz e cor aos personagens enobrece o filme que poderia também apurar a narração em off e a captura de vozes que se esvaziam rapidamente diante de tantas imagens estáticas eternas. Não será esquecida a personagem da contação de histórias, nem os delírios de Amianto no meio da pista de dança.
Todo mundo sabe que esta obra-prima foi usada como meio de propaganda ufanista, pacifista e, enfim, toda aquela história de Hollywood pós-guerra. Diríamos que o que está realmente fazendo brilhar esta joia não é nem de longe o final patriótico, estaí vamos morrer todos pelo nosso país. Não, não é bem isso. Muitos outros filmes fizeram apologias parecidas. THIS GUN FOR HIRE possui números musicais encantadores, personagens singulares e uma atmosfera criativa com decorações que transitam do filme de fuga ao suspense gótico. Tem uma coisa curiosa por trás do personagem de Alan Ladd e sua devoção aos gatos, a frieza do personagem é um triunfo, nada visto parecido até Mitchum em "The Night of the Hunter" (1955). Quando pensamos sequer se este filme poderia ser considerado noir, pois ele é em quase todas as referências bibliográficas. No entanto, diríamos que as suas grandes contribuições para o gênero é a construção de atmosfera, a frieza do assassino e aquele close em seu rosto ao matar. É o sentimento de desespero que o filme nos fornece durante seus primeiros momentos, antes de se tornar um drama do Tio Sam.
Lady Lamarr, escândalo na sociedade! DISHONORED LADY é um daqueles filmes glamurosos dos anos 40, mas pena que o tempo não conservou esta película! É o veículo de uma estrela, um clássico "women's picture". O mundo se ajoelha para que a psiquê feminina seja traçada como um caminho a ser desvendado pelo espectador. A grande Hedy Lamarr é uma mulher que quer apagar o seu passado e começar uma nova vida, tema recorrente dos filmes da época e uma sombra consequente da grande guerra. Grandes melodramas como estes tinham como foco principal motivar o público da época e eram lindos, com seus casacos de minks e as trilhas sonoras rocambolescas.
Completamente maluco! E, cheio das referências, Roger Rabbit se mete no meio de um diálogo que tinha, desde a sua própria concepção, tudo para dar certo e ser um hit. A ideia mirabolante diz demasiado de seus realizadores, o produtor Spielberg e o diretor Zemeckis. É delicioso e mesmo depois de se perder um pouco no desejo pela aventura, a cilada permanece até hoje como uma saudação elaborada ao ato de desenhar.
Uma das cenas mais artificiais já vistas em Hollywood, quando uma falsa Lana Turner se passa por verdadeira tão falsamente que para estar a milhas de distância da tal Lana não precisaria fazer nada além de nada. A farsa contada faz barulho, um estardalhaço de tiros e pouca justiça ao film-noir, a tradição de uma sombria memória imagética a qual desejou reverenciar. Disfarçar-se com pretensões retromaníacas para esconder, na verdade, ou pelo menos tentar dissimular a verve policialesca medíocre das produções contemporâneas do tapete vermelho. A experiência intragável de acompanhar estes personagens planos é recompensada pela trilha sonora deliciosa, colecionável facilmente por qualquer pessoa e com alguns toques originais jazzísticos. A ação está no centro de todas as coisas e tudo gira em torno dela, nada a transcende. Uma produção digna de um tapete vermelho tão grande e eufórico como a paciência para aguenta-lo.
Começarei dizendo que o que vemos aqui não é um film-noir. Falamos de um filme cujas principais características enredísticas e estéticas recusam o pertencimento ideológico a um grupo de outros filmes que seriam em 1946 e pela primeira vez descritos pelo crítico francês Nino Frank com esta terminologia.
Entender o universo do film-noir é muito importante para discernir o que estava em jogo durante a década de 40 que beneficiou o fato de que tantas histórias policiais tivessem semelhanças e também o apelo frio clássico, até cínico. Estes filmes tinham histórias urbanas, passionalmente cosmopolitas e embriagadas de asfalto, discursando sobre a decadência humana e a impotência diante do próprio destino por meio de figuras como o corajoso anti-héroi, representado por homens plenos de fraqueza, geralmente acometidos na teia da mulher-aranha, uma femme fatale, dentre muitos outros seres num rico universo imagético. O assassinato e as aventuras entre as fugas, as sombras dos prédios eram uma referência desta grande convenção estética cinematográfica. A carga da investigação, quase didática e meticulosa, fazia-se imprescindível na formulação de seu grande atrativo: o laudo policial incompreensível, ninguém queria de fato compreender, senão ter acesso àquela experiência do estético ao sensorial. É a atmosfera que contava.
No entanto, a questão se é ou não um gênero ainda se põe na forma de discussão e até mesmo o presente filme acaba sendo considerado noir por conta de poucos elementos, mas de fato ao meu ver ele se encontraria ali deslocado. O seu trabalho expressionista na cinematografia, vale a pena observar a iluminação que é um verdadeiro tratado, e a qualidade da insegurança, dos indivíduos que se percebem encurralados pelas suas próprias condições humanas, tudo isso pode fazer pensar que o filme se enquadraria. Quando, na verdade, ele tende muito mais ao drama psicológico por se aventurar no âmago do seus protagonistas, por querer destrinchar toda a moralidade no exagero de seu discurso religioso, algo com uma ironia impecável. A imundice do personagem de Mitchum é visível na sua caricatura, um personagem que trai a si próprio, digno de Buñuel. É um filme de personagens demasiadamente singulares, eles se reconhecem muito pouco no universo noir, não possuem a experiência urbana e não apresentam uma trama que investiga, mas que de fato instiga.
"The Night of the Hunter" também não é um filme de suspense. Ele parece criar atmosferas de expectativa e ameaça gradualmente nos entregar uma explosão. A verdade é que a alma desta grande obra está na construção de uma farsa. Ela deseja exatamente como o seu protagonista nos evidenciar como as aparências enganam, por isso que notamos tantas quebras. A impressão de suspense termina em belas figuras de um imaginário que iria mais tarde inspirar a obra de grandes artistas, leitores do inconsciente como David Lynch, construções de viagem pelos meandros da mente humana e repletas de poesia.
Desde o primeiro momento dos créditos recitados, aquele louvor pela beleza das imagens com um desprezo pela reificação da arte cinematográfica. Numa maneira simbólica, por excelência, de se comunicar por meio das imagens. Godard cria um universo de elementos com cores próprias, a composição em sua maneira tão minuciosa de trabalhar o espaço acolhe aqueles personagens que estão desesperados para se comunicarem. Minha impressão central é como o emblemático diretor da nouvelle vague consegue promover tamanha consciência da produção do cinema americano, desvencilhando muito pouco de seu afeto por ele, mas insistindo em desconstruir o idealismo envolto pela ingenuidade do público frente à indústria. Godard toma sua postura política: isto é uma indústria, mas é a partir das ferramentas que me são convocadas que eu irei denunciar ela mesma. A denúncia está feita, Le Mépris permanece como um dos grandes tratados sobre o próprio ato de filmar.
Fabuloso! Um trabalho cheio de meandros psicológicos, construídos ainda com uma grande riqueza imagética. Catherine Hessling que era casada com Jean Renoir, na época deste excelente pontapé de carreira, mostra grandes habilidades de pantomina, cade close trabalhado em seu rosto consegue ser expressivo e cheio de teatralidade. "La fille de l'eau" conta sem dúvidas com um dos registros mais interessantes dos sonhos, sem mencionar a diversidade das imagens sociais que ele nos deixa enquanto registro.
A experiência SADIE com Gloria Swanson é fabulosa. Como ela mesma iria dizer mais tarde que os artistas não tinham diálogos: tinham FACES. Era de fato o grande aliado da atriz, seu rosto com expressões entre o devaneio da inocência e as doçuras do desejo. No entanto, o imensurável sacrilégio sofrido pelo filme, a perda de grande parte do seu desfecho diminui muito a experiência da trajetória desta atrevida personagem, se comparando à versão de 1932 com Joan Crawford. É um delicioso exercício aquele de imaginar e, sobretudo, com a vitrola desenrolada da personagem que arrepia os fios do cabelo, mas ao mesmo tempo existe um poder nos diálogos que favoreceria ainda mais a complexidade da personagem. É uma ótima produção, sem contar que a direção de Walsh nos apresenta os personagens de maneira suntuosa e multifacetada.
HO HO HO Encantador! Uma comédia de farsas e desastres que se desenrola como um verdadeiro tiro na culatra da segunda guerra: quando os homens voltavam da guerra e as mulheres eram postas de volta na cozinha. O que fazer quando nem cozinhar se sabia? (risos) Toda uma trama para construir aparências, como a deliciosa personagem de Barbara Stanwyck, para escapar de fato ao desespero que supostamente estariam vivendo, o cinema aqui servia talvez como um chá para amenizar o desnorteio norte-americano nos meados dos anos 40. A personagem de Stanwyck é uma colunista que descreve o mundo como ela gostaria e é isso que faz com todo mundo ame o seu trabaho: a farsa. Só que a gag da história, quando querem de fato comprovar toda a maravilha do seu falatório, mais e mais farsas - símbolos pela culatra e ironias com o American Way of Life - questionam os próprios indivíduos. O prazer de estar na sessão e a graça final está em ver e esperar aquele que irá desfazer a mentira. Grande filme para se ver no natal e rir.... Mas lembre-se que é o Tio Sam quem ri por último!
DON'T DREAM IT, BE IT Entoando a sentença definitiva da vida em sociedade: o microcosmo culturalmente plural da marginalidade. É impressionante cada imagem deste documentário. A força de vida das pessoas que narram os seus quotidianos, as altezas e as baixezas nas relações humanas, este documentário traz com toda honestidade a importância deste mundo cheio de sonhos de beleza e desejo de ultrapassar as próprias barreiras impostadas socialmente. Em toda a sua expressão cultural, o voguing é um exemplo das maneiras com as quais podemos nos expressar e protestar com a corporeidade e as singularidades de cada gênero, são eles não o masculino e o feminino, mas infinitos: qualquer um do qual você queira se apoderar.
Encantador, tout à fait merveilleux ! E, logo depois, fazer a leitura do conto de Charles Perrault, experiência inestimável. A estética de Jacques Demy é deliciosa e o elegante elenco com a presença do grande Jean Marais, trazendo todo o seu charme teatral da época dos filmes de Cocteau. Inebriados elogios agora ao tratamento de Deneuve que mesmo com suas limitações de atriz, não deixa em nenhum momento de construir com graciosidade a sua Peau d'Ane. Fogo no coração dos apaixonados por contos de fadas. Amour, amour...
Ouso citar Simone de Beauvoir para elencar a força desta experiência cinematográfica. Tornou-se tudo mulher dentro de uma pequena sala onde pude assistir ao documentário Bambi (2013) de Sébastien Lifshitz, lado a lado com sua protagonista, Marie-Pierre Pruvot - conhecida transexual Bambi da noite parisiense dos anos 50 e 60 - e à ela dedico este texto, com todo meu carinho e minha admiração.
"Marie-Pierre Pruvot narra a sua trajetória, nascida no dia 11 de novembro de 1935 em território argeliano ocupado pela França, ficou conhecida como uma das primeiras e mais suntuosas transexuais do mundo do espetáculo parisiense e um amuleto de sorte lhe batizaria Bambi, emblema de uma época carnavalesca que ela levaria consigo toda sua vida e mesmo depois de abandonar as artes cênicas para obter a graduação em literatura pela Sorbonne, formando-se educadora. [...]
A sensibilidade de Sébastien Lifshitz aponta para os dramas de seus indivíduos de maneira subjetiva, mas não desvela explicitamente a palavra dos mesmos em julgamento. Seu olhar fortalece a figura de Marie-Pierre Pruvot, alguém que precisou ser forte, símbolo de resistência e criadora da própria mulher que se tornou para poder triunfar em meio a tantas barreiras impostas socialmente..."
Onde o termo francês "FANTASME" se projeta e Deneuve desfila em YSL, o festival quintessencial de blasfêmias buñuelescas faz questionar:
Surrealismo vai além de querer se desprender da realidade. Está em seu cerne a vontade de desconstruir um paradigma em que opostos não podem estar juntos. Daí que o auge do movimento se dá com os artistas que mais conseguiram representar duas instâncias distintas e parecidas a experimentar dentro delas a coexistência da relação do real com a fantasia.
Buñuel em BELLE DE JOUR consegue elencar diversos patamares que poderiam não coexistir: uma mulher burguesa atenta aos papéis sociais e a vida num bordel, dois elementos que se costuram psicologicamente no seio do desejo de alguém que não quer apenas dominar o seu próprio prazer, mas também transcender as suas próprias imposições sociais.
É um filme impecável que questiona sem impor limites, deixando, enfim, o espectador livre para imaginar. E a partir disso, o significado para mim da carruagem que aparece em muitos momentos do filme se dá à representação de uma cultura romanesca dos séc. XIX (entenderão os leitores de Madame Bovary), neste momento em que até o duelo entre homens é visto, podemos dizer que esta representação é posta a desconstruir o próprio idealismo, quando - por exemplo - ela passeia belamente com os veículos até que é acometida por uma surra e por um estupro. Tudo isso é simbólico, maneiras de representar o desejo.
Maravilhoso, tudo sobre ele faz da vida um delírio em Technicolor, mas quando chega a escuridão, as luzes expressionistas de Sirk triunfam em crítica social.
Guarda-me lembranças queridas esta pérola hitchcockiana vista em ótima cópia, através da mostra mineira dedicada ao mestre, no Palácio das Artes. É uma história com elementos de sensibilidade e uma construção de personagem super original ao galã Gregory Peck. Jamais um estilo de narrativa foi tão popular como o judiciário nos anos 40, acompanhar o filme é como estar na pele daqueles indivíduos que tinham sede por julgamento e por argumentos que concebiam punições. É daí que parte o nosso estranhamento à época em todo seu maniqueísmo, porém é interessante superar esta barreira, entendendo as limitações da época, para poder descobrir o que de original existe por isso tudo. Em Hitchock, estamos garantidos de conhecer personagens que guardam segredos cujas naturezas velam inúmeras camadas de profundidade, mesmo quando a trama em si cai na simplificação.
Um filme picareta que brinca com o fazer cinematográfico. Talvez se tivesse sido realizado numa outra época, teria alcançado no mínimo uma estética mais original. Grandes farsas já foram feitas no cinema por gênios como E. Lubitsch, só que esta aqui do mestre do suspense está longe de um "toque" de sofisticação, mas como predomina na maioria dos comentários, tudo vai depender do que se espera do filme...
Esta pérola feita, necessariamente, por um cinéfilo deve ter revirado desejos dos espectadores da sua época e ainda agora consegue nos despertar o prazer de acompanhar o eros em seus personagens. Inspirado por dois filmes Noir dos anos 40, "Pacto de Sangue" (1944) e "Fuga do Passado" (1947), este neo-noir escrito e dirigido por Lawrence Kasdan evoca a obsessão de matar, comum à estética noiresca.
No entanto, a tentativa de Hollywood em atualizar o discurso à época não alcança muito sucesso na construção da atmosfera que era conhecida pelo film-noir como um trabalho do implícito. A grande argumentação dos filmes no período clássico deste estilo era poder descobrir maneiras de mostrar o que não poderia se discutido verbalmente, ninguém nunca precisou dizer sexo para que o espectador sentisse que alguém o faz. Era ver o sorriso no rosto de Barbara Stanwyck ou Jane Greer ao encontrar o amante que desde aí temos certeza e sentimos a tensão de erotismo que não se pode ver.
Em compensação, a estética da sensualidade emblemática aqui e em filmes como "Atração Fatal" (1987) e "Instinto Selvagem" (1992) criou uma linguagem de thriller sexual igualmente deliciosa. Sabendo e admitindo que em ambos os domínios encontramos filmes inexpressivos, vale à pena reconhecer quando pérolas são produzidas. Filmes como este que evocam um trabalho artístico de qualidade com belas cinematografias e de sobra com uma trilha sonora jazzística inesquecível.
Os sinos seriam alguma coisa que poderia ser melhor trabalhada, a ideia de que o vento ali anuncia o terrível destino destes amantes, elemento fundamental da estrutura noiresca que simboliza a impotência dos seus indivíduos diante de um universo implacável. Não dá para esquecer como os enquadramentos em Body Heat são cuidadosos, a câmera entende a posição de vigia onde o espectador se encontra. Ela repousa o olhar no chapéu, presente da personagem de Kathleen Turner ao de William Hurt, ou na banheira em que eles tentam diminuir o calor de seus corpos, tudo na maior elegância e isso faz pensar, alguma coisa não vai terminar bem. Sem refrescos, desta vez.
É o auge do gênero em sua exploração de exageros que beiram ao Kitsch. A Femme Fatale rouba o lugar de quem imaginávamos como protagonista com sua rasgada interpretação de uma mulher superficial e decadente. Pelo outro lado, a primeira mulher que vemos torna-se no imaginário filmíco um mito que aparece de vez em quando para dar o ar da graça com uma música de significação psicológica, quase um leitmotif, que transcende as veias do nosso inebriado protagonista de ódio toda vez que é cantada. Veias de uma pessoa decadente, mas não pelas próprias atitudes imorais. Uma das características mais emblemáticas do gênero é o personagem fraco que frente ao destino nada pode. Este é o nosso anti-heroi que termina a virar na estrada errada, culpando o destino em sua narração intravenosa, autodiegética e alucinógena: a experiência insubstituível de um film B noir como este, poder percorrer os caminhos do seu pensamento, sem limites de julgamento e projeção. Detour é um filme que contribuiu com sua porção à linguagem da narrativa moderna.
Inebriado frente às imagens mais belas que já vi no cinema, um filme que consegue expressar tudo que é a linguagem do cinema de Fellini. É a magia do espetáculo humano, a figura do povo que guia a narrativa, seja nas festas malucas comentadas por aristocratas italianos e suas misérias, seja no emblema de ser capaz de mostrar o regional. E é a la Madonna, mãe do divino, que aparece e a família que se destrói, os amores que se perdem. Quando a trilha de Nino Rota toca, todos os corações se embalam e o olhar sincero do palhaço não é capaz de acalentar nem mesmo o coração dos menos miseráveis. Ver este circo da vida acontecendo em versão restaurada de cinema é um privilégio dos céus.
Um filme entendido como uma leitura da grande obra FAUSTO do celebre escrior Goethe, repleto de ludicidade e com um verdadeiro soco no estomago. Segue revelando seu imenso potencial, Rock Hudson, forte como a pedra e instavel como o rio que lhe nomeava, pelo apocalipse criado com muita originalidade por John Frankenheimer. Inesquecivel em cada momento poético de sua narrativa; O SEGUNDO ROSTO tem um preludio absurdo, mas o desfecho com um realismo que chega a ser atordoante.
Que romance incomum que vai abrir espaço para se pensar essa nossa vontade ancestral de criar laços sólidos. A coisa se torna aguda graças à nossa atualidade enlouquecida, em que só a ideia daquilo que é novo já está de alguma forma datada no momento que surge. Nesta narrativa de anos 40, o protagonista não é o novo, mas aquilo que passou. É como se olhar num espelho invertido, Mme. Muir se vê nele marcada pelo contrário: o passado, entre o mal-estar da vida e a fantasia da morte, ela deseja aquilo que já foi.
E, ainda na construção do filme dada ao desfrute de um bom deboche, sabemos que a mensagem principal está em volta de um desejo por aquilo que nos concede de concreto e duradouro. É um filme que tem o direito de brincar com as leis da gravidade e ser irônico com a sexualidade, enlaçando memórias necrófilas, por trás do pretexto de uma fantasia. É brilhante, contudo, o tanto que esta fantasia se desdobra em realidades.
É de fato interessante que o título L'INCONNU DU LAC seja muito pouco para descrever a imersão que o filme toma ao espectador nas significações do termo "desconhecido" que está longe de ser apenas aquilo que não se conhece e talvez por isso seja o último a vir. Não é à toa também que o título em francês faz referência implícita ao título francês de Hitchcock / "L'inconnu du nord-express" / também conhecido como Pacto sinistro/Strangers on a train-1951. O que há entre ambos estes "inconnus" talvez seja, diga-se de passagem, o desejo pelo desconhecido, além ainda do fato que existe em Hitchcock uma forte atmosfera de homoerotismo que é trabalhada com todo o eros merecido em Alain Guiraudie.
O filme é envolvente e mordaz, apropriando-se de uma estética realista que potencializa a identificação. É uma representação da cultura gay que reproduz valores do corpo belo e exalta a sexualidade, fazendo pensar em querer ir além do estereótipo. Como, no entanto, apresentar o estereótipo em si não nega a realidade que vivemos, mas de alguma maneira aponta para alguns elementos inegáveis. Existem pessoas com papéis diferentes que procuram neste lago objetivos também diferentes. Na superfície do lago, a câmera treme como se anunciasse o terror de seus personagens, ela porta um olhar subjetivo como se pudesse doar ao espectador a possibilidade de enxergar através de seus personagens. O desejo pelo desconhecido do protagonista é ousado com o perigo e, dentro desta perspectiva, o filme consegue costurar os nervos do espectador. Aqui a impressão causada pela natureza não é pela primeira vez de distanciamento da cidade e de encontro consigo mesmo, mas de desespero e dor a partir de um silêncio em si angustiante.
O horror kitsch de ARGENTO integra um trabalho estético, amplamente inspirado pelos artistas Oskar Kokoschka e Escher, a um outro em que a música possui plena importância. Pensar no filme pelo olhar do que o espectador contemporâneo entende por sentir medo talvez não seja uma ideia tão justa para esta obra do célebre diretor italiano quanto a uma outra de pensá-lo pelo viés da experiência estética. SUSPIRIA é um filme que infelizmente não sobrevive bem dentro das demandas do tempo atual. Abraçados por uma herança da história do cinema dos horrores que hoje precisa de trabalhar descaradamente o explícito para impressionar o seu público-alvo, vivemos numa caixa de espelhos que repele um trabalho de experiência tão específica e plástica como a de Argento para devorar filmes que precisam de tentar refletir a realidade ou causar a sensação do real no espectador, um efeito verdadeiramente de espelho. Depois do filme em 3D, quanto mais real puder, mais o espectador se sente satisfeito. O negócio da narrativa mística de Suspiria se desenrola a partir do oposto, do lúdico e daquilo que deseja se desligar do real. Há necessidade da fantasia para se criar as imagens artísticas desejadas pelo seu realizador, porém as cores gritantes e a iluminação alucinógena abrem espaço para a banalização do próprio filme. Ainda que seja exatamente nesta inverossimilhança que encontramos o tesouro de Argento. No momento em que a personagem passa a habitar nesta misteriosa academia de dança, é como se o espectador ganhasse passagem a sua mente, onde sonhos e desejos de outra pessoa se manifestam através de imagens delirantes.
Doce Amianto
3.1 31Algo atiça a atenção à experiência fotográfica, acima até da própria linguagem de cinema em DOCE AMIANTO com seus planos experimentais silenciosos e sua pegada de interiorizar o espectador na personagem. É uma obra cuja beleza está em sua pessoalidade, aparenta carregar um diálogo exuberante com a trajetória do seu autor. Não poderia buscar um nome para isso diferente de autoral, pois cada personagem aparece singularizado neste universo fantástico que pode ser o fundo da cabeça de sua protagonista Amianto. Dentro dos seus elementos dramatúrgicos, a forma como a direção fotográfica dá luz e cor aos personagens enobrece o filme que poderia também apurar a narração em off e a captura de vozes que se esvaziam rapidamente diante de tantas imagens estáticas eternas. Não será esquecida a personagem da contação de histórias, nem os delírios de Amianto no meio da pista de dança.
Alma Torturada
3.7 28Todo mundo sabe que esta obra-prima foi usada como meio de propaganda ufanista, pacifista e, enfim, toda aquela história de Hollywood pós-guerra. Diríamos que o que está realmente fazendo brilhar esta joia não é nem de longe o final patriótico, estaí vamos morrer todos pelo nosso país. Não, não é bem isso. Muitos outros filmes fizeram apologias parecidas. THIS GUN FOR HIRE possui números musicais encantadores, personagens singulares e uma atmosfera criativa com decorações que transitam do filme de fuga ao suspense gótico. Tem uma coisa curiosa por trás do personagem de Alan Ladd e sua devoção aos gatos, a frieza do personagem é um triunfo, nada visto parecido até Mitchum em "The Night of the Hunter" (1955). Quando pensamos sequer se este filme poderia ser considerado noir, pois ele é em quase todas as referências bibliográficas. No entanto, diríamos que as suas grandes contribuições para o gênero é a construção de atmosfera, a frieza do assassino e aquele close em seu rosto ao matar. É o sentimento de desespero que o filme nos fornece durante seus primeiros momentos, antes de se tornar um drama do Tio Sam.
Mulher Caluniada
3.8 5 Assista AgoraLady Lamarr, escândalo na sociedade! DISHONORED LADY é um daqueles filmes glamurosos dos anos 40, mas pena que o tempo não conservou esta película! É o veículo de uma estrela, um clássico "women's picture". O mundo se ajoelha para que a psiquê feminina seja traçada como um caminho a ser desvendado pelo espectador. A grande Hedy Lamarr é uma mulher que quer apagar o seu passado e começar uma nova vida, tema recorrente dos filmes da época e uma sombra consequente da grande guerra. Grandes melodramas como estes tinham como foco principal motivar o público da época e eram lindos, com seus casacos de minks e as trilhas sonoras rocambolescas.
Uma Cilada para Roger Rabbit
3.7 507 Assista AgoraCompletamente maluco! E, cheio das referências, Roger Rabbit se mete no meio de um diálogo que tinha, desde a sua própria concepção, tudo para dar certo e ser um hit. A ideia mirabolante diz demasiado de seus realizadores, o produtor Spielberg e o diretor Zemeckis. É delicioso e mesmo depois de se perder um pouco no desejo pela aventura, a cilada permanece até hoje como uma saudação elaborada ao ato de desenhar.
Los Angeles: Cidade Proibida
4.1 528 Assista AgoraUma das cenas mais artificiais já vistas em Hollywood, quando uma falsa Lana Turner se passa por verdadeira tão falsamente que para estar a milhas de distância da tal Lana não precisaria fazer nada além de nada. A farsa contada faz barulho, um estardalhaço de tiros e pouca justiça ao film-noir, a tradição de uma sombria memória imagética a qual desejou reverenciar. Disfarçar-se com pretensões retromaníacas para esconder, na verdade, ou pelo menos tentar dissimular a verve policialesca medíocre das produções contemporâneas do tapete vermelho. A experiência intragável de acompanhar estes personagens planos é recompensada pela trilha sonora deliciosa, colecionável facilmente por qualquer pessoa e com alguns toques originais jazzísticos. A ação está no centro de todas as coisas e tudo gira em torno dela, nada a transcende. Uma produção digna de um tapete vermelho tão grande e eufórico como a paciência para aguenta-lo.
O Mensageiro do Diabo
4.1 261 Assista AgoraComeçarei dizendo que o que vemos aqui não é um film-noir. Falamos de um filme cujas principais características enredísticas e estéticas recusam o pertencimento ideológico a um grupo de outros filmes que seriam em 1946 e pela primeira vez descritos pelo crítico francês Nino Frank com esta terminologia.
Entender o universo do film-noir é muito importante para discernir o que estava em jogo durante a década de 40 que beneficiou o fato de que tantas histórias policiais tivessem semelhanças e também o apelo frio clássico, até cínico. Estes filmes tinham histórias urbanas, passionalmente cosmopolitas e embriagadas de asfalto, discursando sobre a decadência humana e a impotência diante do próprio destino por meio de figuras como o corajoso anti-héroi, representado por homens plenos de fraqueza, geralmente acometidos na teia da mulher-aranha, uma femme fatale, dentre muitos outros seres num rico universo imagético. O assassinato e as aventuras entre as fugas, as sombras dos prédios eram uma referência desta grande convenção estética cinematográfica. A carga da investigação, quase didática e meticulosa, fazia-se imprescindível na formulação de seu grande atrativo: o laudo policial incompreensível, ninguém queria de fato compreender, senão ter acesso àquela experiência do estético ao sensorial. É a atmosfera que contava.
No entanto, a questão se é ou não um gênero ainda se põe na forma de discussão e até mesmo o presente filme acaba sendo considerado noir por conta de poucos elementos, mas de fato ao meu ver ele se encontraria ali deslocado. O seu trabalho expressionista na cinematografia, vale a pena observar a iluminação que é um verdadeiro tratado, e a qualidade da insegurança, dos indivíduos que se percebem encurralados pelas suas próprias condições humanas, tudo isso pode fazer pensar que o filme se enquadraria. Quando, na verdade, ele tende muito mais ao drama psicológico por se aventurar no âmago do seus protagonistas, por querer destrinchar toda a moralidade no exagero de seu discurso religioso, algo com uma ironia impecável. A imundice do personagem de Mitchum é visível na sua caricatura, um personagem que trai a si próprio, digno de Buñuel. É um filme de personagens demasiadamente singulares, eles se reconhecem muito pouco no universo noir, não possuem a experiência urbana e não apresentam uma trama que investiga, mas que de fato instiga.
"The Night of the Hunter" também não é um filme de suspense. Ele parece criar atmosferas de expectativa e ameaça gradualmente nos entregar uma explosão. A verdade é que a alma desta grande obra está na construção de uma farsa. Ela deseja exatamente como o seu protagonista nos evidenciar como as aparências enganam, por isso que notamos tantas quebras. A impressão de suspense termina em belas figuras de um imaginário que iria mais tarde inspirar a obra de grandes artistas, leitores do inconsciente como David Lynch, construções de viagem pelos meandros da mente humana e repletas de poesia.
O Desprezo
4.0 266Desde o primeiro momento dos créditos recitados, aquele louvor pela beleza das imagens com um desprezo pela reificação da arte cinematográfica. Numa maneira simbólica, por excelência, de se comunicar por meio das imagens. Godard cria um universo de elementos com cores próprias, a composição em sua maneira tão minuciosa de trabalhar o espaço acolhe aqueles personagens que estão desesperados para se comunicarem. Minha impressão central é como o emblemático diretor da nouvelle vague consegue promover tamanha consciência da produção do cinema americano, desvencilhando muito pouco de seu afeto por ele, mas insistindo em desconstruir o idealismo envolto pela ingenuidade do público frente à indústria. Godard toma sua postura política: isto é uma indústria, mas é a partir das ferramentas que me são convocadas que eu irei denunciar ela mesma. A denúncia está feita, Le Mépris permanece como um dos grandes tratados sobre o próprio ato de filmar.
A Moça da Água
3.3 10Fabuloso! Um trabalho cheio de meandros psicológicos, construídos ainda com uma grande riqueza imagética. Catherine Hessling que era casada com Jean Renoir, na época deste excelente pontapé de carreira, mostra grandes habilidades de pantomina, cade close trabalhado em seu rosto consegue ser expressivo e cheio de teatralidade. "La fille de l'eau" conta sem dúvidas com um dos registros mais interessantes dos sonhos, sem mencionar a diversidade das imagens sociais que ele nos deixa enquanto registro.
Sedução do Pecado
4.1 9A experiência SADIE com Gloria Swanson é fabulosa. Como ela mesma iria dizer mais tarde que os artistas não tinham diálogos: tinham FACES. Era de fato o grande aliado da atriz, seu rosto com expressões entre o devaneio da inocência e as doçuras do desejo. No entanto, o imensurável sacrilégio sofrido pelo filme, a perda de grande parte do seu desfecho diminui muito a experiência da trajetória desta atrevida personagem, se comparando à versão de 1932 com Joan Crawford. É um delicioso exercício aquele de imaginar e, sobretudo, com a vitrola desenrolada da personagem que arrepia os fios do cabelo, mas ao mesmo tempo existe um poder nos diálogos que favoreceria ainda mais a complexidade da personagem. É uma ótima produção, sem contar que a direção de Walsh nos apresenta os personagens de maneira suntuosa e multifacetada.
Indiscrição
3.6 16 Assista AgoraHO HO HO
Encantador! Uma comédia de farsas e desastres que se desenrola como um verdadeiro tiro na culatra da segunda guerra: quando os homens voltavam da guerra e as mulheres eram postas de volta na cozinha. O que fazer quando nem cozinhar se sabia? (risos)
Toda uma trama para construir aparências, como a deliciosa personagem de Barbara Stanwyck, para escapar de fato ao desespero que supostamente estariam vivendo, o cinema aqui servia talvez como um chá para amenizar o desnorteio norte-americano nos meados dos anos 40. A personagem de Stanwyck é uma colunista que descreve o mundo como ela gostaria e é isso que faz com todo mundo ame o seu trabaho: a farsa. Só que a gag da história, quando querem de fato comprovar toda a maravilha do seu falatório, mais e mais farsas - símbolos pela culatra e ironias com o American Way of Life - questionam os próprios indivíduos. O prazer de estar na sessão e a graça final está em ver e esperar aquele que irá desfazer a mentira. Grande filme para se ver no natal e rir....
Mas lembre-se que é o Tio Sam quem ri por último!
Paris is Burning
4.5 242DON'T DREAM IT, BE IT
Entoando a sentença definitiva da vida em sociedade: o microcosmo culturalmente plural da marginalidade. É impressionante cada imagem deste documentário. A força de vida das pessoas que narram os seus quotidianos, as altezas e as baixezas nas relações humanas, este documentário traz com toda honestidade a importância deste mundo cheio de sonhos de beleza e desejo de ultrapassar as próprias barreiras impostadas socialmente. Em toda a sua expressão cultural, o voguing é um exemplo das maneiras com as quais podemos nos expressar e protestar com a corporeidade e as singularidades de cada gênero, são eles não o masculino e o feminino, mas infinitos: qualquer um do qual você queira se apoderar.
Pele de Asno
3.8 78Encantador, tout à fait merveilleux ! E, logo depois, fazer a leitura do conto de Charles Perrault, experiência inestimável. A estética de Jacques Demy é deliciosa e o elegante elenco com a presença do grande Jean Marais, trazendo todo o seu charme teatral da época dos filmes de Cocteau. Inebriados elogios agora ao tratamento de Deneuve que mesmo com suas limitações de atriz, não deixa em nenhum momento de construir com graciosidade a sua Peau d'Ane. Fogo no coração dos apaixonados por contos de fadas. Amour, amour...
Bambi
4.1 3Ouso citar Simone de Beauvoir para elencar a força desta experiência cinematográfica. Tornou-se tudo mulher dentro de uma pequena sala onde pude assistir ao documentário Bambi (2013) de Sébastien Lifshitz, lado a lado com sua protagonista, Marie-Pierre Pruvot - conhecida transexual Bambi da noite parisiense dos anos 50 e 60 - e à ela dedico este texto, com todo meu carinho e minha admiração.
"Marie-Pierre Pruvot narra a sua trajetória, nascida no dia 11 de novembro de 1935 em território argeliano ocupado pela França, ficou conhecida como uma das primeiras e mais suntuosas transexuais do mundo do espetáculo parisiense e um amuleto de sorte lhe batizaria Bambi, emblema de uma época carnavalesca que ela levaria consigo toda sua vida e mesmo depois de abandonar as artes cênicas para obter a graduação em literatura pela Sorbonne, formando-se educadora. [...]
A sensibilidade de Sébastien Lifshitz aponta para os dramas de seus indivíduos de maneira subjetiva, mas não desvela explicitamente a palavra dos mesmos em julgamento. Seu olhar fortalece a figura de Marie-Pierre Pruvot, alguém que precisou ser forte, símbolo de resistência e criadora da própria mulher que se tornou para poder triunfar em meio a tantas barreiras impostas socialmente..."
LEIA MAIS:
http://cinexistencia.blogspot.fr/2013/12/bambi-ela-nao-nasceu-mulher-tornou-se.html
A Bela da Tarde
4.1 340 Assista AgoraOnde o termo francês "FANTASME" se projeta e Deneuve desfila em YSL, o festival quintessencial de blasfêmias buñuelescas faz questionar:
Surrealismo vai além de querer se desprender da realidade. Está em seu cerne a vontade de desconstruir um paradigma em que opostos não podem estar juntos. Daí que o auge do movimento se dá com os artistas que mais conseguiram representar duas instâncias distintas e parecidas a experimentar dentro delas a coexistência da relação do real com a fantasia.
Buñuel em BELLE DE JOUR consegue elencar diversos patamares que poderiam não coexistir: uma mulher burguesa atenta aos papéis sociais e a vida num bordel, dois elementos que se costuram psicologicamente no seio do desejo de alguém que não quer apenas dominar o seu próprio prazer, mas também transcender as suas próprias imposições sociais.
É um filme impecável que questiona sem impor limites, deixando, enfim, o espectador livre para imaginar. E a partir disso, o significado para mim da carruagem que aparece em muitos momentos do filme se dá à representação de uma cultura romanesca dos séc. XIX (entenderão os leitores de Madame Bovary), neste momento em que até o duelo entre homens é visto, podemos dizer que esta representação é posta a desconstruir o próprio idealismo, quando - por exemplo - ela passeia belamente com os veículos até que é acometida por uma surra e por um estupro. Tudo isso é simbólico, maneiras de representar o desejo.
Sublime Obsessão
3.9 40 Assista AgoraMaravilhoso, tudo sobre ele faz da vida um delírio em Technicolor, mas quando chega a escuridão, as luzes expressionistas de Sirk triunfam em crítica social.
Agonia de Amor
3.5 41Guarda-me lembranças queridas esta pérola hitchcockiana vista em ótima cópia, através da mostra mineira dedicada ao mestre, no Palácio das Artes. É uma história com elementos de sensibilidade e uma construção de personagem super original ao galã Gregory Peck. Jamais um estilo de narrativa foi tão popular como o judiciário nos anos 40, acompanhar o filme é como estar na pele daqueles indivíduos que tinham sede por julgamento e por argumentos que concebiam punições. É daí que parte o nosso estranhamento à época em todo seu maniqueísmo, porém é interessante superar esta barreira, entendendo as limitações da época, para poder descobrir o que de original existe por isso tudo. Em Hitchock, estamos garantidos de conhecer personagens que guardam segredos cujas naturezas velam inúmeras camadas de profundidade, mesmo quando a trama em si cai na simplificação.
Trama Macabra
3.7 147 Assista AgoraUm filme picareta que brinca com o fazer cinematográfico. Talvez se tivesse sido realizado numa outra época, teria alcançado no mínimo uma estética mais original. Grandes farsas já foram feitas no cinema por gênios como E. Lubitsch, só que esta aqui do mestre do suspense está longe de um "toque" de sofisticação, mas como predomina na maioria dos comentários, tudo vai depender do que se espera do filme...
Corpos Ardentes
3.7 109 Assista AgoraEsta pérola feita, necessariamente, por um cinéfilo deve ter revirado desejos dos espectadores da sua época e ainda agora consegue nos despertar o prazer de acompanhar o eros em seus personagens. Inspirado por dois filmes Noir dos anos 40, "Pacto de Sangue" (1944) e "Fuga do Passado" (1947), este neo-noir escrito e dirigido por Lawrence Kasdan evoca a obsessão de matar, comum à estética noiresca.
No entanto, a tentativa de Hollywood em atualizar o discurso à época não alcança muito sucesso na construção da atmosfera que era conhecida pelo film-noir como um trabalho do implícito. A grande argumentação dos filmes no período clássico deste estilo era poder descobrir maneiras de mostrar o que não poderia se discutido verbalmente, ninguém nunca precisou dizer sexo para que o espectador sentisse que alguém o faz. Era ver o sorriso no rosto de Barbara Stanwyck ou Jane Greer ao encontrar o amante que desde aí temos certeza e sentimos a tensão de erotismo que não se pode ver.
Em compensação, a estética da sensualidade emblemática aqui e em filmes como "Atração Fatal" (1987) e "Instinto Selvagem" (1992) criou uma linguagem de thriller sexual igualmente deliciosa. Sabendo e admitindo que em ambos os domínios encontramos filmes inexpressivos, vale à pena reconhecer quando pérolas são produzidas. Filmes como este que evocam um trabalho artístico de qualidade com belas cinematografias e de sobra com uma trilha sonora jazzística inesquecível.
Os sinos seriam alguma coisa que poderia ser melhor trabalhada, a ideia de que o vento ali anuncia o terrível destino destes amantes, elemento fundamental da estrutura noiresca que simboliza a impotência dos seus indivíduos diante de um universo implacável. Não dá para esquecer como os enquadramentos em Body Heat são cuidadosos, a câmera entende a posição de vigia onde o espectador se encontra. Ela repousa o olhar no chapéu, presente da personagem de Kathleen Turner ao de William Hurt, ou na banheira em que eles tentam diminuir o calor de seus corpos, tudo na maior elegância e isso faz pensar, alguma coisa não vai terminar bem. Sem refrescos, desta vez.
A Curva do Destino
3.8 49 Assista AgoraÉ o auge do gênero em sua exploração de exageros que beiram ao Kitsch. A Femme Fatale rouba o lugar de quem imaginávamos como protagonista com sua rasgada interpretação de uma mulher superficial e decadente. Pelo outro lado, a primeira mulher que vemos torna-se no imaginário filmíco um mito que aparece de vez em quando para dar o ar da graça com uma música de significação psicológica, quase um leitmotif, que transcende as veias do nosso inebriado protagonista de ódio toda vez que é cantada. Veias de uma pessoa decadente, mas não pelas próprias atitudes imorais. Uma das características mais emblemáticas do gênero é o personagem fraco que frente ao destino nada pode. Este é o nosso anti-heroi que termina a virar na estrada errada, culpando o destino em sua narração intravenosa, autodiegética e alucinógena: a experiência insubstituível de um film B noir como este, poder percorrer os caminhos do seu pensamento, sem limites de julgamento e projeção. Detour é um filme que contribuiu com sua porção à linguagem da narrativa moderna.
A Doce Vida
4.2 316 Assista AgoraInebriado frente às imagens mais belas que já vi no cinema, um filme que consegue expressar tudo que é a linguagem do cinema de Fellini. É a magia do espetáculo humano, a figura do povo que guia a narrativa, seja nas festas malucas comentadas por aristocratas italianos e suas misérias, seja no emblema de ser capaz de mostrar o regional. E é a la Madonna, mãe do divino, que aparece e a família que se destrói, os amores que se perdem. Quando a trilha de Nino Rota toca, todos os corações se embalam e o olhar sincero do palhaço não é capaz de acalentar nem mesmo o coração dos menos miseráveis. Ver este circo da vida acontecendo em versão restaurada de cinema é um privilégio dos céus.
O Segundo Rosto
4.1 68 Assista AgoraUm filme entendido como uma leitura da grande obra FAUSTO do celebre escrior Goethe, repleto de ludicidade e com um verdadeiro soco no estomago. Segue revelando seu imenso potencial, Rock Hudson, forte como a pedra e instavel como o rio que lhe nomeava, pelo apocalipse criado com muita originalidade por John Frankenheimer. Inesquecivel em cada momento poético de sua narrativa; O SEGUNDO ROSTO tem um preludio absurdo, mas o desfecho com um realismo que chega a ser atordoante.
O Fantasma Apaixonado
4.1 44 Assista AgoraQue romance incomum que vai abrir espaço para se pensar essa nossa vontade ancestral de criar laços sólidos. A coisa se torna aguda graças à nossa atualidade enlouquecida, em que só a ideia daquilo que é novo já está de alguma forma datada no momento que surge. Nesta narrativa de anos 40, o protagonista não é o novo, mas aquilo que passou. É como se olhar num espelho invertido, Mme. Muir se vê nele marcada pelo contrário: o passado, entre o mal-estar da vida e a fantasia da morte, ela deseja aquilo que já foi.
E, ainda na construção do filme dada ao desfrute de um bom deboche, sabemos que a mensagem principal está em volta de um desejo por aquilo que nos concede de concreto e duradouro. É um filme que tem o direito de brincar com as leis da gravidade e ser irônico com a sexualidade, enlaçando memórias necrófilas, por trás do pretexto de uma fantasia. É brilhante, contudo, o tanto que esta fantasia se desdobra em realidades.
Um Estranho no Lago
3.3 465 Assista AgoraÉ de fato interessante que o título L'INCONNU DU LAC seja muito pouco para descrever a imersão que o filme toma ao espectador nas significações do termo "desconhecido" que está longe de ser apenas aquilo que não se conhece e talvez por isso seja o último a vir. Não é à toa também que o título em francês faz referência implícita ao título francês de Hitchcock / "L'inconnu du nord-express" / também conhecido como Pacto sinistro/Strangers on a train-1951. O que há entre ambos estes "inconnus" talvez seja, diga-se de passagem, o desejo pelo desconhecido, além ainda do fato que existe em Hitchcock uma forte atmosfera de homoerotismo que é trabalhada com todo o eros merecido em Alain Guiraudie.
O filme é envolvente e mordaz, apropriando-se de uma estética realista que potencializa a identificação. É uma representação da cultura gay que reproduz valores do corpo belo e exalta a sexualidade, fazendo pensar em querer ir além do estereótipo. Como, no entanto, apresentar o estereótipo em si não nega a realidade que vivemos, mas de alguma maneira aponta para alguns elementos inegáveis. Existem pessoas com papéis diferentes que procuram neste lago objetivos também diferentes. Na superfície do lago, a câmera treme como se anunciasse o terror de seus personagens, ela porta um olhar subjetivo como se pudesse doar ao espectador a possibilidade de enxergar através de seus personagens. O desejo pelo desconhecido do protagonista é ousado com o perigo e, dentro desta perspectiva, o filme consegue costurar os nervos do espectador. Aqui a impressão causada pela natureza não é pela primeira vez de distanciamento da cidade e de encontro consigo mesmo, mas de desespero e dor a partir de um silêncio em si angustiante.
Suspiria
3.8 979 Assista AgoraO horror kitsch de ARGENTO integra um trabalho estético, amplamente inspirado pelos artistas Oskar Kokoschka e Escher, a um outro em que a música possui plena importância. Pensar no filme pelo olhar do que o espectador contemporâneo entende por sentir medo talvez não seja uma ideia tão justa para esta obra do célebre diretor italiano quanto a uma outra de pensá-lo pelo viés da experiência estética. SUSPIRIA é um filme que infelizmente não sobrevive bem dentro das demandas do tempo atual. Abraçados por uma herança da história do cinema dos horrores que hoje precisa de trabalhar descaradamente o explícito para impressionar o seu público-alvo, vivemos numa caixa de espelhos que repele um trabalho de experiência tão específica e plástica como a de Argento para devorar filmes que precisam de tentar refletir a realidade ou causar a sensação do real no espectador, um efeito verdadeiramente de espelho. Depois do filme em 3D, quanto mais real puder, mais o espectador se sente satisfeito. O negócio da narrativa mística de Suspiria se desenrola a partir do oposto, do lúdico e daquilo que deseja se desligar do real. Há necessidade da fantasia para se criar as imagens artísticas desejadas pelo seu realizador, porém as cores gritantes e a iluminação alucinógena abrem espaço para a banalização do próprio filme. Ainda que seja exatamente nesta inverossimilhança que encontramos o tesouro de Argento. No momento em que a personagem passa a habitar nesta misteriosa academia de dança, é como se o espectador ganhasse passagem a sua mente, onde sonhos e desejos de outra pessoa se manifestam através de imagens delirantes.