Enfim, mais um filme com referências orientais em diluição, pensando estupidamente que a vida em guerra se resume aos chineses invadidos e aos japoneses invasores. É neste aspecto fortíssimo de como a tendência americana guarda uma montagem de bom gosto, descompensada por textos inferiores, que a experiência de uma "conspiração americana em Shanghai" se torna fundamental ao olhar que procura também a perspectiva das sutilezas asiáticas. Antes de mais nada, desconstruindo os maniqueísmos idiotas de que o cinema poético por si só exclui o cinema americano e, porém, o oposto disso, a revalorização deste cinema a partir deste olhar. Sempre nos foi concedido um cinema de alta qualidade americano, montagens belíssimas, os melhores arsenais de equipamento tecnológico, grandes diretores do western ao suspense e, mais especificamente, pensando na linguagem e estética Noir dos anos 40, das narrações injetadas na veia como narcóticos às sombras de um mundo tão moderno quanto opressor, caso de grande inspiração para este problemático filme do sueco Mikael Håfström. No entanto, o caso da banalização do papel do roteirista tem deixado nós todos, americanos, a mercê de uma produção local descaracterizada e diluída, especialmente no meio comercial. O lado B disto é que a produção B, propriamente dita, promete mudanças.
Experimental, poético e humano. Descrições comuns ao trabalho sensível do diretor tailandês que se formou na escola de arte de Chicago, informação pertinente de seu olhar cinematográfico onde reverberam sincretismos e inclinações ocidentais por trás de um regionalismo que transborda as iconografias. SUD PRALAD, em seus dois momentos de narrativa, parece exaltar a experiência do anti-cinema, conhecido através de Ozu ou Bresson como uma experiência transcendental em que o indivíduo encontra imagens a partir de um olhar nu. É o ponto final às surpresas e aos choques de narrativa, o cinema aqui aparece como um caminho a se percorrer pela simplicidade da vida quotidiana. A gravação da voz dos atores incomoda inicialmente por estar imersa em som ambiente intenso e desgovernado, porém em seguida admite uma segunda impressão com a proposta de trabalhar os medos e as dúvidas humanas que adentra a uma floresta. Então, a dificuldade de ouvi-los diz algo no sentido de uma desorientação existencial. A mesma questão poderia justificar o ritmo desnivelado. Ainda que as imagens estejam deslumbrantes em fotografia, a segunda parte pouco se debruça na primeira, ou seria uma quebra neste andamento algum dos propósitos estéticos de seu diretor? O misticismo folclórico de Apichatpong parece querer nos identificar ao seu indivíduo que por natureza é desorientado, numa temporalidade igualmente fragmentada.
Do poster à mise en scène de Chabrol, a sofisticação reina ao tratar um tema pungente, o retrato de um estado francês moralista que nos põe inúmeras reflexões políticas sobre a supremacia europeia. Podendo criar um gênero paralelo ao realismo poético dos anos 30, seria esta maneira de poesia política o meio pelo qual o ilustre realizador veste sua personagem em Isabelle Huppert. Uma mulher que se envolve gradativamente com os "negócios femininos" do título, condenada por uma nação moralista como dano ao Estado, maneira primitiva de explorar o bode-expiatório, e da mesma maneira que é como todos nós, persona de ambições, ela queria ser cantora. A humanidade envolta dos personagens, expressa pelas mais calmas e belas imagens, dá o respiro que o espectador precisa. Tanto o ritmo, em seu compasso de diálogos e a motivação do espaço urbano, do privado, favorecem uma elaboração astuta de sua imagem final. Ayez pitié des enfants de ceux que l'on condamne, permanece intacto pela memória.
Comentário ilustrado pela pintura do artista brasileiro Pedro Américo "VISÃO DE HAMLET", 1893. Pinacoteca do estado de SP. (http://goo.gl/byJDE).
ALAS, pobre Yorick. Outrora ríamos juntos e agora isso, acometidos por outra tragédia do destino. Hamlet se consolida para o teatro uma emblemática figura romântica de melancolia incurável, sofrimento latente por não poder deter o sarcasmo de sua tragédia, e de ironia por encontrar na farsa encenada um consolo, bêbado de ilusões além do céu, da terra e do que sonha nossa vã filosofia. A poesia trabalhada nisso por Laurence Olivier é fenomenal. Ver a peça profissionalmente encenada, como a experiência de uma estética mais contemporânea da montagem com Thiago Lacerda, pode ser de uma degustação do próprio teatro igualmente humana e profunda.
É interessante poder perceber o que a fidelidade na obra de Olivier funciona e o que poderia ser também interessante se apropriado das nossas vivências contemporâneas. Alguns exemplos disso é a morte de Ofélia que funciona de forma icônica no filme e que um palco italiano realista não conseguiria imitar com a mesma intensidade da água e menos ainda das sensações de fluidez. Há ainda a impressão do espectro do rei que se torna ultrapassada no filme e que pode ser feita de mil maneiras mais interessantes e alusivas. Portanto, culmino numa ideia de que o contato com Shakespeare se dá pela qualidade que o interlocutor, aquele que disponibiliza uma interpretação da peça, transpõe em sua leitura. Seja ela na imaginação, na produção do palco ou do filme, quando se faz em fidelidade à essência enquanto mensagem torna-se sempre uma gratificação.
De fato, é pura poesia visual. Ainda que a narrativa amarre de maneira distante e demasiado inconsistente a emoção trabalhada entre os atores, cada luta parece representar muito bem estas manifestações do imaginário oriental, evocado por meio das artes marciais. O subtexto feminista é de cair o queixo, uma bruxa que deseja vingar o mestre machista ou a espadachim talentosa que foge do casamento, elementos que enriquecem o filme, em que os próprios desníveis enredísticos e as frases de efeito ao desfecho ficam devendo pouco a uma estética cultivada minuciosamente.
Quando paramos para pensar nas conquistas do cinema francês e do cinema americano, dois universos que sempre andaram conectados, vide Hitchcock/Truffaut, Allen/Godard, dentre outros, entendendo realmente a necessidade que o cinema americano, especialmente nos anos 40 e 50, tinha de (re)contar histórias da "bela época" da produção na França, anos ilustres de 20 a 40 para diretores como Jean Renoir, concluiremos que assistir a LA CHIENNE e SCARLET STREET são sessões indispensáveis na vida. Filmes impressionantes, cada um a seu modo, expondo as particularidades das suas épocas. Enquanto a versão de Fritz Lang toma uma postura visceral que devolve tapas à moralidade americana, LA CHIENNE mostra-se na verdade uma peça teatral e irônica, representando ao desfecho a qualidade artística que tantos pintores viveram, a decadência frente a sua obra intacta, exposta em galerias. É definitivamente uma antevisão magnífica dos anos 30 de que a obra supera o artista. Desta vez, com um ator que é o próprio cão de moustache chupando manga, pois afinal de contas vamos combinar que Edward G. Robinson, mesmo com sua cara de sapão, não deixa em nada a construção dos idealismos hollywoodianos, ambos estão impecáveis de morrer.
...E o sangue de Jean Genet escorre com título "diabólico" inexoravelmente ridículo a partir de uma tradução descontextualizada que não só perpetua a lógica burra de gêneros fílmicos, menosprezando a possibilidade do mesmo estar em harmonia do drama ao suspense, superemos. Esta OBRA, diga-se de passagem, seminal de Chabrol nos convoca a uma percepção bárbara de Les Bonnes, peça teatral de Genet. Mulheres diabólicas existem bem dentro do folhetim, mas as personagens de LA CÉRÉMONIE são pessoas de natureza verossímil a nossa, identificam-se por maneiras de pentear o cabelo, fazem leitura ou não, falam muito e falam pouco, ajudam e atrapalham. Diferentemente da ópera, simbolicamente morta com o desfecho, ali Chabrol mata nossos conceitos maniqueístas do talento vocal pré-estabelecido, do papel e personagem pré-concebidos. Quem que não ritualiza tudo de tudo um pouco? Que não poderia fazer de tudo e de tudo um pouco?
Elle a l'air d'être très gentille, votre tatie Danielle. Algum personagem elabora o carinhoso comentário que predomina o imaginário daqueles que a conhecem de relance. É para se contorcer de ódio de uma méchante, para vibrar com o trabalho enredístico comum ao cinema francês da espontaneidade. Já era essa da velha feia e malvada, existe coisas "PARA ALÉM DE" com Danielle. Toda sua sordidez e todo seu carinho se misturam, dando ao filme de Étienne Chatiliez pano para manga, o humor do filme constrói risadas das mais negras, além de contar com uma fotografia de emblemas para o fim dos 80.
ESTUPENDA obra romanesca e chave de representações de um dos mais emblemáticos movimentos da história do cinema francês, o realismo poético. Muitos descobrem o potencial dos roteiristas, as histórias apresentam cruas realidades deixadas por guerra com o polido ar de estúdios, trazendo idealismos e ludicidade ao próprio fazer fílmico. Enquanto muitos cineastas mais tarde retratam as mesmas situações com a crueza documental, também temos espaço em filmes como LE JOUR SE LÈVE a um trabalho com as sutilezas e possibilidade de escolher esta linguagem que tanto destoa das principais buscas modernas. Parece uma pintura neoclássica coberta de um pano de trapos esburacados saído do set de um engenhoso film-noir. Assistimos ao filme através dos buracos, a precariedade está presente, mas o que nos chega à memória e ao coração pelas frestas são beijos idílicos e apaixonados como o do poster, linhas memoráveis de loucura passional contra as moralidades de uma instituição já tão descontruída, a família, pelas horas de trabalho infinitas ou somente por insatisfação.
ENTRE HOMENS, RIFIFI - Da masculinidade ao sexismo - Tony "le Stephanois" está exatamente num rendez-vous e terá os sucessos esporádicos da sua tragédia. Absorto absurdamente, moi! E é neste absurdo, encontrado através de uma obra tão emblemática como a de Jules Dassin, que venho ratificar a obrigatoriedade de assistir a filmes como este, filmes que não dão aula de cinema, filmes *que inventaram cinema* e que em muitos patamares são responsáveis por bons desenvolvimentos contemporâneos de suas propostas visionárias. O cuidado de enquadramento de Dassin é incrível, de mostrar ou esconder sutilmente, tudo é feito de forma certeira. Até na trilha sonora, é o uso seminal do silêncio, a proposta do planejamento perfeito do roubo p/ os protagonistas entra em confluência com a do diretor, busca-se uma estética sóbria e mesmo com seus rompantes de embriaguez, o resultado influente traz a sensação do perigo a outros patamares.
Uma coisa me preocupa neste filme. Há uma inegável atmosfera de moralidade que reprime os personagens protagonistas, um deboche na construção de seus maneirismos. Isso pode ser interessante e o grande triunfo de LA PIANISTE, uma reflexão acerca de que o espectador reprime os personagens e isto se transpõe simbolicamente dentro da narrativa. Contudo, esse moralismo pode ser muito menos freudiamente apurado, como se a própria intenção do diretor e dos roteiristas fosse um desejo já não mais reprimido de mostrar rejeição à personagem. Deixa-me em momentos pessoais encantado a possibilidade de um filme vislumbrar uma personagem com desejo sexuais moralmente reprimidos sem estar - necessariamente - sofrendo de uma psicose ou de uma neurose obsessiva. É um tanto quanto simplista querer achar que desejos, se 'absurdos' do ponto de vista ordinário, sempre relacionam-se a uma insanidade mental. Um ponto fundamental também, a questão do VÍDEO PORNÔ que o filme transpõe a outro patamar. O explícito traz o desconforto, mas quem lhe coloca e dá significância a esse incômodo é o espectador, a discussão geral do filme pode estar acerca dessa questão, o que é ou não pervertido numa relação, o que define isso possivelmente está fora do filme.
Pensando nessa lógica patriarcal em que a mulher japonesa nos anos 60 se insere, o título desta obra-chave de Mikio Naruse sintentiza com deboche experiências e vivências que não apenas retratam uma época, mas que fomentariam ainda agora discussões pertinentes, em que o termo "ascensão" ironicamente não expressa seu significado de natureza. A belíssima personagem de Hideko Takamine ascende as escadas, mas ainda se representa socialmente como uma figura de patamar inferior àquela que administra as relações simbólicas, o patriarca. Naruse brinca com essas esferas sociais retratando indivíduos masculinos dos mais variados tipos, mostrando ainda que mesmo numa posição de poder, eles dependem e se tornam vulneráveis ao próprio prazer carnal. Apresenta seus deslumbres de um japão modernizado, invadido por ocidentalidades e vazios existenciais.
REVISTO. Admitir a revisão de uma obra tão plural quanto esta de Sirk funciona como uma segunda chance aos artifícios da primeira sessão que podem não ter ultrapassado a viseira dos valores contemporâneos. Muita coisa aqui não funciona mais hoje, mas quando se contextualiza a produção, o desejo sirkiano em não trabalhar a obra original, mas os elementos da versão de Stahl, chegamos a um ponto culminante deste trabalho de melodrama: o segundo olhar. Nesta obra de Sirk, todos e inclusive o espectador precisam de um segundo olhar para a história, deixar de ver e enxergar novamente. Perceber o que está atrás do playboy ou além dos ensinamentos de um "Jesus Cristo" nunca mencionado. A sacada religiosa do filme é brilhante, tratada de uma forma que não parece uma religião, mas mais uma seita mirabolante de ficção científica, gozando na ironia desta instantaneidade que há muitas vezes na crença religiosa. Contudo, elementos como este são notados com a atenção que merece possivelmente numa revisão. Deixe os sentimentos da iluminação sirkiana adentrar à imaginação.
Não foi um sucesso de bilheterias, muito menos conseguiu vencer o rótulo de produto em série dos anos 30, época em que os artifícios screwball estavam em alta, ou noutras palavras, foi mais um filme daqueles românticos com risos ou lágrimas por um impedimento amoroso. Todavia, aos olhares contemporâneos, considerando um turbilhão de ocorrências cinematográficas - vide fenômeno DOUGLAS SIRK nos '50s e o ressignificar melodramático - SUBLIME OBSESSÃO de John M. Stahl já foi reconfigurado o bastante para ser aceito como um filme singular, seja pela sofisticação da composição cenográfica ou de um impecável contato entre ator e diretor. Esta versão destoa tanto da versão de Sirk que além de ser inevitável a comparação ao remake, na pior das hipóteses este filme se destaca no aspecto das sutilezas estéticas referentes à época, por outro lado se inferioriza perante ao Sirk quando extirpa do texto-base as vivências do personagem Playboy sem lhes dá notícia por meio dos recursos melodramáticos que a história pede. Muitos filmes da época tiveram dificuldades ao construir romances, não lhes davam a profundidade necessária. Não é de graça que diretores mais tardes se destacaram ao romper essa escola dos '30s com seus vestidos absolutos de seda e uma sobriedade inesquecível.
Impressionante! Esta obra-prima, campy - um rocambole de paixão e vingança, eleva a carreira de François Truffaut a um patamar de produção incomparável, grande influente na feitura cinematográfica posterior. LA MARIÉE ÉTAIT EN NOIR não tem medo de ser cafona com seus planos rápidos de memória e - a partir deles - entendemos melhor uma Jeanne Moreau que deseja possuir novamente a paixão de outrora. Transita entre gêneros, a narrativa se entrega espontaneamente a surtos irônicos de humor negro com suas explorações do exagero, trabalhando os sentimentos vingativos de sua protagonista, da mesma maneira que constrói uma atmosfera melodramática, misteriosa, a partir da trilha sonora inconfundível de Herrmann e seus acordes que bem comunicam obsessões hitchcockianas e o prazer delas. O trabalho extracriativo com a pintura transita em muitos diálogos, potencializando a beleza visual truffautiana, especialmente no que tange a construção da protagonista, uma femme fatale com troca de cabelos e personalidades.
Julien, je t'aurai cherché partout, clama uma Jeanne Moreau moribunda de andanças noturnas por trás do minucioso trabalho de Louis Malle com a técnica (já tão desgastada) da narrativa em off, mas que em ASCENSEUR POUR L'ÉCHAFAUD funciona de forma impecável. A trama exercita o suspense e o fôlego do espectador com um glorioso trabalho sonoro em jazz, constrói analogias de som que são refinadíssimas. Evitando, por exemplo, a representação do barulho do tiro durante o assassinato. A "plaisanterie" com a troca de identidades funciona tão bem que a ironia tratada no desfecho torna a obra um clássico pré-nouvelle vague, com elementos de [melo]drama inspirados pelo cinema Noir.
Filme de estirpe fantástica como uma das "fábulas" de Frank Capra, com uma mania pervertida do cinema norteamericano de testar os nervos de seus personagens. Lembraremos do trabalho de Sirk com a presença das mulheres de todo tipo - dominadoras, ingênuas, interesseiras, amáveis ou sonhadoras, elas dominam o enredo em oposição ao galã Rock Hudson que apenas faz sua estreia ao universo sirkiano. Como a maioria dos filmes da Universal da época, são cores saturadas e músicas alegres que representam a "nossa" felicidade de fachada. No entanto, a sessão tem muito mais de entreter do que incomodar essas estruturas sociais tão bem estabelecidas. James Dean faz a sua micro-aparição como o garoto na lanchonete e Charles Coburn se destaca no lado masculino do elenco, com seu personagem clichê, daqueles que Hollywood precisava repetir, como a empregada negra ou o bandido forasteiro. A classe média se diverte dentro e fora da narrativa de um filme menor do emblemático diretor.
Ótimo mistério sirkiano que apoia-se em muitos elementos certeiros de suspense, Hitchcock iria se esbaldar em temáticas como esta - "Quem matou quem?", porém apoia-se em poucos que podemos considerar típicos do diretor. Diga-se de passagem, o melodrama está envolto pelas questões católicas como a culpa, Sirk comentaria mais tarde a questão, a intenção nunca foi fazer um filme sobre religião, mas sobre uma mulher levada aos seus extremos. Por trás da protagonista, desvela-se das sombras uma cúmplice de seus afetos e desafetos, o principal trabalho de comoção do filme, a personagem de Claudette Colbert. Uma freira que balança singelamente as estruturas socais de um convento em meio a enchente que lhes deixa ilhados com o conflito de um assassinato, disfarce que poderia admitir uma discussão ainda maior, o fanatismo religoso.
Sirk parece [efetivamente] se divertir com tanta citação bíblica.
Essencial enquanto ponto p/ reflexão de uma produção cinematográfica gay contemporânea. FABULOUS completa um discurso que havia sido apropriado por The Celluloid Closet, sobre um traçado minucioso da representação gay ao longo da história do cinema, porém reitera particularmente a construção de um cinema queer, marginalizado e experimental, ao longo de uma trajetória que outrora deixava-o em cinemas de arte e agora descobre uma forma de incorporar o senso mercadológico.
Pode ser definitivamente o que tem de mais atual sobre as impressões do público gay sobre um cinema que começa a refletir seus sonhos e objetivos, mas sem ignorar as deficiências de produção e a questão que não nos deixa de assombrar: como é o filme gay que queremos assistir daqui para frente? Salve a resposta-chave mais original, "If I'll never see a 17 years old gay white boy coming out [film], it'll be too soon!"
Absurdamente fantástica, fräulein MARIA BRAUN aparece nesta irônica obra de Fassbinder como uma mulher que se move, nesta trajetória alemã de guerra e ressaca de crises econômicas. Cada enquadramento de seu alucinado diretor é meticulosamente pensado, são excepcionais e concisos numa maneira imagética de narrar a história que explode como uma bomba aos olhos do espectador. Essa explosão está marcada indubitavelmente por delicados gestos em referência ao mestre Douglas Sirk que sabia trapacear seus personagens como ninguém, Fassbinder vai fundo e desnuda esses personagens que já estão com o peito aberto. É impossível se conter diante de tanta originalidade.
"The boys in the band" apresenta pela primeira vez a comunidade americana de indivíduos gays efetivamente como indivíduos. Absurdo, ground-breaking, turning-point. É um filme que recebe todos estas qualificações e as ostenta com profundidade, uma linguagem teatral que se transpõe ao cinema diretamente de uma época em que tudo era tabu, antes de Stonewall e as grandes manifestações homossexuais da história. Constrói personagens densos, particulares, repletos de identidade e sonhos que espelham os de seus companheiros em qualquer lugar no mundo à espera de uma sociedade mais compreensiva. Surpreendemos ao ver a direção de William Friedkin, cineasta conhecido por filmes como Operação França e O Exorcista que aqui desvela o seu apego por outros gêneros, trazendo-nos um filme humano e sincero.
GROUNDBREAK! Importante documentário dos anos 80 discute a construção da identidade gay/lésbica até o marco STONEWALL de revolução de valores e protesto por uma sociedade americana mais compreensiva. O acervo de imagens no documentário é bárbaro, servindo de testemunha para o surgimento e, em muitos casos o desaparecimento, de grandes menções gays na literatura, na música e no cinema. A manifestação não apenas artística, mas também social da comunidade GLBT merece respeito.
"Quero minha fera de volta" - Comenta Greta Garbo ao se dar conta no fim do filme de que a transformação em príncipe desfaz ali a construção icônica e incrível de uma fera por excelência pavorosa, porém que instiga o desejo. Imagino que Marilena Chauí também teria as opiniões mais interessantes e subvertidas em cima do filme, um tesouro do cinema francês que se enobrece de frases romanescas ditas na mais empenhada dicção.
CARTA escrita por Katharine Hepburn à Spencer Tracy, depois de sua morte e lida ao fim do documentário com ternura.
"QUERIDO SPENCER, quem iria imaginar que eu estaria lhe escrevendo um carta? Você morreu em 10 de Junho de 1967. Meu deus, Spencer! Já se passaram 18 anos, é muito tempo. Você está feliz, finalmente? É um bom e longo descanso que você está tendo? [...] Você era um dos melhores atores que eu conheci e ouvi outras opiniões, você podia fazer tudo com aquela sua simplicidade. Você era matador, padre, pescador, escritor de esportes, juiz, jornalista, um homem. Que alívio que você podia ser outra pessoa, era seguro, você amou muito, não foi? [...]"
Conspiração Xangai
3.3 79Enfim, mais um filme com referências orientais em diluição, pensando estupidamente que a vida em guerra se resume aos chineses invadidos e aos japoneses invasores. É neste aspecto fortíssimo de como a tendência americana guarda uma montagem de bom gosto, descompensada por textos inferiores, que a experiência de uma "conspiração americana em Shanghai" se torna fundamental ao olhar que procura também a perspectiva das sutilezas asiáticas. Antes de mais nada, desconstruindo os maniqueísmos idiotas de que o cinema poético por si só exclui o cinema americano e, porém, o oposto disso, a revalorização deste cinema a partir deste olhar. Sempre nos foi concedido um cinema de alta qualidade americano, montagens belíssimas, os melhores arsenais de equipamento tecnológico, grandes diretores do western ao suspense e, mais especificamente, pensando na linguagem e estética Noir dos anos 40, das narrações injetadas na veia como narcóticos às sombras de um mundo tão moderno quanto opressor, caso de grande inspiração para este problemático filme do sueco Mikael Håfström. No entanto, o caso da banalização do papel do roteirista tem deixado nós todos, americanos, a mercê de uma produção local descaracterizada e diluída, especialmente no meio comercial. O lado B disto é que a produção B, propriamente dita, promete mudanças.
Mal dos Trópicos
4.0 85Experimental, poético e humano. Descrições comuns ao trabalho sensível do diretor tailandês que se formou na escola de arte de Chicago, informação pertinente de seu olhar cinematográfico onde reverberam sincretismos e inclinações ocidentais por trás de um regionalismo que transborda as iconografias. SUD PRALAD, em seus dois momentos de narrativa, parece exaltar a experiência do anti-cinema, conhecido através de Ozu ou Bresson como uma experiência transcendental em que o indivíduo encontra imagens a partir de um olhar nu. É o ponto final às surpresas e aos choques de narrativa, o cinema aqui aparece como um caminho a se percorrer pela simplicidade da vida quotidiana. A gravação da voz dos atores incomoda inicialmente por estar imersa em som ambiente intenso e desgovernado, porém em seguida admite uma segunda impressão com a proposta de trabalhar os medos e as dúvidas humanas que adentra a uma floresta. Então, a dificuldade de ouvi-los diz algo no sentido de uma desorientação existencial. A mesma questão poderia justificar o ritmo desnivelado. Ainda que as imagens estejam deslumbrantes em fotografia, a segunda parte pouco se debruça na primeira, ou seria uma quebra neste andamento algum dos propósitos estéticos de seu diretor? O misticismo folclórico de Apichatpong parece querer nos identificar ao seu indivíduo que por natureza é desorientado, numa temporalidade igualmente fragmentada.
Um Assunto de Mulheres
4.2 77Do poster à mise en scène de Chabrol, a sofisticação reina ao tratar um tema pungente, o retrato de um estado francês moralista que nos põe inúmeras reflexões políticas sobre a supremacia europeia. Podendo criar um gênero paralelo ao realismo poético dos anos 30, seria esta maneira de poesia política o meio pelo qual o ilustre realizador veste sua personagem em Isabelle Huppert. Uma mulher que se envolve gradativamente com os "negócios femininos" do título, condenada por uma nação moralista como dano ao Estado, maneira primitiva de explorar o bode-expiatório, e da mesma maneira que é como todos nós, persona de ambições, ela queria ser cantora. A humanidade envolta dos personagens, expressa pelas mais calmas e belas imagens, dá o respiro que o espectador precisa. Tanto o ritmo, em seu compasso de diálogos e a motivação do espaço urbano, do privado, favorecem uma elaboração astuta de sua imagem final. Ayez pitié des enfants de ceux que l'on condamne, permanece intacto pela memória.
Hamlet
4.2 79Comentário ilustrado pela pintura do artista brasileiro Pedro Américo
"VISÃO DE HAMLET", 1893. Pinacoteca do estado de SP. (http://goo.gl/byJDE).
ALAS, pobre Yorick. Outrora ríamos juntos e agora isso, acometidos por outra tragédia do destino. Hamlet se consolida para o teatro uma emblemática figura romântica de melancolia incurável, sofrimento latente por não poder deter o sarcasmo de sua tragédia, e de ironia por encontrar na farsa encenada um consolo, bêbado de ilusões além do céu, da terra e do que sonha nossa vã filosofia. A poesia trabalhada nisso por Laurence Olivier é fenomenal. Ver a peça profissionalmente encenada, como a experiência de uma estética mais contemporânea da montagem com Thiago Lacerda, pode ser de uma degustação do próprio teatro igualmente humana e profunda.
É interessante poder perceber o que a fidelidade na obra de Olivier funciona e o que poderia ser também interessante se apropriado das nossas vivências contemporâneas. Alguns exemplos disso é a morte de Ofélia que funciona de forma icônica no filme e que um palco italiano realista não conseguiria imitar com a mesma intensidade da água e menos ainda das sensações de fluidez. Há ainda a impressão do espectro do rei que se torna ultrapassada no filme e que pode ser feita de mil maneiras mais interessantes e alusivas. Portanto, culmino numa ideia de que o contato com Shakespeare se dá pela qualidade que o interlocutor, aquele que disponibiliza uma interpretação da peça, transpõe em sua leitura. Seja ela na imaginação, na produção do palco ou do filme, quando se faz em fidelidade à essência enquanto mensagem torna-se sempre uma gratificação.
Em tributo à http://goo.gl/ArFUd !
O Tigre e o Dragão
3.6 455 Assista AgoraDe fato, é pura poesia visual. Ainda que a narrativa amarre de maneira distante e demasiado inconsistente a emoção trabalhada entre os atores, cada luta parece representar muito bem estas manifestações do imaginário oriental, evocado por meio das artes marciais. O subtexto feminista é de cair o queixo, uma bruxa que deseja vingar o mestre machista ou a espadachim talentosa que foge do casamento, elementos que enriquecem o filme, em que os próprios desníveis enredísticos e as frases de efeito ao desfecho ficam devendo pouco a uma estética cultivada minuciosamente.
A Cadela
3.9 29Quando paramos para pensar nas conquistas do cinema francês e do cinema americano, dois universos que sempre andaram conectados, vide Hitchcock/Truffaut, Allen/Godard, dentre outros, entendendo realmente a necessidade que o cinema americano, especialmente nos anos 40 e 50, tinha de (re)contar histórias da "bela época" da produção na França, anos ilustres de 20 a 40 para diretores como Jean Renoir, concluiremos que assistir a LA CHIENNE e SCARLET STREET são sessões indispensáveis na vida. Filmes impressionantes, cada um a seu modo, expondo as particularidades das suas épocas. Enquanto a versão de Fritz Lang toma uma postura visceral que devolve tapas à moralidade americana, LA CHIENNE mostra-se na verdade uma peça teatral e irônica, representando ao desfecho a qualidade artística que tantos pintores viveram, a decadência frente a sua obra intacta, exposta em galerias. É definitivamente uma antevisão magnífica dos anos 30 de que a obra supera o artista. Desta vez, com um ator que é o próprio cão de moustache chupando manga, pois afinal de contas vamos combinar que Edward G. Robinson, mesmo com sua cara de sapão, não deixa em nada a construção dos idealismos hollywoodianos, ambos estão impecáveis de morrer.
Mulheres Diabólicas
4.0 86 Assista AgoraChama-se A CERIMÔNIA.
...E o sangue de Jean Genet escorre com título "diabólico" inexoravelmente ridículo a partir de uma tradução descontextualizada que não só perpetua a lógica burra de gêneros fílmicos, menosprezando a possibilidade do mesmo estar em harmonia do drama ao suspense, superemos. Esta OBRA, diga-se de passagem, seminal de Chabrol nos convoca a uma percepção bárbara de Les Bonnes, peça teatral de Genet. Mulheres diabólicas existem bem dentro do folhetim, mas as personagens de LA CÉRÉMONIE são pessoas de natureza verossímil a nossa, identificam-se por maneiras de pentear o cabelo, fazem leitura ou não, falam muito e falam pouco, ajudam e atrapalham. Diferentemente da ópera, simbolicamente morta com o desfecho, ali Chabrol mata nossos conceitos maniqueístas do talento vocal pré-estabelecido, do papel e personagem pré-concebidos. Quem que não ritualiza tudo de tudo um pouco? Que não poderia fazer de tudo e de tudo um pouco?
Perversa e Perigosa - Tia Danielle
3.9 45Elle a l'air d'être très gentille, votre tatie Danielle. Algum personagem elabora o carinhoso comentário que predomina o imaginário daqueles que a conhecem de relance. É para se contorcer de ódio de uma méchante, para vibrar com o trabalho enredístico comum ao cinema francês da espontaneidade. Já era essa da velha feia e malvada, existe coisas "PARA ALÉM DE" com Danielle. Toda sua sordidez e todo seu carinho se misturam, dando ao filme de Étienne Chatiliez pano para manga, o humor do filme constrói risadas das mais negras, além de contar com uma fotografia de emblemas para o fim dos 80.
Trágico Amanhecer
3.8 16ESTUPENDA obra romanesca e chave de representações de um dos mais emblemáticos movimentos da história do cinema francês, o realismo poético. Muitos descobrem o potencial dos roteiristas, as histórias apresentam cruas realidades deixadas por guerra com o polido ar de estúdios, trazendo idealismos e ludicidade ao próprio fazer fílmico. Enquanto muitos cineastas mais tarde retratam as mesmas situações com a crueza documental, também temos espaço em filmes como LE JOUR SE LÈVE a um trabalho com as sutilezas e possibilidade de escolher esta linguagem que tanto destoa das principais buscas modernas. Parece uma pintura neoclássica coberta de um pano de trapos esburacados saído do set de um engenhoso film-noir. Assistimos ao filme através dos buracos, a precariedade está presente, mas o que nos chega à memória e ao coração pelas frestas são beijos idílicos e apaixonados como o do poster, linhas memoráveis de loucura passional contra as moralidades de uma instituição já tão descontruída, a família, pelas horas de trabalho infinitas ou somente por insatisfação.
Rififi
4.3 61ENTRE HOMENS, RIFIFI - Da masculinidade ao sexismo - Tony "le Stephanois" está exatamente num rendez-vous e terá os sucessos esporádicos da sua tragédia. Absorto absurdamente, moi! E é neste absurdo, encontrado através de uma obra tão emblemática como a de Jules Dassin, que venho ratificar a obrigatoriedade de assistir a filmes como este, filmes que não dão aula de cinema, filmes *que inventaram cinema* e que em muitos patamares são responsáveis por bons desenvolvimentos contemporâneos de suas propostas visionárias. O cuidado de enquadramento de Dassin é incrível, de mostrar ou esconder sutilmente, tudo é feito de forma certeira. Até na trilha sonora, é o uso seminal do silêncio, a proposta do planejamento perfeito do roubo p/ os protagonistas entra em confluência com a do diretor, busca-se uma estética sóbria e mesmo com seus rompantes de embriaguez, o resultado influente traz a sensação do perigo a outros patamares.
A Professora de Piano
4.0 685 Assista AgoraUma coisa me preocupa neste filme. Há uma inegável atmosfera de moralidade que reprime os personagens protagonistas, um deboche na construção de seus maneirismos. Isso pode ser interessante e o grande triunfo de LA PIANISTE, uma reflexão acerca de que o espectador reprime os personagens e isto se transpõe simbolicamente dentro da narrativa. Contudo, esse moralismo pode ser muito menos freudiamente apurado, como se a própria intenção do diretor e dos roteiristas fosse um desejo já não mais reprimido de mostrar rejeição à personagem. Deixa-me em momentos pessoais encantado a possibilidade de um filme vislumbrar uma personagem com desejo sexuais moralmente reprimidos sem estar - necessariamente - sofrendo de uma psicose ou de uma neurose obsessiva. É um tanto quanto simplista querer achar que desejos, se 'absurdos' do ponto de vista ordinário, sempre relacionam-se a uma insanidade mental. Um ponto fundamental também, a questão do VÍDEO PORNÔ que o filme transpõe a outro patamar. O explícito traz o desconforto, mas quem lhe coloca e dá significância a esse incômodo é o espectador, a discussão geral do filme pode estar acerca dessa questão, o que é ou não pervertido numa relação, o que define isso possivelmente está fora do filme.
Quando a Mulher Sobe a Escada
4.2 18Pensando nessa lógica patriarcal em que a mulher japonesa nos anos 60 se insere, o título desta obra-chave de Mikio Naruse sintentiza com deboche experiências e vivências que não apenas retratam uma época, mas que fomentariam ainda agora discussões pertinentes, em que o termo "ascensão" ironicamente não expressa seu significado de natureza. A belíssima personagem de Hideko Takamine ascende as escadas, mas ainda se representa socialmente como uma figura de patamar inferior àquela que administra as relações simbólicas, o patriarca. Naruse brinca com essas esferas sociais retratando indivíduos masculinos dos mais variados tipos, mostrando ainda que mesmo numa posição de poder, eles dependem e se tornam vulneráveis ao próprio prazer carnal. Apresenta seus deslumbres de um japão modernizado, invadido por ocidentalidades e vazios existenciais.
Sublime Obsessão
3.9 40 Assista AgoraREVISTO. Admitir a revisão de uma obra tão plural quanto esta de Sirk funciona como uma segunda chance aos artifícios da primeira sessão que podem não ter ultrapassado a viseira dos valores contemporâneos. Muita coisa aqui não funciona mais hoje, mas quando se contextualiza a produção, o desejo sirkiano em não trabalhar a obra original, mas os elementos da versão de Stahl, chegamos a um ponto culminante deste trabalho de melodrama: o segundo olhar. Nesta obra de Sirk, todos e inclusive o espectador precisam de um segundo olhar para a história, deixar de ver e enxergar novamente. Perceber o que está atrás do playboy ou além dos ensinamentos de um "Jesus Cristo" nunca mencionado. A sacada religiosa do filme é brilhante, tratada de uma forma que não parece uma religião, mas mais uma seita mirabolante de ficção científica, gozando na ironia desta instantaneidade que há muitas vezes na crença religiosa. Contudo, elementos como este são notados com a atenção que merece possivelmente numa revisão. Deixe os sentimentos da iluminação sirkiana adentrar à imaginação.
Sublime Obsessão
3.7 7Não foi um sucesso de bilheterias, muito menos conseguiu vencer o rótulo de produto em série dos anos 30, época em que os artifícios screwball estavam em alta, ou noutras palavras, foi mais um filme daqueles românticos com risos ou lágrimas por um impedimento amoroso. Todavia, aos olhares contemporâneos, considerando um turbilhão de ocorrências cinematográficas - vide fenômeno DOUGLAS SIRK nos '50s e o ressignificar melodramático - SUBLIME OBSESSÃO de John M. Stahl já foi reconfigurado o bastante para ser aceito como um filme singular, seja pela sofisticação da composição cenográfica ou de um impecável contato entre ator e diretor. Esta versão destoa tanto da versão de Sirk que além de ser inevitável a comparação ao remake, na pior das hipóteses este filme se destaca no aspecto das sutilezas estéticas referentes à época, por outro lado se inferioriza perante ao Sirk quando extirpa do texto-base as vivências do personagem Playboy sem lhes dá notícia por meio dos recursos melodramáticos que a história pede. Muitos filmes da época tiveram dificuldades ao construir romances, não lhes davam a profundidade necessária. Não é de graça que diretores mais tardes se destacaram ao romper essa escola dos '30s com seus vestidos absolutos de seda e uma sobriedade inesquecível.
A Noiva Estava de Preto
3.9 99Impressionante! Esta obra-prima, campy - um rocambole de paixão e vingança, eleva a carreira de François Truffaut a um patamar de produção incomparável, grande influente na feitura cinematográfica posterior. LA MARIÉE ÉTAIT EN NOIR não tem medo de ser cafona com seus planos rápidos de memória e - a partir deles - entendemos melhor uma Jeanne Moreau que deseja possuir novamente a paixão de outrora. Transita entre gêneros, a narrativa se entrega espontaneamente a surtos irônicos de humor negro com suas explorações do exagero, trabalhando os sentimentos vingativos de sua protagonista, da mesma maneira que constrói uma atmosfera melodramática, misteriosa, a partir da trilha sonora inconfundível de Herrmann e seus acordes que bem comunicam obsessões hitchcockianas e o prazer delas. O trabalho extracriativo com a pintura transita em muitos diálogos, potencializando a beleza visual truffautiana, especialmente no que tange a construção da protagonista, uma femme fatale com troca de cabelos e personalidades.
Ascensor Para o Cadafalso
4.1 97 Assista AgoraJulien, je t'aurai cherché partout, clama uma Jeanne Moreau moribunda de andanças noturnas por trás do minucioso trabalho de Louis Malle com a técnica (já tão desgastada) da narrativa em off, mas que em ASCENSEUR POUR L'ÉCHAFAUD funciona de forma impecável. A trama exercita o suspense e o fôlego do espectador com um glorioso trabalho sonoro em jazz, constrói analogias de som que são refinadíssimas. Evitando, por exemplo, a representação do barulho do tiro durante o assassinato. A "plaisanterie" com a troca de identidades funciona tão bem que a ironia tratada no desfecho torna a obra um clássico pré-nouvelle vague, com elementos de [melo]drama inspirados pelo cinema Noir.
Sinfonia Prateada
3.9 8Filme de estirpe fantástica como uma das "fábulas" de Frank Capra, com uma mania pervertida do cinema norteamericano de testar os nervos de seus personagens. Lembraremos do trabalho de Sirk com a presença das mulheres de todo tipo - dominadoras, ingênuas, interesseiras, amáveis ou sonhadoras, elas dominam o enredo em oposição ao galã Rock Hudson que apenas faz sua estreia ao universo sirkiano. Como a maioria dos filmes da Universal da época, são cores saturadas e músicas alegres que representam a "nossa" felicidade de fachada. No entanto, a sessão tem muito mais de entreter do que incomodar essas estruturas sociais tão bem estabelecidas. James Dean faz a sua micro-aparição como o garoto na lanchonete e Charles Coburn se destaca no lado masculino do elenco, com seu personagem clichê, daqueles que Hollywood precisava repetir, como a empregada negra ou o bandido forasteiro. A classe média se diverte dentro e fora da narrativa de um filme menor do emblemático diretor.
Agonia de Uma Vida
3.7 8Ótimo mistério sirkiano que apoia-se em muitos elementos certeiros de suspense, Hitchcock iria se esbaldar em temáticas como esta - "Quem matou quem?", porém apoia-se em poucos que podemos considerar típicos do diretor. Diga-se de passagem, o melodrama está envolto pelas questões católicas como a culpa, Sirk comentaria mais tarde a questão, a intenção nunca foi fazer um filme sobre religião, mas sobre uma mulher levada aos seus extremos. Por trás da protagonista, desvela-se das sombras uma cúmplice de seus afetos e desafetos, o principal trabalho de comoção do filme, a personagem de Claudette Colbert. Uma freira que balança singelamente as estruturas socais de um convento em meio a enchente que lhes deixa ilhados com o conflito de um assassinato, disfarce que poderia admitir uma discussão ainda maior, o fanatismo religoso.
Sirk parece [efetivamente] se divertir com tanta citação bíblica.
A Fabulosa História do Cinema Queer
3.6 12Essencial enquanto ponto p/ reflexão de uma produção cinematográfica gay contemporânea. FABULOUS completa um discurso que havia sido apropriado por The Celluloid Closet, sobre um traçado minucioso da representação gay ao longo da história do cinema, porém reitera particularmente a construção de um cinema queer, marginalizado e experimental, ao longo de uma trajetória que outrora deixava-o em cinemas de arte e agora descobre uma forma de incorporar o senso mercadológico.
Pode ser definitivamente o que tem de mais atual sobre as impressões do público gay sobre um cinema que começa a refletir seus sonhos e objetivos, mas sem ignorar as deficiências de produção e a questão que não nos deixa de assombrar: como é o filme gay que queremos assistir daqui para frente? Salve a resposta-chave mais original, "If I'll never see a 17 years old gay white boy coming out [film], it'll be too soon!"
O Casamento de Maria Braun
4.1 58Absurdamente fantástica, fräulein MARIA BRAUN aparece nesta irônica obra de Fassbinder como uma mulher que se move, nesta trajetória alemã de guerra e ressaca de crises econômicas. Cada enquadramento de seu alucinado diretor é meticulosamente pensado, são excepcionais e concisos numa maneira imagética de narrar a história que explode como uma bomba aos olhos do espectador. Essa explosão está marcada indubitavelmente por delicados gestos em referência ao mestre Douglas Sirk que sabia trapacear seus personagens como ninguém, Fassbinder vai fundo e desnuda esses personagens que já estão com o peito aberto. É impossível se conter diante de tanta originalidade.
Os Rapazes da Banda
4.1 71"The boys in the band" apresenta pela primeira vez a comunidade americana de indivíduos gays efetivamente como indivíduos. Absurdo, ground-breaking, turning-point. É um filme que recebe todos estas qualificações e as ostenta com profundidade, uma linguagem teatral que se transpõe ao cinema diretamente de uma época em que tudo era tabu, antes de Stonewall e as grandes manifestações homossexuais da história. Constrói personagens densos, particulares, repletos de identidade e sonhos que espelham os de seus companheiros em qualquer lugar no mundo à espera de uma sociedade mais compreensiva. Surpreendemos ao ver a direção de William Friedkin, cineasta conhecido por filmes como Operação França e O Exorcista que aqui desvela o seu apego por outros gêneros, trazendo-nos um filme humano e sincero.
Merece ser visto em grupo!
Antes de Stonewall
4.3 8GROUNDBREAK! Importante documentário dos anos 80 discute a construção da identidade gay/lésbica até o marco STONEWALL de revolução de valores e protesto por uma sociedade americana mais compreensiva. O acervo de imagens no documentário é bárbaro, servindo de testemunha para o surgimento e, em muitos casos o desaparecimento, de grandes menções gays na literatura, na música e no cinema. A manifestação não apenas artística, mas também social da comunidade GLBT merece respeito.
A Bela e a Fera
4.0 80"Quero minha fera de volta" - Comenta Greta Garbo ao se dar conta no fim do filme de que a transformação em príncipe desfaz ali a construção icônica e incrível de uma fera por excelência pavorosa, porém que instiga o desejo. Imagino que Marilena Chauí também teria as opiniões mais interessantes e subvertidas em cima do filme, um tesouro do cinema francês que se enobrece de frases romanescas ditas na mais empenhada dicção.
The Spencer Tracy Legacy
4.0 3CARTA escrita por Katharine Hepburn à Spencer Tracy, depois de sua morte e lida ao fim do documentário com ternura.
"QUERIDO SPENCER, quem iria imaginar que eu estaria lhe escrevendo um carta? Você morreu em 10 de Junho de 1967. Meu deus, Spencer! Já se passaram 18 anos, é muito tempo. Você está feliz, finalmente? É um bom e longo descanso que você está tendo? [...] Você era um dos melhores atores que eu conheci e ouvi outras opiniões, você podia fazer tudo com aquela sua simplicidade. Você era matador, padre, pescador, escritor de esportes, juiz, jornalista, um homem. Que alívio que você podia ser outra pessoa, era seguro, você amou muito, não foi? [...]"