Impossível não ouvir o grito selvagem que Barbara Loden dá neste filme, um manifesto cinematográfico violento com uma construção narrativa corajosa e insolente com os padrões norte-americanos clássicos. O filme sem dúvida pertence ao inaudito cânone ianque de road-movies radicais que surgiram no período: The Honeymoon Killers, Badlands, Two-lane blacktop e Wanda fazem parte de uma sequência assombrosa de filmes amargurados e contestadores. A construção psicológica é a mesma dos filmes supracitados: naturalização máxima da dramatização (daí o desagrado que o filme causa na parte de interpretação, pois os padrões narrativos nos acostumaram à verborragia e ao lance melodramático de caras e bocas tortas e exasperadas) e objetivação extrema da violência. A violência não se configura aqui como um produto de consumo (Bonnie and Clyde), mas antes como uma consequência natural e direta da apatia de Wanda e do seu cansaço social perante o papel social de "good wife", papel celebrado pelo cinema de estúdio e que Loden põe em xeque na sua história perturbadora.
Em 13 de dezembro de 1968 é baixado o AI-5, inaugurando a época mais sombria da política brasileira e o cume da ditadura militar com suas torturas e suspensões dos direitos individuais. O filme de Neville é um fruto desse período e sua temática é explosiva. Começa jocoso como os filmes marginais, mas depois vai ficando cada vez mais sombrio, delirante, avassalador. A sequência do ave-maria é dilacerante. Experimentando e dilatando as fronteiras do cinema, Neville constrói um filme consciente, combativo, cáustico e poético. Impossível a indiferença, ódio ou amor, ou: ódio no amor, ódio para a guerra.
Desde A Grande Feira que eu me desmancho todo diante do trabalho de Roberto Pires e com Tocaia no Asfalto não foi diferente: o realismo exasperante, a artesania de trabalhar com gêneros decadentes (o noir) e transformá-lo em peça de arte com existencialismo de jagunço, a direção sóbria e um trabalho de câmera criativo ao extremo só asseguram o lugar deste filme como uma das maiores joias do ciclo baiano. Todo o velho sistema político brasileiro que seguia desde a República Velha no seu ciclo vicioso é aqui destrinchado até o esqueleto. Um império de teatro e traição retratado com o realismo sufocante, brilhantemente conduzido até o final perturbador.
O canto da saudade é exatamente isso: uma elegia que Humberto Mauro oferece ao passado de uma pequena cidade. Porém, ao descrever o funcionamento da rotina e da política da cidade, Humberto descreve minuciosamente uma figura emblemática do sistema político brasileiro: o coronel. O paternalismo autoritário de uma única figura que se transforma no centro de força da vida de muitas outras. O mecanismo da compra de votos e todo o desenlace seguinte apenas atestam como era a política no "Brasil profundo": oliquarquias rurais exercendo o poder nas regras do jogo anti-democrático. Se Humberto Mauro pretendeu apenas contar uma história inocente e afetuosa seu corte escapou do controle da mão e se revelou mais profundo.
Se Ozu e Naruse foram responsáveis por dissecar os "bons burgueses" no cinema japonês, Imamura é o outro lado da moeda: o lado que faltava. Introdução à Antropologia é uma verdadeira enciclopédia da sociedade japonesa que surgiu no pós-guerra: a sociedade daqueles que ficaram à margem da normatização autorizada. Os "bons burgueses" são substituídos por elementos transgressivos, homens e mulheres com constantes problemas psicossexuais e pecuniários. "Tudo é dinheiro!" e "o homem é fome e desejo sexual" parecem ser os dois centros catalisadores dessa obra magnífica e perturbadora, que utiliza os elementos cômicos apenas para intensificar os trágicos. A tese de Imamura é clara: a pornografia é o fruto de uma sociedade que pratica a repressão sexual ao paroxismo. A "esquizofrênia" dos personagens parece ser causada pelo constante abismo que existe entre os deveres sociais e os imperativos do corpo: dois campos antitéticos que se chocam e causam a crise. A técnica de filme-dentro-do-filme só acentua o mal-estar que o diretor quer nos causar: minar nossa insconciência diante do objeto fílmico. Anti-clássico na medida em que nega o cinema enquanto ilusão e o posiciona como arma crítica para entender a sociedade e acusar os seus telespectadores.
Encho a boca para dizer que "A Grande Feira" é um dos melhores filmes brasileiros da década de 60. Abriu a maior década do cinema nacional com dignidade e profecia: os anos passariam e coisas maravilhosas seriam feitas, mas este filme permanece único em seu dinamismo para amalgamar mundos diferentes e produzir o milagre brasileiro dentro do milagre fílmico. A narrativa é portadora de um frescor incrível, as primorosas escolhas dos enquadramentos também. Joia verdadeira que, assim como as joias roubadas por Chico Diabo, teve que ser roubada do cinema comercial para transcender e se tornar arte.
Uma palavra define para mim Contrastes Humanos: perplexidade. O primeiro susto é com o conteúdo do filme: será que Hollywood vai descobrir o neorrealismo antes dos Italianos? Mas o filme segue adiante tergiversando o que vai descobrindo pelo caminho. Não, Hollywood não se arriscará a fazer o comentário social antes dos europeus, pois o filme termina como uma grande defesa do papel do cinema de entretenimento e a mensagem é clara, cruel e cínica: o cinema deve distrair e manter as pessoas no devido lugar. Nada de reflexão, vamos fazer uma boa comédia e deixar para lá os verdadeiros contrastes humanos. O filme de Preston Sturges é perigosíssimo porque flerta sem disfarçar com o material expurgado pelos cânones hollywoodianos, mas não segue além na sua pretensa periculosidade, ao contrário, faz uma ponte frágil e a lança sobre o abismo para atravessá-lo. Ao fim de tudo resta a apaixonado defesa do cinema enquanto alienador do público. Não Sullivan, você não sofreu o suficiente.
Com uma estrutura eminentemente glauberiana (penso antes de tudo em Terra em transe), recusa incisiva do diálogo tradicional para abraçar o monólogo poético (é um filme de solilóquios, sobretudo), com uma mise en scène de uma coreografia austera e teatral que lembra um pouco os filmes radicais do húngaro Miklós Jancsó, abordando a (des)estrutura política e social do Brasil, este é um dos filmes mais interessantes e fascinantes de Ruy Guerra que já assisti. Não é hermetismo e nem alegoria, é a arte jogando a roupa suja da verdade na nossa cara. Os Deuses e os mortos é o verdadeiro ponto de confluência entre o cinema novo e o marginal, pois adota as inquietações políticas do primeiro e a estrutura narrativa inovadora do segundo para demonstrar que ambas tendências têm raízes no mesmo tronco: a estupefação diante do "monstro histórico" que é o Brasil.
A construção do triângulo amoroso e suas motivações psicológicas são artificiais, fazendo com que o filme não se difira muito de melodramas complicados com pretensões ao arthouse. Porém, fica na lembrança as escolhas de ângulos belíssimos e a utilização primorosa da paisagem, no final você sente a neve nos pés.. mas quanto ao triângulo, prefiro Jules et Jim, muito melhor costurado e significante como obra de arte.
Sem essa, Aranha! é uma verdadeira gramática básica de como fazer cinema no Brasil. Juntamente com A Margem de Ozualdo Candeias, é uma bíblia cinematográfica terceiro-mundista: "O sistema solar é um lixo!". Enquanto filmavam o glamour inexistente do Brasil nos filmes comerciais e enquanto Hollywood inventava um Rio de Janeiro inexistente em alguns do seus filmes, Sganzerla escancarou o caos do país e o transformou em estrutura fílmica. É o dècor de um Brasil sem maquiagem, país de morros e favelas, de lixo e caos político, de gente passando fome ("tô com fome!!!!) e de gente desaparecendo graças ao esquadrão da morte. Feito na época que ninguém poderia ter feito algo assim, Sem essa, Aranha! se converte não em um filme mas no ato heroico da denúncia. Os filmes que surgiram do chamado 'cinema marginal' são muito peculiares e fazem eco aos movimentos que surgiram na Europa e na Ásia de renovação do cinema (nouvelle vague francesa, nová vlna tcheca, nuberu bagu japonesa etc.) criando um cinema típico. Se esses filmes de renovação e revitalização foram chamados de milagre, o cinema marginal (um ramo do cinema novo e também a sua antítese) é o milagre brasileiro no setor fílmica e Sem essa, Aranha! é uma das joias dessa coroa.
Nas epopéias homéricas testemunhamos o percurso de um homem que sai de sua casa e depois volta - a linearidade do caminho de um herói foi aí fixado como um modelo de narrativa. Joe interpreta o herói do submundo: acompanhamos o momento que ele acorda e parte para as suas aventuras e o momento em que ele volta, assim vemos que a primeira imagem do filme é também a última, mas invertida. O filme underground de Morrissey se inscreve assim dentro de uma tradição: a tradição do percurso. Porém se trata de uma versão mais desencantada do percurso, um percurso não de rupturas mas de continuidades, cíclico. Travestis, putas, prostitutos, homossexuais - todo o elenco de personagens que Hollywood se recusou a retratar nos seus filmes foi absorvido por Morrissey: como em Trash, verificamos mais uma vez que estes filmes trabalham com o material expurgado da representação fímica... o lado negado vem à tona para mostrar que existe e a moral e os bons costumes podem ir para o inferno. Melancólico, discursivo, naturalista, inteligentemente editado.. Flesh é o triunfo da arte marginal, do self-made, do artesanato fílmico que se recuso ao industrialismo de Hollywood.
Com a premissa de que "a vida é a soma das incoerências", Ozu filmou a queda do patriarcalismo japonês. As mulheres subitamente ascendem ao poder de decisões, assistimos assim, do simples desejo de ligar o rádio ao máximo desejo de escolher a própria felicidade, a radiografia do fim de um período e o começo de outro: estamos diante de uma rachadura das normalidades tradicionais, rachadura que irá danificar tudo para a transformação dos costumes. Os planos fixos de Ozu e a arquitetura austera de seus filmes estão presentes em cada momento. Estou cada vez mais perplexo diante deste diretor que retirou o âmago da vida japonesa e a transformou em arte.
Hollywood filmou a sua própria decadência ao analisar neste drama minimalista e eficaz as devastações psicológicas causadas pela indústria do entretenimento. Ao humanizar o "monstro", Robert Aldrich deu um passo além e destruiu o maniqueísmo já previsível em obras de estúdios norte-americanos. A analogia com "Crepúsculo dos Deuses" não se restringe apenas ao desfecho emblemático, mas vai além: as duas obras formam um díptico assustador sobre personalidades estilhaçadas pelo show business. O glamour mágico de Hollywood vira abóbora e o que fica são análises sombrias. Baby Jane é mais vítima do que vilã, mais humana, logo, mais crível.
A estrutura de almanaque deste filme é uma das narrativas mais instigantes que eu já tive acesso. Sua elaborada e soberba fotografia conjugada com uma capacidade de extrair o limite da metáfora de cada imagem, distendendo a linguagem cinematográfica ao paroxismo são outros pontos imensamente importantes desta joia sem precedentes da filmografia poética do Japão. No final, a nossa sensibilidade não acredita na força do impacto que acaba de ser desferido contra ela. Construído com o rigor e a métrica de um poema, elaborado obsessivamente como uma pintura, poderoso como uma música que explode nossos neurônios de prazer este belíssimo filme não sai da memória. O leitmotiv da larva percorrendo todos os recantos da sociedade japonesa, revelando os seus traumas, mágoas, fragilidades e impotências é de uma pesquisa narrativa sem igual.
Khouri é um caso sui generis dentro do cinema brasileiro da década de 60. Ele não é cinema-novista, não se enveredou pelas trilhas do cinema marginal e também não compactuou com o cinema comercial e superficial da época. O seu caminho foi o caminho da sensibilidade individual, do artista que procura o seu estilo, sua temática. Devo confessar que suas incursões com a câmera são obras de um potencial artístico imenso. Corpo Ardente é um belíssimo exemplo de cinema autoral, artístico e crítico. Khouri filma a burguesia e sua falência, sondando o irracional para descobrir o estético. A metáfora do cavalo selvagem e toda a sua elaboração seguinte é fantástica: a liberdade e a naturalidade é tudo aquilo que perdemos para abraçar uma vida cênica, teatral, que esconde a vivacidade da vida em troca da opacidade das aparências. Khouri precisou mergulhar no cinema burguês para extrair a ética anti-burguesa de seus estilosos filmes.
O Cangaceiro se oferece em um primeiro momento como uma tentativa de síntese da cultura nordestina e brasileira:a trilha sonora, as danças, a descrição da vida e do acampamento do cangaço, a inserção didática da paisagem e do índio, etc. Tudo se oferece como uma obra de amálgama de elementos nacionais antitéticos. É por isso que os comentários aqui são tão apaixonados: o filme é carregado de páthos para o público brasileiro. De outro lado é, também, um filme para "inglês ver". Não à toa teve uma recepção e sucesso grandioso lá fora. No entanto, não é reunindo os elementos de uma escola de montagem norte-americana (a estrutura do filme é sem dúvidas devedora de John Ford) que se criará um cinema nacional: por paradoxal que seja, O Cangaceiro é um filme de conteúdo nacional mas de forma norte-americana, incorporando os elementos estranhos de uma cultura radicalmente diferente da terra de Ford e neutralizando-as. O cinema brasileiro (para ser chamado de cinema brasileiro) ainda teria que esperar Glauber Rocha para conhecer aquilo que poderíamos definir como "um cinema nacional", pois O Cangaceiro é um filme estrangeiro feito no Brasil. A espetacularização do cangaço, a violência estandardizada do western e a pretensa dramaticidade do roteiro (a cena final é demolida de toda sua grandiosidade com a fala final que demonstra cansaço melodramático e falsidade) não foram capazes de criar um cinema potente, mas apenas uma transmigração de modelos que gozavam de aprovação pública (o modelo norte-americano) com roupagem nordestina. Um filme que agrada gringos (pois tem uma estrutura já internalizada por eles) e brasileiros (pois utiliza de elementos sentimentais caro aos habitantes do Brasil), mas não se oferece como um passo na construção de um cinema nacional, apenas um entretenimento óbvio.
A primeira tentação diante de Limite, essa obra estupenda do cinema nacional, é tentar interpretá-lo: seja com "forçações de barra freudianas" ou com qualquer outro aparato crítico, Limite dispensa essas operação intelectuais medianas de interpretação. É uma obra para além do psicológico, do intelectual, enfim, aquilo que se se define como uma obra de arte. A segunda tentação diante deste filme é a tentativa de enquadrá-lo no período: ao que exatamente Limite pertence? Não é necessário enquadrá-lo, pois Limite pertence ao esforço individual de superação e criação, ao esforço da estética para superar as limitações individuais. O público aqui geralmente reclama que o filme é "tedioso", "chato", 'no limite da paciência', entre outras tiradinhas sarcásticas para desclassificá-lo taxando-a de obra de extravagância e barroquismo inútil. Mais uma vez Limite vem perturbar nossas noções e sensibilidade. Limite é "chato", "tedioso", porque não corresponde ao nosso padrão alimentado por narrativas pobres e "cheias de texto" ao qual estamos acostumados: não somos nós quem questionamos o filme, mas é Limite que nos questiona lá da década de 30. É ele quem nos julga, não o contrário. Para absorver esse poderoso filme, de valor histórico e artístico inquestionável, é necessário nos livrar de nossos preconceitos (filisteus ou não) do que significa a narrativa cinematográfica. Limite é um marco da arte moderna e vai continuar incomodando as mentes mais conservadores. A sensualidade, o barroco brilhante, os ângulos inusitados e toda a natureza humana e animal que esse filme nos obriga a contemplar é de um êxito estético insuperável. Vida longa a este filme!
A primeira percepção falsa que temos é que o filme foi construído sob a égide da simplicidade, o que não é verdade. O filme de Ozu não é simples, é complexo. Exige leituras por trás de cada sorriso, de cada gesto, de cada olhar. É um teatro de sombras. O modo de filmar de Ozu também não é simples, pelo contrário, ele praticamente derruba o cinema clássico para construir um novo cinema, pautado em um estilo próprio de filmar. A segunda percepção falsa é que o filme é um melodrama, mesmo que contido. O que também não é verdade. O filme é, ao contrário, a superação do melodrama, mesmo sua destruição. É uma estética anti-melodramática, recusando os maneirismos e facilidades do cinema vulgar e imediatista. Já disseram que Ozu é o anti-cinema, mas essa é também uma percepção falsa: não existe anti-cinema, assim como não existe anti-arte. O que obras singulares fazem é modificar nossos padrões do que seja a arte e o filme de Ozu é um desses destruidores de padrões. Se Godard demoliu o discurso cinematográfico e inaugurou um novo jeito de fazer cinema, Ozu também foi igualmente radical, mas o seu radicalismo às vezes é imperceptível por uma falsa percepção de sutileza. Ozu não é sútil, pelo contrário, o seu cinema é de uma austeridade enorme. Austeridade estilística que nos faz mergulhar em uma das experiências mais arrebatadoras e radicais do cinema. Por último: os brasileiros (e creio que os ocidentais de uma forma geral, mas principalmente a sensibilidade brasileira) têm horror instantâneo a impessoalidade das relações dos japoneses. Buarque de Holanda já dizia em raízes do Brasil que uma das nossas características é a pessoalidade radical, mesmo em assuntos (como os caminhos da política e questões administrativas e burocráticas) em que deveria existir a impessoalidade para evitar o engano entre "propriedade privada" e "propriedade pública". Os brasileiros, ao assistir o filme de Ozu. devem deixar de serem bairristas, creio que essa é uma superação do provincianismo de muitos comentários aqui. Impessoalidade e pessoalidade são características moralmente neutras, portanto se um povo é mais impessoal isso não significa necessariamente que ele seja mais frio, muito pelo contrário, como o filme de Ozu demonstra.
obra-prima da irresponsabilidade adolescente, pornografia gore e doses altíssimas de cinismo (o auge é a sequência que intercala mangás violentos com fotos do Polanski e de sua recém-assassinada esposa que foi morta brutalmente enquanto estava grávida) conjugados com um texto capenga e com uma trilha sonora anglófona completamente desperdiçada me fazem avaliar este curto filme como um lixo vestido de new wave style e pretensa crítica política. Quem conhece o cinema japonês sabe que ele foi muito mais longe em temática, ousadia estética e crítica do que esse filme abominável.
Diante da unanimidade de opiniões favoráveis ao filme tenho que confessar minhas reservas: de fato, as cores e o décor da película são imperdíveis em sua beleza, porém, como bem observou um dos comentários aqui, o filme perderia muito do seu valor caso esses itens fossem mais fracos. Porém, o conteúdo me incomodou profundamente: Kurosawa parece fetichizar a pobreza em alguns momentos e condenar os espectadores a uma contemplação naïf dela. A pobreza aqui é usada mais como espetáculo visual (a favela é pitoresca) do que como dispositivo crítico. Toda a atmosfera do filme para condensar esse sentimento de que estamos diante da vida, mas é justamente essa naturalização que incomoda: a pobreza não é natural, tem uma causa terrena específica e Kurosawa não contemplou essas causas. Os pobres vivem isolados como se sua pobreza não fosse uma cadeia de acontecimentos e sim natural. Para além da beleza pictórica estonteante e da iluminação soberba, Dodeskaden parece compactuar com um conservadorismo perigoso que declara: a pobreza é culpa dos pobres, do alcoolismo, das fofocas, dos vilões. Pior que dicotomizar o mundo, Kurosawa apresenta a unilateralidade radical que não provoca reflexões mais profundas.
A grandiosidade deste filme é indiscutível, lembra até aqueles grandes romances do século XIX tão típicos em condensar uma vida inteira em algumas páginas; é isso que esse filme faz: sintetiza uma vida em algumas horas e isso é um mérito. As cenas poderosas (que maneira de filmar, Kazan!) e o texto grandiloquente são outros pontos fortes para autorizar o filme como um dos maiores filmes americanos feitos sobre a América, pois este é também um filme-elogio, um filme que pretende rivalizar com o hino nacional e com o patriotismo. A mensagem ideológica é clara: A América é a salvação. Porém, deixando de lado o feitiço do roteiro e a beleza estonteante das imagens (sem contar a beleza igualmente hipnótica do personagem principal) é bom também verificar outros pontos. O filme é ideologicamente discutível, mas indiscutivelmente belo e poderoso. Parece fazer parte da tradição norte-americana de filmar(Veja Griffith em The Birth of a Nation) esta cisão entre imagem e subtexto. Se por um lado somos levados a considerar o filme uma das grandes conquistas estéticas de um artista como Kazan, não podemos olhar sem reservas a mensagem clara e moralmente ambígua do seu filmea(afinal, o personagem principal é, para além de sua simpatia como persona central do filme, um arrivista) de que não importam muitas coisas e pessoas quando você é carcomido por um sonho. Se por um lado o diretor se abstém de julgamentos morais (O que é uma boa coisa, pois a arte que julga é uma arte imoral e conservadora, portanto não-arte) não se pode esperar o mesmo de seus receptores. A mensagem de Stravos é clara: you can't afford to be human. De qualquer maneira, o filme é salvo por sua estética, uma das mais bonitas dentro da tradição realista do cinema.
Unindo os elementos típicos dos filmes norte-americanos de estúdio, porém revitalizando-os com um toque de vanguarda, mesclando a herança onírica dos filmes de Maya Deren com o classicismo do cinema mudo, Dementia é um experimento interessantíssimo, filho único de uma época atolada de entretenimento barato. Não é de se espantar que o filme tenha causado incompreensão por parte do público e crítica, pois Dementia parece recusar a estrutura do cinema clássico para abraçar as pesquisas em inovações narrativas, além de abordar temas penosos para a forte censura da época. Com uma fotografia expressionista unindo jogos de luzes e ângulos incomuns, Dementia é o filho bastardo de Hollywood, recusado pelo pai por transgredir os modelos autoimpostos e transpirar uma sensualidade imoderada. Filme subjetivo, experimental e mudo em época de verborragia: Dementia é uma delicia!
Ainda estou sem palavras diante da potência devastadora deste épico urbano filipino. Manila, a capital das Filipinas, é o grande cenário e o grande personagem deste poderoso filme que vasculha sem piedade os meandros mais sombrios de um país profundamente injusto e marginalizante. Não há concessões na sequência ininterrupta de denúncias que o diretor faz. O estilo naturalista, herdeiro fiel do neorrealismo ocidental, faz desta película um retrato sem igual da vida sob o jugo da metrópole moderna. Imperdível!
Wanda
3.8 18Impossível não ouvir o grito selvagem que Barbara Loden dá neste filme, um manifesto cinematográfico violento com uma construção narrativa corajosa e insolente com os padrões norte-americanos clássicos. O filme sem dúvida pertence ao inaudito cânone ianque de road-movies radicais que surgiram no período: The Honeymoon Killers, Badlands, Two-lane blacktop e Wanda fazem parte de uma sequência assombrosa de filmes amargurados e contestadores. A construção psicológica é a mesma dos filmes supracitados: naturalização máxima da dramatização (daí o desagrado que o filme causa na parte de interpretação, pois os padrões narrativos nos acostumaram à verborragia e ao lance melodramático de caras e bocas tortas e exasperadas) e objetivação extrema da violência. A violência não se configura aqui como um produto de consumo (Bonnie and Clyde), mas antes como uma consequência natural e direta da apatia de Wanda e do seu cansaço social perante o papel social de "good wife", papel celebrado pelo cinema de estúdio e que Loden põe em xeque na sua história perturbadora.
Jardim de Guerra
4.0 16Em 13 de dezembro de 1968 é baixado o AI-5, inaugurando a época mais sombria da política brasileira e o cume da ditadura militar com suas torturas e suspensões dos direitos individuais. O filme de Neville é um fruto desse período e sua temática é explosiva. Começa jocoso como os filmes marginais, mas depois vai ficando cada vez mais sombrio, delirante, avassalador. A sequência do ave-maria é dilacerante. Experimentando e dilatando as fronteiras do cinema, Neville constrói um filme consciente, combativo, cáustico e poético. Impossível a indiferença, ódio ou amor, ou: ódio no amor, ódio para a guerra.
Tocaia no Asfalto
4.0 22Desde A Grande Feira que eu me desmancho todo diante do trabalho de Roberto Pires e com Tocaia no Asfalto não foi diferente: o realismo exasperante, a artesania de trabalhar com gêneros decadentes (o noir) e transformá-lo em peça de arte com existencialismo de jagunço, a direção sóbria e um trabalho de câmera criativo ao extremo só asseguram o lugar deste filme como uma das maiores joias do ciclo baiano. Todo o velho sistema político brasileiro que seguia desde a República Velha no seu ciclo vicioso é aqui destrinchado até o esqueleto. Um império de teatro e traição retratado com o realismo sufocante, brilhantemente conduzido até o final perturbador.
O Canto da Saudade
3.5 4O canto da saudade é exatamente isso: uma elegia que Humberto Mauro oferece ao passado de uma pequena cidade. Porém, ao descrever o funcionamento da rotina e da política da cidade, Humberto descreve minuciosamente uma figura emblemática do sistema político brasileiro: o coronel. O paternalismo autoritário de uma única figura que se transforma no centro de força da vida de muitas outras. O mecanismo da compra de votos e todo o desenlace seguinte apenas atestam como era a política no "Brasil profundo": oliquarquias rurais exercendo o poder nas regras do jogo anti-democrático. Se Humberto Mauro pretendeu apenas contar uma história inocente e afetuosa seu corte escapou do controle da mão e se revelou mais profundo.
Os Pornógrafos: Introdução à Antropologia
3.7 14Se Ozu e Naruse foram responsáveis por dissecar os "bons burgueses" no cinema japonês, Imamura é o outro lado da moeda: o lado que faltava. Introdução à Antropologia é uma verdadeira enciclopédia da sociedade japonesa que surgiu no pós-guerra: a sociedade daqueles que ficaram à margem da normatização autorizada. Os "bons burgueses" são substituídos por elementos transgressivos, homens e mulheres com constantes problemas psicossexuais e pecuniários. "Tudo é dinheiro!" e "o homem é fome e desejo sexual" parecem ser os dois centros catalisadores dessa obra magnífica e perturbadora, que utiliza os elementos cômicos apenas para intensificar os trágicos. A tese de Imamura é clara: a pornografia é o fruto de uma sociedade que pratica a repressão sexual ao paroxismo. A "esquizofrênia" dos personagens parece ser causada pelo constante abismo que existe entre os deveres sociais e os imperativos do corpo: dois campos antitéticos que se chocam e causam a crise. A técnica de filme-dentro-do-filme só acentua o mal-estar que o diretor quer nos causar: minar nossa insconciência diante do objeto fílmico. Anti-clássico na medida em que nega o cinema enquanto ilusão e o posiciona como arma crítica para entender a sociedade e acusar os seus telespectadores.
A Grande Feira
4.0 17Encho a boca para dizer que "A Grande Feira" é um dos melhores filmes brasileiros da década de 60. Abriu a maior década do cinema nacional com dignidade e profecia: os anos passariam e coisas maravilhosas seriam feitas, mas este filme permanece único em seu dinamismo para amalgamar mundos diferentes e produzir o milagre brasileiro dentro do milagre fílmico. A narrativa é portadora de um frescor incrível, as primorosas escolhas dos enquadramentos também. Joia verdadeira que, assim como as joias roubadas por Chico Diabo, teve que ser roubada do cinema comercial para transcender e se tornar arte.
Contrastes Humanos
4.0 62Uma palavra define para mim Contrastes Humanos: perplexidade. O primeiro susto é com o conteúdo do filme: será que Hollywood vai descobrir o neorrealismo antes dos Italianos? Mas o filme segue adiante tergiversando o que vai descobrindo pelo caminho. Não, Hollywood não se arriscará a fazer o comentário social antes dos europeus, pois o filme termina como uma grande defesa do papel do cinema de entretenimento e a mensagem é clara, cruel e cínica: o cinema deve distrair e manter as pessoas no devido lugar. Nada de reflexão, vamos fazer uma boa comédia e deixar para lá os verdadeiros contrastes humanos. O filme de Preston Sturges é perigosíssimo porque flerta sem disfarçar com o material expurgado pelos cânones hollywoodianos, mas não segue além na sua pretensa periculosidade, ao contrário, faz uma ponte frágil e a lança sobre o abismo para atravessá-lo. Ao fim de tudo resta a apaixonado defesa do cinema enquanto alienador do público. Não Sullivan, você não sofreu o suficiente.
Nuvens Dispersas
4.2 8Naruse parece filmar os movimentos do pêndulo que vai da felicidade ao caos e do caos à felicidade, o signo próprio da vida.
Os Deuses e os Mortos
3.6 15Com uma estrutura eminentemente glauberiana (penso antes de tudo em Terra em transe), recusa incisiva do diálogo tradicional para abraçar o monólogo poético (é um filme de solilóquios, sobretudo), com uma mise en scène de uma coreografia austera e teatral que lembra um pouco os filmes radicais do húngaro Miklós Jancsó, abordando a (des)estrutura política e social do Brasil, este é um dos filmes mais interessantes e fascinantes de Ruy Guerra que já assisti. Não é hermetismo e nem alegoria, é a arte jogando a roupa suja da verdade na nossa cara. Os Deuses e os mortos é o verdadeiro ponto de confluência entre o cinema novo e o marginal, pois adota as inquietações políticas do primeiro e a estrutura narrativa inovadora do segundo para demonstrar que ambas tendências têm raízes no mesmo tronco: a estupefação diante do "monstro histórico" que é o Brasil.
Paixão Ardente
3.6 6A construção do triângulo amoroso e suas motivações psicológicas são artificiais, fazendo com que o filme não se difira muito de melodramas complicados com pretensões ao arthouse. Porém, fica na lembrança as escolhas de ângulos belíssimos e a utilização primorosa da paisagem, no final você sente a neve nos pés.. mas quanto ao triângulo, prefiro Jules et Jim, muito melhor costurado e significante como obra de arte.
Sem Essa, Aranha!
4.0 63Sem essa, Aranha! é uma verdadeira gramática básica de como fazer cinema no Brasil. Juntamente com A Margem de Ozualdo Candeias, é uma bíblia cinematográfica terceiro-mundista: "O sistema solar é um lixo!". Enquanto filmavam o glamour inexistente do Brasil nos filmes comerciais e enquanto Hollywood inventava um Rio de Janeiro inexistente em alguns do seus filmes, Sganzerla escancarou o caos do país e o transformou em estrutura fílmica. É o dècor de um Brasil sem maquiagem, país de morros e favelas, de lixo e caos político, de gente passando fome ("tô com fome!!!!) e de gente desaparecendo graças ao esquadrão da morte. Feito na época que ninguém poderia ter feito algo assim, Sem essa, Aranha! se converte não em um filme mas no ato heroico da denúncia. Os filmes que surgiram do chamado 'cinema marginal' são muito peculiares e fazem eco aos movimentos que surgiram na Europa e na Ásia de renovação do cinema (nouvelle vague francesa, nová vlna tcheca, nuberu bagu japonesa etc.) criando um cinema típico. Se esses filmes de renovação e revitalização foram chamados de milagre, o cinema marginal (um ramo do cinema novo e também a sua antítese) é o milagre brasileiro no setor fílmica e Sem essa, Aranha! é uma das joias dessa coroa.
Flesh
3.5 23Nas epopéias homéricas testemunhamos o percurso de um homem que sai de sua casa e depois volta - a linearidade do caminho de um herói foi aí fixado como um modelo de narrativa. Joe interpreta o herói do submundo: acompanhamos o momento que ele acorda e parte para as suas aventuras e o momento em que ele volta, assim vemos que a primeira imagem do filme é também a última, mas invertida. O filme underground de Morrissey se inscreve assim dentro de uma tradição: a tradição do percurso. Porém se trata de uma versão mais desencantada do percurso, um percurso não de rupturas mas de continuidades, cíclico. Travestis, putas, prostitutos, homossexuais - todo o elenco de personagens que Hollywood se recusou a retratar nos seus filmes foi absorvido por Morrissey: como em Trash, verificamos mais uma vez que estes filmes trabalham com o material expurgado da representação fímica... o lado negado vem à tona para mostrar que existe e a moral e os bons costumes podem ir para o inferno. Melancólico, discursivo, naturalista, inteligentemente editado.. Flesh é o triunfo da arte marginal, do self-made, do artesanato fílmico que se recuso ao industrialismo de Hollywood.
Flor do Equinócio
4.3 13Com a premissa de que "a vida é a soma das incoerências", Ozu filmou a queda do patriarcalismo japonês. As mulheres subitamente ascendem ao poder de decisões, assistimos assim, do simples desejo de ligar o rádio ao máximo desejo de escolher a própria felicidade, a radiografia do fim de um período e o começo de outro: estamos diante de uma rachadura das normalidades tradicionais, rachadura que irá danificar tudo para a transformação dos costumes. Os planos fixos de Ozu e a arquitetura austera de seus filmes estão presentes em cada momento. Estou cada vez mais perplexo diante deste diretor que retirou o âmago da vida japonesa e a transformou em arte.
O Que Terá Acontecido a Baby Jane?
4.4 830 Assista AgoraHollywood filmou a sua própria decadência ao analisar neste drama minimalista e eficaz as devastações psicológicas causadas pela indústria do entretenimento. Ao humanizar o "monstro", Robert Aldrich deu um passo além e destruiu o maniqueísmo já previsível em obras de estúdios norte-americanos. A analogia com "Crepúsculo dos Deuses" não se restringe apenas ao desfecho emblemático, mas vai além: as duas obras formam um díptico assustador sobre personalidades estilhaçadas pelo show business. O glamour mágico de Hollywood vira abóbora e o que fica são análises sombrias. Baby Jane é mais vítima do que vilã, mais humana, logo, mais crível.
O Silêncio Não Tem Asas
4.3 10A estrutura de almanaque deste filme é uma das narrativas mais instigantes que eu já tive acesso. Sua elaborada e soberba fotografia conjugada com uma capacidade de extrair o limite da metáfora de cada imagem, distendendo a linguagem cinematográfica ao paroxismo são outros pontos imensamente importantes desta joia sem precedentes da filmografia poética do Japão. No final, a nossa sensibilidade não acredita na força do impacto que acaba de ser desferido contra ela. Construído com o rigor e a métrica de um poema, elaborado obsessivamente como uma pintura, poderoso como uma música que explode nossos neurônios de prazer este belíssimo filme não sai da memória. O leitmotiv da larva percorrendo todos os recantos da sociedade japonesa, revelando os seus traumas, mágoas, fragilidades e impotências é de uma pesquisa narrativa sem igual.
O Corpo Ardente
3.8 13Khouri é um caso sui generis dentro do cinema brasileiro da década de 60. Ele não é cinema-novista, não se enveredou pelas trilhas do cinema marginal e também não compactuou com o cinema comercial e superficial da época. O seu caminho foi o caminho da sensibilidade individual, do artista que procura o seu estilo, sua temática. Devo confessar que suas incursões com a câmera são obras de um potencial artístico imenso. Corpo Ardente é um belíssimo exemplo de cinema autoral, artístico e crítico. Khouri filma a burguesia e sua falência, sondando o irracional para descobrir o estético. A metáfora do cavalo selvagem e toda a sua elaboração seguinte é fantástica: a liberdade e a naturalidade é tudo aquilo que perdemos para abraçar uma vida cênica, teatral, que esconde a vivacidade da vida em troca da opacidade das aparências. Khouri precisou mergulhar no cinema burguês para extrair a ética anti-burguesa de seus estilosos filmes.
O Cangaceiro
3.8 78O Cangaceiro se oferece em um primeiro momento como uma tentativa de síntese da cultura nordestina e brasileira:a trilha sonora, as danças, a descrição da vida e do acampamento do cangaço, a inserção didática da paisagem e do índio, etc. Tudo se oferece como uma obra de amálgama de elementos nacionais antitéticos. É por isso que os comentários aqui são tão apaixonados: o filme é carregado de páthos para o público brasileiro. De outro lado é, também, um filme para "inglês ver". Não à toa teve uma recepção e sucesso grandioso lá fora. No entanto, não é reunindo os elementos de uma escola de montagem norte-americana (a estrutura do filme é sem dúvidas devedora de John Ford) que se criará um cinema nacional: por paradoxal que seja, O Cangaceiro é um filme de conteúdo nacional mas de forma norte-americana, incorporando os elementos estranhos de uma cultura radicalmente diferente da terra de Ford e neutralizando-as. O cinema brasileiro (para ser chamado de cinema brasileiro) ainda teria que esperar Glauber Rocha para conhecer aquilo que poderíamos definir como "um cinema nacional", pois O Cangaceiro é um filme estrangeiro feito no Brasil. A espetacularização do cangaço, a violência estandardizada do western e a pretensa dramaticidade do roteiro (a cena final é demolida de toda sua grandiosidade com a fala final que demonstra cansaço melodramático e falsidade) não foram capazes de criar um cinema potente, mas apenas uma transmigração de modelos que gozavam de aprovação pública (o modelo norte-americano) com roupagem nordestina. Um filme que agrada gringos (pois tem uma estrutura já internalizada por eles) e brasileiros (pois utiliza de elementos sentimentais caro aos habitantes do Brasil), mas não se oferece como um passo na construção de um cinema nacional, apenas um entretenimento óbvio.
Limite
4.0 168 Assista AgoraA primeira tentação diante de Limite, essa obra estupenda do cinema nacional, é tentar interpretá-lo: seja com "forçações de barra freudianas" ou com qualquer outro aparato crítico, Limite dispensa essas operação intelectuais medianas de interpretação. É uma obra para além do psicológico, do intelectual, enfim, aquilo que se se define como uma obra de arte. A segunda tentação diante deste filme é a tentativa de enquadrá-lo no período: ao que exatamente Limite pertence? Não é necessário enquadrá-lo, pois Limite pertence ao esforço individual de superação e criação, ao esforço da estética para superar as limitações individuais. O público aqui geralmente reclama que o filme é "tedioso", "chato", 'no limite da paciência', entre outras tiradinhas sarcásticas para desclassificá-lo taxando-a de obra de extravagância e barroquismo inútil. Mais uma vez Limite vem perturbar nossas noções e sensibilidade. Limite é "chato", "tedioso", porque não corresponde ao nosso padrão alimentado por narrativas pobres e "cheias de texto" ao qual estamos acostumados: não somos nós quem questionamos o filme, mas é Limite que nos questiona lá da década de 30. É ele quem nos julga, não o contrário. Para absorver esse poderoso filme, de valor histórico e artístico inquestionável, é necessário nos livrar de nossos preconceitos (filisteus ou não) do que significa a narrativa cinematográfica. Limite é um marco da arte moderna e vai continuar incomodando as mentes mais conservadores. A sensualidade, o barroco brilhante, os ângulos inusitados e toda a natureza humana e animal que esse filme nos obriga a contemplar é de um êxito estético insuperável. Vida longa a este filme!
Era uma Vez em Tóquio
4.4 187 Assista AgoraA primeira percepção falsa que temos é que o filme foi construído sob a égide da simplicidade, o que não é verdade. O filme de Ozu não é simples, é complexo. Exige leituras por trás de cada sorriso, de cada gesto, de cada olhar. É um teatro de sombras. O modo de filmar de Ozu também não é simples, pelo contrário, ele praticamente derruba o cinema clássico para construir um novo cinema, pautado em um estilo próprio de filmar. A segunda percepção falsa é que o filme é um melodrama, mesmo que contido. O que também não é verdade. O filme é, ao contrário, a superação do melodrama, mesmo sua destruição. É uma estética anti-melodramática, recusando os maneirismos e facilidades do cinema vulgar e imediatista. Já disseram que Ozu é o anti-cinema, mas essa é também uma percepção falsa: não existe anti-cinema, assim como não existe anti-arte. O que obras singulares fazem é modificar nossos padrões do que seja a arte e o filme de Ozu é um desses destruidores de padrões. Se Godard demoliu o discurso cinematográfico e inaugurou um novo jeito de fazer cinema, Ozu também foi igualmente radical, mas o seu radicalismo às vezes é imperceptível por uma falsa percepção de sutileza. Ozu não é sútil, pelo contrário, o seu cinema é de uma austeridade enorme. Austeridade estilística que nos faz mergulhar em uma das experiências mais arrebatadoras e radicais do cinema. Por último: os brasileiros (e creio que os ocidentais de uma forma geral, mas principalmente a sensibilidade brasileira) têm horror instantâneo a impessoalidade das relações dos japoneses. Buarque de Holanda já dizia em raízes do Brasil que uma das nossas características é a pessoalidade radical, mesmo em assuntos (como os caminhos da política e questões administrativas e burocráticas) em que deveria existir a impessoalidade para evitar o engano entre "propriedade privada" e "propriedade pública". Os brasileiros, ao assistir o filme de Ozu. devem deixar de serem bairristas, creio que essa é uma superação do provincianismo de muitos comentários aqui. Impessoalidade e pessoalidade são características moralmente neutras, portanto se um povo é mais impessoal isso não significa necessariamente que ele seja mais frio, muito pelo contrário, como o filme de Ozu demonstra.
Go, Go, Second Time Virgin
3.7 6obra-prima da irresponsabilidade adolescente, pornografia gore e doses altíssimas de cinismo (o auge é a sequência que intercala mangás violentos com fotos do Polanski e de sua recém-assassinada esposa que foi morta brutalmente enquanto estava grávida) conjugados com um texto capenga e com uma trilha sonora anglófona completamente desperdiçada me fazem avaliar este curto filme como um lixo vestido de new wave style e pretensa crítica política. Quem conhece o cinema japonês sabe que ele foi muito mais longe em temática, ousadia estética e crítica do que esse filme abominável.
Dodeskaden - O Caminho da Vida
4.3 45Diante da unanimidade de opiniões favoráveis ao filme tenho que confessar minhas reservas: de fato, as cores e o décor da película são imperdíveis em sua beleza, porém, como bem observou um dos comentários aqui, o filme perderia muito do seu valor caso esses itens fossem mais fracos. Porém, o conteúdo me incomodou profundamente: Kurosawa parece fetichizar a pobreza em alguns momentos e condenar os espectadores a uma contemplação naïf dela. A pobreza aqui é usada mais como espetáculo visual (a favela é pitoresca) do que como dispositivo crítico. Toda a atmosfera do filme para condensar esse sentimento de que estamos diante da vida, mas é justamente essa naturalização que incomoda: a pobreza não é natural, tem uma causa terrena específica e Kurosawa não contemplou essas causas. Os pobres vivem isolados como se sua pobreza não fosse uma cadeia de acontecimentos e sim natural. Para além da beleza pictórica estonteante e da iluminação soberba, Dodeskaden parece compactuar com um conservadorismo perigoso que declara: a pobreza é culpa dos pobres, do alcoolismo, das fofocas, dos vilões. Pior que dicotomizar o mundo, Kurosawa apresenta a unilateralidade radical que não provoca reflexões mais profundas.
Terra de um Sonho Distante
4.0 11A grandiosidade deste filme é indiscutível, lembra até aqueles grandes romances do século XIX tão típicos em condensar uma vida inteira em algumas páginas; é isso que esse filme faz: sintetiza uma vida em algumas horas e isso é um mérito. As cenas poderosas (que maneira de filmar, Kazan!) e o texto grandiloquente são outros pontos fortes para autorizar o filme como um dos maiores filmes americanos feitos sobre a América, pois este é também um filme-elogio, um filme que pretende rivalizar com o hino nacional e com o patriotismo. A mensagem ideológica é clara: A América é a salvação. Porém, deixando de lado o feitiço do roteiro e a beleza estonteante das imagens (sem contar a beleza igualmente hipnótica do personagem principal) é bom também verificar outros pontos. O filme é ideologicamente discutível, mas indiscutivelmente belo e poderoso. Parece fazer parte da tradição norte-americana de filmar(Veja Griffith em The Birth of a Nation) esta cisão entre imagem e subtexto. Se por um lado somos levados a considerar o filme uma das grandes conquistas estéticas de um artista como Kazan, não podemos olhar sem reservas a mensagem clara e moralmente ambígua do seu filmea(afinal, o personagem principal é, para além de sua simpatia como persona central do filme, um arrivista) de que não importam muitas coisas e pessoas quando você é carcomido por um sonho. Se por um lado o diretor se abstém de julgamentos morais (O que é uma boa coisa, pois a arte que julga é uma arte imoral e conservadora, portanto não-arte) não se pode esperar o mesmo de seus receptores. A mensagem de Stravos é clara: you can't afford to be human. De qualquer maneira, o filme é salvo por sua estética, uma das mais bonitas dentro da tradição realista do cinema.
Demência
3.6 10 Assista AgoraUnindo os elementos típicos dos filmes norte-americanos de estúdio, porém revitalizando-os com um toque de vanguarda, mesclando a herança onírica dos filmes de Maya Deren com o classicismo do cinema mudo, Dementia é um experimento interessantíssimo, filho único de uma época atolada de entretenimento barato. Não é de se espantar que o filme tenha causado incompreensão por parte do público e crítica, pois Dementia parece recusar a estrutura do cinema clássico para abraçar as pesquisas em inovações narrativas, além de abordar temas penosos para a forte censura da época. Com uma fotografia expressionista unindo jogos de luzes e ângulos incomuns, Dementia é o filho bastardo de Hollywood, recusado pelo pai por transgredir os modelos autoimpostos e transpirar uma sensualidade imoderada. Filme subjetivo, experimental e mudo em época de verborragia: Dementia é uma delicia!
Manila - Nas Garras de Neon
3.9 11Ainda estou sem palavras diante da potência devastadora deste épico urbano filipino. Manila, a capital das Filipinas, é o grande cenário e o grande personagem deste poderoso filme que vasculha sem piedade os meandros mais sombrios de um país profundamente injusto e marginalizante. Não há concessões na sequência ininterrupta de denúncias que o diretor faz. O estilo naturalista, herdeiro fiel do neorrealismo ocidental, faz desta película um retrato sem igual da vida sob o jugo da metrópole moderna. Imperdível!