No Brasil tudo termina em futebol e essa frase é uma crítica negativa. No fundo da alienação cultural e coletiva está a alienação moral e autodestrutiva da personagem central interpretada visceralmente pela debutante Fernanda Montenegro. Não é exagero dizer que Leon Hirszman faz um trabalho de ourivesaria com a transposição da peça de Nelson Rodrigues para o cinema: eu prefiro o filme, muito mais talentoso com os seus elementos. Um trabalho de direção que supera a peça e ganha a roupagem irresistível do cinema novo. Inesquecível!
Um estudo da imoralidade humana brilhante, prenhe de uma trágica concepção da condição do homem sob pressões que o levam a ser um arrivista capaz de até ensinar ética aos outros. O maquiavelismo intenso desse filme nos faz mergulhar no horror de descobrir que as relações humanas são teatro e que a verdade está do lado escuro da lua. Joaquim Nabuco já dizia em fins do século XIX que nos EUA a vida privada não existia e este tenebroso filme só atesta isso: a vida pública dos tabloides destrói o gérmen de vida privada. A catástrofe de nossa época é que nossa verossimilhança, nossa personalidade, nosso mais forte senso humano pode ser destruído com um simples bilhete de fofoca. A sociedade do espetáculo é a sociedade da tragédia, não da farsa.
A incrível estréia de Cassavetes como diretor é um maravilhoso filme improvisado como geralmente é improvisada a própria vida. É por isso que esta obra de mestre nos arrasta de forma tão passional pelos seus 87 minutos. Se levarmos em conta que a primeira versão do filme data de 1957 podemos concluir que o filme não é só um marco no cinema independente norte-americano, mas um exercício seminal que antecede a explosão francesa e se torna ícone de uma geração que estava prestes a revolucionar a estrutura fílmica. O trio e as situações se desenvolvem tão magnificamente: é impossível esquecer a liberdade e o ego teatral de Lelia, a passionalidade e o paternalismo de Hugh, a jovialidade inconsequente de Ben e a sutileza impagável de Cassavetes ao tocar em problemas tão polêmicos de forma quase jocosa; Imperdível!
Retomando o estilo documental e a temática de Os Fuzis, A queda também retoma o heroísmo ambíguo do personagem do Gaúcho do filme supracitado encarnado na figura de Nelson Xavier: um heroísmo em corda bamba, prestes a se vender por uma piscina ou um apartamento. Essa subversão medíocre ganha força durante o percurso do filme e culmina na explosão do personagem no final. Explosão que estilhaça a consciência e desnuda os mecanismo de um mundo insuportavelmente injusto, onde morrer é um ato gratuito e onde a lei no papel não é a lei na realidade: tudo pode ser reordenado ao sabor voluntarioso dos donos do poder. A denúncia se estende: a imprensa mancomunada com a sujeira do capital. O personagem de Lima Duarte parece representar tão bem o "homem cordial" (leia-se: o capanga do capital agindo com doçura brasileira para 'elasticizar' a consciência alheia) e a atuação de todos é arrebatadora em sua coragem para abandonar a interpretação clássica do cinema oprtando por uma atuação naturalista anti-cinematográfica (os personagens que se interrompem nas falas, os diálogos banais). Filme muito gratificante em sua montagem e uma obra selvagem em na deliberada ação de denúncia e revolta diante do sistema social que proclama a vitória do homem sobre o homem.
Pastoral é um fascinante exercício de reconstrução mnemônica e ao mesmo tempo de desconstrução do fetiche da memória como arca superior da experiência. Filme surpreendente em sua carga imagética e literária (os haikais são belíssimos e os diálogos e monólogos imperdíveis) e em sua beligerância para desmontar a fantasia cinematográfica (o final emblemático é de uma coragem sem precedentes, só igualado em Jodorowski no final de A Montanha Sagrada) ao mesmo tempo que inaugura uma nova concepção de cinema e de memória. A memória e o cinema são artefatos em comum: ambos são ferramentes de reordenação da experiência viva do homem. A onipresença dos relógios parece acentuar o inequívoco desejo de questionar a instituição simbólica do tempo e quando o futuro (presente) encontra o passado para um jogo e conversa entre iguais sabemos que estamos diante de uma transgressividade bélica contra as mentiras e convenções narrativas. A lição de Terayama é um profundo ceticismo e ao mesmo tempo uma aceitação das profundezas da tradição e na influência que ela tem sobre o presente. Uma famosa frase dos positivistas dizia que "Os mortos governam os vivos" e Terayama parece fazer coro com eles: o passado governa o presente. No entanto, a quebra narrativa proposta por Terayama ao colocar em diálogo dois tempos conflituosos parece indicar um profundo desejo de renovação > os mortos devem parar de governar os vivos. Soberbo! Soberbo! E lindo, lírico e arrebatador. Virei fã.
Entre bananas e ananás, entre gastos absurdos e fanfarras bizarras, entre a arte e o lixo: eis a posição desse maravilhoso filme na constelação do cinema nacional e mundial. A perspicácia em analisar a decadência de uma família burguesa é perfeita e transcende o seu círculo para denunciar a decadência de toda a sociedade brasileira. A classe dirigente nunca foi tão apunhalada como nesta tragédia burlesca encenada no novo mundo:o deboche transborda a pura avacalhação e se transforma em dispositivo crítico. O riso nunca foi tão amargo, o humor tão ácido. Eis que temos o retrato avassalador do parvenu brasileiro, homem rico e sem inteligência, disposto a vender peixe podre e matar qualquer ser humano com sua máscara hedionda de palhaço. A família, essa instituição frágil e estranha, se torna o epicentro da crítica de valores que Elyseu Visconti promove. Não é à toa que no final do século XIX os brasileiros eram denominados pejorativamente em Paris como rastaqüeras: essas figuras bizarras com seus gastos luxuosos que transformaram o país em um puteiro. Rir em um filme nunca foi tão doloroso. O tapa é com luva de pelica, mas o hematoma que fica é muito roxo. Indispensável!
Não foi à toa que Truffaut listou este título como uma das grandes influências para a revolução francesa do cinema proposta pela Nouvelle Vague. É de um frescor artesanal incrível, de uma independência louvável diante da catástrofe do cinema norte-americano de estúdio. Feito nas ruas, no calor do momento, quase um documentário, esta pérola é de uma beleza estonteante e um passo decisivo no estilo "câmera na mão, ideia na cabeça".
Juro que não esperava por isso: estou completamente chocado diante deste filme. Completamente absorvido pelo seu discurso explosivo. Ninguém foi tão longe na descrição microscópica da nossa política. Ninguém foi tão longe... A melhor obra do cinema nacional que já vi. É, com certeza, uma das melhores obras de um período tão rico no cinema mundial. É difícil economizar adjetivos, este filme nos obriga a uma passionalidade assustadora. Teatral, político, artístico até o osso. Sequências avassaladoras, diálogos e monólogos absurdos. Tudo para culminar naquele final emblemático: este filme é uma arma apontada na cara do cidadão brasileiro, da alma dos trópicos, da consciência do homem que aqui vive. Ninguém sai ileso.
A preocupação ética de Shindo perfura qualquer gênero narrativa para explodir em uma vibrante crítica social. Não é um filme de terror nem um filme de samurai exploitation, mas antes uma obra-prima que utiliza os recursos dos gêneros citados para desmontá-los e revelar o conteúdo ideológico do esqueleto. Shindô não está preocupado em assustar o espectador e muito menos faze-lo vibrar com batalhas de espada, mas antes está procurando acordá-lo para problemas mais sérios: a posição das mulheres na sociedade, a fetichização da violência gratuita e a inconsciência da luta de classes no mundo. Temas extremamente contemporâneos, mas que Shindo declara serem muito mais antigos e historicamente determinados. A história de terror é uma farsa brilhante para desmascarar os problemas do homem no mundo. A técnica do filme é soberba: o expressionismo, o uso de recursos teatrais e os efeitos especiais elegantemente aplicados revelam a sensibilidade do artista Shindo que consegue fazer do seu filme uma conquista estética pautado na ética e na consciência de estar lidando com um mundo cruel que precisa ser modificado.
A medida que o filme avança somos transportados lentamente para o âmago do desespero, da violência e do limite. Somos arremessados dentro de uma fadiga insuportável de encarar o hediondo da condição humana sob configurações históricas específicas. O que mais dói em Fogos na planície é saber que toda a ilusão e distância segura da ficção é abalada pelo constrangimento de estar não diante de um palco que afasta a realidade, mas antes diante da mais pura verdade. Tudo isso aconteceu e continuará acontecendo: o gênero humano é um animal em bancarrota na superfície do mundo.
Os EUA, como sempre, garantindo lugar no pódio de crimes cometidos contra a humanidade. A lavagem cerebral sempre foi uma das especialidades dessa cultura. Eis o resultado.
Estou absolutamente chocado com o percurso brutal deste filme e igualmente embasbacado por ele ter saído de dentro dos EUA na década de 50. O enredo realista-fatalista com sua descrição impiedosa do sistema carcerário e de seus vícios internos que revelam os vícios externos de uma sociedade decadente. Parece um desses romances naturalistas brasileiros de tão incisivo em sua denúncia. Um filme que não faz concessões na hora de pintar o seu retrato imundo da hipocrisia e da crueldade de um sistema social inoperante para reabilitar os seus delinquentes, mas antes os chafurdando ainda mais no poço da marginália da vida. Já disse alguém que não é culpa do espelho se a cara é suja, então não é culpa do filme se a sociedade é podre. Impossível esquecer o sadismo de Harper: ela é o personagem mais ululante em sua psicologia perversa, emulando passo-a-passo a psicologia de todo um sistema. "É impossível vencer o sistema" - disse Marie Allen, mas é possível desmascará-lo e isso o filme faz muito bem. Palmas para essa ovelha negra da filmografia norte-americana. Deve ter incomodado muita gente!
"Pra mim, Princesa Isabel é ilusão!" - Nada como uma frase dessas para "alumiar" o grande engodo que foi 1888! Libertar escravos para jogá-los na lama, que grande obra! tsc, tsc. Para além disso: que filme estupendo em revelar a cultura bahiana (não vou dizer cultura brasileira porque isso é uma generalização pretensiosa ou ninguém nunca parou no google maps pra olhar o tamanho desse Brasil?), estupendo e prodigioso no uso da sonoplastia e da fotografia, engenhoso ao utilizar o misticismo e o contexto social como estruturas da narrativa. Nada nesse grande filme brasileiro parece transpirar exotismo e fetichização da ala baiana do Brasil, mas apenas (como um romance naturalista que encontra a vanguarda) revelar aos olhos nossos um mundo cuja distância física é pouca, mas que nós tratamentos como se fosse nos confins da Ásia. Não, esse mundo é aqui, ao nosso lado. Viva Glauber! e ele vive, em cada segundo de projeção. Estupendo!
As instituições sociais faliram após a falência do próprio gênero humano com a experiência traumática do século passado e é mais ou menos isso o que é demonstrado em Portal da Carne, um filme que se converte, pouco a pouco, em uma experiência radical de linguagem cinematográfica apontada para as feridas mais sangrentas do pós-guerra. O amor, o casamento e o erotismo de entregar o corpo por prazer são sistematicamente derrubados neste colorido e terrível filme de Suzuki. A esperança de encontrar o passado da história humana escondido nos destroços da guerra parece ser o fio condutor da psicologia de alguns personagens, personagens que tentam reconstruir a ordem do mundo no estado de suspensão civilizatória apresentado na película. É difícil sair ileso daqui, pois estamos diante de um retrato cru, sem delongas, sem adornos (apesar da estonteante paleta de cores quentes e dos enquadramentos maravilhosos) de uma geração que viu o crepúsculo do mundo sem sinais de amanhecer. Assistir este filme hoje é estar mais perto daquilo que a História nos concede como prova suficiente de que o homem é um ser em bancarrota. Ah, e como esquecer do sacrifício da vaca? Suzuki é rei!
É impossível não se impressionar com o abismo que há entre as reações dos personagens e suas consequências. Rios de sangue não são o suficiente para abalar essas estruturas terrivelmente sólidas que são os rostos de Kit e Holly. Personagens atípicos que parecem ter sido pescados diretamente da psicologia de Bresson e também de outro road-movie radical: two-lane blacktop do Monte Hellman. É louvável quando um diretor, unindo a estética avassaladora da imagem com um texto igualmente chocante em sua frieza, tece um filme que não pretende ser um julgamento moral, mas apenas a prova de que o mundo e os homens estão aí e que ambos estão dispostos a tudo. Por trás de cada olhar gélido e apático desses personagens parece se esconder a mensagem de que a vida não vale muito e de que nossas ilusões (igualmente sustentadas por estruturas sociais) estão prontas a desmoronar em cada esquina. Depois de demonstrar - igualmente como Monte Hellman - o esvaziamento dos sentidos da vida perante a arquitetura assombrosa e indiferente do mundo, Malick também parece tecer aquilo que poderíamos definir como o legítimo herói norte-americano: o homem que procura a violência radical para justificar a vida.. mas voilá: eis que a vida se revela injustificável. Não é à toa que Kit consegue a simpatia de todos, pois ele emana o ideal selvagem daquilo que chamamos de natureza humana. Os policiais que clamam silenciosamente o heroísmo de Kit são, também, homens que gostariam de abandonar o excesso de significado da sociedade para abraçar a radicalidade e o vazio que parece ser a mensagem principal que o mundo tem para nos dar. Também vale lembrar de outro casal assassino da filmografia norte-americana: o casal de the honeymoon killers. Parece que o cinema dos EUA encontrou uma resposta a explosão de duplas anarquistas que surgiu no cinema europeu. As Margaridas e Pierrot Le Fou são mais metafóricos em suas mensagens de subversão, mas a tradição ianque preferiu tergiversar metáforas e apresentar a objetividade insuperável da violência.
O erotismo máximo e o cinema máximo se encontram nesses quatro contos de tirar o fôlego de um bom cristão. São sequências e sequências de beleza imagética mesclada com a nudez incontrolável dos corpos. O clímax maravilhoso das mulheres brigando pelas pérolas do vestido da condessa é minha cena favorita.
Durante a longa duração deste documentário o coração vai ficando apertado e, depois do tétrico final da primeira parte, vem finalmente o desfecho avassalador da segunda parte que mostra em detalhes o crime (Não tem outro nome) perpetrado contra Salvador Allende (eleito pela via democrática e, diga-se de passagem, um homem que sempre quis resolver os problemas por vias democráticas) e contra o povo chileno que, como a terceira parte mostra, estava organizado de uma forma impecável para descentralizar o poder. O que temos diante dos olhos é a anatomia de um crime, que custou milhões de vidas e colocou a ditadura chilena como uma das mais sangrentas da história latino-americana. Não é difícil entender o ódio generalizado que povos ao redor do mundo têm dos EUA, já que qualquer pessoa que se dedica a estudar os mandos e desmandos do Império Americano verificará a lista de crimes que este país cometeu com sua política externa, país que se assemelha a uma criança que ao entrar em uma loja pede e exige aquilo que quer de todos os jeitos possíveis. É triste e depressivo ver como uma democracia brilhante foi esmagada pelo fascismo e pela violência radical. Alguém não tem o coração feito em pedaços ao assistir o bombardeio a La Moneda? Salvador Allende é um herói trágico: amado pelo povo, odiado pela elite e pelos EUA. E assim comos os heróis trágicos ele termina. Se alguém tem dúvidas do que veio depois é só visitar o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos e as casas de tortura e morte espalhadas por todos os cantos de Santiago.
O mesmo Arnaldo Jabor que chamou as Manifestações de Junho de "vandalismo" e que recentemente disse que o governo atual é um neobolchevismo (!!!), é o homem por trás desse documentário que não faz concessão ao conformismo da classe média que culminou na ditadura militar. O homem Jabor envelheceu muito mal, se tornando ele mesmo o conformista que tanto criticou no seu filme-tese. Mas voltemos à 1967: o documentário do jovem Jabor tem uma montagem brilhante, um fundo teórico que mescla a poesia de um Drummond com os pensamentos do materialismo histórico para erguer uma crítica avassaladora aos padrões contemporâneos. O homem que encontra a felicidade na próxima compra de carro ou apartamento, a mulher que se encerra no seu claustro familiar e se fecha para o seu próprio desenvolvimento como ser humano e, finalmente, a classe média que, quando bem manipulada, pode trabalhar contra si mesma: e não foi exatamente isso que aconteceu? Esse documentário é brilhante em radiografar a mentalidade de uma época que, infelizmente, ainda não passou completamente ou alguém acha que esse documentário também não mete o dedo na ferida atual?
Não entendo a recepção negativa que este filme suscitou em um Glauber Rocha e entre outros críticos da época. Glauber o acusou de ser "um filme do passado". Para o bem ou para o mal, O Canto do Mar é, sem dúvidas, o precursor legítimo do cinema novo, pois envolve em sua teia de arquitetura diversa todos os temas que irão explodir no cinema brasileiro anos depois. O seu flerte com o neorrealismo italiano, a sua aura de romance naturalista brasileiro, a densidade lírica, o uso primoroso da paisagem como elemento de reflexo psicológico dos personagens, sua estrutura que passa do ficcional ao documental com liberdade invejável - todos esses elementos pinçados juntos dizem-nos que estamos diante de uma obra sem igual no panorama nacional de então. Cavalcanti é um homem do seu tempo e se ele causa incômodo com algum artificialismo que sua obra possa exibir, por outro lado o seu filme é um passo decisivo para o cinema nacional. Como escreveu Eduardo Escorel na Piauí: "Vidas Secas e Deus e o Diabo são a negação dialética de O canto do mar. Mas para poderem negar foi preciso que o filme de Cavalcanti tivesse existido." Acho que todo mundo deve entrar em contato com essa obra valiosa e seminal da história do nosso cinema, pois sua beleza e sua poética passam longe das sociochanchadas e do cinema burguês do mesmo período. "O esquecimento de Alberto Cavalcanti é um escândalo".
Depois de revolucionar o cinema brasileiro com Os Cafajestes em sua montagem ousada e criativa, Ruy Guerra volta: dessa vez marcando com brasa a consciência nacional. No ano do golpe militar, este filme (originalmente Ruy Guerra iria filmá-lo na Grécia com outro contexto) é absolutamente avassalador no seu registro documental da epopéia famélica destes povos abandonados por um Estado que vigia os bens individuais com força violenta, forçando assim a aparecer figuras messiânicas que prometem chuva. Nos aspectos formais o filme também é glorioso: os registros de cinéma vérité captando a voz do povo em depoimentos ancestrais ou os closes (é um filme de closes, em absoluto) na figura dos soldados ajudam a garantir o lugar dessa película como uma realização surpreendente do nosso cinema. É uma obra diferente (e não melhor ou pior!) de Deus e o Diabo na terra do sol do Glauber, pois enquanto este é um mergulho no registro documental (é possível definir as fronteiras entre o documental e o ficcional dentro do cinema?) e tortuoso da realidade de um extrato social, aquele é o paroxismo da subjetividade capturada no cinema da psicologia de um mundo.
Dois casais diferentes, duas visões de mundo que entram em duelo. De um lado, o tradicionalismo marcadamente ocidental apresentado pelo papel de Lars Ekborg e sua namorada, do outro, a alucinada e vertiginosa dupla composta pelo Professor Bauer e por Francesca. Seriam eles a alegoria de duas tendências artísticas que entram em choque? (o psicologismo tradicional frente a vanguarda artística) ou se trata apenas de uma provocação repleta de hermetismo dirigida ao público lobotomizado pelas narrativas comerciais? É difícil dizer qualquer coisa sobre esse filme que, assim como Persona de Bergman, nos coloca em estado de suspensão psicológica. Se o filme é realmente o conto de duas tendências diversas que entram em choque, é claro que a diretora fez a sua opção: o casal subversivo reeduca o tradicional, transformando o modo como eles enxergavam a vida em coisa diversa. O trabalho de direção sóbrio, com poucas locações externas (mas que mesmo nas poucas externas apresenta uma economia brilhante e proporciona cenas antológicas, com a cena do louco no restaurante ou das paredes pichadas na estação) conjugado com um texto intrigante e metáforas visuais poderosas fazem desse filme um produto genuíno de seu tempo: o tempo em que pessoas como Godard e Robbe-Grillet colocam o público para pensar e também para confrontar o próprio pensamento como instituição. A tentação para interpretar esse filme é forte, mas deveríamos deixá-lo em paz. A própria diretora escreveu sobre Persona:"a correct understandingof Persona must go beyond the psychological point of view." - o mesmo vale para o seu filme provocador.
É impossível para um telespectador moderno não se sentir enfeitiçado diante da explosão imoderada de cores do technicolor soberbamente aplicado. Hoje o filme, se abstrairmos o seu estado de filme, vale muito mais pelo espetáculo que ele proporciona aos olhos do que à mente, isto é, vale muito mais pela estética, pela plástica. A verdade é inegável: Hollywood se especializou em atrair o seu público pelo aspecto mais irracional, isto é, fisgando-o com a beleza e deixando todo o resto de lado. É só fazer um exercício: remover o conteúdo do filme (a história que ele conta) e aplicá-lo em outro contexto sem a plástica soberba das locações e do tecnicolor. O que teremos então? Uma história que já foi contada milhões de vezes, antes e depois da data do filme, e que podemos encontrar inclusive nas nossas novelas brasileiras. Esse é o sintoma de como as narrativas comerciais estão fossilizadas e Hollywood continua produzindo o mesmo tipo de coisa desde Griffith. Repito e tenho dito: o filme é um espetáculo para os olhos (Alguém consegue dissociar a estética do filme da pintora colonial norte-americana? Do paisagismo dos quadros de um Albert Bierstadt por exemplo?), mas uma afronta ao intelecto.
Apesar da estonteante direção de arte (o décor das últimas cenas é simplesmente incrível), este filme não é um trabalho excepcional de Suzuki e até lembra um pouco o lastimável Elegia da Briga do mesmo diretor nas cenas insuportáveis de pancadaria. Talvez isso seja um pouco a mão de ferro da Nikkatsu Corporation exercendo pressão para tornar o filme vendável. O que fica são as cores de uma beleza suprema e o estiloso PB de abertura com seu toque de pop art, o resto é o resto, apesar de sentir sinceramente estar diante de um filme acima da média dentro do seu gênero.
A Falecida
4.1 106No Brasil tudo termina em futebol e essa frase é uma crítica negativa. No fundo da alienação cultural e coletiva está a alienação moral e autodestrutiva da personagem central interpretada visceralmente pela debutante Fernanda Montenegro. Não é exagero dizer que Leon Hirszman faz um trabalho de ourivesaria com a transposição da peça de Nelson Rodrigues para o cinema: eu prefiro o filme, muito mais talentoso com os seus elementos. Um trabalho de direção que supera a peça e ganha a roupagem irresistível do cinema novo. Inesquecível!
A Embriaguez do Sucesso
4.1 66Um estudo da imoralidade humana brilhante, prenhe de uma trágica concepção da condição do homem sob pressões que o levam a ser um arrivista capaz de até ensinar ética aos outros. O maquiavelismo intenso desse filme nos faz mergulhar no horror de descobrir que as relações humanas são teatro e que a verdade está do lado escuro da lua. Joaquim Nabuco já dizia em fins do século XIX que nos EUA a vida privada não existia e este tenebroso filme só atesta isso: a vida pública dos tabloides destrói o gérmen de vida privada. A catástrofe de nossa época é que nossa verossimilhança, nossa personalidade, nosso mais forte senso humano pode ser destruído com um simples bilhete de fofoca. A sociedade do espetáculo é a sociedade da tragédia, não da farsa.
O Padre e a Moça
3.9 51Um dos ápices do cinema nacional da década de 60.
Sombras
3.8 50A incrível estréia de Cassavetes como diretor é um maravilhoso filme improvisado como geralmente é improvisada a própria vida. É por isso que esta obra de mestre nos arrasta de forma tão passional pelos seus 87 minutos. Se levarmos em conta que a primeira versão do filme data de 1957 podemos concluir que o filme não é só um marco no cinema independente norte-americano, mas um exercício seminal que antecede a explosão francesa e se torna ícone de uma geração que estava prestes a revolucionar a estrutura fílmica. O trio e as situações se desenvolvem tão magnificamente: é impossível esquecer a liberdade e o ego teatral de Lelia, a passionalidade e o paternalismo de Hugh, a jovialidade inconsequente de Ben e a sutileza impagável de Cassavetes ao tocar em problemas tão polêmicos de forma quase jocosa; Imperdível!
A Queda
4.1 18Retomando o estilo documental e a temática de Os Fuzis, A queda também retoma o heroísmo ambíguo do personagem do Gaúcho do filme supracitado encarnado na figura de Nelson Xavier: um heroísmo em corda bamba, prestes a se vender por uma piscina ou um apartamento. Essa subversão medíocre ganha força durante o percurso do filme e culmina na explosão do personagem no final. Explosão que estilhaça a consciência e desnuda os mecanismo de um mundo insuportavelmente injusto, onde morrer é um ato gratuito e onde a lei no papel não é a lei na realidade: tudo pode ser reordenado ao sabor voluntarioso dos donos do poder. A denúncia se estende: a imprensa mancomunada com a sujeira do capital. O personagem de Lima Duarte parece representar tão bem o "homem cordial" (leia-se: o capanga do capital agindo com doçura brasileira para 'elasticizar' a consciência alheia) e a atuação de todos é arrebatadora em sua coragem para abandonar a interpretação clássica do cinema oprtando por uma atuação naturalista anti-cinematográfica (os personagens que se interrompem nas falas, os diálogos banais). Filme muito gratificante em sua montagem e uma obra selvagem em na deliberada ação de denúncia e revolta diante do sistema social que proclama a vitória do homem sobre o homem.
Pastoral: Morrer no Campo
4.4 20Pastoral é um fascinante exercício de reconstrução mnemônica e ao mesmo tempo de desconstrução do fetiche da memória como arca superior da experiência. Filme surpreendente em sua carga imagética e literária (os haikais são belíssimos e os diálogos e monólogos imperdíveis) e em sua beligerância para desmontar a fantasia cinematográfica (o final emblemático é de uma coragem sem precedentes, só igualado em Jodorowski no final de A Montanha Sagrada) ao mesmo tempo que inaugura uma nova concepção de cinema e de memória. A memória e o cinema são artefatos em comum: ambos são ferramentes de reordenação da experiência viva do homem. A onipresença dos relógios parece acentuar o inequívoco desejo de questionar a instituição simbólica do tempo e quando o futuro (presente) encontra o passado para um jogo e conversa entre iguais sabemos que estamos diante de uma transgressividade bélica contra as mentiras e convenções narrativas. A lição de Terayama é um profundo ceticismo e ao mesmo tempo uma aceitação das profundezas da tradição e na influência que ela tem sobre o presente. Uma famosa frase dos positivistas dizia que "Os mortos governam os vivos" e Terayama parece fazer coro com eles: o passado governa o presente. No entanto, a quebra narrativa proposta por Terayama ao colocar em diálogo dois tempos conflituosos parece indicar um profundo desejo de renovação > os mortos devem parar de governar os vivos. Soberbo! Soberbo! E lindo, lírico e arrebatador. Virei fã.
Os Monstros de Babaloo
3.8 17Entre bananas e ananás, entre gastos absurdos e fanfarras bizarras, entre a arte e o lixo: eis a posição desse maravilhoso filme na constelação do cinema nacional e mundial. A perspicácia em analisar a decadência de uma família burguesa é perfeita e transcende o seu círculo para denunciar a decadência de toda a sociedade brasileira. A classe dirigente nunca foi tão apunhalada como nesta tragédia burlesca encenada no novo mundo:o deboche transborda a pura avacalhação e se transforma em dispositivo crítico. O riso nunca foi tão amargo, o humor tão ácido. Eis que temos o retrato avassalador do parvenu brasileiro, homem rico e sem inteligência, disposto a vender peixe podre e matar qualquer ser humano com sua máscara hedionda de palhaço. A família, essa instituição frágil e estranha, se torna o epicentro da crítica de valores que Elyseu Visconti promove. Não é à toa que no final do século XIX os brasileiros eram denominados pejorativamente em Paris como rastaqüeras: essas figuras bizarras com seus gastos luxuosos que transformaram o país em um puteiro. Rir em um filme nunca foi tão doloroso. O tapa é com luva de pelica, mas o hematoma que fica é muito roxo. Indispensável!
O Pequeno Fugitivo
4.2 15Não foi à toa que Truffaut listou este título como uma das grandes influências para a revolução francesa do cinema proposta pela Nouvelle Vague. É de um frescor artesanal incrível, de uma independência louvável diante da catástrofe do cinema norte-americano de estúdio. Feito nas ruas, no calor do momento, quase um documentário, esta pérola é de uma beleza estonteante e um passo decisivo no estilo "câmera na mão, ideia na cabeça".
Terra em Transe
4.1 286 Assista AgoraJuro que não esperava por isso: estou completamente chocado diante deste filme. Completamente absorvido pelo seu discurso explosivo. Ninguém foi tão longe na descrição microscópica da nossa política. Ninguém foi tão longe... A melhor obra do cinema nacional que já vi. É, com certeza, uma das melhores obras de um período tão rico no cinema mundial. É difícil economizar adjetivos, este filme nos obriga a uma passionalidade assustadora. Teatral, político, artístico até o osso. Sequências avassaladoras, diálogos e monólogos absurdos. Tudo para culminar naquele final emblemático: este filme é uma arma apontada na cara do cidadão brasileiro, da alma dos trópicos, da consciência do homem que aqui vive. Ninguém sai ileso.
O Gato Preto
4.1 54 Assista AgoraA preocupação ética de Shindo perfura qualquer gênero narrativa para explodir em uma vibrante crítica social. Não é um filme de terror nem um filme de samurai exploitation, mas antes uma obra-prima que utiliza os recursos dos gêneros citados para desmontá-los e revelar o conteúdo ideológico do esqueleto. Shindô não está preocupado em assustar o espectador e muito menos faze-lo vibrar com batalhas de espada, mas antes está procurando acordá-lo para problemas mais sérios: a posição das mulheres na sociedade, a fetichização da violência gratuita e a inconsciência da luta de classes no mundo. Temas extremamente contemporâneos, mas que Shindo declara serem muito mais antigos e historicamente determinados. A história de terror é uma farsa brilhante para desmascarar os problemas do homem no mundo. A técnica do filme é soberba: o expressionismo, o uso de recursos teatrais e os efeitos especiais elegantemente aplicados revelam a sensibilidade do artista Shindo que consegue fazer do seu filme uma conquista estética pautado na ética e na consciência de estar lidando com um mundo cruel que precisa ser modificado.
Fogo na Planície
4.3 15A medida que o filme avança somos transportados lentamente para o âmago do desespero, da violência e do limite. Somos arremessados dentro de uma fadiga insuportável de encarar o hediondo da condição humana sob configurações históricas específicas. O que mais dói em Fogos na planície é saber que toda a ilusão e distância segura da ficção é abalada pelo constrangimento de estar não diante de um palco que afasta a realidade, mas antes diante da mais pura verdade. Tudo isso aconteceu e continuará acontecendo: o gênero humano é um animal em bancarrota na superfície do mundo.
Corações e Mentes
4.5 47Os EUA, como sempre, garantindo lugar no pódio de crimes cometidos contra a humanidade. A lavagem cerebral sempre foi uma das especialidades dessa cultura. Eis o resultado.
À Margem da Vida
4.2 18 Assista AgoraEstou absolutamente chocado com o percurso brutal deste filme e igualmente embasbacado por ele ter saído de dentro dos EUA na década de 50. O enredo realista-fatalista com sua descrição impiedosa do sistema carcerário e de seus vícios internos que revelam os vícios externos de uma sociedade decadente. Parece um desses romances naturalistas brasileiros de tão incisivo em sua denúncia. Um filme que não faz concessões na hora de pintar o seu retrato imundo da hipocrisia e da crueldade de um sistema social inoperante para reabilitar os seus delinquentes, mas antes os chafurdando ainda mais no poço da marginália da vida. Já disse alguém que não é culpa do espelho se a cara é suja, então não é culpa do filme se a sociedade é podre. Impossível esquecer o sadismo de Harper: ela é o personagem mais ululante em sua psicologia perversa, emulando passo-a-passo a psicologia de todo um sistema. "É impossível vencer o sistema" - disse Marie Allen, mas é possível desmascará-lo e isso o filme faz muito bem. Palmas para essa ovelha negra da filmografia norte-americana. Deve ter incomodado muita gente!
Barravento
3.9 70"Pra mim, Princesa Isabel é ilusão!" - Nada como uma frase dessas para "alumiar" o grande engodo que foi 1888! Libertar escravos para jogá-los na lama, que grande obra! tsc, tsc. Para além disso: que filme estupendo em revelar a cultura bahiana (não vou dizer cultura brasileira porque isso é uma generalização pretensiosa ou ninguém nunca parou no google maps pra olhar o tamanho desse Brasil?), estupendo e prodigioso no uso da sonoplastia e da fotografia, engenhoso ao utilizar o misticismo e o contexto social como estruturas da narrativa. Nada nesse grande filme brasileiro parece transpirar exotismo e fetichização da ala baiana do Brasil, mas apenas (como um romance naturalista que encontra a vanguarda) revelar aos olhos nossos um mundo cuja distância física é pouca, mas que nós tratamentos como se fosse nos confins da Ásia. Não, esse mundo é aqui, ao nosso lado. Viva Glauber! e ele vive, em cada segundo de projeção. Estupendo!
Portal da Carne
4.1 13As instituições sociais faliram após a falência do próprio gênero humano com a experiência traumática do século passado e é mais ou menos isso o que é demonstrado em Portal da Carne, um filme que se converte, pouco a pouco, em uma experiência radical de linguagem cinematográfica apontada para as feridas mais sangrentas do pós-guerra. O amor, o casamento e o erotismo de entregar o corpo por prazer são sistematicamente derrubados neste colorido e terrível filme de Suzuki. A esperança de encontrar o passado da história humana escondido nos destroços da guerra parece ser o fio condutor da psicologia de alguns personagens, personagens que tentam reconstruir a ordem do mundo no estado de suspensão civilizatória apresentado na película. É difícil sair ileso daqui, pois estamos diante de um retrato cru, sem delongas, sem adornos (apesar da estonteante paleta de cores quentes e dos enquadramentos maravilhosos) de uma geração que viu o crepúsculo do mundo sem sinais de amanhecer. Assistir este filme hoje é estar mais perto daquilo que a História nos concede como prova suficiente de que o homem é um ser em bancarrota. Ah, e como esquecer do sacrifício da vaca? Suzuki é rei!
Terra de Ninguém
3.9 193É impossível não se impressionar com o abismo que há entre as reações dos personagens e suas consequências. Rios de sangue não são o suficiente para abalar essas estruturas terrivelmente sólidas que são os rostos de Kit e Holly. Personagens atípicos que parecem ter sido pescados diretamente da psicologia de Bresson e também de outro road-movie radical: two-lane blacktop do Monte Hellman. É louvável quando um diretor, unindo a estética avassaladora da imagem com um texto igualmente chocante em sua frieza, tece um filme que não pretende ser um julgamento moral, mas apenas a prova de que o mundo e os homens estão aí e que ambos estão dispostos a tudo. Por trás de cada olhar gélido e apático desses personagens parece se esconder a mensagem de que a vida não vale muito e de que nossas ilusões (igualmente sustentadas por estruturas sociais) estão prontas a desmoronar em cada esquina. Depois de demonstrar - igualmente como Monte Hellman - o esvaziamento dos sentidos da vida perante a arquitetura assombrosa e indiferente do mundo, Malick também parece tecer aquilo que poderíamos definir como o legítimo herói norte-americano: o homem que procura a violência radical para justificar a vida.. mas voilá: eis que a vida se revela injustificável. Não é à toa que Kit consegue a simpatia de todos, pois ele emana o ideal selvagem daquilo que chamamos de natureza humana. Os policiais que clamam silenciosamente o heroísmo de Kit são, também, homens que gostariam de abandonar o excesso de significado da sociedade para abraçar a radicalidade e o vazio que parece ser a mensagem principal que o mundo tem para nos dar. Também vale lembrar de outro casal assassino da filmografia norte-americana: o casal de the honeymoon killers. Parece que o cinema dos EUA encontrou uma resposta a explosão de duplas anarquistas que surgiu no cinema europeu. As Margaridas e Pierrot Le Fou são mais metafóricos em suas mensagens de subversão, mas a tradição ianque preferiu tergiversar metáforas e apresentar a objetividade insuperável da violência.
Contos Imorais
2.9 43 Assista AgoraO erotismo máximo e o cinema máximo se encontram nesses quatro contos de tirar o fôlego de um bom cristão. São sequências e sequências de beleza imagética mesclada com a nudez incontrolável dos corpos. O clímax maravilhoso das mulheres brigando pelas pérolas do vestido da condessa é minha cena favorita.
A Batalha do Chile - Primeira Parte: A Insurreição da …
4.6 32Durante a longa duração deste documentário o coração vai ficando apertado e, depois do tétrico final da primeira parte, vem finalmente o desfecho avassalador da segunda parte que mostra em detalhes o crime (Não tem outro nome) perpetrado contra Salvador Allende (eleito pela via democrática e, diga-se de passagem, um homem que sempre quis resolver os problemas por vias democráticas) e contra o povo chileno que, como a terceira parte mostra, estava organizado de uma forma impecável para descentralizar o poder. O que temos diante dos olhos é a anatomia de um crime, que custou milhões de vidas e colocou a ditadura chilena como uma das mais sangrentas da história latino-americana. Não é difícil entender o ódio generalizado que povos ao redor do mundo têm dos EUA, já que qualquer pessoa que se dedica a estudar os mandos e desmandos do Império Americano verificará a lista de crimes que este país cometeu com sua política externa, país que se assemelha a uma criança que ao entrar em uma loja pede e exige aquilo que quer de todos os jeitos possíveis. É triste e depressivo ver como uma democracia brilhante foi esmagada pelo fascismo e pela violência radical. Alguém não tem o coração feito em pedaços ao assistir o bombardeio a La Moneda? Salvador Allende é um herói trágico: amado pelo povo, odiado pela elite e pelos EUA. E assim comos os heróis trágicos ele termina. Se alguém tem dúvidas do que veio depois é só visitar o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos e as casas de tortura e morte espalhadas por todos os cantos de Santiago.
A Opinião Pública
3.7 32O mesmo Arnaldo Jabor que chamou as Manifestações de Junho de "vandalismo" e que recentemente disse que o governo atual é um neobolchevismo (!!!), é o homem por trás desse documentário que não faz concessão ao conformismo da classe média que culminou na ditadura militar. O homem Jabor envelheceu muito mal, se tornando ele mesmo o conformista que tanto criticou no seu filme-tese. Mas voltemos à 1967: o documentário do jovem Jabor tem uma montagem brilhante, um fundo teórico que mescla a poesia de um Drummond com os pensamentos do materialismo histórico para erguer uma crítica avassaladora aos padrões contemporâneos. O homem que encontra a felicidade na próxima compra de carro ou apartamento, a mulher que se encerra no seu claustro familiar e se fecha para o seu próprio desenvolvimento como ser humano e, finalmente, a classe média que, quando bem manipulada, pode trabalhar contra si mesma: e não foi exatamente isso que aconteceu? Esse documentário é brilhante em radiografar a mentalidade de uma época que, infelizmente, ainda não passou completamente ou alguém acha que esse documentário também não mete o dedo na ferida atual?
O Canto do Mar
3.8 13 Assista AgoraNão entendo a recepção negativa que este filme suscitou em um Glauber Rocha e entre outros críticos da época. Glauber o acusou de ser "um filme do passado". Para o bem ou para o mal, O Canto do Mar é, sem dúvidas, o precursor legítimo do cinema novo, pois envolve em sua teia de arquitetura diversa todos os temas que irão explodir no cinema brasileiro anos depois. O seu flerte com o neorrealismo italiano, a sua aura de romance naturalista brasileiro, a densidade lírica, o uso primoroso da paisagem como elemento de reflexo psicológico dos personagens, sua estrutura que passa do ficcional ao documental com liberdade invejável - todos esses elementos pinçados juntos dizem-nos que estamos diante de uma obra sem igual no panorama nacional de então. Cavalcanti é um homem do seu tempo e se ele causa incômodo com algum artificialismo que sua obra possa exibir, por outro lado o seu filme é um passo decisivo para o cinema nacional. Como escreveu Eduardo Escorel na Piauí: "Vidas Secas e Deus e o Diabo são a negação dialética de O canto do mar. Mas para poderem negar foi preciso que o filme de Cavalcanti tivesse existido." Acho que todo mundo deve entrar em contato com essa obra valiosa e seminal da história do nosso cinema, pois sua beleza e sua poética passam longe das sociochanchadas e do cinema burguês do mesmo período. "O esquecimento de Alberto Cavalcanti é um escândalo".
Os Fuzis
4.1 72Depois de revolucionar o cinema brasileiro com Os Cafajestes em sua montagem ousada e criativa, Ruy Guerra volta: dessa vez marcando com brasa a consciência nacional. No ano do golpe militar, este filme (originalmente Ruy Guerra iria filmá-lo na Grécia com outro contexto) é absolutamente avassalador no seu registro documental da epopéia famélica destes povos abandonados por um Estado que vigia os bens individuais com força violenta, forçando assim a aparecer figuras messiânicas que prometem chuva. Nos aspectos formais o filme também é glorioso: os registros de cinéma vérité captando a voz do povo em depoimentos ancestrais ou os closes (é um filme de closes, em absoluto) na figura dos soldados ajudam a garantir o lugar dessa película como uma realização surpreendente do nosso cinema. É uma obra diferente (e não melhor ou pior!) de Deus e o Diabo na terra do sol do Glauber, pois enquanto este é um mergulho no registro documental (é possível definir as fronteiras entre o documental e o ficcional dentro do cinema?) e tortuoso da realidade de um extrato social, aquele é o paroxismo da subjetividade capturada no cinema da psicologia de um mundo.
Duet for Cannibals
3.9 1Dois casais diferentes, duas visões de mundo que entram em duelo. De um lado, o tradicionalismo marcadamente ocidental apresentado pelo papel de Lars Ekborg e sua namorada, do outro, a alucinada e vertiginosa dupla composta pelo Professor Bauer e por Francesca. Seriam eles a alegoria de duas tendências artísticas que entram em choque? (o psicologismo tradicional frente a vanguarda artística) ou se trata apenas de uma provocação repleta de hermetismo dirigida ao público lobotomizado pelas narrativas comerciais? É difícil dizer qualquer coisa sobre esse filme que, assim como Persona de Bergman, nos coloca em estado de suspensão psicológica. Se o filme é realmente o conto de duas tendências diversas que entram em choque, é claro que a diretora fez a sua opção: o casal subversivo reeduca o tradicional, transformando o modo como eles enxergavam a vida em coisa diversa. O trabalho de direção sóbrio, com poucas locações externas (mas que mesmo nas poucas externas apresenta uma economia brilhante e proporciona cenas antológicas, com a cena do louco no restaurante ou das paredes pichadas na estação) conjugado com um texto intrigante e metáforas visuais poderosas fazem desse filme um produto genuíno de seu tempo: o tempo em que pessoas como Godard e Robbe-Grillet colocam o público para pensar e também para confrontar o próprio pensamento como instituição. A tentação para interpretar esse filme é forte, mas deveríamos deixá-lo em paz. A própria diretora escreveu sobre Persona:"a correct understandingof Persona must go beyond the psychological point of view." - o mesmo vale para o seu filme provocador.
Amar Foi Minha Ruína
4.1 122 Assista AgoraÉ impossível para um telespectador moderno não se sentir enfeitiçado diante da explosão imoderada de cores do technicolor soberbamente aplicado. Hoje o filme, se abstrairmos o seu estado de filme, vale muito mais pelo espetáculo que ele proporciona aos olhos do que à mente, isto é, vale muito mais pela estética, pela plástica. A verdade é inegável: Hollywood se especializou em atrair o seu público pelo aspecto mais irracional, isto é, fisgando-o com a beleza e deixando todo o resto de lado. É só fazer um exercício: remover o conteúdo do filme (a história que ele conta) e aplicá-lo em outro contexto sem a plástica soberba das locações e do tecnicolor. O que teremos então? Uma história que já foi contada milhões de vezes, antes e depois da data do filme, e que podemos encontrar inclusive nas nossas novelas brasileiras. Esse é o sintoma de como as narrativas comerciais estão fossilizadas e Hollywood continua produzindo o mesmo tipo de coisa desde Griffith. Repito e tenho dito: o filme é um espetáculo para os olhos (Alguém consegue dissociar a estética do filme da pintora colonial norte-americana? Do paisagismo dos quadros de um Albert Bierstadt por exemplo?), mas uma afronta ao intelecto.
Tóquio Violenta
3.7 29Apesar da estonteante direção de arte (o décor das últimas cenas é simplesmente incrível), este filme não é um trabalho excepcional de Suzuki e até lembra um pouco o lastimável Elegia da Briga do mesmo diretor nas cenas insuportáveis de pancadaria. Talvez isso seja um pouco a mão de ferro da Nikkatsu Corporation exercendo pressão para tornar o filme vendável. O que fica são as cores de uma beleza suprema e o estiloso PB de abertura com seu toque de pop art, o resto é o resto, apesar de sentir sinceramente estar diante de um filme acima da média dentro do seu gênero.