Há um detalhe tão pequeno que, por aparecer tão mais que esperado, pra mim se tornou imenso para se pensar esse filme. A questão da identidade, é evidente, permeia A Pele que Habito:
desde a exposição de Robert perante os espectadores, nota-se por quase duas horas como Almodóvar vai abordando, aqui e acolá, o quesito do ser, de como eu me identifico e como o faço: da insanidade "científica" de Robert até a figura de Marília como uma mãe que germinou frutos "problemáticos",
tal tonalidade vira a tônica e dá as cores ao filme. "O rosto nos identifica", é o que fala Robert; e aí chegamos no que me chamou a atenção:
ao longo de todo o discurso narrativo sobre como me identifico, como eu me vejo e o que "de fato sou", me chama muito a atenção, na casa ricamente decorada do doutor, um quadro. Um quadro em seu quarto no qual dois corpos (humanos? Divinos?) dividem a perspectiva de quem o vê. Ambos prostram-se num lugar bucólico, à beira de um lago (ou um mar? Não me recordo bem), quase que um paraíso. Ela, deitada de costas, vê ele, em pé de posição quase que heroica. Mas, detalhe: os corpos não tem rostos, quase como que a capa do álbum "Singles" do Future Islands. Em um filme que preza pela discussão das identidades e de como nos vemos, um detalhe, pequeno, engloba e enriquece essa obra prima do Almodóvar.
o anti-herói dos valores jedi. O papel atribuído ao Mark Hammil nesse filme pra mim foi um dos maiores ao longo de todos da saga até então: como pegar o herói clássico que Luke Skywalker era, consolidado por três filmes de valor titânico ao cinema, e, em partes de um filme no qual o Luke nem era protagonista, praticamente virar do avesso tal personagem? Vou me explicar melhor, e o por quê considero tal papel um dos maiores. Star Wars, por muito tempo, apoiou-se na questão maniqueísta da Força: a trilogia clássica deu a base pra tal pensamento, e os episódios I, II e III, apesar de já darem indícios de que a parada não era bem essa, não abordaram tal proposição. A Força não é explicada por puro maniqueísmo: não é simplesmente os jedi (bom) e os sith (mal), a situação não se explica tão facilmente assim. O baque causado pelo exílio involuntário de Luke, quando tudo deu merda com Kylo Ren, o faz (e a nós fãs também) ter a sensação de que a crença de que estava lutando por um lado "bom" se apoiava necessariamente no lado jedi. Ora, vemos Luke criticar as escrituras clássicas: pensa até em tocar fogo (e literalmente morreu pensando, porque vemos Rey, na nave, levar os livros) na biblioteca da filosofia jedi, por entrar em conflito naquilo que ele considerava ser sua identidade; vemos também um constante desprezo dele ao nomes dos grandes jedi que estavam ali, por supostos atos que haviam sido feitos em determinadas épocas e garantiram o equilíbrio ao universo. Luke sabe que tais escrituras são românticas DEMAIS. O domínio/presença jedi nunca garantiu, à todos rincões dos planetas, a suposta paz que deveria haver, do mesmo modo como a presença imperial e sith levou opressão e horror à cantos até então livres. Luke não quer se vangloriar, ficar para a história como um intocável, até porque renega isso (existia Nietzsche nesse universo?),
e chegamos, por isso, a uma das cenas mais lindas e carregadas de todo o universo Star Wars:
o transcender de Luke é a confirmação de tudo aquilo no que ele acreditava: Luke criticou a Ordem Jedi, não a negou; Luke entende que o Império tem de ser derrubado, mas não por causa da presença sith. A Força não é preponderante no "bem" ou "mal", e isto é uma escolha individual. Luke, que queria certamente fugir de todo romantismo típico que se atribui aos supostos "heróis", faz sua ação calada, apenas para si: Kylo Ren acredita, certamente, que Luke está vivo e em fuga com o que restou dos rebeldes; Rey pensa que Luke faleceu, heroicamente, em combate segurando a Nova Ordem. Mal sabem que Luke fez a maior demonstração do uso da Força em um planeta esquecido, consumindo tudo aquilo que existia dentro de si. Humildemente e, na opinião desse que vos escreve, aí sim heroicamente, Luke faz o mais grandioso ato de toda a saga sem nenhum momento se vangloriar ou gabar por isso.
"Haveria um tempo no qual eu mandaria lhe fuzilar"
, disse Endicott resumindo, em uma cena de pouco mais de vinte minutos, quase que sociologicamente as relações étnicas e preconceituosas do sul estadunidense de ontem e de hoje.
"Não há texto [...] que possa conter a verdade. A verdade só existe na vida; você é a verdade. [...] Não há verdade, exceto naquilo que acredita que o que faz é verdade. [...] Nós somos todos mentirosos, pelo menos um pouco".
Mentiras de Guerra é um filme peculiar em todos os sentidos; uma breve reflexão, do momento em que foi feito, como foi feito e talvez o por quê foi feito ajudam a assimilar um pouco o que foi, e é, este vencedor de Palma de Ouro. Alguns historiadores e professores de história compartilham da opinião de que "o breve século XX", marcado por guerras, massacres e atrocidades numa escala jamais vista nas sociedades humanas, perpassa, em seu começo e fim, uma cidade balcânica: Belgrado. Foi lá, em 1914, que um atentado terrorista serviu de justificativa pra uma série de declarações de guerra entre as potências e impérios à época; também foi lá que, já na década de 1990, quase 70 anos após a Primeira Guerra Mundial, a Europa percebeu que os horrores da primeira metade do século poderiam sim se repetir, em uma guerra civil fratricida num país (e cidade) que serviu bem de quadro deste "breve século"; Belgrado viveu duas guerras mundiais, um reinado que ignorava as questões e identidades nacionais, a fúria nazista e, como cereja do bolo, o poder de um mão-de-ferro que, por linhas tortas, passou a imagem de ordem neste país do lado comunista da chamada Cortina de Ferro. Para completar, com a queda dos regimes socialistas, o país experimentou uma guerra civil absurda no qual as grandes potências ocidentais e a ONU viraram suas costas e deixaram o caldeirão étnico, tenso na região há séculos, explodir com respingos em boa parte das sociedades europeias atuais (olá, imigração em massa). Kusturica perpassa boa parte dessa linha do tempo histórica aqui; e, bizarramente, por meio da comédia. Mentiras de Guerra não é peculiar pra mim apenas por isso: foi exibido em 1995, sendo provavelmente produzido antes, quando a Iugoslávia, agora dividida, abria suas feridas ao mundo em uma série de chacinas étnicas na guerra civil que marcou o continente europeu de fins de século. Boa parte dessa história é abordada em 170 minutos de humor um tanto quanto......estranho. O sofrimento e o horror da invasão nazista, a crítica virulenta ao sistema socialista imposto por Tito pós-guerra, com as memórias sendo deturpadas e literalmente sendo escondidas debaixo de porão, a divisão do país pós-queda da Cortina de Ferro: pra não me alongar tanto, é um filme que tem um peso histórico incomensurável. É, como todo filme agraciado com uma Palma de Ouro, imperdível.
"É incrível como às vezes nos metemos em encrencas que não conseguimos sequer entender, e mesmo assim não conseguimos pensar mais em nada. Ficamos tão transtornados que não servimos para nada".
Kubrick, com um roteiro narrativo fraco e algumas atuações duvidosas (Irene Kane em nenhum momento me convenceu aqui - e olha que sou péssimo para avaliar atuações!), faz aquilo que dá a sensação de ter sido o filme mais "cru" de sua filmografia: o plot, curto, parece se encaixar no formato que a United Press certamente impôs/cobrou à produção do filme (quero acreditar, fã bobo que sou, que tal recorte de tempo foi imposto, e não uma exigência do Stanley): como comentaram mais abaixo, a impressão que se tem é de que Killer's Kiss nada mais é que um grande laboratório no qual um diretor ainda jovem literalmente testa, arrisca e ousa mas, como fruto de tais ações, também erra. Kubrick brinca com efeitos e tomadas constantemente (pra um filme com menos de uma hora e dez minutos isso vira até muito ousado e arisco demais pro que viria a ser o produto final): a cena do
pesadelo de Davey, durante o ataque de Vincent à Glória, e a ira de Vincent arremessando um copo de whisky em um pôster e "atingindo" a câmera
são alguns exemplos do laboratório cinematográfico que foi feito aqui. Entretanto, grandes marcas do estilo de produção kubrickiana ainda não se fizeram presentes: não esperem pelas longas tomadas envoltas em música, como a abertura do Laranja Mecânica, a neurose de Jack em O Iluminado ou a exposição dos mártires de Spartacus; em compensação, a fotografia noir é belíssima, e chegou a me lembrar em certos pontos alguns "vícios" de câmera que seriam explorados em seu último filme, tal como
as tomadas laterais das ruas nova-iorquinas, dando uma sensação próxima ao que seria visto no Eyes Wide Shut.
No fim, esta é a sensação pós Killer's Kiss: um laboratório, mediano, de um diretor que viria a ser o maior de sua classe. Felizmente a recuperação não tardou: no ano seguinte sairia aquele filmaço que seria, e é, o The Killing ;)
"Pegue suas roupas e vá para a saída, se você cair fora ninguém irá reclamar. Encontre o lugar onde você pode ser entediante, aonde você não precisa dar explicações que você está doente da cabeça e desejava estar morto. [...] Você é péssimo em autopreservação, contra as outras dores de qualquer um [...] Então se levante e pare de reclamar, você sabe que é o único que está destruindo toda a diversão. Veja o que aconteceu enquanto você estava sonhando: por isso, se soque na cara".
Música "American Dream", do LCD Soundsystem; mas poderia ser uma peça de Caden e, infelizmente, do próprio Philip Seymour Hoffman.
"Não importa quão frio esteja; mas no dia em que fores à montanha, nem colete acolchoado pode vestir. Pode ser duro e sofrido, mas Narayama em neve é bem melhor.
Para nós ocidentais que cultivamos uma imagem idílica do Japão e de sua história pelo alcançamos/consumimos/importamos (tais como animes, filmes, games e músicas), alguns filmes quebram e rompem aquela fronteira longamente delimitada entre um romantismo desejado e/ou esperado, no qual vemos a "terra do sol nascente" como um espaço de uma sociedade refinada, casta e, para alguns racistas, superior, e aquilo que por vezes representa algo próximo da "realidade", se podemos chamar assim. Como exemplo, temos o "Harakiri", filme de 1962 que "destrói" a imagem romantizada dos samurais; mas também temos "A balada de Narayama" que nos apresenta, através do cotidiano de uma vila esquecida nos sopés de algumas montanhas, as relações sociais conturbadas de um Japão que, apesar de saído recentemente de um feudalismo, ainda apresenta em suas entranhas aspectos de uma sociedade tal. A construção cinematográfica de Imamura é belíssima, e aqui discordo de alguns comentários anteriores presentes em análises sobre o filme: se estamos em um período de fins do século XIX e de uma modernização forçada pelo Estado Meiji, conforme nos informa a sinopse, o bucolismo rural é reforçado na fotografia do filme; animais que, em suas reações naturais na luta pela sobrevivência da natureza, não se distanciam tanto da natureza de seus parentes humanos. As cenas de
amor, entrecortadas com imagens de pequenas cobras se entrelaçando, exemplificam tal ponto, e são belíssimas.
O mundo natural, por vezes, é mais próximo do que se imagina das sociedades humanas, e Imamura nos transmite tal sensação a partir da montagem de algumas destas cenas nos quais pássaros, cobras, ratos e furões dividem o mesmo espaço com os habitantes do vilarejo. Se muitos japoneses ainda hoje tentam passar a imagem de uma suposta sociedade perfeita que têm, em uma mistura explosiva de chauvinismo exacerbado e xenofobia, Imamura escapa pela tangente por um caminho completamente oposto: o profano e o sagrado se misturam na balada de Narayama. Justiça, muitas vezes, é feita pelas próprias mãos; como não se emocionar
na cena de desterro da famíla Amaya, no qual uma moça, grávida, é literalmente enterrada (viva) à força? O choro de Tatsuhei, aqui, expõe as violências e tensões de tais relações.
Como não citar, também, a relação (contraditória?) de
Tatsuhei com seu pai? Uma relação de quase ranço: de porte de um rifle, símbolo desse modernismo recém-chegado à ilha, Tatsuhei tenta espantar o espírito do pai ao atirar nas árvores.
É uma viagem enriquecedora por uma história que nos é, muitas vezes, mal contada pelo que recebemos culturalmente e até nas salas de aula de História; mas Risuke, com suas baladas sobre o cotidiano, certamente nos facilita o conhecimento sobre o cotidiano e, por que não, a história do Japão a partir deste pequeno vilarejo que repousa ao pé da montanha sagrada de Narayama.
O que me impressiona, no fim de tudo, é que um ano depois do lançamento do filme um livre pensador chamado Guy Debord escreveria que "o espetáculo se apresenta como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é 'o que aparece é bom, o que é bom aparece'. A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência". É impossível ler isso e não se remeter à cena
de Montag sendo alertado de sua própria perseguição, ao vivo, nas "telas de parede". Sem questionamentos para os telespectadores, positivo, indiscutível, inacessível e, certamente como notamos pelo espetáculo armado, grandioso.
Bradbury escreveu o romance sci-fi distópico em 1953, no auge do macartismo, em um momento de ápice da chamada Guerra Fria no qual a censura encontrava-se normatizada enquanto prática na sociedade estadunidense. Truffaut adaptou a obra pra filme em 1966, já num cenário de turbulência que sacudiria a França (e o mundo) dois anos depois; e, no ano seguinte ao debut da adaptação truffautiana, Debord escreve "A sociedade do espetáculo" expondo as entranhas midiáticas que cercam mais do que os meios de comunicação: a sociedade enquanto um todo. Para os três, só uma palavra: gênios.
Curioso: pra mim pareceu um filme de "combate", no sentido literal da palavra. Um cinema que aborde as questões de relacionamentos homoafetivos historicamente não encontram espaço nos grandes festivais ou em popularidade, e nem sempre por questões puramente técnicas. O vejo, até, como um precursor de "Moonlight" neste sentido. Quanto às cenas de sexo e/ou brigas, que certamente incomodaram muito conforme podemos ver em certos comentários abaixo que infelizmente procuram reduzir e ver o filme só enquanto neste aspecto, confesso que senti um misto: cenas que realmente incomodam são necessárias; sair do "natural" cinematográfico é sempre bom, desconstrói aquele lugar no qual estamos sempre acomodados ou confortáveis. Cinema vive do impacto. Porém, fins justificam meios? Lembro que, à época, o diretor foi acusado de literalmente abusar das atrizes, levando-as a constrangimentos e desconfortos por reencenar constantemente as cenas que justamente causaram estranhamento (ou o que diabo seja) a alguns espectadores. O ponto, enfim, que quero chegar (e até para debates, caso alguém se interesse) é que já o vejo como clássico. As abordagens são necessárias, e por isso não o vi como um filme "longo" e "cansativo": as cenas
no qual vemos Adèle e Emma conhecendo as respectivas famílias das companheiras são belíssimas; uma estrutura mais "liberal" por parte da família de Emma, e Adèle não sabendo admitir sua relação com outra mulher e na defensiva perante sua família mais "conservadora" é belíssima, por exemplo.
jantar. A analogia com o filme de época transmitido em um telão durante a festa, com Adèle sentindo-se isolada, acuada até, por Emma que só tinha olhos para Lise e se aproximando do ator é fantástica.
No mais, é um filme necessário, gostemos ou não. Aliás, a Criterion Collection não escolhe seus longas à toa, e certamente temos de pensá-lo dentro de seus cenários/contextos de produção.
"O que os depravados cidadãos estadunidenses querem? Todas as coisas sórdidas e sem censura: diários de prisão, tell-alls (espécie de ramo televisivo no qual o convidado literalmente se abre perante a câmera falando tudo - e mais um pouco - de sua vida/memórias), livros erótico-culinários ilustrativos. Não precisamos de fama, Elliot; infâmia, é o que recompensa." Confesso que Nerdland me chamou inicialmente a atenção não pelo roteiro sarcástico ou por expor a decadência moral dos nossos irmãos do Norte (ou no fim seria do mundo ocidental?). Conheci a animação por meio de um post naquela rede social que leva nome de livros e é azul na página do Geek. E, confesso mais uma vez, não estava preparado pro que iria ver. De início Nerdland choca. É bizarramente chocante. Expor valores sociais dos EUA do século XXI (e muitas vezes de nós mesmos) já é algo relativamente batido nesse campo, e Simpsons, South Park e Family Guy estão aí pra provar isso. Bojack Horseman, mais recentemente, vem puxando tal questão no campo mais dramático. O x da questão é que Nerdland expõe da maneira mais crua e (in)sensível possível. Busca incessante pela fama, jornais que sobrevivem de gore, valores descartáveis e demais coisas que vemos e convivemos no nosso dia a dia, seja pela televisão ou internet, se fazem aqui presentes embalados por uma batida eletrônica que chega a lembrar em alguns momentos o jogo Hotline Miami. Inúmeras referências "culturais" também estão presentes aqui: na cena
em que eles planejam assassinar a vizinha, uma religiosa cristã, notamos pendurado na sala aquele quadro de Jesus Cristo mal restaurado que virou meme na internet,
por exemplo. Nerdland atrai mais por esses fatores. Não é das coisas mais engraçadas que o cara pode escolher ver, mas em um futuro próximo - e aqui fica a dica - poderia dar uma ótima fonte para se pensar como alguns norte-americanos viam a si mesmo, e sua sociedade e cultura, em inícios do século XXI.
"Cada década que passa as coisas ficam pior: os anos 50 eram chatos, os anos 60, do rock, e os 70, logicamente, da droga. Quem sabe os 80 serão do radical. Eu acho que até o século XXI as coisas só vão piorar".
Cynthia, a pé-no-chão em meio ao romantismo nostálgico de Linklater sobre a juventude dos 70's (e como pioraram, Cynthia).
O fato é que a proposta é tão boa que fiquei quase que uma hora discutindo com dois amigos após ver o filme no cinema, e fizemos uns debates bem interessantes. Sempre bom explicar que nada aqui é A interpretação sobre o filme, obviamente, e que o lugar pra debate sempre tá aberto; agora se acomode aí que lá vem textão (e é grande mesmo). Creio que primeiramente uma coisa tem de ser posta, neste filme em que vemos um "poeta" buscando inspiração; a
Bíblia é simplesmente sensacional: o Ed Harris, nosso já eterno tiozinho nem tão simpático de Westworld, interpretando Adão é simplesmente fantástico. Ora, como assim Adão? Percebam algumas cenas: ele chega só à casa (seria esta uma sátira do mundo?) e, tossindo violentamente no banheiro, a Mãe (Gaia?) abre a porta e vê Ele ("Him" no original mesmo, com o H maiúsculo), papel de Javier Bardem, ajudando Adão; ponto-chave: ela vê um ferimento na parte das costas, mais exatamente nas costelas. Deus tapa, não a deixa ver o ferimento. Próxima cena? Chega a mulher de Adão à casa, nossa querida Eva.
Temos aqui uma jogada sensacional do Aranofsky: o personagem do Ed pode circular por todo o espaço dali, menos um. Daí em diante, temos um jogo sensacional da síntese do
cristianismo. O cristal (qual a importância dele? O que é ele? Chegarei à algumas ideias mais à frente),símbolo de uma reconstrução de projetos/vida Dele, constantemente atrai a atenção de Adão/Eva. Seria a peça, neste momento, uma sátira da maçã? O fato é que Adão respeita as ordens Dele, e mais acintosamente da Mãe, para não tocá-lo; Eva, porém, não respeita. Invade a sala com Adão onde fica o cristal, sem Sua permissão, e este é quebrado. O personagem do Bardem fica putaço e expulsa todos daquele local quase que sagrado, reduto de criatividade que não flui por parte Dele; mais: corta suas mãos no cristal, intencionalmente, e tapa a antiga sala (o Éden?) Plot twist: após a confusão a Mãe pega Adão e Eva fazendo o quê em seguida? Isso mesmo camarada, uma tremenda duma trepada. E quem são os frutos dessa relação? Aqueles pimpolhos maravilhosos chamados Caim e Abel que não tardam à chegar na humilde residência Dele, e que seguem à tona uma das mais famosas literaturas de assassinato da humanidade. Ponto curioso para uma análise pessoal que colocarei mais à frente: em uma conversa, Adão pergunta à Ele se é comum a visita de "fãs" em sua casa; a resposta Dele é algo como que "incrivelmente/raramente não". Touché: já podemos pressupor que anteriormente já tínhamos algo semelhante, o que explica a primeira Mãe pegando fogo, e que ainda falaremos mais na frente.
O desenrolar da história segue à uma alusão narrativa milenar,
vinda da família em luto após a morte de um dos filhos do Homem e Mulher (Adão e Eva). Uma família literalmente em peso, numerosa, de N etnias (temos africanos e orientais) e com zero de respeito pelos mortos; uma bela apropriação da humanidade, bíblica, não?
qual o significado da fotografia Dele em chifres? Fúria de Caim, que sempre afirmava que seu pai tinha olhos voltados apenas à Ele? Em cenas anteriores, vemos a Mãe tropeçar na mala de Adão, e sua surpresa é latente quando nota a foto de seu marido ali. Fascínio do personagem de Ed pelo poeta, de Adão por Deus? Questão para debate: o que seria, de fato, aquela coisa espirrando sangue no vaso? E o que a Mãe toma constantemente para evitar as tonturas?
E aqui chegamos no ponto que achei interessante, porém prejudicial ao que vinha sendo o filme. Em uma longa e tenebrosa sequência
bíblicas, ou até ambientais em certos pontos. Os convidados, na casa, destroem tudo. Se apropriam de tudo. A porra da residência simplesmente não aguenta tanto abuso(residência feita que quase exclusivamente apenas por ela, importante ressaltar). Em um momento um casal chega a quebrar a pia e inunda quase que a porra toda (sátira do velho conhecido de Aronofsky, Noé e seu dilúvio?). O fato é que Ele, mais uma vez, expulsa a galera; curiosidade: Ele já delineia mais fortemente, a partir daqui, uma face mais narcisista, egocêntrica; simplesmente larga sua mulher, Mãe (Gaia? Nosso planeta Terra), para se dedicar à sua obra máxima, seu poema definitivo. Quanto desprezo pelo feminino por parte Dele, não? Infelizmente, temos aqui uma das mais bizarras sequências: polícias e exércitos agindo, invadindo a casa. Sátira da proteção dos lugares sagrados cristãos? Para azar do Aronofsky, certamente preocupadíssimo com minha opinião nesse momento, achei muito pobre este trecho.
Voltemos ao personagem do Bardem e seu trabalho: obra esta que
é feita após, finalmente, sua transa. Apenas o sexo motivou sua escrita? Certamente não: toda a experiência, louca, na casa contribuiu. Todo aquele pessoal (a humanidade?) o inspira para seu trabalho (definitivo?): o poema finalmente é produzido, e vira um sucesso!
"Todos leem, mas cada um o interpreta de maneira diferente".
Alguns o interpretam a sério demais: a casa é invadida mais uma vez, por fãs, e todos querem um taco Dele. Deixam lembranças, roubam algo de sua casa, e a Mãe, coitada, acuada em sua gravidez dentro de seu próprio lar. Fãs do mesmo objeto começam a se matar por interpretações diferentes (sátiras às guerras religiosas? Intolerâncias?), e a própria Mãe é desrespeitada pelos fãs de seu marido. O que seria aquilo que vemos a Mãe ver (e apenas ela notar) no interior de sua casa, apodrecendo, ficando cinza? Seria a desilusão com seu casamento com Ele, fruto das decepções colhidas?
Ele passa por um incêndio. A casa, e todo mundo ali dentro, é queimado (repito, o que não é novo para Ele). A perda do filho (Jesus?) leva a Mãe quase que à loucura; Ele o utiliza, o entrega, a seus fãs que o matam, repartem seu corpo para comer (puta analogia da comunhão?). Voltando ao incêndio, é interessante: seria o porão o inferno? Percebam que boa parte do filme se passa no térreo, no máximo no andar da sala de estudos Dele; apenas em um momento o vemos no último andar, e com um olhar intenso de julgamento; seria o céu, o paraíso? Enfim, [spoiler]tudo ali é queimado. A Mãe, curiosamente, sobrevive; Ele arranca dela seu coração, em formato daquele antigo cristal (fruto de Amor, segundo Ele), e o põe no antigo lugar daquele mesmo anterior destruído por Adão e Eva. Toda a casa (nosso planeta? Ou espaço das narrativas religiosas?) se reconstrói; o final, entretanto, remete ao início: vemos uma nova Mãe. Não, não é a Jennifer Lawrence. Essa mãe tem uma tonalidade de pele mais morena, cabelos ondulados, uma etnia até um tanto arábica. Seria a Mãe dos muçulmanos? Ora, se tivemos já uma Mãe do cristianismo, evitada e nunca com créditos perante Ele (narcisista e egocêntrico como o Aranofsky o representa), lembremos que o filme inicia com outra Mãe, também em chamas. Quem seria a primeira Mãe? A do judaísmo?
"[...]um só deus ao mesmo tempo é três; E esse mesmo deus foi morto por vocês". Pra quem não sabe, judaísmo, cristianismo e islamismo compartilham do mesmo Deus. Voltamos à problemática: seria este filme do Aranofsky uma síntese do cristianismo?
Enfim. São algumas das interpretações, em debates com amigos, que entendi, vi, no filme. O debate tá aí: muita coisa, evidentemente, passou em aberto. Mas convenhamos, que sujeito egocêntrico e narcisista Ele, não? ;)
"Era uma vez um tamborileiro chamado Oskar. [...] Era uma vez um povo crédulo, que acreditava no Papai Noel. Mas o Papai Noel, na verdade, era o homem do gás." O tal do Cinema Novo Alemão, do pós-guerra e que se estende até meados dos anos 1980, parece (pelo menos pra mim) essencial por aquilo que o "cinema tradicional" não fez (ou fez pouco - ou, mais ainda, foi proibido de fazer): o repensar a sociedade alemã e a monstruosidade chamada nazismo que emergiu daquilo ali. "O Tambor" vai além: em situações que beiram o absurdo (comentado mais à frente), brincando com os valores daquela sociedade de outrora que se dizia "pura" e "casta", acrescenta novidades nesta discussão; um dos fatores, e que achei genial, o Marcos comentou mais abaixo: em uma cidade alemã, posteriormente polonesa e por fim invadida pelo Reich durante a guerra, como estabelecer uma identidade? Como aqueles habitantes, durante aquele período turbulento, se veem? O comerciante de brinquedos judeu tem uma mesma concepção de identidade daquela trabalhadora agrícola alemã? E o sujeito polonês dos correios, se acha próximo dos alemães que agora transitam por sua cidade? Demais aspectos também me prenderam, e acho importante até pra puxar discussão:
Quem assistiu notou como, especialmente no início do filme, muito dos trejeitos dos atores lembra bastante aquele período romântico do cinema? Atuações caracterizadas pelo estilo de época, lembrando muitas vezes os filmes do Chaplin. Seja um comer apressado com a família, um uso excessivo de gestos com a mão em discussões, as situações atrapalhadas pelo qual a polícia passa pra pegar o deliquente-marido da avó do Oskar. Curiosamente, muito disso vai se perdendo ao longo do filme; fim da era romântica e prenúncio da "modernidade"? Outro ponto: como terá sido a recepção das cenas de teor sexual? A cena de Maria com Oskar, durante a troca de roupas na praia, certamente não é algo casual de ver-se em filmes, seja de qual época for. Também fica a sensação de mais que uma "descansada" quando o Oskar vai pra cama com a mulher do andar de cima, já próximo do final do filme.
Por fim, e não menos importante: uma cena sensacional, que mostra o impacto das comunicações de massa e das transformações que não só os germânicos passaram, mas sim o mundo. Alfred, todo pimposo, trocando o retrato do Beethoven que fica acima do piano por um de Hitler logo após acomodar um rádio, novo, ali pelo local. E
"Um homem tem dois olhos, o Partido tem mil olhos, o Partido vê sete países, um homem vê uma cidade. [...] Um homem pode ser destruído, mas o Partido não pode ser destruído."
"A ansiedade que sentimos, todos os sonhos não realizados, a crueldade inexplicável, o medo da morte, a visão dolorosa da nossa condição terrestre, desgastou nossa esperança de uma salvação divina. Os gritos de nossa fé e dúvida contra a escuridão e o silêncio são uma prova terrível da nossa solidão e medo."
Intenso, como toda a filmografia do já hoje idoso Gavras. Cru e direto ao ponto, como a receita gavriana sugere. A ditadura do Uruguai é escancarada do modo mais objetivo possível: na interferência estrangeira, principalmente estadunidense mas também dos demais países latino-americanos (ê Brasil, que honra hein). É assustador pensar que esse filme foi feito em 1972, como já informaram aqui. Philip Santore na verdade era Daniel "Dan" Mitrione, policial ítalo-americano que veio, ancorado pelo FBI, à América Latina dar "apoio técnico" aos serviços policiais do continente; mais que isso: era professor de tortura. No Brasil, passou por São Paulo (onde conheceu o imbecil do Ulstra) e Belo Horizonte, ensinando técnicas de tortura aos policiais destas cidades utilizando mendigos como cobaia; em Montevidéu, como existiam pouquíssimos moradores de rua à época, utilizou presos (políticos) já dados como mortos pela informação oficial do regime (mas que estavam bem vivos nos porões) para ensinar sua técnica aos uruguaios. É impressionante o que Gavras fez aqui:
o interrogatório foi realmente realizado pelos montoneros quando capturaram Mitrione/Santore (inclusive, se acha fácil pela internet o texto transcrito em jornais da época - inclusive brasileiros), e todas as demais informações que Gavras jogam no filme foram realmente comprovadas tempos depois. Se você procurar, acha relatórios com relativa facilidade da NSA contendo relatórios feitos e sobre as funções que o estadunidense fazia à rodo pela América Latina.
As cenas de tortura demonstram um conhecimento quase que presente do Gavras: a descrição do pau-de-arara brasileiro, a hidráulica, etc. Mais um filme, como Z e, futuramente, Missings, corajosíssimo por parte de Costa-Gavras.
A Pele que Habito
4.2 5,1K Assista AgoraHá um detalhe tão pequeno que, por aparecer tão mais que esperado, pra mim se tornou imenso para se pensar esse filme.
A questão da identidade, é evidente, permeia A Pele que Habito:
desde a exposição de Robert perante os espectadores, nota-se por quase duas horas como Almodóvar vai abordando, aqui e acolá, o quesito do ser, de como eu me identifico e como o faço: da insanidade "científica" de Robert até a figura de Marília como uma mãe que germinou frutos "problemáticos",
"O rosto nos identifica", é o que fala Robert; e aí chegamos no que me chamou a atenção:
ao longo de todo o discurso narrativo sobre como me identifico, como eu me vejo e o que "de fato sou", me chama muito a atenção, na casa ricamente decorada do doutor, um quadro.
Um quadro em seu quarto no qual dois corpos (humanos? Divinos?) dividem a perspectiva de quem o vê. Ambos prostram-se num lugar bucólico, à beira de um lago (ou um mar? Não me recordo bem), quase que um paraíso. Ela, deitada de costas, vê ele, em pé de posição quase que heroica.
Mas, detalhe: os corpos não tem rostos, quase como que a capa do álbum "Singles" do Future Islands. Em um filme que preza pela discussão das identidades e de como nos vemos, um detalhe, pequeno, engloba e enriquece essa obra prima do Almodóvar.
Mais Forte que a Vingança
4.0 53 Assista AgoraBelíssimo, principalmente a cena
da travessia do Exército pelo cemitério indígena para o apoio aos colonos presos na estrada
O excelente quadrinho Ken Parker, da Bonelli, bebe, cospe e se rola nas referências à este filme.
Star Wars, Episódio VIII: Os Últimos Jedi
4.1 1,6K Assista AgoraLuke,
o anti-herói dos valores jedi.
O papel atribuído ao Mark Hammil nesse filme pra mim foi um dos maiores ao longo de todos da saga até então: como pegar o herói clássico que Luke Skywalker era, consolidado por três filmes de valor titânico ao cinema, e, em partes de um filme no qual o Luke nem era protagonista, praticamente virar do avesso tal personagem?
Vou me explicar melhor, e o por quê considero tal papel um dos maiores. Star Wars, por muito tempo, apoiou-se na questão maniqueísta da Força: a trilogia clássica deu a base pra tal pensamento, e os episódios I, II e III, apesar de já darem indícios de que a parada não era bem essa, não abordaram tal proposição.
A Força não é explicada por puro maniqueísmo: não é simplesmente os jedi (bom) e os sith (mal), a situação não se explica tão facilmente assim. O baque causado pelo exílio involuntário de Luke, quando tudo deu merda com Kylo Ren, o faz (e a nós fãs também) ter a sensação de que a crença de que estava lutando por um lado "bom" se apoiava necessariamente no lado jedi. Ora, vemos Luke criticar as escrituras clássicas: pensa até em tocar fogo (e literalmente morreu pensando, porque vemos Rey, na nave, levar os livros) na biblioteca da filosofia jedi, por entrar em conflito naquilo que ele considerava ser sua identidade; vemos também um constante desprezo dele ao nomes dos grandes jedi que estavam ali, por supostos atos que haviam sido feitos em determinadas épocas e garantiram o equilíbrio ao universo.
Luke sabe que tais escrituras são românticas DEMAIS. O domínio/presença jedi nunca garantiu, à todos rincões dos planetas, a suposta paz que deveria haver, do mesmo modo como a presença imperial e sith levou opressão e horror à cantos até então livres.
Luke não quer se vangloriar, ficar para a história como um intocável, até porque renega isso (existia Nietzsche nesse universo?),
o transcender de Luke é a confirmação de tudo aquilo no que ele acreditava: Luke criticou a Ordem Jedi, não a negou; Luke entende que o Império tem de ser derrubado, mas não por causa da presença sith. A Força não é preponderante no "bem" ou "mal", e isto é uma escolha individual.
Luke, que queria certamente fugir de todo romantismo típico que se atribui aos supostos "heróis", faz sua ação calada, apenas para si: Kylo Ren acredita, certamente, que Luke está vivo e em fuga com o que restou dos rebeldes; Rey pensa que Luke faleceu, heroicamente, em combate segurando a Nova Ordem.
Mal sabem que Luke fez a maior demonstração do uso da Força em um planeta esquecido, consumindo tudo aquilo que existia dentro de si.
Humildemente e, na opinião desse que vos escreve, aí sim heroicamente, Luke faz o mais grandioso ato de toda a saga sem nenhum momento se vangloriar ou gabar por isso.
No Calor da Noite
4.0 139 Assista Agora"Haveria um tempo no qual eu mandaria lhe fuzilar"
Underground: Mentiras de Guerra
4.3 79 Assista Agora"Não há texto [...] que possa conter a verdade. A verdade só existe na vida; você é a verdade. [...] Não há verdade, exceto naquilo que acredita que o que faz é verdade. [...] Nós somos todos mentirosos, pelo menos um pouco".
Mentiras de Guerra é um filme peculiar em todos os sentidos; uma breve reflexão, do momento em que foi feito, como foi feito e talvez o por quê foi feito ajudam a assimilar um pouco o que foi, e é, este vencedor de Palma de Ouro.
Alguns historiadores e professores de história compartilham da opinião de que "o breve século XX", marcado por guerras, massacres e atrocidades numa escala jamais vista nas sociedades humanas, perpassa, em seu começo e fim, uma cidade balcânica: Belgrado. Foi lá, em 1914, que um atentado terrorista serviu de justificativa pra uma série de declarações de guerra entre as potências e impérios à época; também foi lá que, já na década de 1990, quase 70 anos após a Primeira Guerra Mundial, a Europa percebeu que os horrores da primeira metade do século poderiam sim se repetir, em uma guerra civil fratricida num país (e cidade) que serviu bem de quadro deste "breve século"; Belgrado viveu duas guerras mundiais, um reinado que ignorava as questões e identidades nacionais, a fúria nazista e, como cereja do bolo, o poder de um mão-de-ferro que, por linhas tortas, passou a imagem de ordem neste país do lado comunista da chamada Cortina de Ferro. Para completar, com a queda dos regimes socialistas, o país experimentou uma guerra civil absurda no qual as grandes potências ocidentais e a ONU viraram suas costas e deixaram o caldeirão étnico, tenso na região há séculos, explodir com respingos em boa parte das sociedades europeias atuais (olá, imigração em massa).
Kusturica perpassa boa parte dessa linha do tempo histórica aqui; e, bizarramente, por meio da comédia. Mentiras de Guerra não é peculiar pra mim apenas por isso: foi exibido em 1995, sendo provavelmente produzido antes, quando a Iugoslávia, agora dividida, abria suas feridas ao mundo em uma série de chacinas étnicas na guerra civil que marcou o continente europeu de fins de século.
Boa parte dessa história é abordada em 170 minutos de humor um tanto quanto......estranho. O sofrimento e o horror da invasão nazista, a crítica virulenta ao sistema socialista imposto por Tito pós-guerra, com as memórias sendo deturpadas e literalmente sendo escondidas debaixo de porão, a divisão do país pós-queda da Cortina de Ferro: pra não me alongar tanto, é um filme que tem um peso histórico incomensurável.
É, como todo filme agraciado com uma Palma de Ouro, imperdível.
A Morte Passou por Perto
3.3 142"É incrível como às vezes nos metemos em encrencas que não conseguimos sequer entender, e mesmo assim não conseguimos pensar mais em nada. Ficamos tão transtornados que não servimos para nada".
Kubrick, com um roteiro narrativo fraco e algumas atuações duvidosas (Irene Kane em nenhum momento me convenceu aqui - e olha que sou péssimo para avaliar atuações!), faz aquilo que dá a sensação de ter sido o filme mais "cru" de sua filmografia: o plot, curto, parece se encaixar no formato que a United Press certamente impôs/cobrou à produção do filme (quero acreditar, fã bobo que sou, que tal recorte de tempo foi imposto, e não uma exigência do Stanley): como comentaram mais abaixo, a impressão que se tem é de que Killer's Kiss nada mais é que um grande laboratório no qual um diretor ainda jovem literalmente testa, arrisca e ousa mas, como fruto de tais ações, também erra.
Kubrick brinca com efeitos e tomadas constantemente (pra um filme com menos de uma hora e dez minutos isso vira até muito ousado e arisco demais pro que viria a ser o produto final): a cena do
pesadelo de Davey, durante o ataque de Vincent à Glória, e a ira de Vincent arremessando um copo de whisky em um pôster e "atingindo" a câmera
as tomadas laterais das ruas nova-iorquinas, dando uma sensação próxima ao que seria visto no Eyes Wide Shut.
No fim, esta é a sensação pós Killer's Kiss: um laboratório, mediano, de um diretor que viria a ser o maior de sua classe.
Felizmente a recuperação não tardou: no ano seguinte sairia aquele filmaço que seria, e é, o The Killing ;)
Sinédoque, Nova York
4.0 477"Pegue suas roupas e vá para a saída,
se você cair fora ninguém irá reclamar.
Encontre o lugar onde você pode ser entediante,
aonde você não precisa dar explicações
que você está doente da cabeça e desejava estar morto.
[...] Você é péssimo em autopreservação, contra as outras dores de qualquer um
[...] Então se levante e pare de reclamar, você sabe que é o único que está destruindo toda a diversão.
Veja o que aconteceu enquanto você estava sonhando: por isso, se soque na cara".
Música "American Dream", do LCD Soundsystem; mas poderia ser uma peça de Caden e, infelizmente, do próprio Philip Seymour Hoffman.
A Balada de Narayama
4.0 54"Não importa quão frio esteja; mas no dia em que fores à montanha, nem colete acolchoado pode vestir. Pode ser duro e sofrido, mas Narayama em neve é bem melhor.
Para nós ocidentais que cultivamos uma imagem idílica do Japão e de sua história pelo alcançamos/consumimos/importamos (tais como animes, filmes, games e músicas), alguns filmes quebram e rompem aquela fronteira longamente delimitada entre um romantismo desejado e/ou esperado, no qual vemos a "terra do sol nascente" como um espaço de uma sociedade refinada, casta e, para alguns racistas, superior, e aquilo que por vezes representa algo próximo da "realidade", se podemos chamar assim. Como exemplo, temos o "Harakiri", filme de 1962 que "destrói" a imagem romantizada dos samurais; mas também temos "A balada de Narayama" que nos apresenta, através do cotidiano de uma vila esquecida nos sopés de algumas montanhas, as relações sociais conturbadas de um Japão que, apesar de saído recentemente de um feudalismo, ainda apresenta em suas entranhas aspectos de uma sociedade tal.
A construção cinematográfica de Imamura é belíssima, e aqui discordo de alguns comentários anteriores presentes em análises sobre o filme: se estamos em um período de fins do século XIX e de uma modernização forçada pelo Estado Meiji, conforme nos informa a sinopse, o bucolismo rural é reforçado na fotografia do filme; animais que, em suas reações naturais na luta pela sobrevivência da natureza, não se distanciam tanto da natureza de seus parentes humanos. As cenas de
amor, entrecortadas com imagens de pequenas cobras se entrelaçando, exemplificam tal ponto, e são belíssimas.
Se muitos japoneses ainda hoje tentam passar a imagem de uma suposta sociedade perfeita que têm, em uma mistura explosiva de chauvinismo exacerbado e xenofobia, Imamura escapa pela tangente por um caminho completamente oposto: o profano e o sagrado se misturam na balada de Narayama. Justiça, muitas vezes, é feita pelas próprias mãos; como não se emocionar
na cena de desterro da famíla Amaya, no qual uma moça, grávida, é literalmente enterrada (viva) à força? O choro de Tatsuhei, aqui, expõe as violências e tensões de tais relações.
Tatsuhei com seu pai? Uma relação de quase ranço: de porte de um rifle, símbolo desse modernismo recém-chegado à ilha, Tatsuhei tenta espantar o espírito do pai ao atirar nas árvores.
É uma viagem enriquecedora por uma história que nos é, muitas vezes, mal contada pelo que recebemos culturalmente e até nas salas de aula de História; mas Risuke, com suas baladas sobre o cotidiano, certamente nos facilita o conhecimento sobre o cotidiano e, por que não, a história do Japão a partir deste pequeno vilarejo que repousa ao pé da montanha sagrada de Narayama.
Fahrenheit 451
4.2 419O que me impressiona, no fim de tudo, é que um ano depois do lançamento do filme um livre pensador chamado Guy Debord escreveria que "o espetáculo se apresenta como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é 'o que aparece é bom, o que é bom aparece'. A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência".
É impossível ler isso e não se remeter à cena
de Montag sendo alertado de sua própria perseguição, ao vivo, nas "telas de parede". Sem questionamentos para os telespectadores, positivo, indiscutível, inacessível e, certamente como notamos pelo espetáculo armado, grandioso.
Bradbury escreveu o romance sci-fi distópico em 1953, no auge do macartismo, em um momento de ápice da chamada Guerra Fria no qual a censura encontrava-se normatizada enquanto prática na sociedade estadunidense. Truffaut adaptou a obra pra filme em 1966, já num cenário de turbulência que sacudiria a França (e o mundo) dois anos depois; e, no ano seguinte ao debut da adaptação truffautiana, Debord escreve "A sociedade do espetáculo" expondo as entranhas midiáticas que cercam mais do que os meios de comunicação: a sociedade enquanto um todo.
Para os três, só uma palavra: gênios.
O Círculo Vermelho
4.1 47 Assista AgoraQuando o principal personagem do filme,
o silêncio,
, a do roubo,
Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas …
3.5 384 Assista AgoraMuito interessante descobrir de onde veio a inspiração mais adulta de "Divertida Mente".
Os Imperdoáveis
4.3 655E se O Cavaleiro das Trevas, arco criado por Frank Miller para os quadrinhos do Batman, fosse adaptado para um faroeste?
Azul é a Cor Mais Quente
3.7 4,3K Assista AgoraCurioso: pra mim pareceu um filme de "combate", no sentido literal da palavra.
Um cinema que aborde as questões de relacionamentos homoafetivos historicamente não encontram espaço nos grandes festivais ou em popularidade, e nem sempre por questões puramente técnicas. O vejo, até, como um precursor de "Moonlight" neste sentido.
Quanto às cenas de sexo e/ou brigas, que certamente incomodaram muito conforme podemos ver em certos comentários abaixo que infelizmente procuram reduzir e ver o filme só enquanto neste aspecto, confesso que senti um misto: cenas que realmente incomodam são necessárias; sair do "natural" cinematográfico é sempre bom, desconstrói aquele lugar no qual estamos sempre acomodados ou confortáveis. Cinema vive do impacto.
Porém, fins justificam meios? Lembro que, à época, o diretor foi acusado de literalmente abusar das atrizes, levando-as a constrangimentos e desconfortos por reencenar constantemente as cenas que justamente causaram estranhamento (ou o que diabo seja) a alguns espectadores.
O ponto, enfim, que quero chegar (e até para debates, caso alguém se interesse) é que já o vejo como clássico. As abordagens são necessárias, e por isso não o vi como um filme "longo" e "cansativo": as cenas
no qual vemos Adèle e Emma conhecendo as respectivas famílias das companheiras são belíssimas; uma estrutura mais "liberal" por parte da família de Emma, e Adèle não sabendo admitir sua relação com outra mulher e na defensiva perante sua família mais "conservadora" é belíssima, por exemplo.
Mas a grande cena certamente foi a do
jantar. A analogia com o filme de época transmitido em um telão durante a festa, com Adèle sentindo-se isolada, acuada até, por Emma que só tinha olhos para Lise e se aproximando do ator é fantástica.
No mais, é um filme necessário, gostemos ou não. Aliás, a Criterion Collection não escolhe seus longas à toa, e certamente temos de pensá-lo dentro de seus cenários/contextos de produção.
O Botão de Pérola
4.5 17"Civilização" e "progresso" são certamente as construções analíticas inventadas pelo homem mais maléficas e cancerígenas em toda sua história.
Nerdland
2.4 1"O que os depravados cidadãos estadunidenses querem? Todas as coisas sórdidas e sem censura: diários de prisão, tell-alls (espécie de ramo televisivo no qual o convidado literalmente se abre perante a câmera falando tudo - e mais um pouco - de sua vida/memórias), livros erótico-culinários ilustrativos. Não precisamos de fama, Elliot; infâmia, é o que recompensa."
Confesso que Nerdland me chamou inicialmente a atenção não pelo roteiro sarcástico ou por expor a decadência moral dos nossos irmãos do Norte (ou no fim seria do mundo ocidental?). Conheci a animação por meio de um post naquela rede social que leva nome de livros e é azul na página do Geek. E, confesso mais uma vez, não estava preparado pro que iria ver.
De início Nerdland choca. É bizarramente chocante. Expor valores sociais dos EUA do século XXI (e muitas vezes de nós mesmos) já é algo relativamente batido nesse campo, e Simpsons, South Park e Family Guy estão aí pra provar isso. Bojack Horseman, mais recentemente, vem puxando tal questão no campo mais dramático. O x da questão é que Nerdland expõe da maneira mais crua e (in)sensível possível.
Busca incessante pela fama, jornais que sobrevivem de gore, valores descartáveis e demais coisas que vemos e convivemos no nosso dia a dia, seja pela televisão ou internet, se fazem aqui presentes embalados por uma batida eletrônica que chega a lembrar em alguns momentos o jogo Hotline Miami. Inúmeras referências "culturais" também estão presentes aqui: na cena
em que eles planejam assassinar a vizinha, uma religiosa cristã, notamos pendurado na sala aquele quadro de Jesus Cristo mal restaurado que virou meme na internet,
Nerdland atrai mais por esses fatores. Não é das coisas mais engraçadas que o cara pode escolher ver, mas em um futuro próximo - e aqui fica a dica - poderia dar uma ótima fonte para se pensar como alguns norte-americanos viam a si mesmo, e sua sociedade e cultura, em inícios do século XXI.
Jovens, Loucos e Rebeldes
3.7 447 Assista Agora"Cada década que passa as coisas ficam pior: os anos 50 eram chatos, os anos 60, do rock, e os 70, logicamente, da droga. Quem sabe os 80 serão do radical. Eu acho que até o século XXI as coisas só vão piorar".
Cynthia, a pé-no-chão em meio ao romantismo nostálgico de Linklater sobre a juventude dos 70's (e como pioraram, Cynthia).
Em Ritmo de Fuga
4.0 1,9K Assista AgoraBem cara de sessão da tarde.
Com anabolizantes.
Pra cavalos.
Com doses de speedball pra descontrair.
(e com Queen tocando ao fundo)
Mãe!
4.0 3,9K Assista AgoraÉ um filme interessante. Aronofsky faz uma brincadeira aludindo à diversas questões, atuais ou não: seria uma crítica às
atuais relações do ser humano com o meio ambiente?
analogia ao cristianismo?
O fato é que a proposta é tão boa que fiquei quase que uma hora discutindo com dois amigos após ver o filme no cinema, e fizemos uns debates bem interessantes. Sempre bom explicar que nada aqui é A interpretação sobre o filme, obviamente, e que o lugar pra debate sempre tá aberto; agora se acomode aí que lá vem textão (e é grande mesmo).
Creio que primeiramente uma coisa tem de ser posta, neste filme em que vemos um "poeta" buscando inspiração; a
primeira Mãe pegando fogo não é a Jennifer Lawrence. Sobre AS Mães, chegarei mais adiante.
Bíblia é simplesmente sensacional: o Ed Harris, nosso já eterno tiozinho nem tão simpático de Westworld, interpretando Adão é simplesmente fantástico. Ora, como assim Adão? Percebam algumas cenas: ele chega só à casa (seria esta uma sátira do mundo?) e, tossindo violentamente no banheiro, a Mãe (Gaia?) abre a porta e vê Ele ("Him" no original mesmo, com o H maiúsculo), papel de Javier Bardem, ajudando Adão; ponto-chave: ela vê um ferimento na parte das costas, mais exatamente nas costelas. Deus tapa, não a deixa ver o ferimento. Próxima cena? Chega a mulher de Adão à casa, nossa querida Eva.
Daí em diante, temos um jogo sensacional da síntese do
cristianismo. O cristal (qual a importância dele? O que é ele? Chegarei à algumas ideias mais à frente),símbolo de uma reconstrução de projetos/vida Dele, constantemente atrai a atenção de Adão/Eva. Seria a peça, neste momento, uma sátira da maçã? O fato é que Adão respeita as ordens Dele, e mais acintosamente da Mãe, para não tocá-lo; Eva, porém, não respeita. Invade a sala com Adão onde fica o cristal, sem Sua permissão, e este é quebrado. O personagem do Bardem fica putaço e expulsa todos daquele local quase que sagrado, reduto de criatividade que não flui por parte Dele; mais: corta suas mãos no cristal, intencionalmente, e tapa a antiga sala (o Éden?) Plot twist: após a confusão a Mãe pega Adão e Eva fazendo o quê em seguida? Isso mesmo camarada, uma tremenda duma trepada. E quem são os frutos dessa relação? Aqueles pimpolhos maravilhosos chamados Caim e Abel que não tardam à chegar na humilde residência Dele, e que seguem à tona uma das mais famosas literaturas de assassinato da humanidade.
Ponto curioso para uma análise pessoal que colocarei mais à frente: em uma conversa, Adão pergunta à Ele se é comum a visita de "fãs" em sua casa; a resposta Dele é algo como que "incrivelmente/raramente não".
Touché: já podemos pressupor que anteriormente já tínhamos algo semelhante, o que explica a primeira Mãe pegando fogo, e que ainda falaremos mais na frente.
O desenrolar da história segue à uma alusão narrativa milenar,
cristã,
(que fez algo semelhante anteriormente, com Noé):
vinda da família em luto após a morte de um dos filhos do Homem e Mulher (Adão e Eva). Uma família literalmente em peso, numerosa, de N etnias (temos africanos e orientais) e com zero de respeito pelos mortos; uma bela apropriação da humanidade, bíblica, não?
Ponto de discussão:
qual o significado da fotografia Dele em chifres? Fúria de Caim, que sempre afirmava que seu pai tinha olhos voltados apenas à Ele? Em cenas anteriores, vemos a Mãe tropeçar na mala de Adão, e sua surpresa é latente quando nota a foto de seu marido ali. Fascínio do personagem de Ed pelo poeta, de Adão por Deus?
Questão para debate: o que seria, de fato, aquela coisa espirrando sangue no vaso? E o que a Mãe toma constantemente para evitar as tonturas?
E aqui chegamos no ponto que achei interessante, porém prejudicial ao que vinha sendo o filme. Em uma longa e tenebrosa sequência
- a Mãe que o diga -
bíblicas, ou até ambientais em certos pontos. Os convidados, na casa, destroem tudo. Se apropriam de tudo. A porra da residência simplesmente não aguenta tanto abuso(residência feita que quase exclusivamente apenas por ela, importante ressaltar). Em um momento um casal chega a quebrar a pia e inunda quase que a porra toda (sátira do velho conhecido de Aronofsky, Noé e seu dilúvio?). O fato é que Ele, mais uma vez, expulsa a galera; curiosidade: Ele já delineia mais fortemente, a partir daqui, uma face mais narcisista, egocêntrica; simplesmente larga sua mulher, Mãe (Gaia? Nosso planeta Terra), para se dedicar à sua obra máxima, seu poema definitivo. Quanto desprezo pelo feminino por parte Dele, não?
Infelizmente, temos aqui uma das mais bizarras sequências: polícias e exércitos agindo, invadindo a casa. Sátira da proteção dos lugares sagrados cristãos? Para azar do Aronofsky, certamente preocupadíssimo com minha opinião nesse momento, achei muito pobre este trecho.
Voltemos ao personagem do Bardem e seu trabalho: obra esta que
é feita após, finalmente, sua transa. Apenas o sexo motivou sua escrita? Certamente não: toda a experiência, louca, na casa contribuiu. Todo aquele pessoal (a humanidade?) o inspira para seu trabalho (definitivo?): o poema finalmente é produzido, e vira um sucesso!
Alguns o interpretam a sério demais: a casa é invadida mais uma vez, por fãs, e todos querem um taco Dele. Deixam lembranças, roubam algo de sua casa, e a Mãe, coitada, acuada em sua gravidez dentro de seu próprio lar. Fãs do mesmo objeto começam a se matar por interpretações diferentes (sátiras às guerras religiosas? Intolerâncias?), e a própria Mãe é desrespeitada pelos fãs de seu marido.
O que seria aquilo que vemos a Mãe ver (e apenas ela notar) no interior de sua casa, apodrecendo, ficando cinza? Seria a desilusão com seu casamento com Ele, fruto das decepções colhidas?
O fato é que, mais uma vez,
Ele passa por um incêndio. A casa, e todo mundo ali dentro, é queimado (repito, o que não é novo para Ele). A perda do filho (Jesus?) leva a Mãe quase que à loucura; Ele o utiliza, o entrega, a seus fãs que o matam, repartem seu corpo para comer (puta analogia da comunhão?). Voltando ao incêndio, é interessante: seria o porão o inferno? Percebam que boa parte do filme se passa no térreo, no máximo no andar da sala de estudos Dele; apenas em um momento o vemos no último andar, e com um olhar intenso de julgamento; seria o céu, o paraíso?
Enfim, [spoiler]tudo ali é queimado. A Mãe, curiosamente, sobrevive; Ele arranca dela seu coração, em formato daquele antigo cristal (fruto de Amor, segundo Ele), e o põe no antigo lugar daquele mesmo anterior destruído por Adão e Eva. Toda a casa (nosso planeta? Ou espaço das narrativas religiosas?) se reconstrói; o final, entretanto, remete ao início: vemos uma nova Mãe. Não, não é a Jennifer Lawrence. Essa mãe tem uma tonalidade de pele mais morena, cabelos ondulados, uma etnia até um tanto arábica. Seria a Mãe dos muçulmanos? Ora, se tivemos já uma Mãe do cristianismo, evitada e nunca com créditos perante Ele (narcisista e egocêntrico como o Aranofsky o representa), lembremos que o filme inicia com outra Mãe, também em chamas. Quem seria a primeira Mãe? A do judaísmo?
Ora, até o Legião Urbana cantava que
"[...]um só deus ao mesmo tempo é três; E esse mesmo deus foi morto por vocês". Pra quem não sabe, judaísmo, cristianismo e islamismo compartilham do mesmo Deus. Voltamos à problemática: seria este filme do Aranofsky uma síntese do cristianismo?
Enfim. São algumas das interpretações, em debates com amigos, que entendi, vi, no filme. O debate tá aí: muita coisa, evidentemente, passou em aberto.
Mas convenhamos, que sujeito egocêntrico e narcisista Ele, não? ;)
Aquarius
4.2 1,9K Assista AgoraMexer (e remexer) com memória é foda, amigo...
O Tambor
3.9 92 Assista Agora"Era uma vez um tamborileiro chamado Oskar. [...]
Era uma vez um povo crédulo, que acreditava no Papai Noel. Mas o Papai Noel, na verdade, era o homem do gás."
O tal do Cinema Novo Alemão, do pós-guerra e que se estende até meados dos anos 1980, parece (pelo menos pra mim) essencial por aquilo que o "cinema tradicional" não fez (ou fez pouco - ou, mais ainda, foi proibido de fazer): o repensar a sociedade alemã e a monstruosidade chamada nazismo que emergiu daquilo ali.
"O Tambor" vai além: em situações que beiram o absurdo (comentado mais à frente), brincando com os valores daquela sociedade de outrora que se dizia "pura" e "casta", acrescenta novidades nesta discussão; um dos fatores, e que achei genial, o Marcos comentou mais abaixo: em uma cidade alemã, posteriormente polonesa e por fim invadida pelo Reich durante a guerra, como estabelecer uma identidade? Como aqueles habitantes, durante aquele período turbulento, se veem? O comerciante de brinquedos judeu tem uma mesma concepção de identidade daquela trabalhadora agrícola alemã? E o sujeito polonês dos correios, se acha próximo dos alemães que agora transitam por sua cidade?
Demais aspectos também me prenderam, e acho importante até pra puxar discussão:
Quem assistiu notou como, especialmente no início do filme, muito dos trejeitos dos atores lembra bastante aquele período romântico do cinema? Atuações caracterizadas pelo estilo de época, lembrando muitas vezes os filmes do Chaplin. Seja um comer apressado com a família, um uso excessivo de gestos com a mão em discussões, as situações atrapalhadas pelo qual a polícia passa pra pegar o deliquente-marido da avó do Oskar. Curiosamente, muito disso vai se perdendo ao longo do filme; fim da era romântica e prenúncio da "modernidade"?
Outro ponto: como terá sido a recepção das cenas de teor sexual? A cena de Maria com Oskar, durante a troca de roupas na praia, certamente não é algo casual de ver-se em filmes, seja de qual época for. Também fica a sensação de mais que uma "descansada" quando o Oskar vai pra cama com a mulher do andar de cima, já próximo do final do filme.
Por fim, e não menos importante: uma cena sensacional, que mostra o impacto das comunicações de massa e das transformações que não só os germânicos passaram, mas sim o mundo. Alfred, todo pimposo, trocando o retrato do Beethoven que fica acima do piano por um de Hitler logo após acomodar um rádio, novo, ali pelo local. E
ora: já no fim de "Tambor" arrancando a foto do líder nazista da moldura, e dizendo que "gênio mesmo era Beethoven".
Só posso concordar, Alfred.
A Confissão
4.2 22"Um homem tem dois olhos, o Partido tem mil olhos, o Partido vê sete países, um homem vê uma cidade. [...]
Um homem pode ser destruído, mas o Partido não pode ser destruído."
Bertolt Brecht, 1930, em Die Maßnahme.
O Substituto
4.4 1,7K Assista AgoraÉ divertidíssimo porque o vi pela manhã e de noite uma secretária me ligou para ser professor substituto do município.
Quando Duas Mulheres Pecam
4.4 1,1K Assista Agora"A ansiedade que sentimos, todos os sonhos não realizados, a crueldade inexplicável, o medo da morte, a visão dolorosa da nossa condição terrestre, desgastou nossa esperança de uma salvação divina.
Os gritos de nossa fé e dúvida contra a escuridão e o silêncio são uma prova terrível da nossa solidão e medo."
Sei que você perguntou à Elisabet
-ou no fim foi à si mesma?-
Estado de Sítio
4.3 39Intenso, como toda a filmografia do já hoje idoso Gavras.
Cru e direto ao ponto, como a receita gavriana sugere.
A ditadura do Uruguai é escancarada do modo mais objetivo possível: na interferência estrangeira, principalmente estadunidense mas também dos demais países latino-americanos (ê Brasil, que honra hein).
É assustador pensar que esse filme foi feito em 1972, como já informaram aqui. Philip Santore na verdade era Daniel "Dan" Mitrione, policial ítalo-americano que veio, ancorado pelo FBI, à América Latina dar "apoio técnico" aos serviços policiais do continente; mais que isso: era professor de tortura.
No Brasil, passou por São Paulo (onde conheceu o imbecil do Ulstra) e Belo Horizonte, ensinando técnicas de tortura aos policiais destas cidades utilizando mendigos como cobaia; em Montevidéu, como existiam pouquíssimos moradores de rua à época, utilizou presos (políticos) já dados como mortos pela informação oficial do regime (mas que estavam bem vivos nos porões) para ensinar sua técnica aos uruguaios.
É impressionante o que Gavras fez aqui:
o interrogatório foi realmente realizado pelos montoneros quando capturaram Mitrione/Santore (inclusive, se acha fácil pela internet o texto transcrito em jornais da época - inclusive brasileiros), e todas as demais informações que Gavras jogam no filme foram realmente comprovadas tempos depois.
Se você procurar, acha relatórios com relativa facilidade da NSA contendo relatórios feitos e sobre as funções que o estadunidense fazia à rodo pela América Latina.
As cenas de tortura demonstram um conhecimento quase que presente do Gavras: a descrição do pau-de-arara brasileiro, a hidráulica, etc. Mais um filme, como Z e, futuramente, Missings, corajosíssimo por parte de Costa-Gavras.