Numa Sarajevo ainda envolta nos tormentos do conflito civil-militar mais violento em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial, em 1992, acompanhamos dois jornalistas italianos em uma cena que se desenrola no ritmo frenético da ação. A bordo de um carro com o "Press" estampado nas laterais, os repórteres do "La Stampa" de Turim, em que pesem compartilhar do mesmo empregador, parecem estar sob emoções diferentes nesta manhã: aquele que acompanha o motorista à frente, o fotógrafo, parece animado com o provável furo de reportagem que irá cobrir, e inclusive pressiona o coitado responsável pelo volante a correr mais que de costume pelas ruas esburacadas por projéteis de artilharia; o outro jornalista,pego incauto pelo anúncio recebido logo cedo, cobra calma, arrisca um inglês macarrônico dentro do carro e pede uma menor velocidade, mas pouco é ouvido pelos outros dois. O que vemos, na sequência, é uma cena que daria orgulho aos estudiosos da fotografia. Nela, acompanhamos os dois jornalistas entrarem numa casa, e se depararem com um
corpo de uma mulher idosa, deitado sob uma poça de sangue, nos fundos da residência.
O primeiro repórter, o animadinho da corrida, como bom fotógrafo já se prepara para bater as imagens que, com certeza, serão de destaque nas páginas internas do Stampa. Enquanto acompanhamos o preparo dos equipamentos, um barulhinho eletrônico ecoa no pequeno imóvel: próximo à porta onde estão, uma criança joga um Game-Boy, sentado, a anos-luz de distância dos estranhos que estão ali. Nosso fotógrafo não hesita:
apanha o menino, focado com o video-game portátil (e provavelmente traumatizado com os eventos), e o põe, com cadeirinha e tudo, próximo ao corpo morto da senhora.
A panorâmica está pronta, e o cenário é impactante: o risonho fotógrafo bate as fotos, enquanto seu ainda aparentemente aturdido companheiro acompanha com o olhar toda a situação. Mesmo na guerra, vemos a oportunidade de crescimento, o cavalo com sela que passa inesperadamente na frente do vaqueiro perdido no sertão. A fotografia tirada, deste jeito, não aparenta mais ir às distantes páginas do meio. Pela felicidade do amigo da câmera, ela será a foto de capa de um dos mais vendidos jornais da Europa. Nesta situação, podíamos até evocar Susan Sontag: ainda nos causa incômodo a "dor dos outros"?
A cena, bastante reveladora, é na verdade quase um spin-off dentro do "Belos Sonhos". Ao contrário de sua composição, acompanhamos como personagem principal não o sujeito cabeludo da câmera fotográfica, mas seu camarada "distante", Massimo. "Belos" não é sobre a guerra, mas funciona na verdade como um filme de formação: é como se pegássemos alguns clássicos desta vertente na literatura europeia do século XIX e XX, como o "Werther" de Goethe e os "Bruddenbook" de Thomas Mann, e os transpuséssemos pro cinema. E o resultado, pra mim, é tão lindo como. É uma narrativa de crescimento, conflitos, amadurecimento, traumas, memórias e silêncios que acompanhamos por pouquinho mais de duas horas. Do surgimento do primeiro grande amor da vida, a mãe, mas principalmente da difícil situação de lidar com a perda abrupta desta.
Se nos primeiros minutos de filme vemos uma mãe e seu filho se divertindo, ouvindo um rockabilly americano, pouco menos de uma hora depois somos jogados para as confusões de uma criança que não aprendeu a lidar com a situação desta perda.
: da procura, ainda na pré-adolescência, pelo aconchego materno nas mais diferentes situações, como no se ceder às carícias da mãe do amigo, até aos primeiros sinais de que o mundo ao seu redor, agora, não será mais o mesmo. Por exemplo, observamos um carente Massimo observar uma mulher contratada pelo seu pai para ajudar em casa, e que em certos pontos lembra mesmo sua mãe assistindo aos filmes de horror da tevê; se aproximando da mulher, devagarinho, Massimo aprende - da forma mais dura possível - que
Pra não alongar tanto, não posso deixar de citar mais três cenas espetaculares: a do jovem Massimo nos bancos escolares de uma escola católica aprendendo o verdadeiro significado de "luz" e de como algumas ideias religiosas não podem ser transpostas ipsis litteris ao mundo secular; a "resposta dos editores", no episódio de uma carta de um filho raivoso enviada ao Stampa, em que sou surpreendido pela leveza de um humor inesperado pelo tema e pela situação; e a descoberta de um escape, da criança Massimo, das agruras da vida pelos ombros de seu pai: a alegria de ir ao estádio e de assistir (e imaginar, quando não o há!) o futebol. Sem esquecer, claro, da belíssima cena derradeira: afinal, se alguns privilegiados ainda podem se dar ao luxo
de chamar pela mãe,seja ao chegar em casa, como aludido exemplarmente por Massimo na resposta à correspondência enviado ao Stampa, ou pelo simples medo de uma brincadeira de esconde-esconde, como acompanhamos agora,
como lidar com isso quando chegar à nossa vez?
"Belos Sonhos" é provocativo, forte, sensível e, principalmente, real nas medidas certas. É a forma de encarar uma dor que nunca chegará ao fim, do aprender a lidar com ela e, como nos ensina o padre/professor, de como "apesar de que" temos de seguir em frente. Nessa quarentena maldita, só tenho a agradecer ao Arte1 pela surpresa de transmitir isso numa tarde que, agora, parece sempre igual às outras.
"É de todos conhecido, porém, que a enorme carga de tradição, hábitos e costumes que ocupa a maior parte do nosso cérebro lastra sem piedade as ideias mais brilhantes e inovadoras de que a parte restante ainda é capaz".
A citação é retirada do "Homem Duplicado", livro lançado em 2002 pelo português José Saramago, e conveniência maior pra usá-la não há: ao contrário do que o Jim Carrey afirma ao longo de todo o documentário, me parece que não foi ele e Andy que se tornaram "um"
enquanto trinta golfinhos pulavam num oceano qualquer
. Antes foram duas partes separadas no qual uma, temporalmente mais tardia, por sua genialidade se reconheceu ali na outra e, tal como aquela primeira, quebrou uma "carga" das estruturas da comédia e da arte dramática que ali se colocavam. A transformação - ou o reconhecimento - do J. C em Andy Kaufman foi algo de outro mundo.
Há um viés interessante nisso tudo: o Kaufman sempre leu-se mais como um "ator performático" do que propriamente um comediante. Fico feliz, e muito surpreso, que um interruptor no cérebro do J. C, erguido e alçado às glórias como um comediante no miolo dos anos 1990, tenha sido acionado: é perceptível, a contar desde "O mundo de Andy", a transformação dele - não só como ator, mas principalmente como pessoa. A carreira "filmográfica" do Jim ou sua metamorfose como comediante pouco me importa aqui; é notável, e fantástico, a transformação do seu ser.
Não foi Jim Carrey que emulou e virou Andy Kaufman. Foi Andy Kaufman que, de alguma maneira, foi duplicado ali, quase à perfeição, naquele sujeito que é o Jim Carrey que, como antítese do pensamento desse personagem do Saramago, não hesitou em ir fundo nestas ideias tão brilhantes e inovadoras (mas sufocadas!), tanto à sua profissão quanto à vida, do qual nos fala o português.
Acho que nem tem muito o que se falar. É o filme mais preguiçoso de Star Wars já produzido. Cenas curtas entupidas de personagens secundários em cima de cenas curtas entupidas de personagens secundários, sem um fio narrativo pra guiar o espectador por cerca de 140 minutos e que prefere, antes, prende-lo por uma ação (ruim) ininterrupta.
Impressionante como nem um filme bom de ação/aventura, o marcante da trilogia original de SW, conseguiram fazer. As cenas de ação não empolgam em sua grande maioria
- sendo, pra mim, a exceção a cena das batalhas aéreas de Poe já ao fim -
, e a presença de um "Deus ex-machina" nas cenas de clímax é gritante.
Mesmo o roteiro parece ter sido feito às pressas. A construção narrativa é inexistente, com fatos novos sendo adicionados a outros fatos novos seguidamente (e sem explicação anterior alguma!), e não existe nem uma "solidificação" da história narrada: simplesmente não há tempo para pensar, porque a escalonada que o filme entrega assusta até aqueles que já curtiam o universo Star Wars.
É assustador parar pra pensar que não se precisaria nem de nada muito elaborado pra fazer um bom filme: à exemplo do VII, que chupa inteiramente o roteiro do IV - e que, convenhamos, roteiro nunca foi o forte dos filmes de SW em geral, até diferentemente das outras obras produzidas em mídias diferentes sobre esse universo -, ou mesmo do VIII, que decide seguir por uma história minimamente original - que seja aceitável ou não como produto final é outra questão -, e que acabam por entregar pelo menos um mínimo aceitável de narrativa, a "Ascensão Skywalker" é incrivelmente um filme sem história alguma. O
"inexplicavelmente, Palpatine sobreviveu" (que no original creio que seja "somehow, Palpatine lives")
é a prova cabal do que foi esse filme. Acho que nem um estudante de arte e mídia/cinema, correndo pra entregar um trabalho já próximo do fim do prazo de entrega, criaria um roteiro tão entupido de furos/fatos-aleatórios-pessimamente-empurrados desse jeito.
"Por mais mesquinha que seja sua vida, aceite-a e viva-a; não se esquive a ela nem a trate com termos duros. Ela não é tão ruim quanto você. Ela parece tanto mais pobre quanto mais rico você é. Quem vê defeito em tudo verá defeitos até no paraíso. Ame sua vida, por pobre que seja. Talvez você possa ter algumas horas agradáveis, emocionantes, gloriosas, mesmo num asilo de pobres. O poente se reflete nas janelas do albergue de mendigos com o mesmo fulgor com que brilha na morada dos ricos; a neve se dissolve em ambas as portas na mesma época da primavera. Não vejo por que um espírito sereno não possa viver com o mesmo contentamento e com pensamentos alegres num asilo ou num palácio. Muitas vezes me parece que os pobres da cidade são o que vivem a vida mais independente de todas".
Salvo ressalvas, esta passagem do Walden, escrito pelo Henry David Thoreau em 1854, me parece um daqueles casamentos perfeitos com o que vemos em uma obra de uma mídia completamente distinta, a nível de recorte temporal, temática e veículo, com aquela outra a qual decidimos comparar. Não sei se a Agnès Varda chegou a ler Thoreau - e, no fim, isso não importa em absolutamente nada -, mas me foi dificílimo não assistir a jornada de Mona e associá-la (em partes, verdade) com a do estadunidense que, cem anos antes, decidiu dar um basta naquilo que chamava de "vida civilizada" na sua América do Norte oitocentista.
Ao fim, ambas as jornadas, cada qual no seu ritmo, estilo e meio, que acabam por movimentar várias questões sobre o mundo em que vivemos e, principalmente, a sociedade que nos cerca - em todos os seus aspectos e particularidades, tão díspares e, às vezes, completamente inesperados. Ambas as obras, também, fantásticas no seu story-telling.
A Revolução de 1789 - ou, mais especificamente, o estabelecimento de suas bases legais no decorrer do chamado processo, tão distantes dos ideais "libertários" memorizados e repetidos a esmo, tal como vemos com o irmão da governanta de Robespierre - sem romantização alguma. Wajda, malandramente, se utiliza das histórias iniciadas no 1789 em diante para fazer sua nem tão sutil crítica ao cenário político do Leste Europeu neste momento: em entrevista ao Le Matin, o diretor polonês chegou a dizer que "Robespierre é o mundo do Leste, Danton é o mundo ocidental. [...] A atitude e os argumentos [de Danton] estão muito próximos de nós. O choque entre esses dois homens é exatamente o momento pelo qual estamos passando hoje".
Era a conjuntura de crise do chamado "socialismo real" europeu, e Wajda, fervoroso apoiador do "Solidariedade" polonês, quis passar seu olhar traçando paralelos entre estes dois recortes históricos. Aquele de fins do setecentos, em que uma revolução inicialmente popular descambou para o terror; este, de fins do século XX, com sua narrativa do legado socialista. Acusações e farpas dos dois lados não poderiam faltar, afinal. Sobre "Danton", o historiador estadunidense Robert Darnton escreve que algumas escolhas do polonês para o filme "chocaram os críticos não por causa de sua imprecisão, mas por darem aos líderes da Revolução um ar mais familiar e menos heroico do que as figuras dos livros de história. [...] O retrato de um Robespierre gélido, neurótico, desumano, de Wojciech Pszoniak, era particularmente ofensivo, pois Robespierre era a pedra de toque da ortodoxia nas interpretações da Revolução. Igualmente importante, ele era o modelo do intelectual moderno. Personificava o [...] teórico que virou homem de ação", que estabelecia linhas partidaristas e se lia como um estrategista das "massas".
Um filme, recepcionado (e lido) de maneiras completamente diferentes. Como a própria História, no fim das contas. Exemplo disso? Certeza que Wajda não pensou a situação política de um certo país sul-americano que fala português quando pôs, na boca
de um exaustíssimo Robespierre, que tudo aquilo que se construiu poderia se colapsar num piscar de olhos: "se você tiver razão de que o país realmente precisa de um ditador, então, o país não é uma república, e a democracia é apenas uma ilusão".
"O civilizado não têm uma vida como a de vocês [indígenas]. Ele não sabe o que ele é; ele vive dentro de um mundo que não tem explicação, uma confusão total. Cada um quer viver por si; não é como a sociedade sua em que todos são irmãos, em que tudo entre vocês, cada um quer ajudar o outro. Vocês formam uma grande família. Vocês, de certa maneira, são mais homens do que nós".
Documentário muito bem construído, ainda durante o regime militar. Não conhecia a figura do Raoni. Interessante a "deixada-no-ar" de um possível diálogo entre os povos originários do Xingu e aqueles seus verdadeiros irmãos do Norte.
Curiosa a condição humana, também, que parece não extrair nada de velhas lições - até mesmo daquelas, em que tudo já vem mastigado (no caso aqui ao telespectador). Marlon Brando arremata
com um como "todos pensam que alguém os está ajudando. Mas é simples, na verdade: se não você, quem?".
Hoje, temos um maluco na pasta do meio-ambiente, e a Amazônia - com todos os seus povos, até o "caraíba" na reta - se encontra mais ameaçada do que nunca. 41 anos do alerta, mas seguimos majoritariamente escanteando o tema, pondo em xeque estudos, transformando as discussões em algo periférico, por vezes até rindo daqueles que põe esta causa em primeiro lugar.
Que resgate do clássico do filme do Argento, bixo. Que coisa linda da porra. Num primeiro momento, quando saíram as primeiras informações de um "remake" do "Suspiria", logo imaginei que seria como aquelas versões hollywoodianas pasteurizadas, aquele CTRL C + CTRL V horroroso que a grande indústria estadunidense ama fazer, por vezes. Como fiquei feliz em estar enganado.
funcionaram aqui de um modo quase surpreendente: a Alemanha envolta em turbulências políticas, uma cultura amish e "country" estadunidense cada vez mais periférica, a difícil tarefa - que envolveu boa parte da nação - de recuperar e, mais importante, de confrontar uma memória, verdadeira chaga, que nunca deixará de se fazer presente naqueles que, de um modo ou outro, a atravessaram - e, como não poderia deixar de ser, não sem sequelas - servem de "pano-de-fundo-de-luxo" à já clássica historieta que envolve a Academia de Dança berlinense Tanz.
Alguns comentaram abaixo sobre a duração, mas não vi como empecilho. Esse "Suspiria", em especial, te prende da melhor forma possível; uso o "esse" porque é algo muito distinto do original. Da trilha sonora à estética, do roteiro aos desenrolares, é literalmente uma experiência nova a oferecida aqui. A "construção" é digna de nota, e cada cena apresenta algo literalmente "fantástico" em sua feitura. O jogo de luzes, a contraposição de cenas, a solidão; cada minuto parece se destacar por seus cenários e situações, e terminam por manter uma originalidade que é proposta.
E, o que é essencial, a homenagem tá lá, e vem num clímax que lembra algo não uma citação daqueles mestres que gostamos tanto, mas mais como um novo olhar, um novo texto, construído em cima daquilo que já era muito bom. Fico com a sensação, muito forte, inclusive, de que esse aluno talvez tenha superado o professor em sua matéria.
Remoí muito sobre o que eu queria escrever aqui, sobre o que achei de "Noite Amarela". De verdade. Não por crítica ao filme e seus aspectos e escolhas - mesmo porque o Filmow não é o espaço mais adequado pra isso (até porque nem me acho qualificado para isso - ninguém aqui é, verdade seja dita), muito menos para uma ofensa aos envolvidos na sua produção, em algo tão gratuito e comum hoje nas redes sociais.
Antes, dei um breque porque sabia que acabaria por escrever algo fugindo de um visão sobre o filme em si (coisa de que brincamos, neste site) pra remoer, no fim, sobre uma das características mais intrínsecas e mágicas do consumo do cinema como um todo que, vez ou outra, sempre merece uma pontinha nos artigos, críticas especializadas e demais textos que abordam o universo cinematográfico e que lemos. E que, no fundo, é um puta clichê - e eu odeio clichês. Mas acho que, pela primeira vez na vida, fui aberto a novos "imaginários" e olhares para o espaço, urbano nesse caso, que me cerca. E, bixo, o mérito disso tá muito nesse filme aqui.
Que sensação maravilhosa é você consumir uma produção que aborde a cidade que você conhece tão bem. Uma abordagem que foge por completo da raia comum. Desde aquele entroncamento que sobe em direção ao Catolé, com o Dallas sendo palco de "balbúrdia" e disputa entre as "tribos" da cidade que em tempos campinenses de outrora fora tão comum, e a avenida Brasília - filmada à contramão! Ou mesmo os bancos de pedra no interior do Colégio das Damas, em uma cena no qual só um ex-aluno dali poderia sacar todas as referências - saquei a homenagem a uma certa professora de Geografia ali, quando geral manda tudo se foder hein -, até ao conhecido monumento de Jackson às beiras do Açude Velho.
Vi "Noite" sem pretensão alguma. Como a única sessão legendada daquele palhacinho que dá bilhão no único cinema da nossa querida e amada cidade estava entupida, decidi dar o tiro pro único filme cujo horário era semelhante. Sem ver trailer, sem ler roteiro, adentrando literalmente o escuro. E, pow! Me deparo até com o auditório José Farias, da UFCG, sendo palco para uma palestra e debate sobre "fotografia quântica".
Em suma, já havia lido sobre a "Boca do Lixo" paulistana, sobre o Rio de Janeiro privilegiado da indústria cinematográfica nacional na "era de ouro" nos anos 1950, ou mesmo o Recife recuperado por diretores nordestinos mais recente. Sem comentar sobre, sei lá, a Nova York de Scorsese, a Paris de Godard e Truffaut. Quase que por tabela, entrei em contato com memórias de pessoas que vivem estas e outras cidades e, por verem os filmes (icônicos ou não, bons ou ruins, de grandes ou pequenos espaços e diretores, isso aqui literalmente não interessa) que se rodam ali, criam uma relação mais íntima e profunda com o cinema e, num jogo duplo, também com suas comunidades.
Só agora, só depois de "Noite", é que finalmente posso dizer que descobri essa sensação de um "outro olhar" para aquele espaço, completamente ressignificado, que você habita e que vive diariamente, que lhe estressa e irrita, mas também pelo qual às vezes sente saudade e compartilha daquele sentimento de que "só nós, daqui, é que podemos falar mal!". E que puta sentimento legal esse que, agora, também posso dizer que tenho.
Que restauração - das filmagens, sonoras, entrevistas - e construção de filme impressionante. A imersão, às vezes, é quase que total. Sem espaço pra alívios, é o horror real da guerra desfilando em todas as suas dimensões estéticas, visuais e psicológicas por pouco mais de hora e meia - entrecortadas por tiradas interessantíssimas sobre o dia-a-dia das trincheiras e dos (raros) cotidianos fora dela. A
passagem da filmagem no original, com seu ritmo picotado (em que seus "atores" parecem pulando e andando à Chaplin), ao remasterizado - em todas as suas cores e ritmos recuperados -
é das coisas mais lindas possíveis.
"Dizem que quando você está próximo de morrer consegue enxergar seu passado, mas aos 19 anos de idade eu não tinha muito passado; e quando vi as balas chegando, tudo que pensava era: 'vou sair vivo'?".
"A vida nos faz do que somos em um momento inesperado". "A Pele..." me parece um Polanski digno dos seus melhores anos, ali na década de 1960. É surpreendente, na medida em que explora não uma "auto-crítica" do próprio Polanski (como comentado mais abaixo) no meu ver mas, antes, mergulha em vieses de interpretação que, por sua construção, nada mais são do que uma das palavras mais repetidas ao longo da pouca mais de hora e meia daqui: ambiguidade.
É inevitável não assistir o Mathieu Amalric interpretando Thomas e não lembrar o próprio jovem-Polanski: o corte de cabelo, os trejeitos nervosos, até o tamanho! Mas, definitivamente, não é isso que faz disso um filme interessante. Muito mais se esconde aqui, e o cast enxuto em nada prejudica o andamento da proposta: do contrário, acentua e faz estridente a voz polanskiana que, já há um bom tempo, não ousava exclamar algo desse tipo - e, principalmente, dessa maneira. Provocador, "Pele..." faz um jogo muito esperto (e nada sutil) sobre arte, cria um jogo narrativo sobre direção, atuação, expõe os vários significados que podem escorrer de um roteiro - e que dão um bom debate sociológico e antropológico, em que pese a ênfase de Thomas em afirmar o contrário ao conversar com Vanda sobre os rumos de uma boa história.
"Mas essa peça é sexista, eu quero gritar! [...] o livro é sexista: [...] é uma luta de classes, e sexos!"
, explode Vanda com um já acuado Thomas que, agora, já não parece tão seguro no alto de sua arrogância que vemos logo após o "toc toc" inicial - e que aparentava muito bem poder estar no cume, também, daquele "símbolo fálico" presente no palco que, mais tarde, seria transfigurado em um próprio monumento dedicado à Vênus da peça; ambiguidade, afinal, ou ambivalência?
Revi o "RoboCop" ontem. Não poderia acrescentar muita coisa, e a análise do Luís Carlos um pouco mais abaixo é basicamente o que eu diria sobre esse "quase-slasher" com boas pitadas de gore do Verhoeven. Porém, uma coisa ficou martelando na minha cabeça assim que terminei de reassistir: é impressão minha ou tem uma pegada muito forte do "Cavaleiro das Trevas", quadrinho do Batman escrito por Frank Miller em 1986, na estilística e roteiro deste "RoboCop"?
A mídia e a exploração de sua programação jornalística em certos momentos pontuais, a programação da tevê - com boas doses de mulheres seminuas e sujeitos nem tão engraçados assim - que anestesia todos aqueles que a assistem, a visão de uma grande cidade estadunidense - aqui Detroit, com sonhos de uma literal nova cidade que corte cirurgicamente a parte pobre/perigosa desta nova projeção citadina, no "Batman" milleriano a Gotham que simula NY - entupida na violência urbana que, pelo fato de uma força institucional distante (as grandes corporações no "RoboCop", a desilução da GCPD no "Cavaleiro..."), assiste a ascensão de um verdadeiro Estado paralelo em todas as zonas citadinas, por exemplo, me pareceram muito semelhantes da perspectiva da Gotham-de-um-futuro-nem-tão-distante do Frank nos quadrinhos.
Que história inspiradora. Acho que "inspirador" é o que move todo o documental. Um sem-teto, "homeless-person" como repetido à exaustão por um dos primeiros entrevistados, que carrega toda a aura de um cronista musical, um cara que canta o que vê e sente ao seu redor. A Detroit deprimente, quebrada desde a crise de 1929, sem as grandes indústrias, distante e seca.
Mas que, mesmo assim, canta também esperança. Um estadunidense com todas as marcas de um "latin", hispânico mesmo, que cantando a sua Detroit inspirou a rebeldia e contra-cultura afrikânder do auge do Apartheid, perguntando o número de suas transas e a distância de amigos, versando sobre drogas e insurreição.
E que hombridade por se manter, mesmo sabendo das injustiças que o cercam bem como daqueles que até hoje, imagino, simplesmente o devem um puta dinheiro. Infelizmente demorei muito pra ver o "Searching...", mas felizmente finalmente o vi. E não podia ser uma experiência melhor.
É esquisito. Quando saíram as primeiras informações do "Other Side", me animei na expectativa do que poderia vir - como fã de Orson Welles e, acima de tudo, como apreciador de cinema; ora, mesmo que você não seja fã do sacaninha que pregou uma baita pegadinha pelo rádio estadunidense nos 1940, não dá pra negar sua importância cultural: o legado wellesiano no cinema , impactou não apenas Hollywood da primeira metade do século XX, mas mesmo as produções de nossos dias; revolucionário, sua utilização do rádio e da comunicação de massa, também, é mesmo uma aula ainda hoje sobre a difusão e alcance daquilo que é passado e, mais importante, do como é transmitido, por exemplo.
Dito isso, não esperava nada muito "sofisticado". Sabia que isso aqui não seria algo como o "Eyes Wide Shut" do Stanley Kubrick que, lançado em 1999 sem passar pelo crivo final do diretor, foi levado às telonas com aquela marca do "vejam a última obra do grande diretor do século XX!" - mas que, por sua vez, já se encontrava de fato em uma reta final de produção, sendo uma obra quase "no prelo" que, infelizmente (e por ocasião do destino que fulminou o coração do grande gênio), saiu sem o carimbo do autor. "Other...", aqui trazido pela Netflix, nada mais é do que um grande esboço, um sketchbook de desenhistas daqueles que encontramos muitas vezes em edições de luxo das nossas revistas favoritas, ou mesmo uma versão demo, uma primeira gravação de estúdio, daquela música que gostamos tanto. Projeto que bateu, voltou, foi trabalhado, retrabalhado e, ao fim, não finalizado (para, na primeira década do século XXI, ser recuperado por um serviço inovador de consumo de tv/cinema que o levou, por streaming, a todos os seus assinantes. Que tempos).
É tudo muito primal, parece até estágio inicial mesmo. Não há, como no "Eyes..." kubrickiano, um segmento, um fio narrativo de "direção". Oxalá fosse como o filme do casal do momento do fim dos anos 90. É quase uma bagunça, pra falarmos a verdade; e, conhecendo a filmografia wellesiana, podemos quase asseverar que isso não seria nunca a versão final. Muito longe disso, diga-se.
Portanto, pra mim - um simples fã de cinema, longe de ser um estudante/estudioso profundo da arte e sem legitimidade alguma no "campo" - "Other..." funciona como um grande prefácio daquilo que nunca veremos em sua forma final. A melhor maneira de abordar (e pensar) esse último passo do Welles seria, por conseguinte, analisando suas ideias e propostas que, pinçadas com tremendo esforço, nos são oferecidas nesta versão que saiu à luz.
Mais especificamente: me atrai, no roteiro, ver como um diretor experiente lidou com as transformações que atravessavam o "grande cinema" estadunidense na década de 1970: as influências das filmagens europeias, a sensação de deslocamento na "metodologia" em meio a onda de novidades que vinha arrastando tudo, até uma marginalização que, como uma novidade, atingia os agora "dinossauros" das câmeras que tiveram grande sucesso outrora e agora se viam em posição diferente na hierarquia que agora se apresentava no novo cenário dos diretores hollywoodianos. Mesmo na reta de caos que é o "Other" me parece que esse é um registro pessoal demais do Welles. Sua leitura do cinema àquele momento. É uma pena, reafirmo, que os cacos juntados não sirvam pra cobrir - em parte minimamente aceitável - o que seria o produto final; por outro lado, é divertido ver a produção de um dos grandes caras da arte em estágio tão "seco", tão inicial, e que dá àqueles que não são do campo uma perspectiva totalmente diferente de como se vai dando uma edição, decupagem e construção de um filme.
Enfim, é uma aventura cinematográfica. E daquelas bem esquisitas mesmo.
"Como eu gosto de lembrar, ao invés de viver". Um onirismo, de duas horas fechadas; mas como isso parece ser basicamente um clichê pra qualquer produção que carregue o nome de Federico Fellini na direção, podemos ir um pouco mais além no "A Voz da Lua".
A pluralidade de vozes, situações, cenários e personagens marcam definitivamente a "Voz", e algumas cenas certamente alcançam aquele "quê" de mágico e belo pela sua condução e, principalmente, apresentação. Por exemplo, em uma casa típica daquilo que alguns ainda insistem em classificar como pertencentes de uma certa classe "burguesa" - nesta cena vemos um piano encostado à parede, na nossa direita, enquanto à nossa frente está uma mesinha redonda de duas cadeiras, com café, partitura, cigarro e luminária a ocupando, enquanto ao fundo apenas observamos a parte de uma cozinha; não menos importante, evidentemente, um relógio de parede de estilo cuco clássico, amadeirado, está presente na sala -, um senhor pratica no seu clarinete uma peça musical que, em sua leitura, é amaldiçoada; a sequência diabolus, como a diz a todos aqueles que insistem em ouvi-lo, quando invocada musicalmente faria móveis se mexerem. Ora, o armário (grande e robusto, entupido de quinquilharias) é o primeiro a arrarstar-se; "sou um lunático, um vidente?", questiona-se ainda atônito logo após a sua prática musical.
Esse auto-questionamento parece, antes, ser o leitmotiv que move essa "Voz" felliniana. O próprio absurdo desta cena em específico, com o móvel movendo-se, parece bobeira ao atentarmos a como seu enunciador encontra-se dormindo em um cemitério (!) e a relata a pouco mais de três pessoas que, por motivos diferentes, também encontram-se ali (!). "Mas nada é verdade [...]; é apenas uma ficção, pura representação", como chega a comentar um personagem um tanto misterioso, "gordo", "nervoso" e de duras expressões faciais - e que "se recusa até ao diálogo" - conforme letras frias certamente assinadas por observadores terceiros.
A mim, salvo a grande direção em algumas cenas e a boa-sacada do Fellini à condução de algumas temáticas (tão díspares mas, né, estamos numa narrativa que beira o quase alucinatório) que, pelos próprios rumos e ideia da "Voz" veem, para si, as portas abertas para serem abordadas, me parece uma empreitada, antes, mal "armada". Não que o filme seja ruim, ou mal-feito (quem somos nós para criticar qualquer produção aqui, afinal?), muito longe disso mas, em alguns momentos, a "Voz" felliniana, que perpassa situações escabrosas das mais diversas, indo de questões matrimoniais (em que algumas esposas são quase uma locomotiva no que se refere ao sexo) às políticas ("não somos uma nação de idiotas?" parece ser o questionamento italiano desde, vejamos, sempre?), parece se perder na condução das situações. Ou, no fim, por que não, essa pode também ter sido a intenção ao cabo da coisa.
Último destaque: o maravilhoso desfecho final, em que um Ivo,
com pretensões de Pinóquio na personalidade, conforme visto, chega a um poço muito semelhante àquele da cena inicial e desfere uma das frases mais lindas que já me lembro de ter visto em qualquer mídia:
"acho que se você mantiver um pouco de silêncio, se todos guardássemos um pouco de silêncio, poderíamos compreender qualquer coisa". Um pontinho brilhante (como alguns outros, conforme visto nos comentários abaixo também) no grande emaranhado de situações plurais que perpassam a singular, e última, "Voz" felliniana.
Uma narrativa creio que quase inédita à época no cinema (em que pese já uma enxurrada de abordagens da mesma principalmente em outras artes, como a literatura e o teatro - como não lembrar de Dostoiévski que, já na metade do século anterior, abordava tais situações?) e que sobreveria ao chamado "desafio do tempo", tornando-se atemporal: no fim das contas, "Breaking Point" me surpreende como, em meios da década de 1950, levou às grandes telas a história do anti-herói que, provavelmente, deveria ser o tipo mais comum na sociedade americana após duas guerras de escala mundial e uma outra de intervenção violenta no Pacífico nesta mesma década: aquela do homem de fortes convicções morais que, pelos apuros financeiros não-raros na chamada "década de ressurgimento" do "American way-of-life", vê nos
trabalhos ilegais e criminosos o meio de sustentar sua família, "clássica" aqui - de uma Lucy dona-de-casa (e até submissa, ao menos no início) e das duas filhinhas -
em uma zona portuária e costeira dos EUA.
"Vocês são todos iguais, falam sobre sua grande honestidade; afastam-se quando veem gente como eu. Mas quando estão em apuros, são como todos os outros: aves de rapina", é o que diz o picareta Duncan ao amigo e personagem principal Harry Morgan; afinal, o "pai legal", como chega a se auto-intitular, se encontra no emaranhado das dívidas e na não-saída da situação financeira: em que pese os planos da esposa de irem ao campo e tornarem-se agricultores, na propriedade do sogro, a única atividade que o grande bastião da moral e herói de guerra de "Breaking" sabe cumprir é a de navegar um barco. E, vejam que situação: nem ao menos o seu Sea Queen é adquirido; antes, alugado, é usado para a pesca (atividade nada rentável,como podemos observar) em águas próximas.
Um amplo leque de questões é aberto aqui, também: afinal, até onde se vale ir por dinheiro? É justo arrastar aqueles que o prezam neste caminho? E, pra mim, o grande ponto do fim: como se dá este caminho escolhido? Curioso: "Breaking Point", ao final, parece aquele primo mais velho e legal, mas meio desconhecido, que todos nós temos, em contraposição àquele mais famoso: a similaridade com "Taxi Driver" do Scorsese que, pouco mais de vinte anos depois, levantaria a bola de maneira magnífica para tais questões, também merece ser levada em conta - e que ressalta, evidentemente, a qualidade e importância dessa empreitada do Michael Curtiz.
Algumas cenas espetaculares, que merecem ao menos citação rápida: a
rápida estadia no México (estereotipado, de mariachis caricatos), no qual conhecemos melhor aquela personagem feminina completamente oposta a Lucy; Leona, quase que "femme-fatale" pelo seu poder de cativar o espectador, ao mesmo tempo em que o deixa em suspeita quanto às suas ações e convicções (qual o fim do seu "noivo", afinal? Como consegue manter um apartamento tão espaçoso e elegante? Em suma, quais suas atividades?).
Atuação destacadíssima da Patricia Neal, nesse quesito. Outra passagem maravilhosa: aquela sequência na qual
Lucy, ao buscar ajudar na casa, arruma trabalho na fábrica e acaba por levar seu ofício ao lar; todo o estresse de Morgan, virado do avesso já nestes idos do filme (lembremos da grosseria com a Sra. Cooley e da ida ao bar em horário "não-convencional" para si, sem conseguir dormir, a longa noite em claro da boa-esposa que, como vimos no fim do filme, não tem absolutamente nada de submissa: pensa, antes de tudo, no bem-estar da família e das filhas; não aceita o marido envolvido em situações ilegais e, em que pese já conhecer a decadência deste, ainda se prostra ao seu lado e tenta, na medida do possível, ajudá-lo não nas suas atividades ilegais, mas em manter antes a estabilidade sua e das crianças.
E é inevitável não remetermos ao grandioso corte final: Morgan,
agora redimido por ter enfrentado mafiosos perigosíssimos e que deve ter sido recebido como herói para a amputação, e a desolação do filho de seu bom companheiro, Wesley, agora isolado, aparte, no deck portuário.
Sem consolo, sem apoio, sem os amiguinhos da mesma idade, sem a orientação mesmo que mínima de um adulto; em suma, isolado e "sem beijo de namorada" como diria Cazuza, a criança negra parece ser o único a sentir a falta daquele que, em "Breaking Point", é o único prostrado de fato em suas firmes (e boas) convicções. Final maravilhoso, forte, de várias interpretações, recepções e leituras possíveis.
ver a cena do estadunidense pela casa, vasculhando em busca dos moradores de Bacurau, e no qual um letreiro televisivo grita ao seu telespectador - e consequentemente a nós - sobre a execução pública de alguns condenados no Vale do Anhangabaú, São Paulo,
e não lembrar de um certo governador do "Brasil do Sul" que, há pouco mais de dez dias atrás, vibrou pateticamente sobre tal ação semelhante em sua cidade.
Vou fazer o tipo de comentário que mais odeio fazer no Filmow: aquele no seco, após sair de uma sessão no cinema. Primeiro, já pôr que, nessas situações, nunca consigo separar ainda uma cena ou trecho em específico do filme para comentar - como geralmente vinha fazendo aqui. No mais, "Era uma vez em... Hollywood" é realmente uma homenagem ao que é e, principalmente, o que foi Hollywood da década de 1970 pra trás. A homenagem aos grandes astros, a referência aos despontantes diretores e aqueles que, europeus, ainda eram enxergados - como tudo que é estrangeiro aos estadunidenses - inferiores estão presentes. Todo o cotidiano (de uma classe rica e estelar em sua maioria, afinal, mas sustentada por uma verdadeira nação nada glamourosa por trás) e as perturbações da profissão, com uma tremenda concorrência entre atores já famosos e mesmo aqueles que insistem em ver-se como num degrau abaixo às estrelas, também são bem focados aqui. Ponto negativo, infelizmente, é o mal-aproveitamento de uma enxurrada de personagens e situações que só dão as caras uma única vez pra nunca mais, apesar de marcarem por suas participações e situações.
Mas não sou fã de Tarantino: pra mim, o grande filme do homem é o "Django" (e ainda será). Mas "Era uma vez" opta por um viés diferente do que a filmografia do Quentin vinha rumando e, mesmo pra quem não acompanha tão a fundo demais obras do diretor, isso fica explícito. Ecos de "Bastardos" e do "Pulp", que não colocarei mais detalhado aqui, são sentidos principalmente no roteiro e, curiosamente, não tanto na condução das cenas, naquele velho ritmo que deu fama ainda nos 1990 ao Tarantino.
Porque "Era uma vez", pra mim, é o filme mais não-Tarantino do Tarantino. E porra, o sujeito conseguiu algo inacreditável, e inédito pelo menos pra mim, com aquele final:
é o "felizes para sempre", o "final feliz", mais melancólico e triste que me recordo de ter visto, quando paramos para pensar no que foi de fato aquela noite à Tate e aos LaBianca.
E isso - ou essa sensação, não sei ao certo - foi, de fato, o mais marcante de "Era".
Curioso: uma das poucas vezes que me lembro de ter visto uma direção tão boa para um script tão... fraco.
Jordan Peele fez das tripas coração para produzir o "Us" com 20 milhões de dólares. Fotografia, tomadas, a trilha sonora, os atores. Do belo início oitentista, com suas mega-arrecadações filantrópicas (e quase que utópicas) e suas sequentes propagandas cool circulantes na tevê que prometiam erradicar a fome de um país ou continente, passando à moda dominante da época nos EUA, passando pelos belos cortes de cena ambiente que cercam a ainda criança Adelaide naquela que devia ser uma noite divertida num parque quase à beira-mar em Santa Cruz. Até ao "hoje", em que conhecemos a casa de campo na beira de um lago, um ambiente bucólico e que, evidentemente, é cercado por aquela arquitetura contemporânea que domina nosso dia a dia, "pastosa", por exemplo.
Não pensei direito pra escrever esse comentário porque o filme ainda tá bem fresco na cabeça, e mesmo por isso nem aprofundarei alguma cena em específico ou algo do tipo como costumeiramente faço. O que garanto é que o trabalho do Peele, e creio que quem assistiu irá concordar (e pra você que vai assistir, é algo pra encarar sem medo), é correto. Super justo. O produto entregue ao consumidor extrapola aquilo que os mais incautos poderiam pensar por causa do orçamento. "Us" é bonito, não é cansativo, prende o espectador como poucos filmes de terror/suspense de hoje com sua trilha - excepcional, diga-se -. Muitas vezes "eletriza", nos pega incauto, soca um "Good Vibrations" dos Beach Boys numa cena espetacular ao mesmo tempo em que surpreende com uma comédia em um momento inesperado - e que traz uma leveza até naqueles momentos impensáveis para tal manobra, arriscada, mas que já víamos em "Get Out".
"Nenhuma mulher realmente ama um cara que ouve Phil Collins"
é o único erro - gigantesco, por sinal - de Brendan em 106 minutos de um filme que cheira água com açúcar e beira no meio-fio do clichê, mas que nem por isso deixa de ser divertido e, por que não, inspirador nos momentos certos.
A trilha sonora é muito divertida, e juro por Deus que quando terminei o filme vim visitar o Filmow e, de relance, li que o Patrick Carney (Black Keys) fosse o diretor. Menos um mico na vida, afinal; já tava com um comentário engatilhado sobre como o cara supostamente se inspirou em alguns estilos que não aproveita em nada na "outra" vida profissional.
Documentário super conciso. A produção ressalta, da maneira como é construída, muito do levantamento documental e das fontes por parte da equipe técnica responsável. Da entrevista ao crítico literário alemão na TV, da década de 1960, ao recorte dos trechos do diário que tratam mais à fundo quando da estadia em Hamburgo, bem como o link com a memória - tanto daqueles que foram ajudados pessoalmente quanto àqueles que, de um modo ou outro, guardaram os documentos ou mesmo as lembranças de pais ou familiares ajudados por Guimarães e Aracy, mesmo com
a leitura dos documentos secretos do Reich, que já viam com um olho pregado nas atividades e comentários anti-nazistas do literato,
tudo é otimamente construído.
É um espetáculo sobre uma faceta, pra mim, desconhecida do Guimarães Rosa - sabia de sua passagem enquanto diplomata, mas nunca saberia dessas suas atividades, de seus posicionamentos e das ajudas prestadas em Hamburgo. Só mostra como muita coisa ainda relacionada à História brasileira - e de seus naturais - ainda tem a ser estudada, mesmo descoberta, e exposta.
Que filme gostosin de assistir, bixo. Muito diferentemente do que se foi - muito - veiculado, quando de seu lançamento e das primeiras análises (aqui penso nas estadunidenses), não o consegui ver como de "apelo à nostalgia" dos anos 90 ou coisa do tipo. É meio que evidente que, se ele se passa nesse recorte, tem de se ter algumas referências às situações, música, formas de entretenimento em geral do período etc; pra mim, só identifiquei no início do "Mid" essa jogada por parte do Jonah Hill, como por exemplo o Super Nintendo, a camisa do Street Fighter, a organização dos cds, as camisas clássicas de esporte americano etc (além, óbvio, de vestimentas e mobiliária) - e, mesmo assim, nada "saturado" ou "forçado" conforme li em algumas opiniões escritas.
No mais, e comparando com outras produções, o Jonah experimentou aqui algo diferente do que alguns outros diretores acabam, por escolha mesmo, optando: não há uma "romantização" dos anos 1990, por exemplo; se aproxima - mas bem à distância, importante ressaltar - do "Kids" de Larry Clark, nesse ponto, e se distancia de um Linklater que, em início de carreira, fazia alguns filmes ("Dazed and Confused", baseado nos 1970 por exemplo) serem quase um retrato idílico naquele cenário/espaço/recorte temporal no qual se passavam.
Crianças e pré-adolescentes se entupindo de drogas, bebidas, aprontando pela cidade, entrando em confronto com seguranças, policias, no ambiente familiar etc compõem todo o cenário de "Mid", atuando quase como um personagem no decorrer da história. Achei interessante as caracterizações, em separado, de cada um do grupo, bem como do "ápice" da proposta trabalhada aqui, com a
super abrupto - sem esquecer da construção da cena do acidente, com cortes rápidos e que acabam tornando a cara do Fourth Grade mais assustador ainda.
Foi uma boa pedida pra mim. Nada mais, nada menos. Não consegui ter toda a nostalgia que alguns tiveram, mas isso em momento algum me atrapalhou no desenvolvimento do filme (desceu tão leve que até tomei um susto quando acabou!). Pra um primeiro filme, creio que o Jonah Hill deu um passo importante. Agora é aguardar o que vem - se vier -, a partir daqui, para aí sim se conversar e pensar mais a fundo algumas opções, técnicas e mesmo semelhanças e diferenças em relação ao debute.
"A sua insensibilidade é perversa [...]. Você não tem sentimentos, nem decência você tem. Você sabe se expressar bem, sempre encontra as palavras certas, mas há uma coisa sobre a qual não entende nada: a vida".
Quatro personagens dividem o protagonismo no "Através de um espelho", ambientado num buraco bucólico de algum lugar na Escandinávia - mais especificamente uma casa rústica de um andar, com alguns pequenos quartos de pequenas camas (ainda não consigo imaginar o Max deitado confortavelmente numa daquelas, por sinal), um ancoradouro pequenininho e os restos de uma embarcação que parece parada à força ali muito mais por uma ironia da natureza que qualquer outra coisa. Enfim, só quatro pessoas compartilham uma produção carimbada com o nome "Ingmar Bergman" aqui.
Mas, em uma hora e meia, o diretor sueco percorre a complexidade de algumas relações sociais (distância paternal, o não-diálogo), os desafios da esquizofrenia, a sensação de inutilidade, a ansiedade que não passa, problemas conjugais, o desejo de uma "normalidade" que parece cada vez mais distante, o medo do abandono e de desconfiança àqueles supostamente mais próximos, que compartilham de seu mesmo sangue, os dilemas com (um) Deus. Tudo embalado por uma fotografia espetacular, que realça visualmente as tormentas de cada um desses seres fictícios - mas não menos reais -, e que só potencializa a riqueza do roteiro e dos diálogos como muitos já comentaram aqui.
Duas cenas, pra sempre marcadas: a da peça, na qual o Minus
, por meio de uma ironia, busca uma aproximação com seu pai naquela "sepultura de um artista",
e a ultra-comentada, na sessão de comentários, que é a derradeira, em que um desses quatro finalmente consegue a tal sonhada aproximação - profunda, mesmo que rápida - com o outro. Espetacular.
"Observe toda esta gente: são incapazes de uma revolução; estão muito humilhados, muito temerosos, muito oprimidos. Mas, em dez anos, os de 10 terão 20, os de 15 terão 25; terão herdado o ódio de seus pais, mas com a adição de seu idealismo e impaciência. Alguém se adiantará e colocará seus sentimentos sem palavras, alguém prometerá um futuro,alguém fará suas exigências, alguém falará de grandeza e sacrifício. Os jovens e inexperientes brindarão seu valor e sua fé aos cansados e indecisos; e então, haverá uma revolução, e nosso mundo se fundirá em sangue e fogo. Em dez anos, não mais, eles criarão uma sociedade sem igual na história mundial".
Um dos melhores filmes que já vi sobre a loucura - cultural/científica/politicamente - que foi a República de Weimar, Berlim mais em específico, espremida ali dentre o fracasso de um Império Alemão que, apesar do conflito, foi surrupiado enquanto instituição escancaradamente pelas potências vencedoras da Grande Guerra Mundial, e o fanatismo que o nacional-socialismo acabaria por impor, a ferro e fogo, exatos dez anos após os eventos de "O ovo da serpente". Impor, ou normalizar?
Das festas esplendorosas embaladas a jazz nos cabarés, em meio da tremenda crise econômica decorrida das assinaturas de Versalhes e que estourariam mais ainda num não tão distante 1929 - no qual um cigarro, pro azar de nosso Abel Rosenberg, custava inimagináveis 3 bilhões de marcos -, às humilhações decorridas da verdadeira pilhagem imposta ao Estado germânico, que se fazia presente mesmo na cabeça daqueles caras normais no cotidiano, envoltos num clima social de tensão extrema, onde jovens armados (vestidos em cinza e preto) sentiam-se à vontade para cometer violência a esmo - mesmo na frente daqueles que deveriam manter a ordem -, chegando ao ponto de
e muito provavelmente partindo de discursos estúpidos de moral, raça e nacionalidade, tão comuns - assustadoramente comuns - ainda hoje.
Como comentei sobre um outro filme do Ingmar Bergman anteriormente, é tanta cena sensacional, bem construída, que não consigo separar apenas uma para comentar. Do fantástico diálogo na Igreja,
onde um padre velhinho estadunidense chega a comentar (vejam só) sobre um Deus remoto
, até à derradeira cena com o cientista com o qual abro este comentário, tudo é bem armado e nada parece fugir ou exceder a proposta bergmaniana do "Ovo". O que assusta, mesmo, é como "a coisa" vai se impregnando aos poucos em nosso cotidiano e até naqueles que nos cercam, e como pouquíssimos são aqueles loucos que tem coragem de bater de frente ou criticar, mesmo expor, e todos parecem seguir numa normalidade que não tem nada de normal, ainda insistindo em acreditar na segurança de instituições democráticas que não dão - ou nunca foram? - sensações de segurança.
Velhas-novas lições que fazem insistir num caráter de atualidade e num clima constante de atenção, cautela e, principalmente, luta. O quanto antes, e sempre.
"As pessoas exageram suas ansiedades. Têm medo, e o seu medo é pior do que as suas obsessões".
É tudo tão... bem construído no que se refere aos personagens (e seus "complexos", suas psicologias e o "meio" no qual estão envolvidos) e às cenas - com o jogo sensacional do preto-e-branco ao colorido no prólogo e epílogo, assim como a sensação de intimidade que é criada entre o telespectador e sujeitos, e respectivas degradações, como Peter e Katarina (s) - que é até difícil separar apenas algo pra comentar. Mas porra, não tem como citar a cena - e a tensão sensacional estabelecida - na qual
Peter esconde-se no consultório do Mogens, enquanto este recebe Katarina e expõe a ela os desejos e devaneios ali ouvidos a pouco, e toda uma tensão misturada com suspense escorre por uns dez minutos ou mais com a presença do "cliente" ainda ali, visivelmente fragilizado.
Enfim, é (tudo) genial. Ou apenas Bergman, como diriam alguns.
Belos Sonhos
3.6 14 Assista AgoraNuma Sarajevo ainda envolta nos tormentos do conflito civil-militar mais violento em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial, em 1992, acompanhamos dois jornalistas italianos em uma cena que se desenrola no ritmo frenético da ação. A bordo de um carro com o "Press" estampado nas laterais, os repórteres do "La Stampa" de Turim, em que pesem compartilhar do mesmo empregador, parecem estar sob emoções diferentes nesta manhã: aquele que acompanha o motorista à frente, o fotógrafo, parece animado com o provável furo de reportagem que irá cobrir, e inclusive pressiona o coitado responsável pelo volante a correr mais que de costume pelas ruas esburacadas por projéteis de artilharia; o outro jornalista,pego incauto pelo anúncio recebido logo cedo, cobra calma, arrisca um inglês macarrônico dentro do carro e pede uma menor velocidade, mas pouco é ouvido pelos outros dois.
O que vemos, na sequência, é uma cena que daria orgulho aos estudiosos da fotografia. Nela, acompanhamos os dois jornalistas entrarem numa casa, e se depararem com um
corpo de uma mulher idosa, deitado sob uma poça de sangue, nos fundos da residência.
apanha o menino, focado com o video-game portátil (e provavelmente traumatizado com os eventos), e o põe, com cadeirinha e tudo, próximo ao corpo morto da senhora.
A panorâmica está pronta, e o cenário é impactante: o risonho fotógrafo bate as fotos, enquanto seu ainda aparentemente aturdido companheiro acompanha com o olhar toda a situação. Mesmo na guerra, vemos a oportunidade de crescimento, o cavalo com sela que passa inesperadamente na frente do vaqueiro perdido no sertão. A fotografia tirada, deste jeito, não aparenta mais ir às distantes páginas do meio. Pela felicidade do amigo da câmera, ela será a foto de capa de um dos mais vendidos jornais da Europa. Nesta situação, podíamos até evocar Susan Sontag: ainda nos causa incômodo a "dor dos outros"?
A cena, bastante reveladora, é na verdade quase um spin-off dentro do "Belos Sonhos". Ao contrário de sua composição, acompanhamos como personagem principal não o sujeito cabeludo da câmera fotográfica, mas seu camarada "distante", Massimo.
"Belos" não é sobre a guerra, mas funciona na verdade como um filme de formação: é como se pegássemos alguns clássicos desta vertente na literatura europeia do século XIX e XX, como o "Werther" de Goethe e os "Bruddenbook" de Thomas Mann, e os transpuséssemos pro cinema.
E o resultado, pra mim, é tão lindo como. É uma narrativa de crescimento, conflitos, amadurecimento, traumas, memórias e silêncios que acompanhamos por pouquinho mais de duas horas. Do surgimento do primeiro grande amor da vida, a mãe, mas principalmente da difícil situação de lidar com a perda abrupta desta.
Se nos primeiros minutos de filme vemos uma mãe e seu filho se divertindo, ouvindo um rockabilly americano, pouco menos de uma hora depois somos jogados para as confusões de uma criança que não aprendeu a lidar com a situação desta perda.
E que nem irá
"não, eu não posso ser sua mãe.
Pra não alongar tanto, não posso deixar de citar mais três cenas espetaculares: a do jovem Massimo nos bancos escolares de uma escola católica aprendendo o verdadeiro significado de "luz" e de como algumas ideias religiosas não podem ser transpostas ipsis litteris ao mundo secular; a "resposta dos editores", no episódio de uma carta de um filho raivoso enviada ao Stampa, em que sou surpreendido pela leveza de um humor inesperado pelo tema e pela situação; e a descoberta de um escape, da criança Massimo, das agruras da vida pelos ombros de seu pai: a alegria de ir ao estádio e de assistir (e imaginar, quando não o há!) o futebol.
Sem esquecer, claro, da belíssima cena derradeira: afinal, se alguns privilegiados ainda podem se dar ao luxo
de chamar pela mãe,seja ao chegar em casa, como aludido exemplarmente por Massimo na resposta à correspondência enviado ao Stampa, ou pelo simples medo de uma brincadeira de esconde-esconde, como acompanhamos agora,
"Belos Sonhos" é provocativo, forte, sensível e, principalmente, real nas medidas certas.
É a forma de encarar uma dor que nunca chegará ao fim, do aprender a lidar com ela e, como nos ensina o padre/professor, de como "apesar de que" temos de seguir em frente. Nessa quarentena maldita, só tenho a agradecer ao Arte1 pela surpresa de transmitir isso numa tarde que, agora, parece sempre igual às outras.
Jim & Andy: The Great Beyond
4.2 162 Assista Agora"É de todos conhecido, porém, que a enorme carga de tradição, hábitos e costumes que ocupa a maior parte do nosso cérebro lastra sem piedade as ideias mais brilhantes e inovadoras de que a parte restante ainda é capaz".
A citação é retirada do "Homem Duplicado", livro lançado em 2002 pelo português José Saramago, e conveniência maior pra usá-la não há: ao contrário do que o Jim Carrey afirma ao longo de todo o documentário, me parece que não foi ele e Andy que se tornaram "um"
enquanto trinta golfinhos pulavam num oceano qualquer
Antes foram duas partes separadas no qual uma, temporalmente mais tardia, por sua genialidade se reconheceu ali na outra e, tal como aquela primeira, quebrou uma "carga" das estruturas da comédia e da arte dramática que ali se colocavam.
A transformação - ou o reconhecimento - do J. C em Andy Kaufman foi algo de outro mundo.
Há um viés interessante nisso tudo: o Kaufman sempre leu-se mais como um "ator performático" do que propriamente um comediante. Fico feliz, e muito surpreso, que um interruptor no cérebro do J. C, erguido e alçado às glórias como um comediante no miolo dos anos 1990, tenha sido acionado: é perceptível, a contar desde "O mundo de Andy", a transformação dele - não só como ator, mas principalmente como pessoa.
A carreira "filmográfica" do Jim ou sua metamorfose como comediante pouco me importa aqui; é notável, e fantástico, a transformação do seu ser.
Não foi Jim Carrey que emulou e virou Andy Kaufman. Foi Andy Kaufman que, de alguma maneira, foi duplicado ali, quase à perfeição, naquele sujeito que é o Jim Carrey que, como antítese do pensamento desse personagem do Saramago, não hesitou em ir fundo nestas ideias tão brilhantes e inovadoras (mas sufocadas!), tanto à sua profissão quanto à vida, do qual nos fala o português.
Star Wars, Episódio IX: A Ascensão Skywalker
3.2 1,3K Assista AgoraAcho que nem tem muito o que se falar. É o filme mais preguiçoso de Star Wars já produzido.
Cenas curtas entupidas de personagens secundários em cima de cenas curtas entupidas de personagens secundários, sem um fio narrativo pra guiar o espectador por cerca de 140 minutos e que prefere, antes, prende-lo por uma ação (ruim) ininterrupta.
Impressionante como nem um filme bom de ação/aventura, o marcante da trilogia original de SW, conseguiram fazer. As cenas de ação não empolgam em sua grande maioria
- sendo, pra mim, a exceção a cena das batalhas aéreas de Poe já ao fim -
Mesmo o roteiro parece ter sido feito às pressas. A construção narrativa é inexistente, com fatos novos sendo adicionados a outros fatos novos seguidamente (e sem explicação anterior alguma!), e não existe nem uma "solidificação" da história narrada: simplesmente não há tempo para pensar, porque a escalonada que o filme entrega assusta até aqueles que já curtiam o universo Star Wars.
É assustador parar pra pensar que não se precisaria nem de nada muito elaborado pra fazer um bom filme: à exemplo do VII, que chupa inteiramente o roteiro do IV - e que, convenhamos, roteiro nunca foi o forte dos filmes de SW em geral, até diferentemente das outras obras produzidas em mídias diferentes sobre esse universo -, ou mesmo do VIII, que decide seguir por uma história minimamente original - que seja aceitável ou não como produto final é outra questão -, e que acabam por entregar pelo menos um mínimo aceitável de narrativa, a "Ascensão Skywalker" é incrivelmente um filme sem história alguma.
O
"inexplicavelmente, Palpatine sobreviveu" (que no original creio que seja "somehow, Palpatine lives")
Os Renegados
4.1 86 Assista Agora"Por mais mesquinha que seja sua vida, aceite-a e viva-a; não se esquive a ela nem a trate com termos duros. Ela não é tão ruim quanto você. Ela parece tanto mais pobre quanto mais rico você é. Quem vê defeito em tudo verá defeitos até no paraíso. Ame sua vida, por pobre que seja. Talvez você possa ter algumas horas agradáveis, emocionantes, gloriosas, mesmo num asilo de pobres. O poente se reflete nas janelas do albergue de mendigos com o mesmo fulgor com que brilha na morada dos ricos; a neve se dissolve em ambas as portas na mesma época da primavera.
Não vejo por que um espírito sereno não possa viver com o mesmo contentamento e com pensamentos alegres num asilo ou num palácio. Muitas vezes me parece que os pobres da cidade são o que vivem a vida mais independente de todas".
Salvo ressalvas, esta passagem do Walden, escrito pelo Henry David Thoreau em 1854, me parece um daqueles casamentos perfeitos com o que vemos em uma obra de uma mídia completamente distinta, a nível de recorte temporal, temática e veículo, com aquela outra a qual decidimos comparar.
Não sei se a Agnès Varda chegou a ler Thoreau - e, no fim, isso não importa em absolutamente nada -, mas me foi dificílimo não assistir a jornada de Mona e associá-la (em partes, verdade) com a do estadunidense que, cem anos antes, decidiu dar um basta naquilo que chamava de "vida civilizada" na sua América do Norte oitocentista.
Ao fim, ambas as jornadas, cada qual no seu ritmo, estilo e meio, que acabam por movimentar várias questões sobre o mundo em que vivemos e, principalmente, a sociedade que nos cerca - em todos os seus aspectos e particularidades, tão díspares e, às vezes, completamente inesperados.
Ambas as obras, também, fantásticas no seu story-telling.
Danton: O Processo da Revolução
3.8 73A Revolução de 1789 - ou, mais especificamente, o estabelecimento de suas bases legais no decorrer do chamado processo, tão distantes dos ideais "libertários" memorizados e repetidos a esmo, tal como vemos com o irmão da governanta de Robespierre - sem romantização alguma.
Wajda, malandramente, se utiliza das histórias iniciadas no 1789 em diante para fazer sua nem tão sutil crítica ao cenário político do Leste Europeu neste momento: em entrevista ao Le Matin, o diretor polonês chegou a dizer que "Robespierre é o mundo do Leste, Danton é o mundo ocidental. [...] A atitude e os argumentos [de Danton] estão muito próximos de nós. O choque entre esses dois homens é exatamente o momento pelo qual estamos passando hoje".
Era a conjuntura de crise do chamado "socialismo real" europeu, e Wajda, fervoroso apoiador do "Solidariedade" polonês, quis passar seu olhar traçando paralelos entre estes dois recortes históricos. Aquele de fins do setecentos, em que uma revolução inicialmente popular descambou para o terror; este, de fins do século XX, com sua narrativa do legado socialista.
Acusações e farpas dos dois lados não poderiam faltar, afinal. Sobre "Danton", o historiador estadunidense Robert Darnton escreve que algumas escolhas do polonês para o filme "chocaram os críticos não por causa de sua imprecisão, mas por darem aos líderes da Revolução um ar mais familiar e menos heroico do que as figuras dos livros de história. [...] O retrato de um Robespierre gélido, neurótico, desumano, de Wojciech Pszoniak, era particularmente ofensivo, pois Robespierre era a pedra de toque da ortodoxia nas interpretações da Revolução. Igualmente importante, ele era o modelo do intelectual moderno. Personificava o [...] teórico que virou homem de ação", que estabelecia linhas partidaristas e se lia como um estrategista das "massas".
Um filme, recepcionado (e lido) de maneiras completamente diferentes. Como a própria História, no fim das contas.
Exemplo disso? Certeza que Wajda não pensou a situação política de um certo país sul-americano que fala português quando pôs, na boca
de um exaustíssimo Robespierre, que tudo aquilo que se construiu poderia se colapsar num piscar de olhos: "se você tiver razão de que o país realmente precisa de um ditador, então, o país não é uma república, e a democracia é apenas uma ilusão".
Raoni
3.5 4 Assista Agora"O civilizado não têm uma vida como a de vocês [indígenas]. Ele não sabe o que ele é; ele vive dentro de um mundo que não tem explicação, uma confusão total. Cada um quer viver por si; não é como a sociedade sua em que todos são irmãos, em que tudo entre vocês, cada um quer ajudar o outro. Vocês formam uma grande família.
Vocês, de certa maneira, são mais homens do que nós".
Documentário muito bem construído, ainda durante o regime militar. Não conhecia a figura do Raoni. Interessante a "deixada-no-ar" de um possível diálogo entre os povos originários do Xingu e aqueles seus verdadeiros irmãos do Norte.
Curiosa a condição humana, também, que parece não extrair nada de velhas lições - até mesmo daquelas, em que tudo já vem mastigado (no caso aqui ao telespectador). Marlon Brando arremata
com um como "todos pensam que alguém os está ajudando. Mas é simples, na verdade: se não você, quem?".
Hoje, temos um maluco na pasta do meio-ambiente, e a Amazônia - com todos os seus povos, até o "caraíba" na reta - se encontra mais ameaçada do que nunca.
41 anos do alerta, mas seguimos majoritariamente escanteando o tema, pondo em xeque estudos, transformando as discussões em algo periférico, por vezes até rindo daqueles que põe esta causa em primeiro lugar.
Suspíria: A Dança do Medo
3.7 1,2K Assista Agora"Movimento nunca é mudo; é uma linguagem. É uma série de formas enérgicas escritas no ar, como palavras formando sentenças.
Como poemas. Como orações.
Feitiços?"
Que resgate do clássico do filme do Argento, bixo. Que coisa linda da porra.
Num primeiro momento, quando saíram as primeiras informações de um "remake" do "Suspiria", logo imaginei que seria como aquelas versões hollywoodianas pasteurizadas, aquele CTRL C + CTRL V horroroso que a grande indústria estadunidense ama fazer, por vezes.
Como fiquei feliz em estar enganado.
As próprias
adições à nível de roteiro
Alguns comentaram abaixo sobre a duração, mas não vi como empecilho. Esse "Suspiria", em especial, te prende da melhor forma possível; uso o "esse" porque é algo muito distinto do original. Da trilha sonora à estética, do roteiro aos desenrolares, é literalmente uma experiência nova a oferecida aqui.
A "construção" é digna de nota, e cada cena apresenta algo literalmente "fantástico" em sua feitura. O jogo de luzes, a contraposição de cenas, a solidão; cada minuto parece se destacar por seus cenários e situações, e terminam por manter uma originalidade que é proposta.
E, o que é essencial, a homenagem tá lá, e vem num clímax que lembra algo não uma citação daqueles mestres que gostamos tanto, mas mais como um novo olhar, um novo texto, construído em cima daquilo que já era muito bom.
Fico com a sensação, muito forte, inclusive, de que esse aluno talvez tenha superado o professor em sua matéria.
A Noite Amarela
2.7 51Remoí muito sobre o que eu queria escrever aqui, sobre o que achei de "Noite Amarela". De verdade.
Não por crítica ao filme e seus aspectos e escolhas - mesmo porque o Filmow não é o espaço mais adequado pra isso (até porque nem me acho qualificado para isso - ninguém aqui é, verdade seja dita), muito menos para uma ofensa aos envolvidos na sua produção, em algo tão gratuito e comum hoje nas redes sociais.
Antes, dei um breque porque sabia que acabaria por escrever algo fugindo de um visão sobre o filme em si (coisa de que brincamos, neste site) pra remoer, no fim, sobre uma das características mais intrínsecas e mágicas do consumo do cinema como um todo que, vez ou outra, sempre merece uma pontinha nos artigos, críticas especializadas e demais textos que abordam o universo cinematográfico e que lemos.
E que, no fundo, é um puta clichê - e eu odeio clichês. Mas acho que, pela primeira vez na vida, fui aberto a novos "imaginários" e olhares para o espaço, urbano nesse caso, que me cerca. E, bixo, o mérito disso tá muito nesse filme aqui.
Que sensação maravilhosa é você consumir uma produção que aborde a cidade que você conhece tão bem. Uma abordagem que foge por completo da raia comum.
Desde aquele entroncamento que sobe em direção ao Catolé, com o Dallas sendo palco de "balbúrdia" e disputa entre as "tribos" da cidade que em tempos campinenses de outrora fora tão comum, e a avenida Brasília - filmada à contramão!
Ou mesmo os bancos de pedra no interior do Colégio das Damas, em uma cena no qual só um ex-aluno dali poderia sacar todas as referências - saquei a homenagem a uma certa professora de Geografia ali, quando geral manda tudo se foder hein -, até ao conhecido monumento de Jackson às beiras do Açude Velho.
Vi "Noite" sem pretensão alguma. Como a única sessão legendada daquele palhacinho que dá bilhão no único cinema da nossa querida e amada cidade estava entupida, decidi dar o tiro pro único filme cujo horário era semelhante. Sem ver trailer, sem ler roteiro, adentrando literalmente o escuro.
E, pow! Me deparo até com o auditório José Farias, da UFCG, sendo palco para uma palestra e debate sobre "fotografia quântica".
Em suma, já havia lido sobre a "Boca do Lixo" paulistana, sobre o Rio de Janeiro privilegiado da indústria cinematográfica nacional na "era de ouro" nos anos 1950, ou mesmo o Recife recuperado por diretores nordestinos mais recente. Sem comentar sobre, sei lá, a Nova York de Scorsese, a Paris de Godard e Truffaut.
Quase que por tabela, entrei em contato com memórias de pessoas que vivem estas e outras cidades e, por verem os filmes (icônicos ou não, bons ou ruins, de grandes ou pequenos espaços e diretores, isso aqui literalmente não interessa) que se rodam ali, criam uma relação mais íntima e profunda com o cinema e, num jogo duplo, também com suas comunidades.
Só agora, só depois de "Noite", é que finalmente posso dizer que descobri essa sensação de um "outro olhar" para aquele espaço, completamente ressignificado, que você habita e que vive diariamente, que lhe estressa e irrita, mas também pelo qual às vezes sente saudade e compartilha daquele sentimento de que "só nós, daqui, é que podemos falar mal!".
E que puta sentimento legal esse que, agora, também posso dizer que tenho.
Eles Não Envelhecerão
4.3 49Que restauração - das filmagens, sonoras, entrevistas - e construção de filme impressionante. A imersão, às vezes, é quase que total. Sem espaço pra alívios, é o horror real da guerra desfilando em todas as suas dimensões estéticas, visuais e psicológicas por pouco mais de hora e meia - entrecortadas por tiradas interessantíssimas sobre o dia-a-dia das trincheiras e dos (raros) cotidianos fora dela.
A
passagem da filmagem no original, com seu ritmo picotado (em que seus "atores" parecem pulando e andando à Chaplin), ao remasterizado - em todas as suas cores e ritmos recuperados -
"Dizem que quando você está próximo de morrer consegue enxergar seu passado, mas aos 19 anos de idade eu não tinha muito passado; e quando vi as balas chegando, tudo que pensava era: 'vou sair vivo'?".
A Pele de Vênus
4.0 218 Assista Agora"A vida nos faz do que somos em um momento inesperado".
"A Pele..." me parece um Polanski digno dos seus melhores anos, ali na década de 1960. É surpreendente, na medida em que explora não uma "auto-crítica" do próprio Polanski (como comentado mais abaixo) no meu ver mas, antes, mergulha em vieses de interpretação que, por sua construção, nada mais são do que uma das palavras mais repetidas ao longo da pouca mais de hora e meia daqui: ambiguidade.
É inevitável não assistir o Mathieu Amalric interpretando Thomas e não lembrar o próprio jovem-Polanski: o corte de cabelo, os trejeitos nervosos, até o tamanho! Mas, definitivamente, não é isso que faz disso um filme interessante. Muito mais se esconde aqui, e o cast enxuto em nada prejudica o andamento da proposta: do contrário, acentua e faz estridente a voz polanskiana que, já há um bom tempo, não ousava exclamar algo desse tipo - e, principalmente, dessa maneira.
Provocador, "Pele..." faz um jogo muito esperto (e nada sutil) sobre arte, cria um jogo narrativo sobre direção, atuação, expõe os vários significados que podem escorrer de um roteiro - e que dão um bom debate sociológico e antropológico, em que pese a ênfase de Thomas em afirmar o contrário ao conversar com Vanda sobre os rumos de uma boa história.
"Mas essa peça é sexista, eu quero gritar! [...] o livro é sexista: [...] é uma luta de classes, e sexos!"
RoboCop: O Policial do Futuro
3.6 682 Assista AgoraRevi o "RoboCop" ontem. Não poderia acrescentar muita coisa, e a análise do Luís Carlos um pouco mais abaixo é basicamente o que eu diria sobre esse "quase-slasher" com boas pitadas de gore do Verhoeven.
Porém, uma coisa ficou martelando na minha cabeça assim que terminei de reassistir: é impressão minha ou tem uma pegada muito forte do "Cavaleiro das Trevas", quadrinho do Batman escrito por Frank Miller em 1986, na estilística e roteiro deste "RoboCop"?
A mídia e a exploração de sua programação jornalística em certos momentos pontuais, a programação da tevê - com boas doses de mulheres seminuas e sujeitos nem tão engraçados assim - que anestesia todos aqueles que a assistem, a visão de uma grande cidade estadunidense - aqui Detroit, com sonhos de uma literal nova cidade que corte cirurgicamente a parte pobre/perigosa desta nova projeção citadina, no "Batman" milleriano a Gotham que simula NY - entupida na violência urbana que, pelo fato de uma força institucional distante (as grandes corporações no "RoboCop", a desilução da GCPD no "Cavaleiro..."), assiste a ascensão de um verdadeiro Estado paralelo em todas as zonas citadinas, por exemplo, me pareceram muito semelhantes da perspectiva da Gotham-de-um-futuro-nem-tão-distante do Frank nos quadrinhos.
À Procura de Sugar Man
4.5 180 Assista AgoraQue história inspiradora. Acho que "inspirador" é o que move todo o documental. Um sem-teto, "homeless-person" como repetido à exaustão por um dos primeiros entrevistados, que carrega toda a aura de um cronista musical, um cara que canta o que vê e sente ao seu redor. A Detroit deprimente, quebrada desde a crise de 1929, sem as grandes indústrias, distante e seca.
Mas que, mesmo assim, canta também esperança. Um estadunidense com todas as marcas de um "latin", hispânico mesmo, que cantando a sua Detroit inspirou a rebeldia e contra-cultura afrikânder do auge do Apartheid, perguntando o número de suas transas e a distância de amigos, versando sobre drogas e insurreição.
E que hombridade por se manter, mesmo sabendo das injustiças que o cercam bem como daqueles que até hoje, imagino, simplesmente o devem um puta dinheiro.
Infelizmente demorei muito pra ver o "Searching...", mas felizmente finalmente o vi. E não podia ser uma experiência melhor.
O Outro Lado do Vento
3.6 36 Assista AgoraÉ esquisito. Quando saíram as primeiras informações do "Other Side", me animei na expectativa do que poderia vir - como fã de Orson Welles e, acima de tudo, como apreciador de cinema; ora, mesmo que você não seja fã do sacaninha que pregou uma baita pegadinha pelo rádio estadunidense nos 1940, não dá pra negar sua importância cultural: o legado wellesiano no cinema , impactou não apenas Hollywood da primeira metade do século XX, mas mesmo as produções de nossos dias; revolucionário, sua utilização do rádio e da comunicação de massa, também, é mesmo uma aula ainda hoje sobre a difusão e alcance daquilo que é passado e, mais importante, do como é transmitido, por exemplo.
Dito isso, não esperava nada muito "sofisticado". Sabia que isso aqui não seria algo como o "Eyes Wide Shut" do Stanley Kubrick que, lançado em 1999 sem passar pelo crivo final do diretor, foi levado às telonas com aquela marca do "vejam a última obra do grande diretor do século XX!" - mas que, por sua vez, já se encontrava de fato em uma reta final de produção, sendo uma obra quase "no prelo" que, infelizmente (e por ocasião do destino que fulminou o coração do grande gênio), saiu sem o carimbo do autor.
"Other...", aqui trazido pela Netflix, nada mais é do que um grande esboço, um sketchbook de desenhistas daqueles que encontramos muitas vezes em edições de luxo das nossas revistas favoritas, ou mesmo uma versão demo, uma primeira gravação de estúdio, daquela música que gostamos tanto.
Projeto que bateu, voltou, foi trabalhado, retrabalhado e, ao fim, não finalizado (para, na primeira década do século XXI, ser recuperado por um serviço inovador de consumo de tv/cinema que o levou, por streaming, a todos os seus assinantes. Que tempos).
É tudo muito primal, parece até estágio inicial mesmo. Não há, como no "Eyes..." kubrickiano, um segmento, um fio narrativo de "direção". Oxalá fosse como o filme do casal do momento do fim dos anos 90. É quase uma bagunça, pra falarmos a verdade; e, conhecendo a filmografia wellesiana, podemos quase asseverar que isso não seria nunca a versão final. Muito longe disso, diga-se.
Portanto, pra mim - um simples fã de cinema, longe de ser um estudante/estudioso profundo da arte e sem legitimidade alguma no "campo" - "Other..." funciona como um grande prefácio daquilo que nunca veremos em sua forma final. A melhor maneira de abordar (e pensar) esse último passo do Welles seria, por conseguinte, analisando suas ideias e propostas que, pinçadas com tremendo esforço, nos são oferecidas nesta versão que saiu à luz.
Mais especificamente: me atrai, no roteiro, ver como um diretor experiente lidou com as transformações que atravessavam o "grande cinema" estadunidense na década de 1970: as influências das filmagens europeias, a sensação de deslocamento na "metodologia" em meio a onda de novidades que vinha arrastando tudo, até uma marginalização que, como uma novidade, atingia os agora "dinossauros" das câmeras que tiveram grande sucesso outrora e agora se viam em posição diferente na hierarquia que agora se apresentava no novo cenário dos diretores hollywoodianos.
Mesmo na reta de caos que é o "Other" me parece que esse é um registro pessoal demais do Welles. Sua leitura do cinema àquele momento.
É uma pena, reafirmo, que os cacos juntados não sirvam pra cobrir - em parte minimamente aceitável - o que seria o produto final; por outro lado, é divertido ver a produção de um dos grandes caras da arte em estágio tão "seco", tão inicial, e que dá àqueles que não são do campo uma perspectiva totalmente diferente de como se vai dando uma edição, decupagem e construção de um filme.
Enfim, é uma aventura cinematográfica. E daquelas bem esquisitas mesmo.
A Voz da Lua
3.5 26 Assista Agora"Como eu gosto de lembrar, ao invés de viver".
Um onirismo, de duas horas fechadas; mas como isso parece ser basicamente um clichê pra qualquer produção que carregue o nome de Federico Fellini na direção, podemos ir um pouco mais além no "A Voz da Lua".
A pluralidade de vozes, situações, cenários e personagens marcam definitivamente a "Voz", e algumas cenas certamente alcançam aquele "quê" de mágico e belo pela sua condução e, principalmente, apresentação.
Por exemplo, em uma casa típica daquilo que alguns ainda insistem em classificar como pertencentes de uma certa classe "burguesa" - nesta cena vemos um piano encostado à parede, na nossa direita, enquanto à nossa frente está uma mesinha redonda de duas cadeiras, com café, partitura, cigarro e luminária a ocupando, enquanto ao fundo apenas observamos a parte de uma cozinha; não menos importante, evidentemente, um relógio de parede de estilo cuco clássico, amadeirado, está presente na sala -, um senhor pratica no seu clarinete uma peça musical que, em sua leitura, é amaldiçoada; a sequência diabolus, como a diz a todos aqueles que insistem em ouvi-lo, quando invocada musicalmente faria móveis se mexerem. Ora, o armário (grande e robusto, entupido de quinquilharias) é o primeiro a arrarstar-se; "sou um lunático, um vidente?", questiona-se ainda atônito logo após a sua prática musical.
Esse auto-questionamento parece, antes, ser o leitmotiv que move essa "Voz" felliniana. O próprio absurdo desta cena em específico, com o móvel movendo-se, parece bobeira ao atentarmos a como seu enunciador encontra-se dormindo em um cemitério (!) e a relata a pouco mais de três pessoas que, por motivos diferentes, também encontram-se ali (!).
"Mas nada é verdade [...]; é apenas uma ficção, pura representação", como chega a comentar um personagem um tanto misterioso, "gordo", "nervoso" e de duras expressões faciais - e que "se recusa até ao diálogo" - conforme letras frias certamente assinadas por observadores terceiros.
A mim, salvo a grande direção em algumas cenas e a boa-sacada do Fellini à condução de algumas temáticas (tão díspares mas, né, estamos numa narrativa que beira o quase alucinatório) que, pelos próprios rumos e ideia da "Voz" veem, para si, as portas abertas para serem abordadas, me parece uma empreitada, antes, mal "armada".
Não que o filme seja ruim, ou mal-feito (quem somos nós para criticar qualquer produção aqui, afinal?), muito longe disso mas, em alguns momentos, a "Voz" felliniana, que perpassa situações escabrosas das mais diversas, indo de questões matrimoniais (em que algumas esposas são quase uma locomotiva no que se refere ao sexo) às políticas ("não somos uma nação de idiotas?" parece ser o questionamento italiano desde, vejamos, sempre?), parece se perder na condução das situações.
Ou, no fim, por que não, essa pode também ter sido a intenção ao cabo da coisa.
Último destaque: o maravilhoso desfecho final, em que um Ivo,
com pretensões de Pinóquio na personalidade, conforme visto, chega a um poço muito semelhante àquele da cena inicial e desfere uma das frases mais lindas que já me lembro de ter visto em qualquer mídia:
Um pontinho brilhante (como alguns outros, conforme visto nos comentários abaixo também) no grande emaranhado de situações plurais que perpassam a singular, e última, "Voz" felliniana.
Redenção Sangrenta
4.0 10Uma narrativa creio que quase inédita à época no cinema (em que pese já uma enxurrada de abordagens da mesma principalmente em outras artes, como a literatura e o teatro - como não lembrar de Dostoiévski que, já na metade do século anterior, abordava tais situações?) e que sobreveria ao chamado "desafio do tempo", tornando-se atemporal: no fim das contas, "Breaking Point" me surpreende como, em meios da década de 1950, levou às grandes telas a história do anti-herói que, provavelmente, deveria ser o tipo mais comum na sociedade americana após duas guerras de escala mundial e uma outra de intervenção violenta no Pacífico nesta mesma década: aquela do homem de fortes convicções morais que, pelos apuros financeiros não-raros na chamada "década de ressurgimento" do "American way-of-life", vê nos
trabalhos ilegais e criminosos o meio de sustentar sua família, "clássica" aqui - de uma Lucy dona-de-casa (e até submissa, ao menos no início) e das duas filhinhas -
"Vocês são todos iguais, falam sobre sua grande honestidade; afastam-se quando veem gente como eu. Mas quando estão em apuros, são como todos os outros: aves de rapina", é o que diz o picareta Duncan ao amigo e personagem principal Harry Morgan; afinal, o "pai legal", como chega a se auto-intitular, se encontra no emaranhado das dívidas e na não-saída da situação financeira: em que pese os planos da esposa de irem ao campo e tornarem-se agricultores, na propriedade do sogro, a única atividade que o grande bastião da moral e herói de guerra de "Breaking" sabe cumprir é a de navegar um barco.
E, vejam que situação: nem ao menos o seu Sea Queen é adquirido; antes, alugado, é usado para a pesca (atividade nada rentável,como podemos observar) em águas próximas.
Um amplo leque de questões é aberto aqui, também: afinal, até onde se vale ir por dinheiro? É justo arrastar aqueles que o prezam neste caminho? E, pra mim, o grande ponto do fim: como se dá este caminho escolhido?
Curioso: "Breaking Point", ao final, parece aquele primo mais velho e legal, mas meio desconhecido, que todos nós temos, em contraposição àquele mais famoso: a similaridade com "Taxi Driver" do Scorsese que, pouco mais de vinte anos depois, levantaria a bola de maneira magnífica para tais questões, também merece ser levada em conta - e que ressalta, evidentemente, a qualidade e importância dessa empreitada do Michael Curtiz.
Algumas cenas espetaculares, que merecem ao menos citação rápida: a
rápida estadia no México (estereotipado, de mariachis caricatos), no qual conhecemos melhor aquela personagem feminina completamente oposta a Lucy; Leona, quase que "femme-fatale" pelo seu poder de cativar o espectador, ao mesmo tempo em que o deixa em suspeita quanto às suas ações e convicções (qual o fim do seu "noivo", afinal? Como consegue manter um apartamento tão espaçoso e elegante? Em suma, quais suas atividades?).
Outra passagem maravilhosa: aquela sequência na qual
Lucy, ao buscar ajudar na casa, arruma trabalho na fábrica e acaba por levar seu ofício ao lar; todo o estresse de Morgan, virado do avesso já nestes idos do filme (lembremos da grosseria com a Sra. Cooley e da ida ao bar em horário "não-convencional" para si, sem conseguir dormir, a longa noite em claro da boa-esposa que, como vimos no fim do filme, não tem absolutamente nada de submissa: pensa, antes de tudo, no bem-estar da família e das filhas; não aceita o marido envolvido em situações ilegais e, em que pese já conhecer a decadência deste, ainda se prostra ao seu lado e tenta, na medida do possível, ajudá-lo não nas suas atividades ilegais, mas em manter antes a estabilidade sua e das crianças.
E é inevitável não remetermos ao grandioso corte final: Morgan,
agora redimido por ter enfrentado mafiosos perigosíssimos e que deve ter sido recebido como herói para a amputação, e a desolação do filho de seu bom companheiro, Wesley, agora isolado, aparte, no deck portuário.
Sem consolo, sem apoio, sem os amiguinhos da mesma idade, sem a orientação mesmo que mínima de um adulto; em suma, isolado e "sem beijo de namorada" como diria Cazuza, a criança negra parece ser o único a sentir a falta daquele que, em "Breaking Point", é o único prostrado de fato em suas firmes (e boas) convicções.
Final maravilhoso, forte, de várias interpretações, recepções e leituras possíveis.
Bacurau
4.3 2,7K Assista AgoraImpossível
ver a cena do estadunidense pela casa, vasculhando em busca dos moradores de Bacurau, e no qual um letreiro televisivo grita ao seu telespectador - e consequentemente a nós - sobre a execução pública de alguns condenados no Vale do Anhangabaú, São Paulo,
Era Uma Vez em... Hollywood
3.8 2,3K Assista Agora"Não chore na frente dos mexicanos".
Vou fazer o tipo de comentário que mais odeio fazer no Filmow: aquele no seco, após sair de uma sessão no cinema.
Primeiro, já pôr que, nessas situações, nunca consigo separar ainda uma cena ou trecho em específico do filme para comentar - como geralmente vinha fazendo aqui. No mais, "Era uma vez em... Hollywood" é realmente uma homenagem ao que é e, principalmente, o que foi Hollywood da década de 1970 pra trás.
A homenagem aos grandes astros, a referência aos despontantes diretores e aqueles que, europeus, ainda eram enxergados - como tudo que é estrangeiro aos estadunidenses - inferiores estão presentes. Todo o cotidiano (de uma classe rica e estelar em sua maioria, afinal, mas sustentada por uma verdadeira nação nada glamourosa por trás) e as perturbações da profissão, com uma tremenda concorrência entre atores já famosos e mesmo aqueles que insistem em ver-se como num degrau abaixo às estrelas, também são bem focados aqui.
Ponto negativo, infelizmente, é o mal-aproveitamento de uma enxurrada de personagens e situações que só dão as caras uma única vez pra nunca mais, apesar de marcarem por suas participações e situações.
Mas não sou fã de Tarantino: pra mim, o grande filme do homem é o "Django" (e ainda será). Mas "Era uma vez" opta por um viés diferente do que a filmografia do Quentin vinha rumando e, mesmo pra quem não acompanha tão a fundo demais obras do diretor, isso fica explícito.
Ecos de "Bastardos" e do "Pulp", que não colocarei mais detalhado aqui, são sentidos principalmente no roteiro e, curiosamente, não tanto na condução das cenas, naquele velho ritmo que deu fama ainda nos 1990 ao Tarantino.
Porque "Era uma vez", pra mim, é o filme mais não-Tarantino do Tarantino.
E porra, o sujeito conseguiu algo inacreditável, e inédito pelo menos pra mim, com aquele final:
é o "felizes para sempre", o "final feliz", mais melancólico e triste que me recordo de ter visto, quando paramos para pensar no que foi de fato aquela noite à Tate e aos LaBianca.
Nós
3.8 2,3K Assista AgoraCurioso: uma das poucas vezes que me lembro de ter visto uma direção tão boa para um script tão... fraco.
Jordan Peele fez das tripas coração para produzir o "Us" com 20 milhões de dólares. Fotografia, tomadas, a trilha sonora, os atores.
Do belo início oitentista, com suas mega-arrecadações filantrópicas (e quase que utópicas) e suas sequentes propagandas cool circulantes na tevê que prometiam erradicar a fome de um país ou continente, passando à moda dominante da época nos EUA, passando pelos belos cortes de cena ambiente que cercam a ainda criança Adelaide naquela que devia ser uma noite divertida num parque quase à beira-mar em Santa Cruz. Até ao "hoje", em que conhecemos a casa de campo na beira de um lago, um ambiente bucólico e que, evidentemente, é cercado por aquela arquitetura contemporânea que domina nosso dia a dia, "pastosa", por exemplo.
Não pensei direito pra escrever esse comentário porque o filme ainda tá bem fresco na cabeça, e mesmo por isso nem aprofundarei alguma cena em específico ou algo do tipo como costumeiramente faço.
O que garanto é que o trabalho do Peele, e creio que quem assistiu irá concordar (e pra você que vai assistir, é algo pra encarar sem medo), é correto. Super justo.
O produto entregue ao consumidor extrapola aquilo que os mais incautos poderiam pensar por causa do orçamento. "Us" é bonito, não é cansativo, prende o espectador como poucos filmes de terror/suspense de hoje com sua trilha - excepcional, diga-se -.
Muitas vezes "eletriza", nos pega incauto, soca um "Good Vibrations" dos Beach Boys numa cena espetacular ao mesmo tempo em que surpreende com uma comédia em um momento inesperado - e que traz uma leveza até naqueles momentos impensáveis para tal manobra, arriscada, mas que já víamos em "Get Out".
Mas, rapaz, a tal da história...
Sing Street - Música e Sonho
4.1 714 Assista Agora"Nenhuma mulher realmente ama um cara que ouve Phil Collins"
A trilha sonora é muito divertida, e juro por Deus que quando terminei o filme vim visitar o Filmow e, de relance, li que o Patrick Carney (Black Keys) fosse o diretor.
Menos um mico na vida, afinal; já tava com um comentário engatilhado sobre como o cara supostamente se inspirou em alguns estilos que não aproveita em nada na "outra" vida profissional.
Outro Sertão
4.2 9Documentário super conciso. A produção ressalta, da maneira como é construída, muito do levantamento documental e das fontes por parte da equipe técnica responsável.
Da entrevista ao crítico literário alemão na TV, da década de 1960, ao recorte dos trechos do diário que tratam mais à fundo quando da estadia em Hamburgo, bem como o link com a memória - tanto daqueles que foram ajudados pessoalmente quanto àqueles que, de um modo ou outro, guardaram os documentos ou mesmo as lembranças de pais ou familiares ajudados por Guimarães e Aracy, mesmo com
a leitura dos documentos secretos do Reich, que já viam com um olho pregado nas atividades e comentários anti-nazistas do literato,
É um espetáculo sobre uma faceta, pra mim, desconhecida do Guimarães Rosa - sabia de sua passagem enquanto diplomata, mas nunca saberia dessas suas atividades, de seus posicionamentos e das ajudas prestadas em Hamburgo.
Só mostra como muita coisa ainda relacionada à História brasileira - e de seus naturais - ainda tem a ser estudada, mesmo descoberta, e exposta.
Anos 90
3.9 502Que filme gostosin de assistir, bixo.
Muito diferentemente do que se foi - muito - veiculado, quando de seu lançamento e das primeiras análises (aqui penso nas estadunidenses), não o consegui ver como de "apelo à nostalgia" dos anos 90 ou coisa do tipo.
É meio que evidente que, se ele se passa nesse recorte, tem de se ter algumas referências às situações, música, formas de entretenimento em geral do período etc; pra mim, só identifiquei no início do "Mid" essa jogada por parte do Jonah Hill, como por exemplo o Super Nintendo, a camisa do Street Fighter, a organização dos cds, as camisas clássicas de esporte americano etc (além, óbvio, de vestimentas e mobiliária) - e, mesmo assim, nada "saturado" ou "forçado" conforme li em algumas opiniões escritas.
No mais, e comparando com outras produções, o Jonah experimentou aqui algo diferente do que alguns outros diretores acabam, por escolha mesmo, optando: não há uma "romantização" dos anos 1990, por exemplo; se aproxima - mas bem à distância, importante ressaltar - do "Kids" de Larry Clark, nesse ponto, e se distancia de um Linklater que, em início de carreira, fazia alguns filmes ("Dazed and Confused", baseado nos 1970 por exemplo) serem quase um retrato idílico naquele cenário/espaço/recorte temporal no qual se passavam.
Crianças e pré-adolescentes se entupindo de drogas, bebidas, aprontando pela cidade, entrando em confronto com seguranças, policias, no ambiente familiar etc compõem todo o cenário de "Mid", atuando quase como um personagem no decorrer da história.
Achei interessante as caracterizações, em separado, de cada um do grupo, bem como do "ápice" da proposta trabalhada aqui, com a
conversa de Ray - o mais pé-no-chão da trupe - com o Stevie sobre as dificuldades de cada um,
Destaco, também, o
desabafo do Ian, no sofá, em meio a jogatina de Snes, e no qual descobrimos um pouco do passado da mãe,
super abrupto - sem esquecer da construção da cena do acidente, com cortes rápidos e que acabam tornando a cara do Fourth Grade mais assustador ainda.
Foi uma boa pedida pra mim. Nada mais, nada menos. Não consegui ter toda a nostalgia que alguns tiveram, mas isso em momento algum me atrapalhou no desenvolvimento do filme (desceu tão leve que até tomei um susto quando acabou!).
Pra um primeiro filme, creio que o Jonah Hill deu um passo importante. Agora é aguardar o que vem - se vier -, a partir daqui, para aí sim se conversar e pensar mais a fundo algumas opções, técnicas e mesmo semelhanças e diferenças em relação ao debute.
Através de um Espelho
4.3 249"A sua insensibilidade é perversa [...]. Você não tem sentimentos, nem decência você tem. Você sabe se expressar bem, sempre encontra as palavras certas, mas há uma coisa sobre a qual não entende nada: a vida".
Quatro personagens dividem o protagonismo no "Através de um espelho", ambientado num buraco bucólico de algum lugar na Escandinávia - mais especificamente uma casa rústica de um andar, com alguns pequenos quartos de pequenas camas (ainda não consigo imaginar o Max deitado confortavelmente numa daquelas, por sinal), um ancoradouro pequenininho e os restos de uma embarcação que parece parada à força ali muito mais por uma ironia da natureza que qualquer outra coisa.
Enfim, só quatro pessoas compartilham uma produção carimbada com o nome "Ingmar Bergman" aqui.
Mas, em uma hora e meia, o diretor sueco percorre a complexidade de algumas relações sociais (distância paternal, o não-diálogo), os desafios da esquizofrenia, a sensação de inutilidade, a ansiedade que não passa, problemas conjugais, o desejo de uma "normalidade" que parece cada vez mais distante, o medo do abandono e de desconfiança àqueles supostamente mais próximos, que compartilham de seu mesmo sangue, os dilemas com (um) Deus.
Tudo embalado por uma fotografia espetacular, que realça visualmente as tormentas de cada um desses seres fictícios - mas não menos reais -, e que só potencializa a riqueza do roteiro e dos diálogos como muitos já comentaram aqui.
Duas cenas, pra sempre marcadas: a da peça, na qual o Minus
, por meio de uma ironia, busca uma aproximação com seu pai naquela "sepultura de um artista",
Espetacular.
O Ovo da Serpente
4.0 130"Observe toda esta gente: são incapazes de uma revolução; estão muito humilhados, muito temerosos, muito oprimidos. Mas, em dez anos, os de 10 terão 20, os de 15 terão 25; terão herdado o ódio de seus pais, mas com a adição de seu idealismo e impaciência. Alguém se adiantará e colocará seus sentimentos sem palavras, alguém prometerá um futuro,alguém fará suas exigências, alguém falará de grandeza e sacrifício. Os jovens e inexperientes brindarão seu valor e sua fé aos cansados e indecisos; e então, haverá uma
revolução, e nosso mundo se fundirá em sangue e fogo. Em dez anos, não mais, eles criarão uma sociedade sem igual na história mundial".
Um dos melhores filmes que já vi sobre a loucura - cultural/científica/politicamente - que foi a República de Weimar, Berlim mais em específico, espremida ali dentre o fracasso de um Império Alemão que, apesar do conflito, foi surrupiado enquanto instituição escancaradamente pelas potências vencedoras da Grande Guerra Mundial, e o fanatismo que o nacional-socialismo acabaria por impor, a ferro e fogo, exatos dez anos após os eventos de "O ovo da serpente". Impor, ou normalizar?
Das festas esplendorosas embaladas a jazz nos cabarés, em meio da tremenda crise econômica decorrida das assinaturas de Versalhes e que estourariam mais ainda num não tão distante 1929 - no qual um cigarro, pro azar de nosso Abel Rosenberg, custava inimagináveis 3 bilhões de marcos -, às humilhações decorridas da verdadeira pilhagem imposta ao Estado germânico, que se fazia presente mesmo na cabeça daqueles caras normais no cotidiano, envoltos num clima social de tensão extrema, onde jovens armados (vestidos em cinza e preto) sentiam-se à vontade para cometer violência a esmo - mesmo na frente daqueles que deveriam manter a ordem -, chegando ao ponto de
invadir e incendiar um cabaré,
Como comentei sobre um outro filme do Ingmar Bergman anteriormente, é tanta cena sensacional, bem construída, que não consigo separar apenas uma para comentar. Do fantástico diálogo na Igreja,
onde um padre velhinho estadunidense chega a comentar (vejam só) sobre um Deus remoto
O que assusta, mesmo, é como "a coisa" vai se impregnando aos poucos em nosso cotidiano e até naqueles que nos cercam, e como pouquíssimos são aqueles loucos que tem coragem de bater de frente ou criticar, mesmo expor, e todos parecem seguir numa normalidade que não tem nada de normal, ainda insistindo em acreditar na segurança de instituições democráticas que não dão - ou nunca foram? - sensações de segurança.
Velhas-novas lições que fazem insistir num caráter de atualidade e num clima constante de atenção, cautela e, principalmente, luta. O quanto antes, e sempre.
Da Vida das Marionetes
4.3 70"As pessoas exageram suas ansiedades. Têm medo, e o seu medo é pior do que as suas obsessões".
É tudo tão... bem construído no que se refere aos personagens (e seus "complexos", suas psicologias e o "meio" no qual estão envolvidos) e às cenas - com o jogo sensacional do preto-e-branco ao colorido no prólogo e epílogo, assim como a sensação de intimidade que é criada entre o telespectador e sujeitos, e respectivas degradações, como Peter e Katarina (s) - que é até difícil separar apenas algo pra comentar.
Mas porra, não tem como citar a cena - e a tensão sensacional estabelecida - na qual
Peter esconde-se no consultório do Mogens, enquanto este recebe Katarina e expõe a ela os desejos e devaneios ali ouvidos a pouco, e toda uma tensão misturada com suspense escorre por uns dez minutos ou mais com a presença do "cliente" ainda ali, visivelmente fragilizado.
Enfim, é (tudo) genial. Ou apenas Bergman, como diriam alguns.