É simplesmente genial. Não se tem muito o que comentar aqui. "Infiltrado na Klan" é pro Spike Lee uma "redenção". É o ponto de virada pro cara que antes era posto na mídia e entretenimento (Simpsons, por exemplo) mais por suas opiniões fortes, ativismo político-social e pelos xingamentos e pitacadas de torcedor nos jogos dos Knicks no Madison em Nova York do que por uma filmografia já rica - e na qual pra mim o destaque é o "Malcom X" (1992).
"Infiltrado" também é uma aula de cinema e de direção. É tão bom que todas, literalmente TODAS, as cenas agradam aos telespectadores (pelo menos foi pra mim): da presença - tão esquecida hoje - de um trilha sonora "fixa", que acompanha Ron por toda sua trajetória e se modifica de acordo com as situações do personagem, aos entrecortes de ângulo que são acompanhados quase que sempre por trechos no qual os envolvidos, tanto do corpo policial quanto da União estudantil ou mesmo da Klan, parecem conversar diretamente com o cara que assiste; são alguns aspectos que, indiscutivelmente, fazem do filme bem construído, lindo visualmente e não cansativo.
Lee também brinca constantemente não apenas com aquele racismo tradicional calcado numa organização como a KKK (e que atrai desde uns sujeitos sedentos por sangue até a outros mais ponderados e que buscam mesmo um pensamento racional e polido) e faz por vezes relações - diretíssimas e objetivas - com certos presidentes verborrágicos e de cabelo laranja que vez ou outra assumem grandes potências globais. Traz o passado pro presente e aponta como muito deste último sempre está muito bem fincado lá no primeiro - quer gostemos, quer não.
E apenas pra ficar em duas cenas: a construção temática aqui de "Infiltrado" é fantástica; dos argumentos à "América branca" por um "entendido" do assunto - interpretado pelo sempre irônico Alec Baldwin -, que já abre o filme, à exibição
do clássico racista de Griffith, "Nascimento de uma nação" (1917), para os conluiados da KKK daquela região do Colorado durante a iniciação do Ron/Flip, seguido por todo o reforço dos estereótipos e do vômito de um racismo escrachado nas cenas (Connie, por exemplo, chega a gritar sobre a "ingenuidade da mulher branca") e cuja cena tem seu protagonismo dividido com um relato sobre a violência dos supremacistas para com um garoto de deficiência mental por um sujeito já idoso - negro - que quando criança presenciou a brutalidade do crime (o garoto teve testículos e dedos arrancados, sendo encharcado em óleo e pingado de tempos em tempos numa fogueira) e agora fornece seu testemunho à União dos Estudantes Negros do mesmo estado estadunidense
na última aparição dos atores expõe de forma metafórica como a Khan, mesmo enfraquecida, humilhada e esmorecida, está sempre na espreita, e que segue as derradeiras cenas de protestos e marchas públicas daqueles estúpidos que insistem numa "América aos americanos", branca, sem latinos ou judeus - agindo, sempre, com ódio (verbal e físico) àqueles que tem de aturar suas baboseiras e sandices
.
O problema, tão comentado ao longo do filme, é exposto de maneira bem didática nessa aula de Lee: a questão é estrutural, não apenas individual. Vai das sucessivas invasões europeias que marcaram todas as Américas (sim, inclusive nós, vejam vocês!) e do escravagismo sequente e atravessa todas essas eras, atingindo a todos - mesmo aqueles que por uma simples distância temporal se creem distantes das consequências desses mais de cinco séculos de história. E tudo isso em 128 minutos. De pura aula, arte e manifesto.
Roman Polanski e a exploração daquele terror demoníaco que aflige especialmente os cientistas sociais universitários envolvidos em artigos, monografias, dissertações ou teses: o drama da entrega de um trabalho que, mesmo impelido por força e pressões externas - orientadores, projetos, editores chatinhos que insistem numa dança que certamente nçai atrai -, parece não sair nunca, e no qual a página em branco do Word parece ser o maior vilão, arqui-inimigo mortal puro, que leva você aos atos de loucura, insanidade e gera uma paranoia tremenda na sua cabeça.
O que me parece interessante é ver como a temática (isso é uma temática mesmo? ou enrolação pra ocupar essa caixa de texto e não deixá-la em branco?) da falta de criatividade, do trabalho "artesanal" de escrita - ainda movido intelectualmente e não necessariamente de forma mecânica -, e mesmo das aventuras inimagináveis que envolvem os livros vem sendo uma recorrência dos filmes do diretor polonês - lembramos do bom "Escritor fantasma" e do horroroso "O último portal", por exemplo.
No mais, só isso realmente me prendeu; apesar de Polanski trazer de certo algumas novidades que parecem atingir toda a sociedade contemporânea nesse filme (em especial, os riscos das novas tecnologias e redes sociais - afinal, "carta anônima [de ameaça] é uma coisa, mas ser atacada nas redes sociais [aqui o Facebook] é muito mais grave", já que "nas redes sociais acreditamos nas calúnias" como nos informa a misteriosa - e sem sal - Elle) e da tentativa de um novo frescor técnico da velha escola polanskiana (mais enrolação - aqui paradoxal! - pra afastar o demônio do não - escrito?), como nas tomadas escondidas, partindo de uma perspectiva de esquina - quartos, museus etc - que, "torta", parece querer passar uma certa sensação de vertigo ou suspense àquele que assiste, "Baseado em fatos reais" realmente não encanta.
É arrastado, monótono, fraco. É daqueles filmes que compartilham a infeliz sensação de, com dez minutos, você imaginar como irá terminar - e, pro seu azar, acertar no palpite; um tempo - esse bem que hoje nos escorre - que certamente poderia ser investido em outras atividades, decerto. Como por exemplo escrever aquele maldito artigo, tão demoníaco quanto aquela "sombra" que atormenta Delphine, que lhe falta para concluir de fato uma cadeira de sua pós-graduação.
"De que se trata este assunto, de crime e castigo? Através dos séculos, nossas leis se modificaram; agora os homens se lembram com horror dos enforcamentos e das matanças do passado. Se demonstrou que se as penas são menos brutais, crimes são menos frequentes; necessito discutir com o senhor juiz que a crueldade gera crueldade?"
Se o verdadeiro monólogo (um tanto liberal, mas sempre correto) de um já experiente Orson Welles, aqui interpretando um advogado bonachão, "cético e ateu" - na opinião de certos promotores - em plena defesa de dois de seus clientes (jovens ricos, tanto mimados, acusados de um crime), torna-se o grande momento de "Estranha compulsão", ocupando quase 10 minutos e boa parte de uma trama final do filme, seria injustiça afirmar que esta produção do Richard Fleischer se resuma a pôr todos os holofotes escancarados na interpretação já significativo e imortal ator/diretor.
Muito pelo contrário: o filme, em si, carrega traços interessantes de serem delineados. Por exemplo, vemos certas situações (aqui leia-se personagens e/ou cenas) que certamente irão marcar presença em boa parte das produções cinematográficas posteriores - principalmente da década seguinte. A brincadeira proposta por Fleischer aqui denota parte daquela obsessão que marcará boa parte do cinema estadunidense por "personalidades" e "traços psicológicos", me parece: Arthur poderia muito bem ser o Bates em "Psicose", do mesmo modo que Judd certamente se encaixaria como um dos alunos do professor Rupert Cadell no "Festim Diabólico", para ficarmos em dois exemplos hitchcockianos - sem comentarmos nos demais personagens, todos muito bem "estabelecidos" e com personalidades muito bem desenhadas no desenrolar de "Compulsão", como Ruth ou Sid Brooks. Neste sentido, cenas como do passatempo - no mínimo bizarro - de Artie no curral ou da discussão em torno de Nietzsche, dentre Judd e o velho professor, compõem um pouco deste panorama.
No mais, e não menos importante: temos também aqui uma das melhores frases que resumem a Ku klux Khan e suas atuações; após ser alvo de um protesto da irmandade, no qual fizeram a tradicional queima da cruz de frente ao hotel em que está hospedado, Wilk manda que "não deveríamos nos preocupar com gente cuja reação a uma situação emocional é pôr um lençol sobre a cabeça". Acurado como sempre, Welles - nem tanto, mas ainda assim muito bom.
"Gostaria de saber se você sabe a sensação de acordar em uma cidade que é totalmente estranha para você. E todo o dia, sem sentido, já pode ser imaginado com todas as suas faces, reuniões, conversas, que fazem você querer nunca abrir os olhos. O coração está pesado como se algo estivesse errado; [...]você sabe que tem que se recompor, ir trabalhar, incomodar pessoas saudáveis e ocupadas com check-ups médicos e convencer a si mesmo que isso também é importante. E assim, todos os dias você se sente tenso, como se estivesse representado alguém em vez de viver". É o que ouvimos um aparente chefe ou diretor de junta hospitalar ler, em voz alta, perante o autor do memorando que abre esse comentário; em meio a breves interrupções - uma secretária tem de recolher assinaturas importantes, afinal estamos num espaço hospitalar! -, o responsável pelo escrito vê se perdido, desanuviado, depressivo, ausente enquanto da leitura. Tão ausente que cai fora da sala sem nem ao menos de se despedir do sujeito que ficou, ali, lendo o seu escrito.
O autor do texto, Peter, é um dos - se não for o - personagens principais de "Você e eu" da Larisa Sheptiko. As apresentações, por cenas curtas e intensas, dão a tonalidade dos sujeitos que compõem o círculo em torno desse médico soviético - sua esposa Katya e seu amigo Sasha - em meio ao urbanismo caótico (burguês) da capital sueca, Estocolmo. Enquanto vemos as diversões e o cotidiano em tal cidade - tais como o jogo de hóquei entre a seleção da casa e da URSS, na qual vemos a saudade bater forte em Peter, ou mesmo o circo -, Sheptiko começa, discretamente, a armar a teia que vai prender o telespectador.
E é isso o que mais me impressionou de fato: aqui, Sheptiko brinca fazendo uma mixórdia de road-movies com drama, de tonalidades de suspense com pitadinhas de romance. "Você e eu" traz em si desde a
de Peter, que parece encontrar seu refúgio e conforto apenas nos velhos rincões soviéticos - e do qual conhecemos desde os primeiros quilômetros de uma extensa linha férrea até àquelas cidades quase que "móveis", que acompanham as grandes obras estatais, tão comuns na Rússia dos sovietes -, até à nova vida,
, de Sasha e Katya: da dor do desaparecimento, com motivos não expressos, até a descoberta do conforto daquele que estava quase sempre ali próximo.
Da reconstrução de Peter, "isolado", à nova vida de seus antigos companheiros em Estocolmo, Sheptiko explora o peso de cada uma destas empresas; "afinal, eu também costumava pensar que é tudo ou nada na vida", diz Peter a uma de suas pacientes que tentou o suicídio, "mas não pode ser que ninguém se importe: alguém precisa de você ou de mim". E, com a leveza de um martelo esmagando uma bigorna, arremata: "enquanto você sente, você vive".
Destaque mais que especial aqui pra duas cenas, belíssimas a meu ver: a já citada diversão no circo, em que Sasha tenta aparecer pra Katya montando um cavalo árabe enquanto está preso numa corda - e onde Sheptiko expõe toda sua técnica de filmagem e condução de atores, numa cena riquíssima -, e a mais que incômoda cena final, na qual Peter, em meio a uma diversão com seus camaradas e cães na neve, é arrematado por lembranças do passado - e, também, por uma paciente que aparentemente não escapa de sua mente.
Delos Park bom é o Delos Park galhofeiro e varzeano, onde aparentemente a alvenaria das estruturas dos três mundos temáticos é composta de isopor, com mobílias temáticas de plástico barato, em que os técnicos responsáveis pelo funcionamento de hosts e da segurança dos visitantes são irresponsáveis ao ponto de não interromperem, pelo mínimo de tempo que seja, o funcionamento dos robôs para uma análise mais aprofundada de suas falhas cada vez mais graves e que atentam cada vez mais física e integralmente a vida de visitantes e no qual o James Brolin - intérprete de um certo John Blane, um já experimentado visitante dos complexos Delos qe carrega um amigo para os "mundos" - parece um gêmeo setentista do Christian Bale.
Farofices à parte: mesmo que a execução peque - por exemplo, em clichês batidos como o som de Cuco quando o sujeito é nocauteado num bar do Far West -, não dá para se negar que é um roteiro original; mesmo que nesse momento sejamos imbuídos pela super-série da HBO, que resgatou o conceito original desse sci-fi de 1973 e o potencializou muito acima da "citação original" e, consequentemente, o ultrapasse tecnicamente (sem falar em roteiro), encontramos bons momentos que o Crichton poderia ter explorado mais a fundo, em minha opinião.
Exemplo: o começo, no qual o funcionário da Delos entrevista hóspedes que acabavam de sair das dependências dos parques, é sensacional; o sujeito que fica em dúvida se os hosts são humanos ou robôs, e que
fica desconcertado - mesmo triste! - por saber que não matou humanos de fato,
dá a tônica do que esse Westworld original trouxe à tona e que a série iria potencializar mais de quarenta anos depois: até onde vai o limite da ética humana, mesmo que em um parque-mundo habitados por seres não-humanos? Ou melhor: é ético explorar por um viés monetário até onde se vai os limites morais de um ser humano que pode, nesses mundos, desafogar suas tensões violentas e sexuais?
É o que, para mim, norteia filme e série, separados em qualidade quase que pela mesma distância de humanidade entre hosts e visitantes destes "maiores parques de diversão do mundo"; é, também, o mérito maior do Michael Crichton aqui, que opta infelizmente por tratá-la de maneira barateira - malfadada, diriam alguns mais críticos - , "pobre" e circundada de clichês.
Tremendo drama esse do Rainer Fassbinder, explorando a deterioração psicológica a partir dos sintomas depressivos de uma dona de casa alemã - que vivia aquilo que parecia uma vida aprumada, regrada, "nos eixos".
Das complicações iniciais, ainda durante a fase de uma segunda gravidez até então tranquila, aos agravamentos com o uso - e abuso - de Valium, seguem-se os primeiros sintomas de anemia, e, posteriormente,
Tudo isso, óbvio, tendo por pano de fundo o cotidiano das relações sociais ali daquele microcosmo alemão, no qual se tem por vizinho de apartamento sua sogra e cunhada
traições por parte de Margot, e que servem claramente enquanto uma escapatória, fuga mesmo, encontrada para fugir das intempéries da doença
.
A construção da personagem principal, tendo como cenário tal narrativa, é espetacular: de uma Margot completamente "saudável" nas primeiras cenas, passamos a acompanhar os agravamentos da doença - seja no plano psicológico, como já comentado, até
no seu quesito físico: aprofundam-se as olheiras, os sulcos faciais, e um emagrecimento cada vez mais constante. Mesmo a recuperação, com a terapia, aponta neste sentido: vemos outra Margot que sai dali, por exemplo.
"Você não deve ter medo de enlouquecer, [...] você é simplesmente mais sensível que os outros. Tem que cuidar de si mesma". Fantástico filme, e que mostra como a depressão pode ser tão cruel, agressiva e infligir tantos danos quanto qualquer outra doença.
Em um cenário, aberto, o foco da câmera circula de um espaço amplo - na qual vemos mesinhas quadradas e cadeiras, ambas amareladas, ao relento do que parece ser uma espécie de parque, ou área pública bem arborizada ou mesmo um jardim de algum estabelecimento gastronômico - para, em seguida, deter-se ao casal que divide uma das mesas ali presentes. Ele, moreno, terno cinza e barba espessa, beirando uns 40 anos; ela, próxima dos 60, de vestido preto com estampas, loira - germânica. O desconforto está exposto, escancarado, ao público que assiste: ao deter-se nele, que descobrimos antes ser um imigrante marroquino que deslocou-se à Alemanha, como tantos outros árabes (e não-árabes), em busca de trabalho, vemos, por detrás do foco optado pelo diretor, garçons e o que parecem ser demais clientes (ou donos do estabelecimento) observando, atentamente, os dois únicos que dividem aquela mesinha amarela, centralizada na área. Ela começa a chorar, e desabafa: por um lado, fala da felicidade em encontrar um amor após a morte de seu marido e da saída, de casa, de seus três filhos; por outro, comenta a sensação, desgastante e horrorosa (na mesma proporção?), de sentir - e conhecer - o ódio racial ali da Alemanha de meados da década de 1970. "Estão me matando", chega a afirmar, já aos prantos.
A cena, pra mim, é uma das mais impactantes de "O medo devora a alma"; o caso de amor de Ali, o marroquino, e Emmi, a alemã, é uma paisagem elaborada, montada, pelo Rainer Fassbinder em 1974 mas que poderia, muito bem, ilustrar situações que insistem em ocorrer, em larga escala, ainda hoje no país germânico - e que, tal como um câncer, parece espalhar-se cada vez mais pelo mundo ocidental, como uma peste invisível que aflige o dito primeiro mundo e suas periferias.
O ódio ao "outro", ao estrangeiro - visto como um preguiçoso, interesseiro, sujo -, mas também àqueles que, saindo do casulo de uma sociedade racista, optam por um relacionamento com esse "outro", chegando a ver mesmo ali um porto seguro no qual não aportavam a anos e, por isso mesmo, tornam-se igualmente alvos dos preconceitos, velados ou não, de vizinhos, amigos, do dono da quitanda, mesmo dos familiares. As tensões de um país que ainda tem as marcas - agora um tanto escondidas - de um passado totalitário, nazista, mas que agora se encontra novamente em ebulição após os eventos na Olimpíada de Munique 1972 e põe, nessa caldeira efervescente, toda aquela massa de imigrantes muçulmanos, turcos ou de origem árabe, vistos agora como "homens-bomba" e/ou terroristas, "ratos" que dormem amontoados e não dão respeito à quem se deve.
Também tem as marcas de uma sociedade que, apesar de se expor enquanto civilizada, também compartilha de mesmas situações, ou doenças mesmo, sociais daquelas ditas "inferiores": os relacionamentos abusivos no seio familiar, o pensar no lucro como a prioridade - afinal, nos negócios, temos que ocultar o que não nos agrada", chegam a se confabular proprietários de um pequeno mercado.
É, enfim, um filme atualíssimo. Uma exposição visceral do Fassbinder
- que ainda insiste, próximo à reta final, em expor que mesmo no lamaçal de racismo se é, possível, remediar, mesmo consertar, tal mal: a reconciliação de Bruno com a mãe, por exemplo, circula muito em torno disso; afinal, o racismo se dissolve, muitas vezes, quando se nota que o "medo" do "outro" nada mais é do que ignorância, mesmo convívio em certos casos
. É o primeiro que vejo do diretor. E me digo até agora que melhor porta de entrada que esta, impossível.
"Quando estou cansado após terminar um filme, começo a pensar no próximo. É só o que me resta fazer e o que eu sei fazer; começo a tentar definir o filme que farei a seguir. A coisa mais difícil é não poder se interessar por nada - não ler, não ter nenhuma distração -, alcançar o silêncio e a escuridão. É na escuridão que a realidade se acende; é no silêncio que as vozes chegam de fora", divaga, para si, um diretor cinematográfico em meio ao pouso de sua aeronave e já em terra, a bordo da direção de um automóvel numa Ferrara tomada pela chuva e neblina e envolta num fog tão londrino quanto àqueles tempos fechados proporcionados pelas temporadas chuvosas das cidades próximas ao delta do rio Pó italiano.
O desabafo do personagem principal de "Além das Nuvens", logo na primeira cena, já dá a tônica do que é pretendido pelo Michelangelo Antonioni aqui: é, antes de tudo, uma reflexão sobre seu métier, seu ofício, o que é ser um diretor de cinema; mais que isso, é também uma reflexão sobre a sua matéria prima primordial, a inspiração, aquele desejo que move alguém a passar boa parte de seu dia - e o resto de sua vida - pensando no que filmar, no por quê de escolher tal história ou temática e o como se produzir tal empresa.
Aqui, as reflexões do diretor fictício - um alter ego do italiano? - perpassam sua profissão: de câmera na mão, percorre cidades, pequenas pousadas, mesmo igrejas ou apartamentos de luxo, atento ao seu redor, ao que lhe cerca, ao cotidiano que, se seria um "comum" a qualquer outro naquele cenário pode, ali nas suas mãos postas numa câmera de filme ou fotográfica, virar um "diamante", uma obra de valor do cinema, uma história a ser exibida; para tanto, (anônimo!) age
quase como que um voyeur, atento às menores ações de outros, a qualquer passada e movimento ao seu redor: não poupa de sua vista a tentativa frustrada de um rapaz com uma jovem, que se prepara para partir ao convento, ou, como no belíssimo take final, às janelas da pousada em que se encontra: à moça, de cabelo chanel, fumando na sacada, ao casal que se prepara, na chuvosa noite, para transar. Percorre, também, uma traição de um estadunidense com uma italiana em Paris, e mesmo de um amor nunca correspondido de um técnico em bombas hidráulicas com uma professora, em férias, em Ferrara.
Pequenas passagens de "Além", tão breves num filme que tinha um potencial para ser memorável, refletem o próprio modo de pensar e fazer do Antonioni: a prática de quase uma mimesis, de buscar, ao copiar métodos daqueles que nos servem de referência, se aperfeiçoar no ofício, como no caso de
um pintor, interpretado por um já velhinho Marcello Mastroianni, que tenta incessantemente, mesmo às risadas de sua companheira, se aprofundar em seu estilo a partir da técnica de um Paul Cézanne
. Tem, também, as marcas que o fizeram - mesmo que num viés polêmico, por vezes canalha mesmo - ser quem foi no campo do cinema: a presença constante do erótico, do flerte que beira quase que ao incômodo, das traições, mentiras matrimoniais e enganos - seja à amante ou à esposa.
Infelizmente, "Além" desperdiça um potencial inacreditável; uma hora e quarenta de duração simplesmente não consegue dar conta da expectativa daquilo que poderia ter saído nessa parceria do italiano com Wim Wenders - que, por sua vez, já havia explorado temática semelhante no seu excelente "O estado das coisas", de treze anos antes. A sensação que fica, ao menos pra mim, é a da entrega de um produto incompleto, ou feito as pressas, que por vezes sub-aproveitou mesmo o elenco, de peso aqui, na construção da narrativa; esta é atropelada, e aquelas boas histórias apresentadas, quase com o sabor de contos literários, se perdem numa afobação ou mesmo surgem com impacto para, em seguida, desaparecer tão rapidamente do modo como apareceram.
De todo modo ficam as ressalvas mas, também, os aspectos positivos; afinal, como nos diz o personagem principal, "a profissão de um diretor é singular [...];nosso esforço é voltado para a assimilação de novas emoções [...]. Somos desabrigados, expostos ao olhar, à suspeita e à ironia de todos, sem poder falar a ninguém de nossa aventura pessoal que não está registrada no filme ou no roteiro". É, conclui - sempre para si -, "uma lembrança estranha como de um presságio, do qual o filme é só uma comprovação incompleta". Também é, certamente, quase que uma autobiografia metódica (me sinto obrigado a criar o termo), uma despedida, do velho Antonioni que deixaria este como sendo uma de suas últimas produções de sua filmografia.
"Memórias... memórias... memórias não são uma fuga".
Três "curtas" reunidos, cada qual com sua temática, traços, inspirações, referências e mensagens intencionadas ao público; cada um decidindo, à sua maneira, o que abordar em pouco menos de uma hora para ser repassado nesta espécie de antologia de traços orientais.
Os espetáculos de uma sociedade militarizada - no qual o ensino infantil volta-se à formação de pequenos operadores de artilharia -, de um ritmo fabril decadente àqueles que a sustentam na base e no qual seus gordos e mesquinhos comandantes militares, representados em românticas pinturas a quadro presentes nas casas dos cidadãos, vestidos como um warlord napoleônico, dedicam-se apenas ao apertar de um botão para fazer disparar um potente disparo de canhão - em um curta que parece ter saído, vinte anos antes, de uma hipotética série animada do jogo "Valkyria Chronicles"; as empresas, no mínimo estranhas e eticamente questionáveis, entre o Estado e grupos químico-farmacêuticos para o desenvolvimento de uma arma inusitadamente letal, naquilo que parece o resfriado mais mortífero da história do planeta; os questionamentos e as ilusões, os esquecimentos e dores, quase tarkovskianos - e, ao menos à mim, inspirados em larga escala no "Solaris" - de dois sucateiros espaciais no único (e maravilhoso) conto sci-fi da trilogia, e que abraça de vez o título que carrega.
Três episódios cada qual com seu traço belíssimo e suas críticas, que acabam também por compilar aqueles questionamentos que permearam, por um bom tempo, parte década de 1990: os horrores, ainda não cicatrizados, dos conflitos militares e daquelas tantas sociedades afetadas por um nacionalismo patético que, por vezes, não pode ser nem compreendido por uma criança - mas que, paradoxalmente, também a apaixona por isso; o lidar com a memória, tanto daquilo que perdemos, há tanto tempo e num espaço tão distante, quanto daquilo que nos apaixona, atrai, que provoca paixão; as aproximações, suspeitas, entre grandes conglomerados científicos com Estados, voltados à eliminação (sustentável!) do outro - e a interferência de potências estrangeiras mesmo na soberania de seus aliados.
A única coisa ruim é que acaba rapidamente. E que maldade cretina é o último episódio
A "primeira parte" é uma daquelas boas soft-comedy familiares, tipicamente estadunidenses; as relações próximas entre mãe-filha, sempre envoltas naquelas confusões "do bem", o imprestável que é o namorado (e olhem só, professor já se fodia nessa época...) dessa última, o vizinho maluco, os pretendentes caricatos (Danny DeVito e seu ar da graça aqui pra mim foi sensacional), os amores improváveis de uma viúva e mesmo de um astronauta.
A "segunda parte" é uma transformação quase que total, de certo modo até brusca pelo que vinha se desenrolando então: vira um drama poderoso, envolvendo as dificuldades das separações familiares - daqueles com quem vivemos a vida toda, amigos e familiares -, também daquilo que os falantes do espanhol chamam de "la vida en pareja" ou a nossa vida de casal - e seus ciúmes,
e a inquietante sombra da desconfiaça -, a vida nova, e muitas vezes ingrata naquelas cidades tão diferentes das nossas natais, o cotidiano e a gente metropolitana e a distinção daquelas do interior até no trato do dia-a-dia e das conversas, a dificuldade da perspectiva infantil em aceitar e lidar com separações que nunca são fáceis.
Duas cenas exemplificam bem pra mim cada uma dessas partes, que funcionam quase que como uma dicotomia: além dos momentos divertidos com os pretendentes de Aurora, a cena de
despedida de Emma e Flap de Aurora e Patsy, em que este acelera o carro quando a filha única da coroa pede pra ir saindo devagarinho,
é sensacional - aqui Jeff Daniels já mostrava como se tornaria um dos queridinhos da comédia hollywoodiana futuramente. Desta segunda, é quase impossível ao menos não reconhecer a força
da cena das visitas à Emma: as despedidas da amiga e dos filhos, a franqueza com Flap e a presença deste e da mãe até o último respiro
são daqueles momentos que jogam na cara o quão difícil são tais momentos.
Apesar de pra mim o número de 5 premiações da Academia caírem um tanto demais pro produto final que saiu daqui, evidentemente não deixa de ser um bom filme.
"Vocês não concordam que tais discussões seriam inúteis nos bons tempos que passamos juntos? Quando você faz uma decisão, deve segui-la a qualquer custo. Aquilo que você sempre diz, pai. E nós tomamos nossa decisão. Nós decidimos partir, porque a exceção de vocês, nada mais nos prende aqui".
Toda a desilusão de uma vida urbana e burguesa, de uma família qualquer de classe alta germânica; aqui, Haneke parece querer levar ao filme aqueles ingredientes que, se já faziam parte de tal "classe" no mundo ocidental estadunidense ou europeu, certamente engoliriam anos depois o restante do mundo - inclusive nós, latino-americanos.
Relações conjugais distantes, uma mesa farta para o jantar nos quais ninguém se olha ou comenta algo sobre o dia daquele com quem divide a mesa; as máquinas, já presentes na indústria, nos supermercados e no trabalho do oftalmologista e, curiosamente,
. Traz, também, as ideias hoje quase que utópicas de um lugar/destino distante que possa trazer felicidade às vidas medíocres e de merda a quais somos submetidos: a Austrália, idílica, naquele recorrente recorte mal produzido por uma empresa de turismo de quinta categoria com uma praia deserta e as ondas lentamente engolindo a areia.
Aqui temos quase uma pintura, da parte do Haneke; uma arte daquelas estranhas. Estranhas mas que, infelizmente, também têm como personagens do quadro nós mesmos - se pararmos para pensar no nosso estilo de vida, das grandes urbes, da industrialização e individualização constantes.
destruição da casa; mas, ali naquele longo take, o que mais nos dói? Vermos os peixes tendo seu lar destroçado - e compartilhando da sentimentalidade e sensibilidade de Eva -, ou ver o dinheiro, a pouco recolhido no banco, ser rasgado e jogado ao toalete?
. É inevitável repetir o que sempre penso e falo, aqui no Filmow, sobre todo filme do Haneke: o homem é um puta provocador.
Alguns diretores sempre me chamaram a atenção pelo verdadeiro caleidoscópio de técnicas, temáticas e escolhas de elenco para seus filmes; sempre variando esses itens, e outros diversos, lançando um sopro quase que constante de originalidade à sua filmografia. Que acertem ou não nestas, e em outras diversas,escolhas, nem me interessa tanto - que o produto final, o filme lançado e posto ali no cinema e às vendas, atinja a qualidade esperada, tampouco me importa nesse quesito; afinal, quem sou eu pra pitacar nos trabalhos dos caras? O fato é que o Oliver Stone certamente entra fácil nessa minha categoria particular. O sujeito que vai de temáticas tão diversas, como da guerra contemporânea (com "Platoon", por exemplo) ou à crítica aos constantes intervencionismos estadunidenses na América Central (como em "Salvador"), e lança algo como "Assassinos" certamente tem cadeira cativa aqui.
"Assassinos por Natureza" cheira a filme de anos 90. As duas primeiras cenas, com o casal inicialmente aprontando no bar, no famoso meio do nada - tão comum e tão retratado no cinema estadunidense, ali pelo meio-Oeste ou no Oeste em si - já denota muito disso: os close-ups costantes, com imagens e cenas diversas (propagandas clássicas ou não, entrevistas, filmagens caseiras familiares etc) sendo sobrepostas uma sobre as outras, virando quase uma psicodelia cinematográfica, e com uma dose insaciável de violência gráfica e bebendo constantemente do exploitation, foi algo bem presente em muito dos filmes da década; lembremos, por exemplo, do "Funny Games" do Haneke, ou de um Quentin Tarantino que começava a botar as mangas pra fora já neste tempo com seu "Cães de Aluguel" e futuramente com o, pra mim, verdadeiro herdeiro dessa tradição cinematográfica, "Pulp Fiction". A construção de algumas cenas por parte do Stone aqui também me fizeram lembrar o "Ed Wood", do Burton, ou o "Coração Selvagem" do Lynch: as cenas de dança (futuramente adotadas em larga escala pelo próprio Tarantino), o preto-e-branco constante, os cortes rápidos e variantes em foco, indo dos olhos do Downey Junior à um close no Tommy Lee Jones, tudo entrecortado por um Woody Harrelson jovem, careca e assustador; tudo isso está aqui.
E a segunda cena é, pra mim, sensacional: um verdadeiro
esquete de sitcom, no qual conhecemos a juventude sofrida da Mallory; os abusos - e o preconceito, o machismo - de seu pai, a conivência da mãe, e o encontro irremediável de amor à primeira vista com o
Mickey.
Não se tornou um dos meus favoritos. Mas como disse no começo, tento pelo menos entender o mínimo que motivou a produção, e a importância do que saiu daí, do produto final, do filme em si. Stone aqui, no meu ver, também meio que brincou com o que a década de 90 ofereceu aos cineastas, com todos aqueles modismos temáticos e técnicos (da violência bem explícita e gráfica, por exemplo), tal como Haneke no "Funny Games".
A crítica dura de Stone também respinga constantemente: as explorações midiáticas - com o jornalismo "sangrento -, a construção de "mitos" a partir de assassinos seriais, a violência das prisões; tudo isso também está aqui. E tudo isso com certeza faz de "Assassinos", pra mim, um dos verdadeiros filhotes do cinema noventista.
Pouquíssimas produções sobre o cenário do front oriental na Europa têm, ali nas "grandes mídias" que escrevem, abordam e debatem o cinema, seu devido espaço; de meu conhecimento, apenas dois filmes da polonesa Agniezka Holland (o "Filhos da Guerra" - "Europa Europa", no original, e "Na Escuridão" - originalmente "In the Darkness") e o já aclamado "Vá e Veja" tiveram algum tipo de êxito em terras ocidentais, ao abordarem os conflitos nesse espaço que verdadeiramente definiu, mais que o ultra-aclamado Dia D, a Segunda Guerra Mundial. Se ambos os filme da diretora polonesa exploram o cotidiano renhido e doloroso daqueles que literalmente lutavam pela sobrevivência debaixo do nariz dos invasores alemães (como no "Filhos") ou literalmente nos subterrâneos da capital (tal como em "Escuridão") polonesa, o "Vá e Veja" trazia, explorando ao máximo o grotesco e o surrealismo mais que real daqueles tempos, o olhar quase que infantil, pré-adolescente mesmo, daquela guerra selvagem, suja, no qual os limites do humano e de sua própria condição humana foram colocadas ali à prova; da violência nazista, extremada e com carta branca pra extermínio de literalmente tudo aquilo que visse a frente ali nas estepes russas, até à dolorosa luta por sobrevivência daqueles espoliados pelo ataque e domínio alemão em sua terra.
E aí sou surpreendido com "A Ascensão". Mesmo já em sua metade, apenas uma expressão me vinha à cabeça: humanidade; e é isto: diferentemente do "Vá e Veja" lançado ali nos meados dos anos 1980, "Ascensão" traz, pelo menos pra mim, um caráter muito mais humano, acentuadamente humano, da invasão, da barbárie nazista em solo soviético. Sem apelar às cenas grotescas, quase pistaches que seu primo soviético de quase dez anos mais jovem viria a usar e abusar, "Ascensão" explora literalmente o cotidiano duro daqueles que se engajaram na resistência. Explora, intensamente, o impacto psicológico do negócio. E ali, em meio ao inferno branco da neve, em meio a emboscadas e patrulhas nazistas, vemos como a luta pela vida tomou vieses inimagináveis, estraçalhando mentes e ruindo supostas "normalidades" psicológicas de todos os envolvidos naquele espaço naqueles tempos.
E esse aspecto psicológico é a grande sacada da Sheptiko pra mim aqui: como exemplo, a cena no qual
os guerrilheiros são conduzidos de trenó ao cativeiro é espetacular: Rybak, claramente, já está distante de seu normal; ao visualizar, imaginar mesmo, uma suposta fuga, vê a si mesmo sendo metralhado.
Sheptiko, então, se usa de algo já utilizado em momentos diversos em seu filme - e que será utilizado de maneira sensacional na derradeira cena do "Vá e Veja" futuramente - : sua câmera foca no rosto do sujeito. Imóvel, congelada, lemos todas as emoções e quase que compartilhamos do mesmo pensamento que o personagem, com sua face estática e em tensão, têm ali. O choque é brusco: primeiro, tentamos nos restabelecer; depois, ponderamos sobre o que se passou. Ou, no popular, pensamos e repensamos e pensamos e voltamos a repensar sobre as atitudes a se tomar. E finalmente notamos que nenhuma decisão, mesmo a mais corriqueira, certamente não deve ter sido nada fácil naqueles momentos. Para ninguém.
Afinal, toda e qualquer guerra destruiu, e destrói, os parâmetros da normalidade. E isto, no aspecto mental, é tão intenso quanto a vida num front. Não precisamos viver necessariamente um conflito militar para saber os danos, físicos ou psicológicos, que uma contenda desse tipo pode causar. "Ascensão", nesse aspecto, explora justamente isso.Mesmo fora da zona de conflito, distante de seu inimigo, o inferno da dor, da morte, do medo, pode povoar sua cabeça. E as consequências disto insistem em fugir de qualquer normalidade ou racionalidade.
"Foda-se a ética da pequena burguesia. Decência, honestidade, valores familiares; ir para o trabalho na hora, pagar seus impostos. Tudo isso nos esmaga: primeiro na escola, depois na TV. Pra quê? Para o inferno com esses valores morais".
É toda a desilusão de uma juventude que não consegue encontrar, ali nos escritos políticos em que acreditam, bases para se pensar o presente. "Educadores" se torna muito mais interessante, pra mim, quando posto em situação de diálogo com um par um pouco mais antigo: "A Chinesa", do Godard. O contraste de duas gerações: esta última, às vésperas do 1968, "cega" pela teoria marxista - maoístas, mesmo marxiana -, "seca" do papel e de seu contexto de produção e que também não sabe, direito, como adaptá-la ali naquele cenário tão distinto desse em que tais ideias foram elaboradas. A primeira, dos "Educadores" por sua vez, já num cenário completamente distinto, onde aqueles que lutaram no 1968 se corromperam ou se encontraram engolidos pelo "sistema" e viraram, agora, os "inimigos", a "burguesia" a ser combatida - e no qual
os diálogos de Hardenberg, ali falando de como era de certo modo um dos "revolucionários" ali em sua juventude nos 60's, com Peter à beira da planície ou com Jan durante a lavagem de roupa,
são riquíssimos e acrescentam imenso ao filme.
Angústias que certamente martelam todos aqueles que tem de literalmente sobreviver às próprias custas: as dificuldades e abusos do emprego, o choque das grandes metrópoles, a injustiça social escarrada ali no cotidiano, a alimentação intelectual interna por ideais antigos que prometem uma redenção a todo este mundo estranho, desigual e injusto; e que, para isso, decidem partir à "ação", à práxis. Se passa numa Alemanha de começos de século XXI, marcada pelas modernas tecnologias e por um capitalismo que parece imbatível e infalível, e por isso inserta em uma situação aparentemente distante da nossa realidade; mas que, nem por isso, não consigamos identificar semelhanças na ampla situação de muitos daqueles que nos cercam - ou até de nós mesmos.
"Educadores" também me apareceu, antes de tudo, um recado: de que tais ideias, mesmo antigas e produzidas em um verdadeiro mundo diferente do atual, ainda se aplicam à nossa realidade, ao nosso sistema e às nossas carências; mais: me pareceu um libelo do Hans Weingartner para que não se esqueça de que, concordemos ou não, nossa sociedade ainda se encontra com os mesmos problemas que já se insistiam em aparecer àqueles velhos barbudos de já distantes séculos que, ao analisarem a formação desse sistema, ofereciam uma alternativa à sua saída. É um recado de como o sistema cresceu e continua se renovando, mas que nem por isso possa ser derrotado - mesmo que nas pequenas ações e naquela que é a maior das lutas: aquela de não largar as suas convicções, apesar de o mundo estar aparentemente girando numa direção contrária; mas que, plot twist, não está.
Surpreende muito mais por expor, em boa parte de sua narrativa, várias cenas que referenciam a violência da polícia ocupacional e da Gestapo nazistas: o encarceramento de civis - colaboracionistas ou não -, os grampos telefônicos, a tentativa de controle do cotidiano, os massacres periódicos de indefesos - idosos, inclusive.
Como peça propagandística, "Os carrascos" do Fritz Lang se expõe de peito aberto: traz o nacionalismo e as mobilizações de uma resistência, checos no caso, que não desistem mesmo sob uma repressão criminosa; trazem os ocupadores alemães de forma caricata, enquanto inimigos impiedosos, sem pudor à morte e com estereótipos clássicos que se atribuem geralmente aos alemães - sotaque forte, aquele jeito de "médico maluco", gesticulações excessivas, rigorosos no trabalho -, e que muitas vezes não batem com os documentos e registros que se tem sobre alguns aqui retratados: o Reinhart Heindrich, por exemplo, não corresponde aquela peça ultra-estereotipada apresentado ali na primeira parte de "Carrascos".
É um filme interessante pra se ver também por esta ótica: datado de 1943, foi lançado nos EUA em um cenário que perdurará até ao fim da guerra, no qual os massacres nazistas - mesmo suas execuções rotineiras e gratuitas, como a do
prisioneiro do barracão que insiste em falar com o "superior" do nazi estacado ali à sua frente
, as torturas do "porão" da Gestapo, constantemente citadas pelo inspetor ao longo de "Carrascos", e até as invasões domiciliares violentas - eram ou negados pelas próprias potências ocidentais ou diminuídos pela imprensa que circulava no mundo ocidental. Este, pra mim, é o maior destaque desse filme do Lang: expor uma construção cinematográfica da repressão violenta, à sua época, por parte dos nazistas nas regiões ocupadas pelo Reich na qual boa parte da opinião pública daquelas chamadas "nações livres" e "aliadas" não ousavam.
Me escreveu até uma morte fabulosa; uma morte policial. Lenta, fria, com detalhes vermelhos;
com música, com animais, com árvores. Com poesia", pensa Óscar Peluchonneau em meio à bucólica paisagem típica do sul chileno - entrecortada por árvores, neve, pequenos leitos de rio, uma planície interminável -; policial, Óscar tem uma missão de contornos quase épicos: caçar, encontrar, prender e "humilhar" o senador, agora cassado, Ricardo Reyes Basoalto. Ou "o " perigosíssimo" comunista, que "ameaça a integridade nacional". Ou Pablo Neruda.
O Chile de Pablo Larraín aqui é o Chile da Santiago de contornos modernos, arquiteturas arrojadas, que não dorme, não descansa; das festas imensas, das construções grandiosas, dos homens de um plenário político cujas discussões estendem-se até ao banheiro, no qual parece mais urgente discutir os elogios, absurdos em suas velhas opiniões, aos "vermelhos soviéticos", neste pós-guerra intenso, que primar pelas necessidades básicas do corpo humano. É também o Chile de uma Valparaíso, costeira, com ares modestos e irreconhecível aos olhos de hoje, e também é um Chile das grandes cordilheiras, com suas estradas amedrontadoras, que em seguida dão espaço aos longos e retos pampas.
É o país dos contrastes, no qual um filho de ferroviários torna-se escritor e burguês - desposa primeiro uma holandesa, depois uma "aristocrata" argentina de formação em Paris, frequenta cabarés de luxo e não tem a capacidade de limpar o quarto, as roupas ou o próprio banheiro - e faz sua a causa comunista, escrevendo àqueles operários e trabalhadores - que labutam em condições sub-humanas e que agora, por ordem de um decreto presidencial, enfrentam uma severa repressão política - e que acaba por alcançar um posto político de importância no cenário nacional; é também o país de um filhote de um "polícia" com uma prostituta, um bastardo, que crê trabalhar em prol da nação ao se meter numa jornada de perseguição ao comunista perigosíssimo que é um dos sujeitos mais populares do Chile, ali, e que é vendido como "traidor" nas ruas e nos cartazes, sendo uma ameaça a ser detida.
É um Chile, noir, um thriller quase sem ação que Larraín constrói aqui. De cenários no qual montagens, escritas, declamações, realidades, memórias do passado e leituras de romances misturam-se; o velho e o novo, as contradições dos que se dizem trabalhar em prol dos trabalhadores e se empanturram de champanhe em grandes orgias mascaradas ou à fantasia - e que são surpreendidos pelos relatos daqueles que vem verdadeiramente de baixo -, em contraponto com os que trabalham - ou acreditam trabalhar - em prol de uma nação que fez do "Império do Norte", os EUA, seu verdadeiro chefe.
Afinal, "o poeta tem a febre dos espíritos artísticos que pensam que o mundo é algo que imaginaram". A fantasia maluca de "Neruda" é uma prova disso; o mundo de Larraín, apesar de fruto da imaginação, traz por vezes elementos muito reais; por exemplo um elemento, sendo mais específico, brevemente apresentado, uma "raposa de olhos azuis" que futuramente acabaria por se impor, à força, numa reação absolutamente mais sanguinária e cruel que a perpetrada por Gonzáles Videla nesta segunda metade da década de 1940. Mas aqui o que reina ainda é essa longa caçada, por espaços - e pessoas - tão diferentes, que deram contornos, nas folhas de papel e agora no cinema, ao nosso tão contraditório continente.
"É a história de uma sociedade que cai e que repete, durante a queda, como para se conformar, até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem".
"O ódio" traz um cenário de relativa novidade ali pro cinema noventista: o cotidiano conturbado, atribulado, complexo, movido a (des)ilusões, ódio e não-esperança de uma periferia que, se aqui é parisiense, nos traz questões e características quase que, e infelizmente, universais; a falta de oportunidades - estudos, emprego, sonhos - num sistema econômico-social apodrecido e que acaba por costurar uma rede de relações humanas doente é o cenário sempre presente no background aqui, quase um personagem que consegue unir fisicamente no mesmo espaço pessoas de identidades tão diferentes: árabes, judeus, franceses, skinheads, bêbados - amigáveis, por vezes perigosos e fãs de roleta russa -, policiais, admiradores de arte, votantes do velho Le Pen, velhinhos pequenos bons de papo em banheiros públicos.
Os sonhos de boxeador, e as cautelas para com essa vida, do Hubert, os ódios de Vincent, o lidar - por parte de uma comunidade inteira - com a perda de um dos seus em um combate incessante e atemporal; os protestos urbanos, as "revoltas", tão comuns nos anos 1990 - Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Buenos Aires -, que opõe ironicamente na contenda "aqueles que protegem" - a polícia - contra os supostamente "protegidos", num campo de batalha desigual, por toda a construção histórica de ambos até aquela culminação.
"O mundo é seu", chegamos a ler em um dos cartazes, dessas propagandas imbecis que insistem em expor felicidade, espalhados pela grande Paris e que
metamorfoseado, pichado, vira realidade pelas mãos do Said: "O mundo é nosso".
"O ódio" é um filme com a cara dos anos 1990, por sua técnica, seus "gestos" cinematográficos, com uma temática que ainda infelizmente se faz, cada e cada vez mais, atual - e o pior, continuamente expansiva.
"Totó... venha cá. [...] Agora me escute: comecei esse trabalho quando tinha 10 anos. Não tínhamos essas máquinas modernas. Filmes eram mudos, e você girava a máquina assim, como uma manivela; todo santo dia, e como era pesada essa maldita manivela. [...] Não posso [ensinar o ofício], Totó; não é trabalho para você. Se trabalha como um escravo, sempre sozinho. Você sempre assiste os mesmos 100 filmes; termina conversando com Greta Garbo e Tyrone Power. Sempre trabalhando, todo feriado, Páscoa, Natal... menos a Sexta-feira Santa; e se eles não houvessem posto Jesus numa cruz, nós trabalharíamos aí também".
Sempre bom rever "Cinema Paradiso"; novas percepções sempre chegam, o que só provam o quão grande e digno o filme é. Não é apenas uma ode ao cinema: é como toda salinha de projeção, por minúscula, mal estruturada, o buraco que seja, ela sempre será relevante à alguém; mais que isso, é parte de uma paisagem citadina, de um espaço urbano e que, felizmente ou infelizmente, acompanha (ou não) o "desenvolvimento", o crescimento, destes espaços.
Quantos Paradiso não temos - ou melhor ainda, tivemos - em nosso país, estado ou cidade? Cada qual com seus personagens típicos, aqueles sujeitos que sempre estão por ali, colados no cinema: os bêbados, os mendigos, os lanterninhas, os padres, as crianças, os pais; dezenas, centenas, milhares de histórias pessoais, de dor e alegria, sofrimento ou prazer, que acabaram, e acabam, se misturando neste pequeno espaço que, muitas vezes depois de certo tempo, é esquecido, despachado, não levado em conta pelo poder estatal ou por aquela sociedade que se divertiu, se emocionou, cresceu ou, em suma, viveu as possibilidades daquele lugar. Lugares que hoje estão abandonados, largados, ou foram demolidos para virarem um estacionamento como aqui; mas, e mais importante, nunca esquecidos - nem que seja por umas poucas pessoas, que ainda insistem em fazer presente ali na própria memória pessoal, tudo o que se passou e viveu - amores, risos, decepções, lágrimas - ali naqueles lugares.
Cinema Paradiso é uma aula, que excede o campo do cinema. Trata de algo que muitas vezes não temos tempo ou sensibilidade para pensarmos: a memória.
"Quando meus filhos eram pequenos, eu fazia uma brincadeira. Eu dava um graveto para cada, e dizia: 'agora quebrem'. Claro que eles quebravam fácil. Aí eu dizia: 'amarrem os gravetos num feixe e tentem quebrar'; claro que eles não conseguiam. E eu dizia que aquele feixe era a família".
O road-movie de septuagenário do David Lynch, em sua produção explicitamente mais "padrãozinha" ou "normal" - escolha o nome que quiser -, expõe as marcas e características já consolidadas de seu diretor. É um casamento até difícil de imaginar, o de David com a Disney pra esta produção, mas "Uma história real" (uma escolha de tradução de nome até um tanto bizarra, e genial, se pararmos pra pensar no que é o filme e no que envolve) é marcante justamente pelos fatores envolvidos que deram origem ao produto final resultante. A velha trupe lynchiana certamente está presente aqui, como Everett McGill (o Ed do "Twin Peaks") e Harry Dean Stanton ( Johnnie Farragut, do "Coração Selvagem"), e até as técnicas de tomadas e cenas remetem a outros trabalhos do diretor: como não lembrarmos do já citado "Twin Peaks", ao viajarmos junto com Alvin pelas pequenas localidades estadunidenses - com suas tomadas aéreas, amplas, que privilegiam o natural e as estrelas, e que mostram as pequenas cidades já tomadas por técnicas e tecnologias modernas, com suas fábricas (e carrinhos cortadores de grama)? E como não ver o dedo do Lynch ali esfregado na nossa cara, quando nos deparamos com personagens insólitos e um tanto quanto inesperados em suas atitudes, seus cotidianos e suas ações, como a moça que tem de viajar todo dia a trabalho, ou de Rose e suas casas de passarinho?
"Uma história" também permeia a América que já foi, e por isso também serve como um pequeno documentário de história. Não menos importante por privilegiar as pequenas cidades e seus moradores um tanto quanto estranhos, mas relevante por mostrar como velhos passados, memórias que tentamos soterrar e antigas relações moldam muito do que somos. Aqui faço referência à cena de
Alvin e do idoso no bar, cada um resgatando sua memória, suas lembranças, da guerra. É impactante, e emocionante, as reminiscências do que, e como, foi o conflito ali para cada um - a revelação do tiro certeiro de Alvin em seu amigo Krotz, o "pequeno polonês" por exemplo.
É também sobre o ter dimensão de seu "eu" atual, ou quando lembramos de Alvin explanando para ciclistas bem mais jovens sobre o que é, de fato, a velhice; "o pior da velhice é lembrar-se da juventude". Ou no fim estaria Alvin também falando para si mesmo?
Aqui Lynch acerta a mão em todas suas escolhas e em toda sua construção. Mesmo que, em minha opinião,
fique aquele gosto de "quero mais" por como é e se dê o final
, só mostra como tudo foi muito bem pensado e executado - quase dentro da caixinha, o que é quase impensável quando vemos o "directed by David Lynch" ali nos créditos iniciais. Com suas escolhas e práticas de filmagem características, exploradas até então em filmes e obras experimentais ou "estranhas", como o "Eraserhead", "Twin Peaks" ou "Veludo Azul", "Uma história real" é a prova do quão grande o Lynch é - e o quanto acerta mesmo em uma produção lida enquanto mais "comercial" ou "padrão", num casamento entre diretor e grande marca que beira o tão inusitado quanto um roteiro lynchiano clássico.
"Está tudo rachado, tudo estragado nessa casa; tudo riscado, riscado e quebrado"; é o desabafo de Giovanni, psicanalista, à sua esposa, Paola, logo após uma missa realizada em memória do falecido filho, Andrea. Na cerimônia o padre se vale, enquanto argumento, de uma passagem do livro de Matheus, capítulo 24 e versículo 43 - " se o dono da casa soubesse a que hora da noite o ladrão viria, ele ficaria de guarda e não deixaria que a sua casa fosse arrombada" -, para lembrar que o malandrão lá de cima tem seus momentos de intervenção - e que cabe a nós, terrenos, respeitá-los, mesmo que nos marquem, firam ou machuquem.
"O quarto do filho", como já comentaram abaixo, é um filme de e sobre o luto: seus pesares, dissabores, descaminhos. Tortuosos, já que nada do cotidiano de antes será o mesmo a partir de agora; uma luta, constante, com a memória e seus sentimentos - as lembranças, as dores e, aqui no caso de Giovanni,
de uma culpa, tão comum àqueles que se veem em situação semelhante após a perda de um parente. Tudo seria diferente se o pai acompanhasse o filho naquele domingo, na caminhada? Se o paciente não houvesse contatado Giovanni por telefone, Andrea estaria vivo? No fim vale o esforço em buscar respostas para todas estas situações, nas quais nos colocamos quando perdemos um ente próximo?
Aqui achei marcante a cena da missa - pelo argumento insensível, à maneira como foi posta e pela situação ali presente, do padre - e o arremedo com "By this River", música do Brian Eno, ali
na praia ensolarada. Um marco para um porvir mais feliz? Ou uma forma de aceitar a situação - e se aceita algo assim?
Apesar da narrativa - regular, ou seja, nada de extraordinário e sem reinventar o cinema que busca retratar ficções desta temática - "O quarto" entrega, de forma rápida, um bom produto final, daqueles que realmente nos fazem repensar e olhar com mais atenção o mundo - e as pessoas nele - ao nosso redor com mais atenção e afeto; uma Palma de Ouro à altura do histórico da premiação? Na minha opinião, se comparado aos demais filmes já agraciados em anos anteriores, a premiação parece demais pro "Quarto". Mas imagino que o Moretti certamente não estabeleceu enquanto prioridade tal premiação e se ela veio, bem, que dane-se o histórico.
É quase como se uma literatura pulp noir, daquelas baratas de fanzine, recebesse uma premiação - aquelas bem cafona, que existiam antes - na qual o sujeito agraciado teria seu conto ou romance adaptado por um elenco de estrelas pra uma novela ou minissérie que passaria naqueles horários obscuros da madrugada.
A diferença é que aqui o agraciado teve o privilégio de ser adaptado pro cinema e, repito, com um elenco interessante. Pena que "Uma forma de assassinato" é o clichê de um folhetim policial estadunidense que faz daqueles meados do século XX o cenário àquelas estórias bem escabrosas; clichê ao cubo, por sinal.
O problema é que a narrativa, infelizmente, não empolga - e dá aquela sensação, já com uns vinte minutos de filme, de "já vi isso antes, e pra caralho"; alguns errinhos técnicos bobos também doem quando se assiste, como
quando o Walter vai pela primeira vez no bar da Ellie e vê-se, na cena, que neva - em CGI, mas neva. Mas aparentemente as roupas e a pele do Walter repelem o fruto da pequena nevasca, e nem ao menos um floco gruda na roupa do sujeito.
Algumas atuações também são ridículas. O Vincent Kartheiser interpretando o Corby beira o risível, e Walter não teria como ficar mais sem sal com aquela aparente frieza do Patrick Wilson.
O final, pelo menos, é interessante e pode dar um debate legal. Minha interpretação é a de que
o Walter não assassinou a esposa - apesar de suas mentiras constantes à todos -; se aquilo que vemos em sua perseguição ao ônibus é o que realmente ocorreu, o arquiteto mais estranho da cidade realmente não teria como ter matado a mulher se nem ao menos a encontrava. Aquele sorriso. na cena final, poderia ser um indício plástico e externo de uma mente doentia e escrota que, por egoísmo puro, dificultou o trabalho da polícia e pôs a vida de diversas pessoas em risco para um objetivo no mínimo tosco?
Creio que sim. Isso salva "Forma" e o faz melhor? Infelizmente, pra mim, não.
"São histórias [de horror, brutalidade] comuns nestes dias; ouvi dizer que o demônio vive aqui em Rashomon, fugindo com medo da ferocidade do homem".
Kurosawa não hesita em brincar, com o telespectador, com algo tão cotidiano que por vezes se passa despercebido - em relatos, filmes, testemunhos, notícias, depoimentos, romances, declarações, histórias, a História; o que é, afinal, a verdade? Ou melhor, existe alguma maneira de apurar o "fato" da maneira em que realmente ocorreu?
As versões oferecidas aqui não tratam o espectador enquanto o inocente nessa partida; afinal, nos depoimentos,
somos nós os ouvintes dos relatos. As tomadas das testemunhas voltam-se diretamente à gente, e cabe a nós, ou não, reconstituir o que ocorreu naquela mata fechada e que envolve sujeitos tão pitorescos quanto um bandido famoso, uma esposa aparentemente infeliz com o casamento, um sujeito honesto e até um religioso.
Afinal "quanto mais ouço, mais confuso fico". Um recado bem direto!
A construção da narrativa, neste objetivo proposto, é especialmente admirável por parte do Kurosawa: as amarras são bem apertadas, e nenhuma ponta escapa. O final, em especial a última cena, nos alerta para o resultado da "brincadeira":
diz um pai - ausente no cotidiano familiar e de traços machistas para com sua esposa -, importante diplomata aos serviços do presidente estadunidense Woodrow Wilson e envolvido nas costuras da incipiente paz pós-Grande Guerra (lembremos que parte de Wilson a proposta de uma Liga das Nações que teria carta branca de alguns Estados para manter a paz no mundo), à uma mãe - que, apesar dos impulsos autoritários, permite certas "escapadas" de sua criança, mimada, no dia-a-dia.
"A infância de um líder" pareceu querer, na minha perspectiva, seguir os exemplos da "Fita Branca" do Haneke, lançado alguns anos antes; se na "Fita" vemos o cotidiano de um irrelevante vilarejo alemão de século XIX que expõe, por meio de seu cotidiano - e aqui leia-se a repressão de uma religião reformista, a presença mais que sentida de um Estado recém-nascido e com indícios explícitos de militarismo, além de uma crença demasiada nas "ciências" e suas projeções de "progresso", "civilização" e "futuro" -, aquilo que seria a gênese, as sementes, do pensamento nazista, "Infância" opta por uma pegada inusitada e diferente. E que o Brady Corbert, infelizmente, não conseguiu acertar na mão em minha opinião.
Tecnicamente, o resultado final que é entregue é bem elogiável. Uma tensão é criada e paira o filme com a presença de uma trilha sonora que preza por aquela sensação de "vai acontecer algo, e vai dar merda"; cenas, e algumas tomadas, são belíssimas: Ada e Prescott pelo campo, e o breve passei do birrentinho com a mãe pelas ruas da pequena cidade francesa também são lindíssimas. Menção mais que especial também pela maneira com que Corbert brinca, com a "Abertura" e sua "Parte Três", respectivamente,
com as imagens do conflito que assombrou o mundo no século do século XX e as comemorações pela paz em 1918 - e com os figurões que amarraram o ridículo Tratado de Versalhes, que arrastariam o mundo à uma nova guerra mundial pouco mais de trinta anos depois -
entrecortadas pela presença já comentada deste tipo de música.
O problema de "Infância", pra mim, é de certo modo não saber se decidir pelo que abordar e, por isso, não saber o que dizer. A leitura imediata que fazemos do filme é: quer dizer então que uma criança mimada - e que no meu ver pagou uma atuação estupidamente caricata, cheia de "carão", claramente à mando do diretor - rica,
em um ambiente cercado de certa repressão familiar, mas ao mesmo tempo por permissividades da mãe, é basicamente um indício de uma sociedade - ou um líder! - autoritário?
Não esqueçamos que tal cenário "familiar" foi, e ainda é, comum em diversos lares ao redor do mundo inteiro; seria um alerta do Corbert à situação política mundial atual? Mas a humanidade, e em boa parte de sua história que atravessa o mundo ocidental e oriental de cabo a rabo, não foi majoritariamente assim? Enfim, qual a mensagem disso?
E qual a necessidade daquela parte derradeira, pobre, que parece trabalho de estudante pra se entregar no prazo?
Referência aos fascismos, ao stalinismo, às diversas ditaduras militares e governos repressores que surgiram ao longo de todo o século XX, e que ainda insistem na reconquista de espaço público atualmente, pensando à nível de Brasil?
Meu ponto é que "Infância" mira uma crítica maior, chegando até a acertar o alvo em alguns momentos, mas peca no disparo; em um cinema que dialogue com tais situações, ainda prefiro ficar com os bons exemplos como "Fita Branca" que, apesar de não ser seu maior fã, devemos reconhecer que Haneke, ali, soube delimitar seu lugar, sua proposta, seu conteúdo e, além disso tudo, entregar isso de maneira bem fechado ao público. Pena que aqui "Infância" prometeu, criou e ficou cercada de expectativas, mas não soube alcançar aquilo que se esperou.
"Pensei na minha terra ao longo destes dias, por que meu país estava dividido; por que eu estava no cárcere, preso sem crime ou julgamento; e agora eu amo meu país, não sou um ressentido; eu vi crueldade e injustiça com meus próprios olhos, e então numa manhã fatídica apertei a mão da liberdade; para o bem ou para o mal tentei libertar a minha terra; e você ousa me chamar de terrorista enquanto me aponta o seu fuzil"
É o que cantam dois sujeitos irlandeses em um abarrotado e espremido "clube republicano" de Belfast, regados a muita conversa e cerveja; a cena, em espaço fechado, trata de como o nacionalismo irlandês sobreviveu (e ainda sobrevive) nas margens do poder britânico; de tudo se tenta para angariar causa e fundos: desde estratégias de nomes para instituições - e com o cuidado de escapar de qualquer identificação com o IRA e não sofrer uma violência policial (maior) por associações com o grupo extremista - até a venda de "ingressos de futebol" que, na verdade, vão para os cofres destas pequenas instituições que sobrevivem e brigam, seja nos espaços públicos e legitimados como palanques públicos, panfletos e declarações, seja naqueles de luta armada, de guerrilha nos campos e cidades, pela autonomia "irish".
"Agenda Secreta" me pareceu um interessante filme por parte do Ken Loach contra o imperialismo britânico que luta por fazer-se presente sobre as demais ilhas "forçadas" à se juntarem (curvarem é o termo mais exato) perante o trono real inglês; "1169", a data marcante, arraigada na memória até da gente comum, dos de baixo, do início das lutas contra a presença britânica em território irlandês: "800 anos, [...] é o tempo que temos lutado pela independência", diz
Molloy, motorista do carro que guiava o advogado estadunidense, e libertário-progressista, Paul Sullivan ao encontro de uma "fonte quente". Ambos brutalmente assassinados numa tramoia policial das forças de poder, típicas de uma repressão imperialista.
Infelizmente o filme de Loach pecou pra mim em alguns aspectos, que se fazem sentir no decorrer da narrativa: não é meio evidente que
mesmo numa situação de verossimilhança para com a realidade e com o que ocorreu, seria impensável as forças policiais inglesas enviarem um sujeito como Peter Kerrigan - sujeito crítico e que constrói uma imagem de si como um homem acima de partidarismos e lados políticos, um verdadeiro servente do Estado, como o mesmo se define?
Achei essa perspectiva um tanto romântica, e desnecessária, que comprometeu um pouco a proposta sugerida pelo Loach.
"Belfast me lembra o Chile", chega a dizer Ingrid Jessner; "me dá essa sensação", complementa em resposta à oposição feita a pouco por Paul. "Assassinatos, tortura, intriga", comenta. A resposta de Paul, entretanto, é a mais eurocêntrica possível: "seja realista, o que aconteceu no Chile não pode acontecer aqui".
Eurocêntrica e, tal como muitas ramificações desse tipo de pensamento provariam-se, errada. O entrevero inglês com a Irlanda - e ilegalidades cometidas por ambos os lados da contenda -, os ataques do ETA e as relações do País Basco com a Espanha e a França. A Guerra da Bósnia, e o massacre étnico nos Bálcãs. Provas de que demandas e ações imperialistas causam reações tão chocantes, bárbaras e desnecessárias quanto às da América, África ou Ásia.
Infiltrado na Klan
4.3 1,9K Assista AgoraÉ simplesmente genial. Não se tem muito o que comentar aqui.
"Infiltrado na Klan" é pro Spike Lee uma "redenção". É o ponto de virada pro cara que antes era posto na mídia e entretenimento (Simpsons, por exemplo) mais por suas opiniões fortes, ativismo político-social e pelos xingamentos e pitacadas de torcedor nos jogos dos Knicks no Madison em Nova York do que por uma filmografia já rica - e na qual pra mim o destaque é o "Malcom X" (1992).
"Infiltrado" também é uma aula de cinema e de direção. É tão bom que todas, literalmente TODAS, as cenas agradam aos telespectadores (pelo menos foi pra mim): da presença - tão esquecida hoje - de um trilha sonora "fixa", que acompanha Ron por toda sua trajetória e se modifica de acordo com as situações do personagem, aos entrecortes de ângulo que são acompanhados quase que sempre por trechos no qual os envolvidos, tanto do corpo policial quanto da União estudantil ou mesmo da Klan, parecem conversar diretamente com o cara que assiste; são alguns aspectos que, indiscutivelmente, fazem do filme bem construído, lindo visualmente e não cansativo.
Lee também brinca constantemente não apenas com aquele racismo tradicional calcado numa organização como a KKK (e que atrai desde uns sujeitos sedentos por sangue até a outros mais ponderados e que buscam mesmo um pensamento racional e polido) e faz por vezes relações - diretíssimas e objetivas - com certos presidentes verborrágicos e de cabelo laranja que vez ou outra assumem grandes potências globais.
Traz o passado pro presente e aponta como muito deste último sempre está muito bem fincado lá no primeiro - quer gostemos, quer não.
E apenas pra ficar em duas cenas: a construção temática aqui de "Infiltrado" é fantástica; dos argumentos à "América branca" por um "entendido" do assunto - interpretado pelo sempre irônico Alec Baldwin -, que já abre o filme, à exibição
do clássico racista de Griffith, "Nascimento de uma nação" (1917), para os conluiados da KKK daquela região do Colorado durante a iniciação do Ron/Flip, seguido por todo o reforço dos estereótipos e do vômito de um racismo escrachado nas cenas (Connie, por exemplo, chega a gritar sobre a "ingenuidade da mulher branca") e cuja cena tem seu protagonismo dividido com um relato sobre a violência dos supremacistas para com um garoto de deficiência mental por um sujeito já idoso - negro - que quando criança presenciou a brutalidade do crime (o garoto teve testículos e dedos arrancados, sendo encharcado em óleo e pingado de tempos em tempos numa fogueira) e agora fornece seu testemunho à União dos Estudantes Negros do mesmo estado estadunidense
Menção mais que especial ao final, que
na última aparição dos atores expõe de forma metafórica como a Khan, mesmo enfraquecida, humilhada e esmorecida, está sempre na espreita, e que segue as derradeiras cenas de protestos e marchas públicas daqueles estúpidos que insistem numa "América aos americanos", branca, sem latinos ou judeus - agindo, sempre, com ódio (verbal e físico) àqueles que tem de aturar suas baboseiras e sandices
O problema, tão comentado ao longo do filme, é exposto de maneira bem didática nessa aula de Lee: a questão é estrutural, não apenas individual. Vai das sucessivas invasões europeias que marcaram todas as Américas (sim, inclusive nós, vejam vocês!) e do escravagismo sequente e atravessa todas essas eras, atingindo a todos - mesmo aqueles que por uma simples distância temporal se creem distantes das consequências desses mais de cinco séculos de história.
E tudo isso em 128 minutos. De pura aula, arte e manifesto.
Baseado em Fatos Reais
3.1 189 Assista AgoraRoman Polanski e a exploração daquele terror demoníaco que aflige especialmente os cientistas sociais universitários envolvidos em artigos, monografias, dissertações ou teses: o drama da entrega de um trabalho que, mesmo impelido por força e pressões externas - orientadores, projetos, editores chatinhos que insistem numa dança que certamente nçai atrai -, parece não sair nunca, e no qual a página em branco do Word parece ser o maior vilão, arqui-inimigo mortal puro, que leva você aos atos de loucura, insanidade e gera uma paranoia tremenda na sua cabeça.
O que me parece interessante é ver como a temática (isso é uma temática mesmo? ou enrolação pra ocupar essa caixa de texto e não deixá-la em branco?) da falta de criatividade, do trabalho "artesanal" de escrita - ainda movido intelectualmente e não necessariamente de forma mecânica -, e mesmo das aventuras inimagináveis que envolvem os livros vem sendo uma recorrência dos filmes do diretor polonês - lembramos do bom "Escritor fantasma" e do horroroso "O último portal", por exemplo.
No mais, só isso realmente me prendeu; apesar de Polanski trazer de certo algumas novidades que parecem atingir toda a sociedade contemporânea nesse filme (em especial, os riscos das novas tecnologias e redes sociais - afinal, "carta anônima [de ameaça] é uma coisa, mas ser atacada nas redes sociais [aqui o Facebook] é muito mais grave", já que "nas redes sociais acreditamos nas calúnias" como nos informa a misteriosa - e sem sal - Elle) e da tentativa de um novo frescor técnico da velha escola polanskiana (mais enrolação - aqui paradoxal! - pra afastar o demônio do não - escrito?), como nas tomadas escondidas, partindo de uma perspectiva de esquina - quartos, museus etc - que, "torta", parece querer passar uma certa sensação de vertigo ou suspense àquele que assiste, "Baseado em fatos reais" realmente não encanta.
É arrastado, monótono, fraco. É daqueles filmes que compartilham a infeliz sensação de, com dez minutos, você imaginar como irá terminar - e, pro seu azar, acertar no palpite; um tempo - esse bem que hoje nos escorre - que certamente poderia ser investido em outras atividades, decerto.
Como por exemplo escrever aquele maldito artigo, tão demoníaco quanto aquela "sombra" que atormenta Delphine, que lhe falta para concluir de fato uma cadeira de sua pós-graduação.
Estranha Compulsão
3.7 33"De que se trata este assunto, de crime e castigo? Através dos séculos, nossas leis se modificaram; agora os homens se lembram com horror dos enforcamentos e das matanças do passado. Se demonstrou que se as penas são menos brutais, crimes são menos frequentes; necessito discutir com o senhor juiz que a crueldade gera crueldade?"
Se o verdadeiro monólogo (um tanto liberal, mas sempre correto) de um já experiente Orson Welles, aqui interpretando um advogado bonachão, "cético e ateu" - na opinião de certos promotores - em plena defesa de dois de seus clientes (jovens ricos, tanto mimados, acusados de um crime), torna-se o grande momento de "Estranha compulsão", ocupando quase 10 minutos e boa parte de uma trama final do filme, seria injustiça afirmar que esta produção do Richard Fleischer se resuma a pôr todos os holofotes escancarados na interpretação já significativo e imortal ator/diretor.
Muito pelo contrário: o filme, em si, carrega traços interessantes de serem delineados. Por exemplo, vemos certas situações (aqui leia-se personagens e/ou cenas) que certamente irão marcar presença em boa parte das produções cinematográficas posteriores - principalmente da década seguinte.
A brincadeira proposta por Fleischer aqui denota parte daquela obsessão que marcará boa parte do cinema estadunidense por "personalidades" e "traços psicológicos", me parece: Arthur poderia muito bem ser o Bates em "Psicose", do mesmo modo que Judd certamente se encaixaria como um dos alunos do professor Rupert Cadell no "Festim Diabólico", para ficarmos em dois exemplos hitchcockianos - sem comentarmos nos demais personagens, todos muito bem "estabelecidos" e com personalidades muito bem desenhadas no desenrolar de "Compulsão", como Ruth ou Sid Brooks.
Neste sentido, cenas como do passatempo - no mínimo bizarro - de Artie no curral ou da discussão em torno de Nietzsche, dentre Judd e o velho professor, compõem um pouco deste panorama.
No mais, e não menos importante: temos também aqui uma das melhores frases que resumem a Ku klux Khan e suas atuações; após ser alvo de um protesto da irmandade, no qual fizeram a tradicional queima da cruz de frente ao hotel em que está hospedado, Wilk manda que "não deveríamos nos preocupar com gente cuja reação a uma situação emocional é pôr um lençol sobre a cabeça".
Acurado como sempre, Welles - nem tanto, mas ainda assim muito bom.
Você e Eu
3.5 3"Gostaria de saber se você sabe a sensação de acordar em uma cidade que é totalmente estranha para você. E todo o dia, sem sentido, já pode ser imaginado com todas as suas faces, reuniões, conversas, que fazem você querer nunca abrir os olhos. O coração está pesado como se algo estivesse errado; [...]você sabe que tem que se recompor, ir trabalhar, incomodar pessoas saudáveis e ocupadas com check-ups médicos e convencer a si mesmo que isso também é importante. E assim, todos os dias você se sente tenso, como se estivesse representado alguém em vez de viver".
É o que ouvimos um aparente chefe ou diretor de junta hospitalar ler, em voz alta, perante o autor do memorando que abre esse comentário; em meio a breves interrupções - uma secretária tem de recolher assinaturas importantes, afinal estamos num espaço hospitalar! -, o responsável pelo escrito vê se perdido, desanuviado, depressivo, ausente enquanto da leitura. Tão ausente que cai fora da sala sem nem ao menos de se despedir do sujeito que ficou, ali, lendo o seu escrito.
O autor do texto, Peter, é um dos - se não for o - personagens principais de "Você e eu" da Larisa Sheptiko. As apresentações, por cenas curtas e intensas, dão a tonalidade dos sujeitos que compõem o círculo em torno desse médico soviético - sua esposa Katya e seu amigo Sasha - em meio ao urbanismo caótico (burguês) da capital sueca, Estocolmo.
Enquanto vemos as diversões e o cotidiano em tal cidade - tais como o jogo de hóquei entre a seleção da casa e da URSS, na qual vemos a saudade bater forte em Peter, ou mesmo o circo -, Sheptiko começa, discretamente, a armar a teia que vai prender o telespectador.
E é isso o que mais me impressionou de fato: aqui, Sheptiko brinca fazendo uma mixórdia de road-movies com drama, de tonalidades de suspense com pitadinhas de romance. "Você e eu" traz em si desde a
fuga
quase amorosa
Da reconstrução de Peter, "isolado", à nova vida de seus antigos companheiros em Estocolmo, Sheptiko explora o peso de cada uma destas empresas; "afinal, eu também costumava pensar que é tudo ou nada na vida", diz Peter a uma de suas pacientes que tentou o suicídio, "mas não pode ser que ninguém se importe: alguém precisa de você ou de mim". E, com a leveza de um martelo esmagando uma bigorna, arremata: "enquanto você sente, você vive".
Destaque mais que especial aqui pra duas cenas, belíssimas a meu ver: a já citada diversão no circo, em que Sasha tenta aparecer pra Katya montando um cavalo árabe enquanto está preso numa corda - e onde Sheptiko expõe toda sua técnica de filmagem e condução de atores, numa cena riquíssima -, e a mais que incômoda cena final, na qual Peter, em meio a uma diversão com seus camaradas e cães na neve, é arrematado por lembranças do passado - e, também, por uma paciente que aparentemente não escapa de sua mente.
Westworld - Onde Ninguém Tem Alma
3.3 196Delos Park bom é o Delos Park galhofeiro e varzeano, onde aparentemente a alvenaria das estruturas dos três mundos temáticos é composta de isopor, com mobílias temáticas de plástico barato, em que os técnicos responsáveis pelo funcionamento de hosts e da segurança dos visitantes são irresponsáveis ao ponto de não interromperem, pelo mínimo de tempo que seja, o funcionamento dos robôs para uma análise mais aprofundada de suas falhas cada vez mais graves e que atentam cada vez mais física e integralmente a vida de visitantes e no qual o James Brolin - intérprete de um certo John Blane, um já experimentado visitante dos complexos Delos qe carrega um amigo para os "mundos" - parece um gêmeo setentista do Christian Bale.
Farofices à parte: mesmo que a execução peque - por exemplo, em clichês batidos como o som de Cuco quando o sujeito é nocauteado num bar do Far West -, não dá para se negar que é um roteiro original; mesmo que nesse momento sejamos imbuídos pela super-série da HBO, que resgatou o conceito original desse sci-fi de 1973 e o potencializou muito acima da "citação original" e, consequentemente, o ultrapasse tecnicamente (sem falar em roteiro), encontramos bons momentos que o Crichton poderia ter explorado mais a fundo, em minha opinião.
Exemplo: o começo, no qual o funcionário da Delos entrevista hóspedes que acabavam de sair das dependências dos parques, é sensacional; o sujeito que fica em dúvida se os hosts são humanos ou robôs, e que
fica desconcertado - mesmo triste! - por saber que não matou humanos de fato,
É o que, para mim, norteia filme e série, separados em qualidade quase que pela mesma distância de humanidade entre hosts e visitantes destes "maiores parques de diversão do mundo"; é, também, o mérito maior do Michael Crichton aqui, que opta infelizmente por tratá-la de maneira barateira - malfadada, diriam alguns mais críticos - , "pobre" e circundada de clichês.
Medo do Medo
4.1 34Tremendo drama esse do Rainer Fassbinder, explorando a deterioração psicológica a partir dos sintomas depressivos de uma dona de casa alemã - que vivia aquilo que parecia uma vida aprumada, regrada, "nos eixos".
Das complicações iniciais, ainda durante a fase de uma segunda gravidez até então tranquila, aos agravamentos com o uso - e abuso - de Valium, seguem-se os primeiros sintomas de anemia, e, posteriormente,
abuso de álcool e automutilação por exemplo.
Tudo isso, óbvio, tendo por pano de fundo o cotidiano das relações sociais ali daquele microcosmo alemão, no qual se tem por vizinho de apartamento sua sogra e cunhada
- e aqui vale um destaque mais que especial à cena na qual Kurt discute com Lore e a matrona de sua família sobre o que é "ser normal" -
traições por parte de Margot, e que servem claramente enquanto uma escapatória, fuga mesmo, encontrada para fugir das intempéries da doença
A construção da personagem principal, tendo como cenário tal narrativa, é espetacular: de uma Margot completamente "saudável" nas primeiras cenas, passamos a acompanhar os agravamentos da doença - seja no plano psicológico, como já comentado, até
no seu quesito físico: aprofundam-se as olheiras, os sulcos faciais, e um emagrecimento cada vez mais constante. Mesmo a recuperação, com a terapia, aponta neste sentido: vemos outra Margot que sai dali, por exemplo.
"Você não deve ter medo de enlouquecer, [...] você é simplesmente mais sensível que os outros. Tem que cuidar de si mesma".
Fantástico filme, e que mostra como a depressão pode ser tão cruel, agressiva e infligir tantos danos quanto qualquer outra doença.
O Medo Devora a Alma
4.3 105 Assista AgoraEm um cenário, aberto, o foco da câmera circula de um espaço amplo - na qual vemos mesinhas quadradas e cadeiras, ambas amareladas, ao relento do que parece ser uma espécie de parque, ou área pública bem arborizada ou mesmo um jardim de algum estabelecimento gastronômico - para, em seguida, deter-se ao casal que divide uma das mesas ali presentes. Ele, moreno, terno cinza e barba espessa, beirando uns 40 anos; ela, próxima dos 60, de vestido preto com estampas, loira - germânica.
O desconforto está exposto, escancarado, ao público que assiste: ao deter-se nele, que descobrimos antes ser um imigrante marroquino que deslocou-se à Alemanha, como tantos outros árabes (e não-árabes), em busca de trabalho, vemos, por detrás do foco optado pelo diretor, garçons e o que parecem ser demais clientes (ou donos do estabelecimento) observando, atentamente, os dois únicos que dividem aquela mesinha amarela, centralizada na área.
Ela começa a chorar, e desabafa: por um lado, fala da felicidade em encontrar um amor após a morte de seu marido e da saída, de casa, de seus três filhos; por outro, comenta a sensação, desgastante e horrorosa (na mesma proporção?), de sentir - e conhecer - o ódio racial ali da Alemanha de meados da década de 1970. "Estão me matando", chega a afirmar, já aos prantos.
A cena, pra mim, é uma das mais impactantes de "O medo devora a alma"; o caso de amor de Ali, o marroquino, e Emmi, a alemã, é uma paisagem elaborada, montada, pelo Rainer Fassbinder em 1974 mas que poderia, muito bem, ilustrar situações que insistem em ocorrer, em larga escala, ainda hoje no país germânico - e que, tal como um câncer, parece espalhar-se cada vez mais pelo mundo ocidental, como uma peste invisível que aflige o dito primeiro mundo e suas periferias.
O ódio ao "outro", ao estrangeiro - visto como um preguiçoso, interesseiro, sujo -, mas também àqueles que, saindo do casulo de uma sociedade racista, optam por um relacionamento com esse "outro", chegando a ver mesmo ali um porto seguro no qual não aportavam a anos e, por isso mesmo, tornam-se igualmente alvos dos preconceitos, velados ou não, de vizinhos, amigos, do dono da quitanda, mesmo dos familiares.
As tensões de um país que ainda tem as marcas - agora um tanto escondidas - de um passado totalitário, nazista, mas que agora se encontra novamente em ebulição após os eventos na Olimpíada de Munique 1972 e põe, nessa caldeira efervescente, toda aquela massa de imigrantes muçulmanos, turcos ou de origem árabe, vistos agora como "homens-bomba" e/ou terroristas, "ratos" que dormem amontoados e não dão respeito à quem se deve.
Também tem as marcas de uma sociedade que, apesar de se expor enquanto civilizada, também compartilha de mesmas situações, ou doenças mesmo, sociais daquelas ditas "inferiores": os relacionamentos abusivos no seio familiar, o pensar no lucro como a prioridade - afinal, nos negócios, temos que ocultar o que não nos agrada", chegam a se confabular proprietários de um pequeno mercado.
É, enfim, um filme atualíssimo. Uma exposição visceral do Fassbinder
- que ainda insiste, próximo à reta final, em expor que mesmo no lamaçal de racismo se é, possível, remediar, mesmo consertar, tal mal: a reconciliação de Bruno com a mãe, por exemplo, circula muito em torno disso; afinal, o racismo se dissolve, muitas vezes, quando se nota que o "medo" do "outro" nada mais é do que ignorância, mesmo convívio em certos casos
Além das Nuvens
3.7 24"Quando estou cansado após terminar um filme, começo a pensar no próximo. É só o que me resta fazer e o que eu sei fazer; começo a tentar definir o filme que farei a seguir. A coisa mais difícil é não poder se interessar por nada - não ler, não ter nenhuma distração -, alcançar o silêncio e a escuridão. É na escuridão que a realidade se acende; é no silêncio que as vozes chegam de fora", divaga, para si, um diretor cinematográfico em meio ao pouso de sua aeronave e já em terra, a bordo da direção de um automóvel numa Ferrara tomada pela chuva e neblina e envolta num fog tão londrino quanto àqueles tempos fechados proporcionados pelas temporadas chuvosas das cidades próximas ao delta do rio Pó italiano.
O desabafo do personagem principal de "Além das Nuvens", logo na primeira cena, já dá a tônica do que é pretendido pelo Michelangelo Antonioni aqui: é, antes de tudo, uma reflexão sobre seu métier, seu ofício, o que é ser um diretor de cinema; mais que isso, é também uma reflexão sobre a sua matéria prima primordial, a inspiração, aquele desejo que move alguém a passar boa parte de seu dia - e o resto de sua vida - pensando no que filmar, no por quê de escolher tal história ou temática e o como se produzir tal empresa.
Aqui, as reflexões do diretor fictício - um alter ego do italiano? - perpassam sua profissão: de câmera na mão, percorre cidades, pequenas pousadas, mesmo igrejas ou apartamentos de luxo, atento ao seu redor, ao que lhe cerca, ao cotidiano que, se seria um "comum" a qualquer outro naquele cenário pode, ali nas suas mãos postas numa câmera de filme ou fotográfica, virar um "diamante", uma obra de valor do cinema, uma história a ser exibida; para tanto, (anônimo!) age
quase como que um voyeur, atento às menores ações de outros, a qualquer passada e movimento ao seu redor: não poupa de sua vista a tentativa frustrada de um rapaz com uma jovem, que se prepara para partir ao convento, ou, como no belíssimo take final, às janelas da pousada em que se encontra: à moça, de cabelo chanel, fumando na sacada, ao casal que se prepara, na chuvosa noite, para transar. Percorre, também, uma traição de um estadunidense com uma italiana em Paris, e mesmo de um amor nunca correspondido de um técnico em bombas hidráulicas com uma professora, em férias, em Ferrara.
Pequenas passagens de "Além", tão breves num filme que tinha um potencial para ser memorável, refletem o próprio modo de pensar e fazer do Antonioni: a prática de quase uma mimesis, de buscar, ao copiar métodos daqueles que nos servem de referência, se aperfeiçoar no ofício, como no caso de
um pintor, interpretado por um já velhinho Marcello Mastroianni, que tenta incessantemente, mesmo às risadas de sua companheira, se aprofundar em seu estilo a partir da técnica de um Paul Cézanne
Tem, também, as marcas que o fizeram - mesmo que num viés polêmico, por vezes canalha mesmo - ser quem foi no campo do cinema: a presença constante do erótico, do flerte que beira quase que ao incômodo, das traições, mentiras matrimoniais e enganos - seja à amante ou à esposa.
Infelizmente, "Além" desperdiça um potencial inacreditável; uma hora e quarenta de duração simplesmente não consegue dar conta da expectativa daquilo que poderia ter saído nessa parceria do italiano com Wim Wenders - que, por sua vez, já havia explorado temática semelhante no seu excelente "O estado das coisas", de treze anos antes.
A sensação que fica, ao menos pra mim, é a da entrega de um produto incompleto, ou feito as pressas, que por vezes sub-aproveitou mesmo o elenco, de peso aqui, na construção da narrativa; esta é atropelada, e aquelas boas histórias apresentadas, quase com o sabor de contos literários, se perdem numa afobação ou mesmo surgem com impacto para, em seguida, desaparecer tão rapidamente do modo como apareceram.
De todo modo ficam as ressalvas mas, também, os aspectos positivos; afinal, como nos diz o personagem principal, "a profissão de um diretor é singular [...];nosso esforço é voltado para a assimilação de novas emoções [...]. Somos desabrigados, expostos ao olhar, à suspeita e à ironia de todos, sem poder falar a ninguém de nossa aventura pessoal que não está registrada no filme ou no roteiro".
É, conclui - sempre para si -, "uma lembrança estranha como de um presságio, do qual o filme é só uma comprovação incompleta".
Também é, certamente, quase que uma autobiografia metódica (me sinto obrigado a criar o termo), uma despedida, do velho Antonioni que deixaria este como sendo uma de suas últimas produções de sua filmografia.
Memórias
4.1 89"Memórias... memórias... memórias não são uma fuga".
Três "curtas" reunidos, cada qual com sua temática, traços, inspirações, referências e mensagens intencionadas ao público; cada um decidindo, à sua maneira, o que abordar em pouco menos de uma hora para ser repassado nesta espécie de antologia de traços orientais.
Os espetáculos de uma sociedade militarizada - no qual o ensino infantil volta-se à formação de pequenos operadores de artilharia -, de um ritmo fabril decadente àqueles que a sustentam na base e no qual seus gordos e mesquinhos comandantes militares, representados em românticas pinturas a quadro presentes nas casas dos cidadãos, vestidos como um warlord napoleônico, dedicam-se apenas ao apertar de um botão para fazer disparar um potente disparo de canhão - em um curta que parece ter saído, vinte anos antes, de uma hipotética série animada do jogo "Valkyria Chronicles"; as empresas, no mínimo estranhas e eticamente questionáveis, entre o Estado e grupos químico-farmacêuticos para o desenvolvimento de uma arma inusitadamente letal, naquilo que parece o resfriado mais mortífero da história do planeta; os questionamentos e as ilusões, os esquecimentos e dores, quase tarkovskianos - e, ao menos à mim, inspirados em larga escala no "Solaris" - de dois sucateiros espaciais no único (e maravilhoso) conto sci-fi da trilogia, e que abraça de vez o título que carrega.
Três episódios cada qual com seu traço belíssimo e suas críticas, que acabam também por compilar aqueles questionamentos que permearam, por um bom tempo, parte década de 1990: os horrores, ainda não cicatrizados, dos conflitos militares e daquelas tantas sociedades afetadas por um nacionalismo patético que, por vezes, não pode ser nem compreendido por uma criança - mas que, paradoxalmente, também a apaixona por isso; o lidar com a memória, tanto daquilo que perdemos, há tanto tempo e num espaço tão distante, quanto daquilo que nos apaixona, atrai, que provoca paixão; as aproximações, suspeitas, entre grandes conglomerados científicos com Estados, voltados à eliminação (sustentável!) do outro - e a interferência de potências estrangeiras mesmo na soberania de seus aliados.
A única coisa ruim é que acaba rapidamente. E que maldade cretina é o último episódio
ter apenas metade da duração dos dois primeiros
Laços de Ternura
3.9 246 Assista AgoraA "primeira parte" é uma daquelas boas soft-comedy familiares, tipicamente estadunidenses; as relações próximas entre mãe-filha, sempre envoltas naquelas confusões "do bem", o imprestável que é o namorado (e olhem só, professor já se fodia nessa época...) dessa última, o vizinho maluco, os pretendentes caricatos (Danny DeVito e seu ar da graça aqui pra mim foi sensacional), os amores improváveis de uma viúva e mesmo de um astronauta.
A "segunda parte" é uma transformação quase que total, de certo modo até brusca pelo que vinha se desenrolando então: vira um drama poderoso, envolvendo as dificuldades das separações familiares - daqueles com quem vivemos a vida toda, amigos e familiares -, também daquilo que os falantes do espanhol chamam de "la vida en pareja" ou a nossa vida de casal - e seus ciúmes,
mesmo traições
Duas cenas exemplificam bem pra mim cada uma dessas partes, que funcionam quase que como uma dicotomia: além dos momentos divertidos com os pretendentes de Aurora, a cena de
despedida de Emma e Flap de Aurora e Patsy, em que este acelera o carro quando a filha única da coroa pede pra ir saindo devagarinho,
Desta segunda, é quase impossível ao menos não reconhecer a força
da cena das visitas à Emma: as despedidas da amiga e dos filhos, a franqueza com Flap e a presença deste e da mãe até o último respiro
Apesar de pra mim o número de 5 premiações da Academia caírem um tanto demais pro produto final que saiu daqui, evidentemente não deixa de ser um bom filme.
O Sétimo Continente
4.0 174 Assista Agora"Vocês não concordam que tais discussões seriam inúteis nos bons tempos que passamos juntos? Quando você faz uma decisão, deve segui-la a qualquer custo. Aquilo que você sempre diz, pai. E nós tomamos nossa decisão. Nós decidimos partir, porque a exceção de vocês, nada mais nos prende aqui".
Toda a desilusão de uma vida urbana e burguesa, de uma família qualquer de classe alta germânica; aqui, Haneke parece querer levar ao filme aqueles ingredientes que, se já faziam parte de tal "classe" no mundo ocidental estadunidense ou europeu, certamente engoliriam anos depois o restante do mundo - inclusive nós, latino-americanos.
Relações conjugais distantes, uma mesa farta para o jantar nos quais ninguém se olha ou comenta algo sobre o dia daquele com quem divide a mesa; as máquinas, já presentes na indústria, nos supermercados e no trabalho do oftalmologista e, curiosamente,
a presença de um dos poucos personagens que se abrem à uma conversação: a senhorinha, cliente de Anna e de seu irmão, e que é evitada por ambos
de Anna no lava-jato
Aqui temos quase uma pintura, da parte do Haneke; uma arte daquelas estranhas. Estranhas mas que, infelizmente, também têm como personagens do quadro nós mesmos - se pararmos para pensar no nosso estilo de vida, das grandes urbes, da industrialização e individualização constantes.
E que baita cena a da
destruição da casa; mas, ali naquele longo take, o que mais nos dói? Vermos os peixes tendo seu lar destroçado - e compartilhando da sentimentalidade e sensibilidade de Eva -, ou ver o dinheiro, a pouco recolhido no banco, ser rasgado e jogado ao toalete?
É inevitável repetir o que sempre penso e falo, aqui no Filmow, sobre todo filme do Haneke: o homem é um puta provocador.
Assassinos por Natureza
4.0 1,1K Assista AgoraAlguns diretores sempre me chamaram a atenção pelo verdadeiro caleidoscópio de técnicas, temáticas e escolhas de elenco para seus filmes; sempre variando esses itens, e outros diversos, lançando um sopro quase que constante de originalidade à sua filmografia. Que acertem ou não nestas, e em outras diversas,escolhas, nem me interessa tanto - que o produto final, o filme lançado e posto ali no cinema e às vendas, atinja a qualidade esperada, tampouco me importa nesse quesito; afinal, quem sou eu pra pitacar nos trabalhos dos caras?
O fato é que o Oliver Stone certamente entra fácil nessa minha categoria particular. O sujeito que vai de temáticas tão diversas, como da guerra contemporânea (com "Platoon", por exemplo) ou à crítica aos constantes intervencionismos estadunidenses na América Central (como em "Salvador"), e lança algo como "Assassinos" certamente tem cadeira cativa aqui.
"Assassinos por Natureza" cheira a filme de anos 90. As duas primeiras cenas, com o casal inicialmente aprontando no bar, no famoso meio do nada - tão comum e tão retratado no cinema estadunidense, ali pelo meio-Oeste ou no Oeste em si - já denota muito disso: os close-ups costantes, com imagens e cenas diversas (propagandas clássicas ou não, entrevistas, filmagens caseiras familiares etc) sendo sobrepostas uma sobre as outras, virando quase uma psicodelia cinematográfica, e com uma dose insaciável de violência gráfica e bebendo constantemente do exploitation, foi algo bem presente em muito dos filmes da década; lembremos, por exemplo, do "Funny Games" do Haneke, ou de um Quentin Tarantino que começava a botar as mangas pra fora já neste tempo com seu "Cães de Aluguel" e futuramente com o, pra mim, verdadeiro herdeiro dessa tradição cinematográfica, "Pulp Fiction".
A construção de algumas cenas por parte do Stone aqui também me fizeram lembrar o "Ed Wood", do Burton, ou o "Coração Selvagem" do Lynch: as cenas de dança (futuramente adotadas em larga escala pelo próprio Tarantino), o preto-e-branco constante, os cortes rápidos e variantes em foco, indo dos olhos do Downey Junior à um close no Tommy Lee Jones, tudo entrecortado por um Woody Harrelson jovem, careca e assustador; tudo isso está aqui.
E a segunda cena é, pra mim, sensacional: um verdadeiro
esquete de sitcom, no qual conhecemos a juventude sofrida da Mallory; os abusos - e o preconceito, o machismo - de seu pai, a conivência da mãe, e o encontro irremediável de amor à primeira vista com o
Não se tornou um dos meus favoritos. Mas como disse no começo, tento pelo menos entender o mínimo que motivou a produção, e a importância do que saiu daí, do produto final, do filme em si. Stone aqui, no meu ver, também meio que brincou com o que a década de 90 ofereceu aos cineastas, com todos aqueles modismos temáticos e técnicos (da violência bem explícita e gráfica, por exemplo), tal como Haneke no "Funny Games".
A crítica dura de Stone também respinga constantemente: as explorações midiáticas - com o jornalismo "sangrento -, a construção de "mitos" a partir de assassinos seriais, a violência das prisões; tudo isso também está aqui. E tudo isso com certeza faz de "Assassinos", pra mim, um dos verdadeiros filhotes do cinema noventista.
A Ascensão
4.3 61Pouquíssimas produções sobre o cenário do front oriental na Europa têm, ali nas "grandes mídias" que escrevem, abordam e debatem o cinema, seu devido espaço; de meu conhecimento, apenas dois filmes da polonesa Agniezka Holland (o "Filhos da Guerra" - "Europa Europa", no original, e "Na Escuridão" - originalmente "In the Darkness") e o já aclamado "Vá e Veja" tiveram algum tipo de êxito em terras ocidentais, ao abordarem os conflitos nesse espaço que verdadeiramente definiu, mais que o ultra-aclamado Dia D, a Segunda Guerra Mundial.
Se ambos os filme da diretora polonesa exploram o cotidiano renhido e doloroso daqueles que literalmente lutavam pela sobrevivência debaixo do nariz dos invasores alemães (como no "Filhos") ou literalmente nos subterrâneos da capital (tal como em "Escuridão") polonesa, o "Vá e Veja" trazia, explorando ao máximo o grotesco e o surrealismo mais que real daqueles tempos, o olhar quase que infantil, pré-adolescente mesmo, daquela guerra selvagem, suja, no qual os limites do humano e de sua própria condição humana foram colocadas ali à prova; da violência nazista, extremada e com carta branca pra extermínio de literalmente tudo aquilo que visse a frente ali nas estepes russas, até à dolorosa luta por sobrevivência daqueles espoliados pelo ataque e domínio alemão em sua terra.
E aí sou surpreendido com "A Ascensão". Mesmo já em sua metade, apenas uma expressão me vinha à cabeça: humanidade; e é isto: diferentemente do "Vá e Veja" lançado ali nos meados dos anos 1980, "Ascensão" traz, pelo menos pra mim, um caráter muito mais humano, acentuadamente humano, da invasão, da barbárie nazista em solo soviético. Sem apelar às cenas grotescas, quase pistaches que seu primo soviético de quase dez anos mais jovem viria a usar e abusar, "Ascensão" explora literalmente o cotidiano duro daqueles que se engajaram na resistência.
Explora, intensamente, o impacto psicológico do negócio. E ali, em meio ao inferno branco da neve, em meio a emboscadas e patrulhas nazistas, vemos como a luta pela vida tomou vieses inimagináveis, estraçalhando mentes e ruindo supostas "normalidades" psicológicas de todos os envolvidos naquele espaço naqueles tempos.
E esse aspecto psicológico é a grande sacada da Sheptiko pra mim aqui: como exemplo, a cena no qual
os guerrilheiros são conduzidos de trenó ao cativeiro é espetacular: Rybak, claramente, já está distante de seu normal; ao visualizar, imaginar mesmo, uma suposta fuga, vê a si mesmo sendo metralhado.
Sheptiko, então, se usa de algo já utilizado em momentos diversos em seu filme - e que será utilizado de maneira sensacional na derradeira cena do "Vá e Veja" futuramente - : sua câmera foca no rosto do sujeito. Imóvel, congelada, lemos todas as emoções e quase que compartilhamos do mesmo pensamento que o personagem, com sua face estática e em tensão, têm ali. O choque é brusco: primeiro, tentamos nos restabelecer; depois, ponderamos sobre o que se passou. Ou, no popular, pensamos e repensamos e pensamos e voltamos a repensar sobre as atitudes a se tomar. E finalmente notamos que nenhuma decisão, mesmo a mais corriqueira, certamente não deve ter sido nada fácil naqueles momentos. Para ninguém.
Afinal, toda e qualquer guerra destruiu, e destrói, os parâmetros da normalidade. E isto, no aspecto mental, é tão intenso quanto a vida num front. Não precisamos viver necessariamente um conflito militar para saber os danos, físicos ou psicológicos, que uma contenda desse tipo pode causar.
"Ascensão", nesse aspecto, explora justamente isso.Mesmo fora da zona de conflito, distante de seu inimigo, o inferno da dor, da morte, do medo, pode povoar sua cabeça. E as consequências disto insistem em fugir de qualquer normalidade ou racionalidade.
Edukators: Os Educadores
4.1 663"Foda-se a ética da pequena burguesia. Decência, honestidade, valores familiares; ir para o trabalho na hora, pagar seus impostos.
Tudo isso nos esmaga: primeiro na escola, depois na TV. Pra quê? Para o inferno com esses valores morais".
É toda a desilusão de uma juventude que não consegue encontrar, ali nos escritos políticos em que acreditam, bases para se pensar o presente. "Educadores" se torna muito mais interessante, pra mim, quando posto em situação de diálogo com um par um pouco mais antigo: "A Chinesa", do Godard.
O contraste de duas gerações: esta última, às vésperas do 1968, "cega" pela teoria marxista - maoístas, mesmo marxiana -, "seca" do papel e de seu contexto de produção e que também não sabe, direito, como adaptá-la ali naquele cenário tão distinto desse em que tais ideias foram elaboradas. A primeira, dos "Educadores" por sua vez, já num cenário completamente distinto, onde aqueles que lutaram no 1968 se corromperam ou se encontraram engolidos pelo "sistema" e viraram, agora, os "inimigos", a "burguesia" a ser combatida - e no qual
os diálogos de Hardenberg, ali falando de como era de certo modo um dos "revolucionários" ali em sua juventude nos 60's, com Peter à beira da planície ou com Jan durante a lavagem de roupa,
Angústias que certamente martelam todos aqueles que tem de literalmente sobreviver às próprias custas: as dificuldades e abusos do emprego, o choque das grandes metrópoles, a injustiça social escarrada ali no cotidiano, a alimentação intelectual interna por ideais antigos que prometem uma redenção a todo este mundo estranho, desigual e injusto; e que, para isso, decidem partir à "ação", à práxis.
Se passa numa Alemanha de começos de século XXI, marcada pelas modernas tecnologias e por um capitalismo que parece imbatível e infalível, e por isso inserta em uma situação aparentemente distante da nossa realidade; mas que, nem por isso, não consigamos identificar semelhanças na ampla situação de muitos daqueles que nos cercam - ou até de nós mesmos.
"Educadores" também me apareceu, antes de tudo, um recado: de que tais ideias, mesmo antigas e produzidas em um verdadeiro mundo diferente do atual, ainda se aplicam à nossa realidade, ao nosso sistema e às nossas carências; mais: me pareceu um libelo do Hans Weingartner para que não se esqueça de que, concordemos ou não, nossa sociedade ainda se encontra com os mesmos problemas que já se insistiam em aparecer àqueles velhos barbudos de já distantes séculos que, ao analisarem a formação desse sistema, ofereciam uma alternativa à sua saída.
É um recado de como o sistema cresceu e continua se renovando, mas que nem por isso possa ser derrotado - mesmo que nas pequenas ações e naquela que é a maior das lutas: aquela de não largar as suas convicções, apesar de o mundo estar aparentemente girando numa direção contrária; mas que, plot twist, não está.
Os Carrascos Também Morrem
4.2 13Surpreende muito mais por expor, em boa parte de sua narrativa, várias cenas que referenciam a violência da polícia ocupacional e da Gestapo nazistas: o encarceramento de civis - colaboracionistas ou não -, os grampos telefônicos, a tentativa de controle do cotidiano, os massacres periódicos de indefesos - idosos, inclusive.
Como peça propagandística, "Os carrascos" do Fritz Lang se expõe de peito aberto: traz o nacionalismo e as mobilizações de uma resistência, checos no caso, que não desistem mesmo sob uma repressão criminosa; trazem os ocupadores alemães de forma caricata, enquanto inimigos impiedosos, sem pudor à morte e com estereótipos clássicos que se atribuem geralmente aos alemães - sotaque forte, aquele jeito de "médico maluco", gesticulações excessivas, rigorosos no trabalho -, e que muitas vezes não batem com os documentos e registros que se tem sobre alguns aqui retratados: o Reinhart Heindrich, por exemplo, não corresponde aquela peça ultra-estereotipada apresentado ali na primeira parte de "Carrascos".
É um filme interessante pra se ver também por esta ótica: datado de 1943, foi lançado nos EUA em um cenário que perdurará até ao fim da guerra, no qual os massacres nazistas - mesmo suas execuções rotineiras e gratuitas, como a do
prisioneiro do barracão que insiste em falar com o "superior" do nazi estacado ali à sua frente
Este, pra mim, é o maior destaque desse filme do Lang: expor uma construção cinematográfica da repressão violenta, à sua época, por parte dos nazistas nas regiões ocupadas pelo Reich na qual boa parte da opinião pública daquelas chamadas "nações livres" e "aliadas" não ousavam.
Neruda
3.5 81 Assista Agora"Me inventei sem vida, sozinho, sem amor. Mas o poeta me inventou furioso, cheio de vento.
Me escreveu até uma morte fabulosa; uma morte policial. Lenta, fria, com detalhes vermelhos;
O Chile de Pablo Larraín aqui é o Chile da Santiago de contornos modernos, arquiteturas arrojadas, que não dorme, não descansa; das festas imensas, das construções grandiosas, dos homens de um plenário político cujas discussões estendem-se até ao banheiro, no qual parece mais urgente discutir os elogios, absurdos em suas velhas opiniões, aos "vermelhos soviéticos", neste pós-guerra intenso, que primar pelas necessidades básicas do corpo humano. É também o Chile de uma Valparaíso, costeira, com ares modestos e irreconhecível aos olhos de hoje, e também é um Chile das grandes cordilheiras, com suas estradas amedrontadoras, que em seguida dão espaço aos longos e retos pampas.
É o país dos contrastes, no qual um filho de ferroviários torna-se escritor e burguês - desposa primeiro uma holandesa, depois uma "aristocrata" argentina de formação em Paris, frequenta cabarés de luxo e não tem a capacidade de limpar o quarto, as roupas ou o próprio banheiro - e faz sua a causa comunista, escrevendo àqueles operários e trabalhadores - que labutam em condições sub-humanas e que agora, por ordem de um decreto presidencial, enfrentam uma severa repressão política - e que acaba por alcançar um posto político de importância no cenário nacional; é também o país de um filhote de um "polícia" com uma prostituta, um bastardo, que crê trabalhar em prol da nação ao se meter numa jornada de perseguição ao comunista perigosíssimo que é um dos sujeitos mais populares do Chile, ali, e que é vendido como "traidor" nas ruas e nos cartazes, sendo uma ameaça a ser detida.
É um Chile, noir, um thriller quase sem ação que Larraín constrói aqui. De cenários no qual montagens, escritas, declamações, realidades, memórias do passado e leituras de romances misturam-se; o velho e o novo, as contradições dos que se dizem trabalhar em prol dos trabalhadores e se empanturram de champanhe em grandes orgias mascaradas ou à fantasia - e que são surpreendidos pelos relatos daqueles que vem verdadeiramente de baixo -, em contraponto com os que trabalham - ou acreditam trabalhar - em prol de uma nação que fez do "Império do Norte", os EUA, seu verdadeiro chefe.
Afinal, "o poeta tem a febre dos espíritos artísticos que pensam que o mundo é algo que imaginaram". A fantasia maluca de "Neruda" é uma prova disso; o mundo de Larraín, apesar de fruto da imaginação, traz por vezes elementos muito reais; por exemplo um elemento, sendo mais específico, brevemente apresentado, uma "raposa de olhos azuis" que futuramente acabaria por se impor, à força, numa reação absolutamente mais sanguinária e cruel que a perpetrada por Gonzáles Videla nesta segunda metade da década de 1940.
Mas aqui o que reina ainda é essa longa caçada, por espaços - e pessoas - tão diferentes, que deram contornos, nas folhas de papel e agora no cinema, ao nosso tão contraditório continente.
O Ódio
4.2 314 Assista Agora"É a história de uma sociedade que cai e que repete, durante a queda, como para se conformar, até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem".
"O ódio" traz um cenário de relativa novidade ali pro cinema noventista: o cotidiano conturbado, atribulado, complexo, movido a (des)ilusões, ódio e não-esperança de uma periferia que, se aqui é parisiense, nos traz questões e características quase que, e infelizmente, universais; a falta de oportunidades - estudos, emprego, sonhos - num sistema econômico-social apodrecido e que acaba por costurar uma rede de relações humanas doente é o cenário sempre presente no background aqui, quase um personagem que consegue unir fisicamente no mesmo espaço pessoas de identidades tão diferentes: árabes, judeus, franceses, skinheads, bêbados - amigáveis, por vezes perigosos e fãs de roleta russa -, policiais, admiradores de arte, votantes do velho Le Pen, velhinhos pequenos bons de papo em banheiros públicos.
Os sonhos de boxeador, e as cautelas para com essa vida, do Hubert, os ódios de Vincent, o lidar - por parte de uma comunidade inteira - com a perda de um dos seus em um combate incessante e atemporal; os protestos urbanos, as "revoltas", tão comuns nos anos 1990 - Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Buenos Aires -, que opõe ironicamente na contenda "aqueles que protegem" - a polícia - contra os supostamente "protegidos", num campo de batalha desigual, por toda a construção histórica de ambos até aquela culminação.
"O mundo é seu", chegamos a ler em um dos cartazes, dessas propagandas imbecis que insistem em expor felicidade, espalhados pela grande Paris e que
metamorfoseado, pichado, vira realidade pelas mãos do Said: "O mundo é nosso".
Cinema Paradiso
4.5 1,4K Assista Agora"Totó... venha cá. [...] Agora me escute: comecei esse trabalho quando tinha 10 anos. Não tínhamos essas máquinas modernas. Filmes eram mudos, e você girava a máquina assim, como uma manivela; todo santo dia, e como era pesada essa maldita manivela. [...]
Não posso [ensinar o ofício], Totó; não é trabalho para você. Se trabalha como um escravo, sempre sozinho. Você sempre assiste os mesmos 100 filmes; termina conversando com Greta Garbo e Tyrone Power. Sempre trabalhando, todo feriado, Páscoa, Natal... menos a Sexta-feira Santa; e se eles não houvessem posto Jesus numa cruz, nós trabalharíamos aí também".
Sempre bom rever "Cinema Paradiso"; novas percepções sempre chegam, o que só provam o quão grande e digno o filme é. Não é apenas uma ode ao cinema: é como toda salinha de projeção, por minúscula, mal estruturada, o buraco que seja, ela sempre será relevante à alguém; mais que isso, é parte de uma paisagem citadina, de um espaço urbano e que, felizmente ou infelizmente, acompanha (ou não) o "desenvolvimento", o crescimento, destes espaços.
Quantos Paradiso não temos - ou melhor ainda, tivemos - em nosso país, estado ou cidade? Cada qual com seus personagens típicos, aqueles sujeitos que sempre estão por ali, colados no cinema: os bêbados, os mendigos, os lanterninhas, os padres, as crianças, os pais; dezenas, centenas, milhares de histórias pessoais, de dor e alegria, sofrimento ou prazer, que acabaram, e acabam, se misturando neste pequeno espaço que, muitas vezes depois de certo tempo, é esquecido, despachado, não levado em conta pelo poder estatal ou por aquela sociedade que se divertiu, se emocionou, cresceu ou, em suma, viveu as possibilidades daquele lugar.
Lugares que hoje estão abandonados, largados, ou foram demolidos para virarem um estacionamento como aqui; mas, e mais importante, nunca esquecidos - nem que seja por umas poucas pessoas, que ainda insistem em fazer presente ali na própria memória pessoal, tudo o que se passou e viveu - amores, risos, decepções, lágrimas - ali naqueles lugares.
Cinema Paradiso é uma aula, que excede o campo do cinema. Trata de algo que muitas vezes não temos tempo ou sensibilidade para pensarmos: a memória.
Uma História Real
4.2 298"Quando meus filhos eram pequenos, eu fazia uma brincadeira. Eu dava um graveto para cada, e dizia: 'agora quebrem'. Claro que eles quebravam fácil. Aí eu dizia: 'amarrem os gravetos num feixe e tentem quebrar'; claro que eles não conseguiam. E eu dizia que aquele feixe era a família".
O road-movie de septuagenário do David Lynch, em sua produção explicitamente mais "padrãozinha" ou "normal" - escolha o nome que quiser -, expõe as marcas e características já consolidadas de seu diretor.
É um casamento até difícil de imaginar, o de David com a Disney pra esta produção, mas "Uma história real" (uma escolha de tradução de nome até um tanto bizarra, e genial, se pararmos pra pensar no que é o filme e no que envolve) é marcante justamente pelos fatores envolvidos que deram origem ao produto final resultante. A velha trupe lynchiana certamente está presente aqui, como Everett McGill (o Ed do "Twin Peaks") e Harry Dean Stanton ( Johnnie Farragut, do "Coração Selvagem"), e até as técnicas de tomadas e cenas remetem a outros trabalhos do diretor: como não lembrarmos do já citado "Twin Peaks", ao viajarmos junto com Alvin pelas pequenas localidades estadunidenses - com suas tomadas aéreas, amplas, que privilegiam o natural e as estrelas, e que mostram as pequenas cidades já tomadas por técnicas e tecnologias modernas, com suas fábricas (e carrinhos cortadores de grama)? E como não ver o dedo do Lynch ali esfregado na nossa cara, quando nos deparamos com personagens insólitos e um tanto quanto inesperados em suas atitudes, seus cotidianos e suas ações, como a moça que tem de viajar todo dia a trabalho, ou de Rose e suas casas de passarinho?
"Uma história" também permeia a América que já foi, e por isso também serve como um pequeno documentário de história. Não menos importante por privilegiar as pequenas cidades e seus moradores um tanto quanto estranhos, mas relevante por mostrar como velhos passados, memórias que tentamos soterrar e antigas relações moldam muito do que somos. Aqui faço referência à cena de
Alvin e do idoso no bar, cada um resgatando sua memória, suas lembranças, da guerra. É impactante, e emocionante, as reminiscências do que, e como, foi o conflito ali para cada um - a revelação do tiro certeiro de Alvin em seu amigo Krotz, o "pequeno polonês" por exemplo.
Aqui Lynch acerta a mão em todas suas escolhas e em toda sua construção. Mesmo que, em minha opinião,
fique aquele gosto de "quero mais" por como é e se dê o final
Com suas escolhas e práticas de filmagem características, exploradas até então em filmes e obras experimentais ou "estranhas", como o "Eraserhead", "Twin Peaks" ou "Veludo Azul", "Uma história real" é a prova do quão grande o Lynch é - e o quanto acerta mesmo em uma produção lida enquanto mais "comercial" ou "padrão", num casamento entre diretor e grande marca que beira o tão inusitado quanto um roteiro lynchiano clássico.
O Quarto do Filho
3.8 162"Está tudo rachado, tudo estragado nessa casa; tudo riscado, riscado e quebrado"; é o desabafo de Giovanni, psicanalista, à sua esposa, Paola, logo após uma missa realizada em memória do falecido filho, Andrea. Na cerimônia o padre se vale, enquanto argumento, de uma passagem do livro de Matheus, capítulo 24 e versículo 43 - " se o dono da casa soubesse a que hora da noite o ladrão viria, ele ficaria de guarda e não deixaria que a sua casa fosse arrombada" -, para lembrar que o malandrão lá de cima tem seus momentos de intervenção - e que cabe a nós, terrenos, respeitá-los, mesmo que nos marquem, firam ou machuquem.
"O quarto do filho", como já comentaram abaixo, é um filme de e sobre o luto: seus pesares, dissabores, descaminhos. Tortuosos, já que nada do cotidiano de antes será o mesmo a partir de agora; uma luta, constante, com a memória e seus sentimentos - as lembranças, as dores e, aqui no caso de Giovanni,
de uma culpa, tão comum àqueles que se veem em situação semelhante após a perda de um parente. Tudo seria diferente se o pai acompanhasse o filho naquele domingo, na caminhada? Se o paciente não houvesse contatado Giovanni por telefone, Andrea estaria vivo? No fim vale o esforço em buscar respostas para todas estas situações, nas quais nos colocamos quando perdemos um ente próximo?
Aqui achei marcante a cena da missa - pelo argumento insensível, à maneira como foi posta e pela situação ali presente, do padre - e o arremedo com "By this River", música do Brian Eno, ali
na praia ensolarada. Um marco para um porvir mais feliz? Ou uma forma de aceitar a situação - e se aceita algo assim?
Apesar da narrativa - regular, ou seja, nada de extraordinário e sem reinventar o cinema que busca retratar ficções desta temática - "O quarto" entrega, de forma rápida, um bom produto final, daqueles que realmente nos fazem repensar e olhar com mais atenção o mundo - e as pessoas nele - ao nosso redor com mais atenção e afeto; uma Palma de Ouro à altura do histórico da premiação? Na minha opinião, se comparado aos demais filmes já agraciados em anos anteriores, a premiação parece demais pro "Quarto".
Mas imagino que o Moretti certamente não estabeleceu enquanto prioridade tal premiação e se ela veio, bem, que dane-se o histórico.
Uma Forma de Assassinato
2.6 37 Assista AgoraÉ quase como se uma literatura pulp noir, daquelas baratas de fanzine, recebesse uma premiação - aquelas bem cafona, que existiam antes - na qual o sujeito agraciado teria seu conto ou romance adaptado por um elenco de estrelas pra uma novela ou minissérie que passaria naqueles horários obscuros da madrugada.
A diferença é que aqui o agraciado teve o privilégio de ser adaptado pro cinema e, repito, com um elenco interessante. Pena que "Uma forma de assassinato" é o clichê de um folhetim policial estadunidense que faz daqueles meados do século XX o cenário àquelas estórias bem escabrosas; clichê ao cubo, por sinal.
O problema é que a narrativa, infelizmente, não empolga - e dá aquela sensação, já com uns vinte minutos de filme, de "já vi isso antes, e pra caralho"; alguns errinhos técnicos bobos também doem quando se assiste, como
quando o Walter vai pela primeira vez no bar da Ellie e vê-se, na cena, que neva - em CGI, mas neva. Mas aparentemente as roupas e a pele do Walter repelem o fruto da pequena nevasca, e nem ao menos um floco gruda na roupa do sujeito.
Algumas atuações também são ridículas. O Vincent Kartheiser interpretando o Corby beira o risível, e Walter não teria como ficar mais sem sal com aquela aparente frieza do Patrick Wilson.
O final, pelo menos, é interessante e pode dar um debate legal. Minha interpretação é a de que
o Walter não assassinou a esposa - apesar de suas mentiras constantes à todos -; se aquilo que vemos em sua perseguição ao ônibus é o que realmente ocorreu, o arquiteto mais estranho da cidade realmente não teria como ter matado a mulher se nem ao menos a encontrava. Aquele sorriso. na cena final, poderia ser um indício plástico e externo de uma mente doentia e escrota que, por egoísmo puro, dificultou o trabalho da polícia e pôs a vida de diversas pessoas em risco para um objetivo no mínimo tosco?
Rashomon
4.4 301 Assista Agora"São histórias [de horror, brutalidade] comuns nestes dias; ouvi dizer que o demônio vive aqui em Rashomon, fugindo com medo da ferocidade do homem".
Kurosawa não hesita em brincar, com o telespectador, com algo tão cotidiano que por vezes se passa despercebido - em relatos, filmes, testemunhos, notícias, depoimentos, romances, declarações, histórias, a História; o que é, afinal, a verdade? Ou melhor, existe alguma maneira de apurar o "fato" da maneira em que realmente ocorreu?
As versões oferecidas aqui não tratam o espectador enquanto o inocente nessa partida; afinal, nos depoimentos,
somos nós os ouvintes dos relatos. As tomadas das testemunhas voltam-se diretamente à gente, e cabe a nós, ou não, reconstituir o que ocorreu naquela mata fechada e que envolve sujeitos tão pitorescos quanto um bandido famoso, uma esposa aparentemente infeliz com o casamento, um sujeito honesto e até um religioso.
A construção da narrativa, neste objetivo proposto, é especialmente admirável por parte do Kurosawa: as amarras são bem apertadas, e nenhuma ponta escapa. O final, em especial a última cena, nos alerta para o resultado da "brincadeira":
o que aconteceu simplesmente aconteceu, e não somos passíveis de escrever, refletir ou representar aquela realidade tal como foi;
Afinal, "é humano mentir, e na maior parte do tempo não somos honestos nem consigo mesmo". E ah,
sempre suspeitemos daquele que diz que "viu" a verdade, a forma como realmente ocorreu, aquele que quer passar uma forma de honestidade à todo custo.
A Infância de Um Líder
3.1 59 Assista Agora"Não pode deixar uma criança comandar a casa",
"A infância de um líder" pareceu querer, na minha perspectiva, seguir os exemplos da "Fita Branca" do Haneke, lançado alguns anos antes; se na "Fita" vemos o cotidiano de um irrelevante vilarejo alemão de século XIX que expõe, por meio de seu cotidiano - e aqui leia-se a repressão de uma religião reformista, a presença mais que sentida de um Estado recém-nascido e com indícios explícitos de militarismo, além de uma crença demasiada nas "ciências" e suas projeções de "progresso", "civilização" e "futuro" -, aquilo que seria a gênese, as sementes, do pensamento nazista, "Infância" opta por uma pegada inusitada e diferente. E que o Brady Corbert, infelizmente, não conseguiu acertar na mão em minha opinião.
Tecnicamente, o resultado final que é entregue é bem elogiável. Uma tensão é criada e paira o filme com a presença de uma trilha sonora que preza por aquela sensação de "vai acontecer algo, e vai dar merda"; cenas, e algumas tomadas, são belíssimas: Ada e Prescott pelo campo, e o breve passei do birrentinho com a mãe pelas ruas da pequena cidade francesa também são lindíssimas. Menção mais que especial também pela maneira com que Corbert brinca, com a "Abertura" e sua "Parte Três", respectivamente,
com as imagens do conflito que assombrou o mundo no século do século XX e as comemorações pela paz em 1918 - e com os figurões que amarraram o ridículo Tratado de Versalhes, que arrastariam o mundo à uma nova guerra mundial pouco mais de trinta anos depois -
O problema de "Infância", pra mim, é de certo modo não saber se decidir pelo que abordar e, por isso, não saber o que dizer. A leitura imediata que fazemos do filme é: quer dizer então que uma criança mimada - e que no meu ver pagou uma atuação estupidamente caricata, cheia de "carão", claramente à mando do diretor - rica,
em um ambiente cercado de certa repressão familiar, mas ao mesmo tempo por permissividades da mãe, é basicamente um indício de uma sociedade - ou um líder! - autoritário?
E qual a necessidade daquela parte derradeira, pobre, que parece trabalho de estudante pra se entregar no prazo?
Referência aos fascismos, ao stalinismo, às diversas ditaduras militares e governos repressores que surgiram ao longo de todo o século XX, e que ainda insistem na reconquista de espaço público atualmente, pensando à nível de Brasil?
Meu ponto é que "Infância" mira uma crítica maior, chegando até a acertar o alvo em alguns momentos, mas peca no disparo; em um cinema que dialogue com tais situações, ainda prefiro ficar com os bons exemplos como "Fita Branca" que, apesar de não ser seu maior fã, devemos reconhecer que Haneke, ali, soube delimitar seu lugar, sua proposta, seu conteúdo e, além disso tudo, entregar isso de maneira bem fechado ao público. Pena que aqui "Infância" prometeu, criou e ficou cercada de expectativas, mas não soube alcançar aquilo que se esperou.
Agenda Secreta
3.5 7"Pensei na minha terra ao longo destes dias, por que meu país estava dividido;
por que eu estava no cárcere, preso sem crime ou julgamento; e agora eu amo meu país, não sou um ressentido;
eu vi crueldade e injustiça com meus próprios olhos, e então numa manhã fatídica apertei a mão da liberdade;
para o bem ou para o mal tentei libertar a minha terra; e você ousa me chamar de terrorista enquanto me aponta o seu fuzil"
É o que cantam dois sujeitos irlandeses em um abarrotado e espremido "clube republicano" de Belfast, regados a muita conversa e cerveja; a cena, em espaço fechado, trata de como o nacionalismo irlandês sobreviveu (e ainda sobrevive) nas margens do poder britânico; de tudo se tenta para angariar causa e fundos: desde estratégias de nomes para instituições - e com o cuidado de escapar de qualquer identificação com o IRA e não sofrer uma violência policial (maior) por associações com o grupo extremista - até a venda de "ingressos de futebol" que, na verdade, vão para os cofres destas pequenas instituições que sobrevivem e brigam, seja nos espaços públicos e legitimados como palanques públicos, panfletos e declarações, seja naqueles de luta armada, de guerrilha nos campos e cidades, pela autonomia "irish".
"Agenda Secreta" me pareceu um interessante filme por parte do Ken Loach contra o imperialismo britânico que luta por fazer-se presente sobre as demais ilhas "forçadas" à se juntarem (curvarem é o termo mais exato) perante o trono real inglês; "1169", a data marcante, arraigada na memória até da gente comum, dos de baixo, do início das lutas contra a presença britânica em território irlandês: "800 anos, [...] é o tempo que temos lutado pela independência", diz
Molloy, motorista do carro que guiava o advogado estadunidense, e libertário-progressista, Paul Sullivan ao encontro de uma "fonte quente". Ambos brutalmente assassinados numa tramoia policial das forças de poder, típicas de uma repressão imperialista.
Infelizmente o filme de Loach pecou pra mim em alguns aspectos, que se fazem sentir no decorrer da narrativa: não é meio evidente que
mesmo numa situação de verossimilhança para com a realidade e com o que ocorreu, seria impensável as forças policiais inglesas enviarem um sujeito como Peter Kerrigan - sujeito crítico e que constrói uma imagem de si como um homem acima de partidarismos e lados políticos, um verdadeiro servente do Estado, como o mesmo se define?
"Belfast me lembra o Chile", chega a dizer Ingrid Jessner; "me dá essa sensação", complementa em resposta à oposição feita a pouco por Paul. "Assassinatos, tortura, intriga", comenta. A resposta de Paul, entretanto, é a mais eurocêntrica possível: "seja realista, o que aconteceu no Chile não pode acontecer aqui".
Eurocêntrica e, tal como muitas ramificações desse tipo de pensamento provariam-se, errada. O entrevero inglês com a Irlanda - e ilegalidades cometidas por ambos os lados da contenda -, os ataques do ETA e as relações do País Basco com a Espanha e a França. A Guerra da Bósnia, e o massacre étnico nos Bálcãs. Provas de que demandas e ações imperialistas causam reações tão chocantes, bárbaras e desnecessárias quanto às da América, África ou Ásia.