É uma França desconhecida e desaparecida que Agnès Varda e JR, protagonistas absolutos deste ensaio íntimo, social e melancólico, percorrem e imprimem com a filmadora e a câmera fotográfica. Uma mistura poética entre cinema e vida, algo constante na poética de uma cineasta que vai além do cinema e encarna o cinema em si, em primeira pessoa.
Uma reflexão sobre a dificuldade de agir de acordo com os próprios valores personificada na pele de um indivíduo em uma condição social privilegiada que tende a adiar o acerto de contas com aqueles que não pertencem ao seu meio. Mas, sendo o filme em si uma obra de arte contemporânea, The Square é também um filme aberto a interpretações, e esta talvez seja sua característica mais interessante.
Desde suas origens pergunta-se qual a função do teatro, e a resposta muda a cada época e de acordo com a sociedade. Yorgos retoma a questão utilizando-se de um meio diverso, o cinema, mas rendendo-se ao classicismo mais puro, o da chamada Oresteia, com a qual Ésquilo venceu o prêmio mais importante nas Festas Dionisíacas em 458 A.C. Tudo através de um método original que provavelmente agradaria muito a Pirandello…
O fragmento capturado e congelado no tempo pela fotografia entra em harmonia com uma narrativa que se torna fluida através da montagem. As imagens surgem, uma após a outra, como fotogramas que devidamente retomam seu status de imagens fixas. Uma viagem no tempo, um mosaico fascinante capaz de mudar de aspecto com a velocidade de um clique.
A consciência de que o tempo da arte transcende o tempo dos seres humanos uniu Jaujard e Metternich. Mas através da história extraordinária da conservação dos tesouros do Louvre, escondidos em castelos e salvos da invasão nazista, Sokurov compõe, na verdade, um requiem ao que foi perdido para sempre.
A Antigona de Os Canibais é voluntariamente inspirada na obra de Anouilh e de Brecht, ambas releituras de tragédia grega de Sófocles. Sem entrar no aspecto comparativo entre os três textos e o filme em si, é útil recordar como a Antigona de Cavani é em parte próxima da de Brecht. A convergência mais evidente entre Os Canibais e o texto do dramaturgo alemão está no fato deste último inspirar o contraste ente o indivíduo e o Estado, entre a lei moral e a lei do Estado, entre o espaço privado e espaço público, assim como na falta de qualquer espécie de dialética entre os dois hemisférios. Sem contar a caracterização das personagens, tão extrema a ponto de suas posições fixas parecem romper a divisão entre o bem e o mal, de modo que as protagonistas tornam-se personagens de exceção, fazendo com que o espectador não perceba o distanciamento.
Um filme que partiu de um projeto sobre a Marilyn, mas que se tornou uma composição visual/sonora multinivelada carregada de significados graças às inserções de trechos falados, imagens e faixas musicais centradas no refrão de árias líricas e montadas sempre de uma forma diversa com a intenção de fazer referência às cenas precedentes na memória de quem assiste. Já os efeitos bem peculiares de distanciamento causam um desvio total na reformulação das três protagonistas e suas histórias (há quem diga que o filme inspirou 3 Women do Robert Altman). Mas o fato é que para o Schroeter o cinema sempre foi como "música para os olhos", e ele bem conhecia a história do cinema abstrato nascido na Berlin dos anos 1920.
No Café de Fassbinder os personagens são fúteis, cínicos e impregnados por qualificações venais de mercado: há os que podem comprar e os que podem somente vender a si mesmos. As especulações e as filantropias ambíguas parecem ter alguma semelhança com Lux in Tenebris de Brecht, mas aqui aflora propositadamente o kitsch. Lentíssimo, o filme parece produzido por uma mente entorpecida - as intervenções dos personagens ocorrem sem uma solução de continuidade e com uma variação infinita de gestos. Fassbinder cita filmes seus, de Straub e sintoniza-se com Gary Cooper e Bruno Ganz. Esta releitura da obra-prima do teatro italiano de Goldoni dotada de uma atmosfera triste e sombria (mas sem trair seu contexto original), evidencia através dos pequenos males desta pequena sociedade os grandes males da grande sociedade.
A Grécia clássica com sua tradição mitológica constitui para Pasolini um momento fundamental: a imagem proposta por ele é a imagem de uma Grécia primitiva, bárbara, manifestando sua clara rejeição a qualquer idealização neoclássica. Não se trata da pátria do equilíbrio, da serenidade, da racionalidade, e sim das grandes pulsões instintivas. Partindo deste ponto de vista, Pasolini coloca-se em uma linha de renovação dos estudos clássicos que partem de Nietzsche e no século XX galgaram importantes resultados graças à contribuição de disciplinas como a antropologia e a psicanálise, colocando assim em evidência os aspectos mais obscuros e primitivos da civilização grega. O mito antigo, em particular veiculado com as teses dos tragediógrafos, cumpre a função principal de polarizar as tensões e conflitos, colocando-se como um molde de comparação ideal para o presente. Desta forma, o mito tende a assumir um sentido que vai além dos valores da razão e da História.
Ápice da obra de um diretor talentoso, e ao mesmo tempo rigoroso, Hamlet consumiu oito anos de intenso trabalho para ser concluído, principalmente devido ao roteiro, mas também à longa preparação dos atores. O desafio lançado pelo cinema soviético no terreno e um dos pilares da literatura ocidental contou também com uma gama vastíssima de recursos. Hamlet de Kozintsev é um filme que não trai as origens teatrais shakespearianas, contudo desfruta plenamente das peculiaridades do cinema.
Existem diversas cenas de forte impacto emotivo bem distribuídas ao longo do percurso, como a clássica aparição do espírito do pai de Hamlet, o espetáculo através do qual Hamelt denuncia o crime cometido por seu tio, a loucura de Ofélia e o duelo final. Smoktunovsky representa um Hamlet que transfigura a solenidade do texto (traduzido por Boris Pasternak) através de uma bem equilibrada e somente aparente aleatoriedade de comportamentos, assemelhando-se de certa forma a André Dussollier e Oleg Tabakov no papel de Oblomov.
No campo formal, muito se fala sobre uma afinidade estilística com "Ivan, o Terrível" de Sergei Eisenstein, entretanto Kozintzev privilegia amplamente os planos gerais, reservando os primeiros planos quase exclusivamente para Hamlet. A música de Dmitri Shostakovich também oferece uma contribuição determinante, trata-se evidentemente de uma música escrita para o filme em colaboração com o diretor, colaboração estendida a outras quatro obras.
Peter Greenaway/Sergei Eisenstein. Uma combinação que cedo ou tarde deveria transformar-se em cinema. Um cinema não mais escravo de uma narrativa prosaica, em compasso e em contínuo movimento com o sério propósito de desenrolar-se como a imaginação dos seres humanos, produzindo associações entre passado, presente e futuro, velho e novo - como o Cubismo - que tanto influenciou a vanguarda contemporânea russa na pintura. Este filme, através de uma infinidade de imagens e soluções de montagem oferecidas por Greenaway, apresenta-se portanto como o fruto de um profundo amadurecimento do pensamento de Eisenstein como artista e como ser humano. Um indivíduo que teme a própria sexualidade, sendo incapaz de fixá-la no próprio íntimo como é capaz de dar forma a tudo aquilo que seu olho capta da realidade e transforma em arte.
Como afirmava Hermann Hesse: "A alegria e o sofrimento são inseparáveis como compassos diferentes da mesma música". Nestes dez dias mexicanos Eisenstein aprenderá está lição, enquanto prepara quilômetros de película para um filme que jamais verá a luz de um projetor. Assim como sua sexualidade, mascarada por dois matrimônios nunca consumados em uma Rússia que, como nos dias de hoje, faz da homofobia sua bandeira.
Rembrandt's J'Accuse...! é uma espécie de metadocumentário spin-off ligado ao filme precedente Nightwatching, e o próprio Greenaway traça o fio condutor para desvendar uma verdadeira investigação que visa decodificar os muitos mistérios contidos no quadro mais famoso do pintor holandês: A Ronda Noturna. Sua hipertextualidade cartesiana, lógica, numérica e linguisticamente claríssima, permite ao filme ser articulado segundo um percurso em etapas e enumerações que levam a uma visão geral dos vários aspectos obscuros do quadro. Há até mesmo uma arma de fogo no centro da complexa composição da pintura, e Greenaway concede ao espectador também o privilégio de ouvir o estrondo da explosão. Um resquício de audiovisão na estrutura cromática de um quadro.
Notre musique não começa: deflagra, supera os próprios limites naturais com imagens brilhantes e sangrentas. Uma voz infantil e um piano martelado nos guiam através de uma orgia audiovisual em que fragmentos heterogêneos (arquivos, reportagens, filmes de guerra, ficção científica) compõem uma torrente frenética de imagens: seres humanos, unidos pela violência, rejeitam qualquer tentativa de diálogo. Um furacão de barbárie destrói o planeta. Assassinato em massa, genocídio, represálias (acompanhados por referências bíblicas): a morte configura-se com o único modo de sobrevivência (ainda) possível - lampejos, momentos de escuridão total em que os olhos permanecem abertos à espera do pior.
A lucidez com a qual Godard reflete sobre a própria obra no momento exato de sua criação (os indícios metalinguísticos, as citações, as meticulosas interpretações) são a chamas de pura luz em uma tela nua. Transparente, infinitamente estratificado e maravilhosamente simples, o filme de Godard é, acima de tudo, o contentamento absoluto dos sentidos: das Colunas de Hércules do texto, surge um intangível e habitual oceano de imagens.
Hannah Arendt entende que está de frente à mediocridade, à nulidade, a um ninguém. Eichmann é incapaz de dialogar com a própria consciência, da qual ele mesmo admite estar "dissociado". Em sua corajosa reportagem, Hannah Arendt fala do Holocausto com termos inéditos, revolucionários e utiliza uma nova linguagem que soará escandalosa e indecente. Mas mostrar a falta de consciência dos autores do mal não significa de forma alguma justificá-los. Compreender não significa perdoar. Através da descrição deste homem, a jornalista e filósofa (des)constrói a essência do mal, revelando sua natureza essencialmente banal: o mal não é monstruoso e demoníaco, pois por trás ele não há nada, não há nenhuma profundidade sob a superfície. O mal não pode ser radical, mas somente extremo e absoluto. O mal é absoluto pois não pode ser traçado pela mistura humana, por trás dele não há o "logos", não há a razão de ser, não há a pessoa, mas a total negação desta. O mal é executado por aqueles "inconscientes voluntários": pessoas que se recusam a pensar, que se recusam a serem pessoas. O mal coincide com a ausência do pensamento, com a negação a existência. Eichmann é a incarnação da absoluta banalidade do mal, enquanto privado de pensamento, de alma e de existência.
Les Enfants du Paradis é um filme pleno de direitos na história do cinema por diversas razões. Marcel Carné e Jacques Prévert trabalham mais juntos nesta obra, após sete outras colaborações, constituindo efetivamente uma parceria inigualável. A ideia nasceu de uma entrevista com Jean-Louis Barrault, o qual lhes revelou episódios sobre a vida de um famoso mímico: Jean-Baptiste Debureau. Os dois autores, sob a estreita supervisão do regime colaboracionista de Vichy, enxergam então um possível tema, que se estende ao teatro, como forma de burlar a censura que proibia qualquer referência à realidade social contemporânea.
O filme foi dirigido entre julho de 1943 e agosto de 1944 e terminado em janeiro de 1945. Na leitura de Carné e Prévert, os episódios da vida do grande mímico são inseridos em um grande afresco de um teatro popular do século XIX que havia no Boulevard du Temple (rebatizado na época de "boulevard du crime" devido as histórias de crimes e bandidos que davam fama ao local). Uma grande oportunidade para construir um plano duplo de leitura, com o mundo visto shakesperianamente como um grande palco no qual há o público que atua e os atores que representam. Apesar das dificuldades no decorrer das filmagens e o risco de espiões nazistas infiltrados na trupe, o filme conseguiu evocar o cinema ligado à literatura que havia feito tanto sucesso nos anos 1920 na França.
A ênfase no caráter de Debureau, com sua entrada em cena de Pierrot Lunaire, evidencia muito bem a combinação entre cinema e poesia, transformando a obra em um grito de liberdade em contestação às limitações de um presente feito de morte e opressão.
Tsai Ming-Liang percorre o Louvre com seu olhar paciente, dentro, fora, em frente, atrás. Mas filmar em um museu significa recriar em um universo já criado. É como movimentar-se em um cemitério, que contém e preserva a beleza dos gestos já realizados, as cinzas do tempo, a descrença da morte. O próprio cinema é um cemitério, e Ming-Liang constrói um altar para a própria mãe, morta durante as filmagens, assim como a mãe do diretor fictício. A vida e o filme se cruzam infinitamente se espelham por breves instantes. Uma imagem refletida nunca é uma coincidência.
O aprofundamento psicológico dos personagens é acompanhado de uma apurada percepção plástica das imagens. O filme trata de demônios que sucessivamente seriam também interpretados por Ken Russell de uma forma mais politizada, enquanto Kawalerowicz o faz como uma representação sacra. Na intenção do diretor e seu roteirista, a história sugere um protesto contra o obscurantismo que reprime o desejo sexual, criando os tabus sociais e o isolamento do mundo.
Cézanne é um filme que funciona como um segundo texto, como texto que se produz a partir de outros textos antecedentes (cinema, pintura, literatura). Assim, a obra ativa uma dupla intertextualidade: uma interna (o filme dialoga com o cinema) e outra externa (o filme dialoga com o texto de Gasquet e com as fotografias e a pintura de Cézanne). Os materiais utilizados em cena conservam sua autonomia e são justapostos em uma série associativa que os separa de seu conjunto cultural original. Este procedimento produz um complexo de elementos de interferência que lembra muito o "figural" de Jean-François Lyotard, ou seja, uma forma que se coloca fora da representação tradicional. Cézanne dizia a Gasquet que ninguém nunca havia observado a montanha que ele pintara na Provença, a Sainte-Victoire: os habitantes locais tinham visto a montanha e conheciam todos os seus detalhes, mas nunca a haviam observado. Cézanne fala de "ver" e "observar'' como dois modos diferentes de relacionar-se com o objeto: um visando o reconhecimento, e o outro, aberto à visão. Straub e Huillet recuperam, através da revitalização do cinema-documento de Lumière, o mistério da imagem, assim como Cézanne dá visibilidade aos aspectos desconhecidos dos objetos. Consequentemente, o filme assume uma série de problemáticas epistemológicas relacionadas à capacidade de dar sentido às coisas e ao mundo que se relacionam diretamente com a pintura: Cézanne reelabora questões que a pintura elegeu como problemas fundamentais.
Entre naufrágios de um tempo passado, seres humanos lentamente perdem tudo devido ao Estado, do qual deveriam ser parte fundamental, o Estado que deveria garantir-lhes a liberdade. Embora claramente inspirado na história de Jó, o verdadeiro Leviatã não é o bíblico, mas no de Hobbes. E não à toa, com um certo rigor e uma clareza expositiva, Zvyagintsev reúne em uma mesa os três poderes e, didaticamente, coloca o Executivo como o poderoso de todos
(a clássica fotografia de Puttin na parede do gabinete do prefeito não deixa dúvidas)
, de braços dados com o "poder" eclesiástico. Com um raro equilíbrio, o sofrimento e tortura dos protagonistas são colocados não como uma espécie de sadismo do autor, mas como a único caminho para os que ousam enfrentar o Poder. A igreja não traz conforto e nenhuma das incríveis paisagens desoladas que marcam o filme parecem intuir a presença de algo superior que regule tudo, somente o silêncio do vento e o vazio dos indivíduos massacrados por um demônio muito mais cruel e real que o bíblico.
Uma obra definida como um filme-retrato, no qual os enquadramentos, prevalentemente fixos, capturam as expressões e os olhares dos protagonistas que, em alguns momentos, voltam-se diretamente para a câmera, quase interrogando-a. O rosto silencioso de Jean Seberg é mostrado por Garrel como uma tela porosa, cuja superfície quase transparente reflete as imperfeições e a granulosidade da película, acentuando sua materialidade e, portanto, sua finitude. O silêncio transfere a atenção do espectador para a expressividade dos rostos filmados, com todas suas particularidades e, em geral, para os elementos plásticos da imagem. A ausência total de som é acentuada ulteriormente pelos movimentos das bocas, que pronunciam palavras impossíveis de serem ouvidas, mas somente intuídas através da leitura labial. Garrel coloca literalmente em cena a representação do silêncio como dimensão constitutiva da imagem e do próprio cinema em uma de suas obras experimentais mais bem-sucedidas.
Releitura muito peculiar de "Orlando", romance de Virginia Woolf, em que Ulrike Ottinger coloca em cena uma espécie de história do mundo, desde suas origens até os dias atuais, sem se esquecer dos aspectos mais sombrios da evolução - os erros, a incompetência, a sede pelo poder, o medo, a loucura e a crueldade humana.
Terceiro longa-metragem de Kieslowski que conjuga com eficácia uma reflexão sobre o ofício de fazer cinema com uma ácida e satírica crítica à censura ideológica de seu país. Para o diretor polonês, a câmera representa um espaço/tempo/verdade capturado e bloqueado, propenso à repetição e à necessidade do ser humano de poder viver e reviver as situações, sejam elas agradáveis ou desagradáveis. A câmera é, portanto, uma extensão e um melhoramento da memória e dos sentimentos, como no conceito de Dziga Vertov e o Cine-Olho. Mas Kieslowski, de certa forma, vai em frente e supera esse conceito experimental, imortalizando a câmera em si mesmo, no ser humano e no cineasta, e aquele que procurava ver através dos olhos, agora é capaz de ver a si mesmo nos olhos. Passa-se de um conceito de exterioridade para um conceito de interioridade, pois nossa exterioridade existe devido a nossa interioridade (neste caso, o olho é o elemento interno que se projeta para o exterior). Assim, a câmera torna-se não apenas um espelho, mas um espelho através do qual pode-se rever, reviver e até mesmo renascer. Mas a câmera representa também uma impossibilidade de poder mudar, pois os gestos e as palavras se repetem e, desta forma, não existe a liberdade nem a possibilidade de dinamismo das ações, como em um círculo kantiano do qual não se pode sair uma vez em seu interior.
Para transpor para o cinema a tragédia inacabada de Fridrich Hölderlin, Huillet e Straub adotaram um estilo único, particular e digno do material tratado. Filmado totalmente na Sicilia (dois sets, planos fixos e montagem escultórica), A Morte de Empédocles possui como principal objetivo o de transmitir a força da profundidade das palavras do poeta e dramaturgo alemão: a própria encenação é reduzida ao mínimo, as palavras são recitadas de acordo com a divisão da métrica na poesia e cada emoção é transmitida exclusivamente pelo que é dito, não por como ou quem a transmite. O filme todo é construído através de um diálogo entre o filósofo de Agrigento e a Natureza, vista como Absoluto, como o Todo, como o elemento que somente os mais sábios são capazes de alcançar no ápice de suas vidas, mas que a Cultura, a Religião e todas as instituições "mediadoras" tentam afastar dos mais sensatos.
Visages, Villages
4.4 160 Assista AgoraÉ uma França desconhecida e desaparecida que Agnès Varda e JR, protagonistas absolutos deste ensaio íntimo, social e melancólico, percorrem e imprimem com a filmadora e a câmera fotográfica. Uma mistura poética entre cinema e vida, algo constante na poética de uma cineasta que vai além do cinema e encarna o cinema em si, em primeira pessoa.
The Square - A Arte da Discórdia
3.6 317 Assista AgoraUma reflexão sobre a dificuldade de agir de acordo com os próprios valores personificada na pele de um indivíduo em uma condição social privilegiada que tende a adiar o acerto de contas com aqueles que não pertencem ao seu meio. Mas, sendo o filme em si uma obra de arte contemporânea, The Square é também um filme aberto a interpretações, e esta talvez seja sua característica mais interessante.
Interrupção
3.6 10Desde suas origens pergunta-se qual a função do teatro, e a resposta muda a cada época e de acordo com a sociedade. Yorgos retoma a questão utilizando-se de um meio diverso, o cinema, mas rendendo-se ao classicismo mais puro, o da chamada Oresteia, com a qual Ésquilo venceu o prêmio mais importante nas Festas Dionisíacas em 458 A.C. Tudo através de um método original que provavelmente agradaria muito a Pirandello…
Ascent
4.0 1O fragmento capturado e congelado no tempo pela fotografia entra em harmonia com uma narrativa que se torna fluida através da montagem. As imagens surgem, uma após a outra, como fotogramas que devidamente retomam seu status de imagens fixas. Uma viagem no tempo, um mosaico fascinante capaz de mudar de aspecto com a velocidade de um clique.
Francofonia – Louvre Sob Ocupação
3.7 37 Assista AgoraA consciência de que o tempo da arte transcende o tempo dos seres humanos uniu Jaujard e Metternich. Mas através da história extraordinária da conservação dos tesouros do Louvre, escondidos em castelos e salvos da invasão nazista, Sokurov compõe, na verdade, um requiem ao que foi perdido para sempre.
Os Canibais
3.5 6A Antigona de Os Canibais é voluntariamente inspirada na obra de Anouilh e de Brecht, ambas releituras de tragédia grega de Sófocles. Sem entrar no aspecto comparativo entre os três textos e o filme em si, é útil recordar como a Antigona de Cavani é em parte próxima da de Brecht. A convergência mais evidente entre Os Canibais e o texto do dramaturgo alemão está no fato deste último inspirar o contraste ente o indivíduo e o Estado, entre a lei moral e a lei do Estado, entre o espaço privado e espaço público, assim como na falta de qualquer espécie de dialética entre os dois hemisférios. Sem contar a caracterização das personagens, tão extrema a ponto de suas posições fixas parecem romper a divisão entre o bem e o mal, de modo que as protagonistas tornam-se personagens de exceção, fazendo com que o espectador não perceba o distanciamento.
Willow Springs
3.9 6Um filme que partiu de um projeto sobre a Marilyn, mas que se tornou uma composição visual/sonora multinivelada carregada de significados graças às inserções de trechos falados, imagens e faixas musicais centradas no refrão de árias líricas e montadas sempre de uma forma diversa com a intenção de fazer referência às cenas precedentes na memória de quem assiste. Já os efeitos bem peculiares de distanciamento causam um desvio total na reformulação das três protagonistas e suas histórias (há quem diga que o filme inspirou 3 Women do Robert Altman). Mas o fato é que para o Schroeter o cinema sempre foi como "música para os olhos", e ele bem conhecia a história do cinema abstrato nascido na Berlin dos anos 1920.
O Café
3.0 2No Café de Fassbinder os personagens são fúteis, cínicos e impregnados por qualificações venais de mercado: há os que podem comprar e os que podem somente vender a si mesmos. As especulações e as filantropias ambíguas parecem ter alguma semelhança com Lux in Tenebris de Brecht, mas aqui aflora propositadamente o kitsch. Lentíssimo, o filme parece produzido por uma mente entorpecida - as intervenções dos personagens ocorrem sem uma solução de continuidade e com uma variação infinita de gestos. Fassbinder cita filmes seus, de Straub e sintoniza-se com Gary Cooper e Bruno Ganz. Esta releitura da obra-prima do teatro italiano de Goldoni dotada de uma atmosfera triste e sombria (mas sem trair seu contexto original), evidencia através dos pequenos males desta pequena sociedade os grandes males da grande sociedade.
Notas Para Uma Oréstia Africana
4.0 4A Grécia clássica com sua tradição mitológica constitui para Pasolini um momento fundamental: a imagem proposta por ele é a imagem de uma Grécia primitiva, bárbara, manifestando sua clara rejeição a qualquer idealização neoclássica. Não se trata da pátria do equilíbrio, da serenidade, da racionalidade, e sim das grandes pulsões instintivas. Partindo deste ponto de vista, Pasolini coloca-se em uma linha de renovação dos estudos clássicos que partem de Nietzsche e no século XX galgaram importantes resultados graças à contribuição de disciplinas como a antropologia e a psicanálise, colocando assim em evidência os aspectos mais obscuros e primitivos da civilização grega. O mito antigo, em particular veiculado com as teses dos tragediógrafos, cumpre a função principal de polarizar as tensões e conflitos, colocando-se como um molde de comparação ideal para o presente. Desta forma, o mito tende a assumir um sentido que vai além dos valores da razão e da História.
Hamlet
4.4 10Ápice da obra de um diretor talentoso, e ao mesmo tempo rigoroso, Hamlet consumiu oito anos de intenso trabalho para ser concluído, principalmente devido ao roteiro, mas também à longa preparação dos atores. O desafio lançado pelo cinema soviético no terreno e um dos pilares da literatura ocidental contou também com uma gama vastíssima de recursos. Hamlet de Kozintsev é um filme que não trai as origens teatrais shakespearianas, contudo desfruta plenamente das peculiaridades do cinema.
Existem diversas cenas de forte impacto emotivo bem distribuídas ao longo do percurso, como a clássica aparição do espírito do pai de Hamlet, o espetáculo através do qual Hamelt denuncia o crime cometido por seu tio, a loucura de Ofélia e o duelo final. Smoktunovsky representa um Hamlet que transfigura a solenidade do texto (traduzido por Boris Pasternak) através de uma bem equilibrada e somente aparente aleatoriedade de comportamentos, assemelhando-se de certa forma a André Dussollier e Oleg Tabakov no papel de Oblomov.
No campo formal, muito se fala sobre uma afinidade estilística com "Ivan, o Terrível" de Sergei Eisenstein, entretanto Kozintzev privilegia amplamente os planos gerais, reservando os primeiros planos quase exclusivamente para Hamlet. A música de Dmitri Shostakovich também oferece uma contribuição determinante, trata-se evidentemente de uma música escrita para o filme em colaboração com o diretor, colaboração estendida a outras quatro obras.
youtu.be/0qtM04Glxyo
Que Viva Eisenstein! - 10 Dias que Abalaram o México
3.5 16Peter Greenaway/Sergei Eisenstein. Uma combinação que cedo ou tarde deveria transformar-se em cinema. Um cinema não mais escravo de uma narrativa prosaica, em compasso e em contínuo movimento com o sério propósito de desenrolar-se como a imaginação dos seres humanos, produzindo associações entre passado, presente e futuro, velho e novo - como o Cubismo - que tanto influenciou a vanguarda contemporânea russa na pintura. Este filme, através de uma infinidade de imagens e soluções de montagem oferecidas por Greenaway, apresenta-se portanto como o fruto de um profundo amadurecimento do pensamento de Eisenstein como artista e como ser humano. Um indivíduo que teme a própria sexualidade, sendo incapaz de fixá-la no próprio íntimo como é capaz de dar forma a tudo aquilo que seu olho capta da realidade e transforma em arte.
Como afirmava Hermann Hesse: "A alegria e o sofrimento são inseparáveis como compassos diferentes da mesma música". Nestes dez dias mexicanos Eisenstein aprenderá está lição, enquanto prepara quilômetros de película para um filme que jamais verá a luz de um projetor. Assim como sua sexualidade, mascarada por dois matrimônios nunca consumados em uma Rússia que, como nos dias de hoje, faz da homofobia sua bandeira.
Rembrandt's J'Accuse
4.1 1 Assista AgoraRembrandt's J'Accuse...! é uma espécie de metadocumentário spin-off ligado ao filme precedente Nightwatching, e o próprio Greenaway traça o fio condutor para desvendar uma verdadeira investigação que visa decodificar os muitos mistérios contidos no quadro mais famoso do pintor holandês: A Ronda Noturna. Sua hipertextualidade cartesiana, lógica, numérica e linguisticamente claríssima, permite ao filme ser articulado segundo um percurso em etapas e enumerações que levam a uma visão geral dos vários aspectos obscuros do quadro. Há até mesmo uma arma de fogo no centro da complexa composição da pintura, e Greenaway concede ao espectador também o privilégio de ouvir o estrondo da explosão. Um resquício de audiovisão na estrutura cromática de um quadro.
Nossa Música
3.8 35Notre musique não começa: deflagra, supera os próprios limites naturais com imagens brilhantes e sangrentas. Uma voz infantil e um piano martelado nos guiam através de uma orgia audiovisual em que fragmentos heterogêneos (arquivos, reportagens, filmes de guerra, ficção científica) compõem uma torrente frenética de imagens: seres humanos, unidos pela violência, rejeitam qualquer tentativa de diálogo. Um furacão de barbárie destrói o planeta. Assassinato em massa, genocídio, represálias (acompanhados por referências bíblicas): a morte configura-se com o único modo de sobrevivência (ainda) possível - lampejos, momentos de escuridão total em que os olhos permanecem abertos à espera do pior.
A lucidez com a qual Godard reflete sobre a própria obra no momento exato de sua criação (os indícios metalinguísticos, as citações, as meticulosas interpretações) são a chamas de pura luz em uma tela nua. Transparente, infinitamente estratificado e maravilhosamente simples, o filme de Godard é, acima de tudo, o contentamento absoluto dos sentidos: das Colunas de Hércules do texto, surge um intangível e habitual oceano de imagens.
Hannah Arendt - Ideias Que Chocaram o Mundo
4.0 196Hannah Arendt entende que está de frente à mediocridade, à nulidade, a um ninguém. Eichmann é incapaz de dialogar com a própria consciência, da qual ele mesmo admite estar "dissociado". Em sua corajosa reportagem, Hannah Arendt fala do Holocausto com termos inéditos, revolucionários e utiliza uma nova linguagem que soará escandalosa e indecente. Mas mostrar a falta de consciência dos autores do mal não significa de forma alguma justificá-los. Compreender não significa perdoar. Através da descrição deste homem, a jornalista e filósofa (des)constrói a essência do mal, revelando sua natureza essencialmente banal: o mal não é monstruoso e demoníaco, pois por trás ele não há nada, não há nenhuma profundidade sob a superfície. O mal não pode ser radical, mas somente extremo e absoluto. O mal é absoluto pois não pode ser traçado pela mistura humana, por trás dele não há o "logos", não há a razão de ser, não há a pessoa, mas a total negação desta. O mal é executado por aqueles "inconscientes voluntários": pessoas que se recusam a pensar, que se recusam a serem pessoas. O mal coincide com a ausência do pensamento, com a negação a existência. Eichmann é a incarnação da absoluta banalidade do mal, enquanto privado de pensamento, de alma e de existência.
O Boulevard do Crime
4.4 59 Assista AgoraLes Enfants du Paradis é um filme pleno de direitos na história do cinema por diversas razões. Marcel Carné e Jacques Prévert trabalham mais juntos nesta obra, após sete outras colaborações, constituindo efetivamente uma parceria inigualável. A ideia nasceu de uma entrevista com Jean-Louis Barrault, o qual lhes revelou episódios sobre a vida de um famoso mímico: Jean-Baptiste Debureau. Os dois autores, sob a estreita supervisão do regime colaboracionista de Vichy, enxergam então um possível tema, que se estende ao teatro, como forma de burlar a censura que proibia qualquer referência à realidade social contemporânea.
O filme foi dirigido entre julho de 1943 e agosto de 1944 e terminado em janeiro de 1945. Na leitura de Carné e Prévert, os episódios da vida do grande mímico são inseridos em um grande afresco de um teatro popular do século XIX que havia no Boulevard du Temple (rebatizado na época de "boulevard du crime" devido as histórias de crimes e bandidos que davam fama ao local). Uma grande oportunidade para construir um plano duplo de leitura, com o mundo visto shakesperianamente como um grande palco no qual há o público que atua e os atores que representam. Apesar das dificuldades no decorrer das filmagens e o risco de espiões nazistas infiltrados na trupe, o filme conseguiu evocar o cinema ligado à literatura que havia feito tanto sucesso nos anos 1920 na França.
A ênfase no caráter de Debureau, com sua entrada em cena de Pierrot Lunaire, evidencia muito bem a combinação entre cinema e poesia, transformando a obra em um grito de liberdade em contestação às limitações de um presente feito de morte e opressão.
Face
3.5 11Tsai Ming-Liang percorre o Louvre com seu olhar paciente, dentro, fora, em frente, atrás. Mas filmar em um museu significa recriar em um universo já criado. É como movimentar-se em um cemitério, que contém e preserva a beleza dos gestos já realizados, as cinzas do tempo, a descrença da morte. O próprio cinema é um cemitério, e Ming-Liang constrói um altar para a própria mãe, morta durante as filmagens, assim como a mãe do diretor fictício. A vida e o filme se cruzam infinitamente se espelham por breves instantes. Uma imagem refletida nunca é uma coincidência.
Madre Joana dos Anjos
4.0 54O aprofundamento psicológico dos personagens é acompanhado de uma apurada percepção plástica das imagens. O filme trata de demônios que sucessivamente seriam também interpretados por Ken Russell de uma forma mais politizada, enquanto Kawalerowicz o faz como uma representação sacra. Na intenção do diretor e seu roteirista, a história sugere um protesto contra o obscurantismo que reprime o desejo sexual, criando os tabus sociais e o isolamento do mundo.
Cézanne: Conversa com Joachim Gasquet
4.1 2Cézanne é um filme que funciona como um segundo texto, como texto que se produz a partir de outros textos antecedentes (cinema, pintura, literatura). Assim, a obra ativa uma dupla intertextualidade: uma interna (o filme dialoga com o cinema) e outra externa (o filme dialoga com o texto de Gasquet e com as fotografias e a pintura de Cézanne). Os materiais utilizados em cena conservam sua autonomia e são justapostos em uma série associativa que os separa de seu conjunto cultural original. Este procedimento produz um complexo de elementos de interferência que lembra muito o "figural" de Jean-François Lyotard, ou seja, uma forma que se coloca fora da representação tradicional. Cézanne dizia a Gasquet que ninguém nunca havia observado a montanha que ele pintara na Provença, a Sainte-Victoire: os habitantes locais tinham visto a montanha e conheciam todos os seus detalhes, mas nunca a haviam observado. Cézanne fala de "ver" e "observar'' como dois modos diferentes de relacionar-se com o objeto: um visando o reconhecimento, e o outro, aberto à visão. Straub e Huillet recuperam, através da revitalização do cinema-documento de Lumière, o mistério da imagem, assim como Cézanne dá visibilidade aos aspectos desconhecidos dos objetos. Consequentemente, o filme assume uma série de problemáticas epistemológicas relacionadas à capacidade de dar sentido às coisas e ao mundo que se relacionam diretamente com a pintura: Cézanne reelabora questões que a pintura elegeu como problemas fundamentais.
A Barriga do Arquiteto
3.6 18https://vimeo.com/121565296
Leviatã
3.8 299 Assista AgoraEntre naufrágios de um tempo passado, seres humanos lentamente perdem tudo devido ao Estado, do qual deveriam ser parte fundamental, o Estado que deveria garantir-lhes a liberdade. Embora claramente inspirado na história de Jó, o verdadeiro Leviatã não é o bíblico, mas no de Hobbes. E não à toa, com um certo rigor e uma clareza expositiva, Zvyagintsev reúne em uma mesa os três poderes e, didaticamente, coloca o Executivo como o poderoso de todos
(a clássica fotografia de Puttin na parede do gabinete do prefeito não deixa dúvidas)
, de braços dados com o "poder" eclesiástico. Com um raro equilíbrio, o sofrimento e tortura dos protagonistas são colocados não como uma espécie de sadismo do autor, mas como a único caminho para os que ousam enfrentar o Poder. A igreja não traz conforto e nenhuma das incríveis paisagens desoladas que marcam o filme parecem intuir a presença de algo superior que regule tudo, somente o silêncio do vento e o vazio dos indivíduos massacrados por um demônio muito mais cruel e real que o bíblico.
Altas Solidões
4.0 11Uma obra definida como um filme-retrato, no qual os enquadramentos, prevalentemente fixos, capturam as expressões e os olhares dos protagonistas que, em alguns momentos, voltam-se diretamente para a câmera, quase interrogando-a. O rosto silencioso de Jean Seberg é mostrado por Garrel como uma tela porosa, cuja superfície quase transparente reflete as imperfeições e a granulosidade da película, acentuando sua materialidade e, portanto, sua finitude. O silêncio transfere a atenção do espectador para a expressividade dos rostos filmados, com todas suas particularidades e, em geral, para os elementos plásticos da imagem. A ausência total de som é acentuada ulteriormente pelos movimentos das bocas, que pronunciam palavras impossíveis de serem ouvidas, mas somente intuídas através da leitura labial. Garrel coloca literalmente em cena a representação do silêncio como dimensão constitutiva da imagem e do próprio cinema em uma de suas obras experimentais mais bem-sucedidas.
Freak Orlando
3.9 8 Assista AgoraReleitura muito peculiar de "Orlando", romance de Virginia Woolf, em que Ulrike Ottinger coloca em cena uma espécie de história do mundo, desde suas origens até os dias atuais, sem se esquecer dos aspectos mais sombrios da evolução - os erros, a incompetência, a sede pelo poder, o medo, a loucura e a crueldade humana.
Cinemaníaco
4.2 43Terceiro longa-metragem de Kieslowski que conjuga com eficácia uma reflexão sobre o ofício de fazer cinema com uma ácida e satírica crítica à censura ideológica de seu país. Para o diretor polonês, a câmera representa um espaço/tempo/verdade capturado e bloqueado, propenso à repetição e à necessidade do ser humano de poder viver e reviver as situações, sejam elas agradáveis ou desagradáveis. A câmera é, portanto, uma extensão e um melhoramento da memória e dos sentimentos, como no conceito de Dziga Vertov e o Cine-Olho. Mas Kieslowski, de certa forma, vai em frente e supera esse conceito experimental, imortalizando a câmera em si mesmo, no ser humano e no cineasta, e aquele que procurava ver através dos olhos, agora é capaz de ver a si mesmo nos olhos. Passa-se de um conceito de exterioridade para um conceito de interioridade, pois nossa exterioridade existe devido a nossa interioridade (neste caso, o olho é o elemento interno que se projeta para o exterior). Assim, a câmera torna-se não apenas um espelho, mas um espelho através do qual pode-se rever, reviver e até mesmo renascer. Mas a câmera representa também uma impossibilidade de poder mudar, pois os gestos e as palavras se repetem e, desta forma, não existe a liberdade nem a possibilidade de dinamismo das ações, como em um círculo kantiano do qual não se pode sair uma vez em seu interior.
A Morte de Empédocles
4.2 2Para transpor para o cinema a tragédia inacabada de Fridrich Hölderlin, Huillet e Straub adotaram um estilo único, particular e digno do material tratado. Filmado totalmente na Sicilia (dois sets, planos fixos e montagem escultórica), A Morte de Empédocles possui como principal objetivo o de transmitir a força da profundidade das palavras do poeta e dramaturgo alemão: a própria encenação é reduzida ao mínimo, as palavras são recitadas de acordo com a divisão da métrica na poesia e cada emoção é transmitida exclusivamente pelo que é dito, não por como ou quem a transmite. O filme todo é construído através de um diálogo entre o filósofo de Agrigento e a Natureza, vista como Absoluto, como o Todo, como o elemento que somente os mais sábios são capazes de alcançar no ápice de suas vidas, mas que a Cultura, a Religião e todas as instituições "mediadoras" tentam afastar dos mais sensatos.