Um pesadelo narrado como tal, sem uma lógica e, em seu padrão caleidoscópico, sem um desenvolvimento linear nem um final, mas com base em um grande rigor estilístico:
Pasolini constrói um quadro sobre a vida provinciana no primeiro pós-guerra evocando o mito de Édipo que, sem saber, mata o pai e casa-se com a mãe até que descobre a verdade e, cegando-se, dá início a sua purificação em Colono. Um dos filmes mais autobiográficos do diretor que, através da história trágica de Édipo, mostra-se como um testemunho sobre a dificuldade de viver. O mais harmônico dos filmes "míticos" do diretor italiano que, ironicamente, atua no filme representando o sacerdote. Poesia e arte no máximo de sua expressão em cada fotograma. Apesar do título, o filme baseia-se nas duas versões da tragédia de Sófocles (Édipo Rei e Édipo em Colono).
Episódios, estáticos como quadros que não contam, mas mostram, evocam, sugerem por meio de várias metáforas, analogias, estros surrealistas e paisagens oníricas. Tudo acompanhado por uma trilha sonora (músicas, ruídos) tão importante quanto a composição visual pictórica. Hermético, mas deslumbrante.
Medeia é o quarto e último dos filmes trágicos e míticos de Pasolini e uma oportunidade para abordar a transição do velho mundo religioso-metafísico para o novo mundo laico-pragmático. Uma metáfora sobre o Terceiro Mundo e, talvez, o mais maneirista e um dos mais ideológicos de sua filmografia.
Ao narrar moralmente esta história amoral, Greenaway produz uma comédia de humor negro que se transforma gradualmente em uma dolorosa tragicomédia repleta de ironia e de uma doçura brutal ao brincar com números, insetos, sexo, cadáveres e a solidariedade feminina. Trilha sonora sublime de Mozart.
, pode ser retratado através dos tons incomuns da comédia. Sapiente leveza, roteiro infalível e redefinição da tradicional dialética entre culpa e condenação: são esses os grandes pontos de interesse do filme, mas o requinte do estilo e a excelente interpretação de Lea Massari não passam despercebidos.
Herzog inventa um gênero novo (inclassificável), composto por uma mistura de realismo fotográfico e miragem, que configura-se como um documentário surreal, no qual a visão de elementos nunca vistos e a paisagem típica do deserto subsaariano atingem os olhos com uma intensidade particular, levando o espectador a uma espécie de transe. Um espetáculo que dá à fotografia uma prioridade incontestável, com sua potência luminosa rara e constante, criando, juntamente com a trilha musical (que vai de Popol Vuh a Händel, Mozart e Leonard Cohen) uma sensível, harmônica e refinada composição narrativa. Uma visão pessimista do progresso humano em relação ao retorno à natureza.
Significativamente, o filme se abre e se fecha com a imagem de um menino que guia um rebanho para o matadouro ao som de uma flauta: cena que contem o movimento e a imobilidade, transmitindo a ideia de um tempo congelado, de um espaço do qual não se pode fugir. E, de fato, entre estas duas cenas toma forma a utopia de dois jovens de níveis sociais distintos. Ambos apaixonam-se, mas sua cara metade é Paris, intensamente evocada pela canção de Joséphine Baker na qual o nome da cidade é repetido de uma forma obsessiva, irônica e trágica - que dá somente a partida inicial ao movimento, para depois interrompê-lo.
Às vezes, assistir a um filme pode torna-se uma experiência longe de ser agradável. É uma reticência instintiva que, no caso, não deriva da falta de qualidade da obra, mas da nossa falta de coragem em aceitar e afrontar o que nos é mostrado na tela. O documentário traz entrevistas com o ex-líder paramilitar Anwar Congo e seus comparsas e, com a desculpa de colocar em cena o extermínio dos comunistas, faz com que os próprios algozes (agora já velhos) interpretem o papel de suas vítimas, mostrando detalhadamente as técnicas utilizadas nos interrogatórios e nas execuções dos acusados de comunismo entre 1965 e 1968. E Oppenheimer, de uma forma ou de outra, consegue fazer com que se deem conta, talvez pela primeira vez na vida, da barbárie que comentaram.
O valor social de uma operação cinematográfica deste nível é imensurável. Não somente porque evidencia com orgulho a verdadeira potência resolutiva do cinema no equilíbrio mundial, mas principalmente porque respira, caça e vive com a fome de um animal faminto por verdade, sem jamais questionar o respeito pela dignidade humana, mesmo em frente aos assassinos. Entre os produtores estão nomes como Werner Herzog e Errol Morris, dois dos maiores documentaristas da história do cinema ainda vivos.
Um Fassbinder longe do esplendor barroco de seus trabalhos mais autorais calibra com precisão uma obra crua e direta. Os dois 'insólitos" amantes parecem movimentar-se em um espaço delimitado, sufocante e cada vez mais desolador, sempre em compasso com a hostilidade de um mundo hipócrita, moralista e racista. Um filme glacial, mas humano e penetrante ao denunciar a falência de uma civilização que parece regredir aos primórdios de sua existência. A mistura de melodrama com crítica social funciona porque a primeira está a serviço da segunda como a circulação do sangue alimenta um organismo. O resultado é uma assustadora análise da consciência social fotografada em suas mais primitivas manifestações de intolerância. O amor não é suficiente para superar o preconceito.
A Terça Parte da Noite é a tortura decorrente do inferno que suga o indivíduo, circundando-o ao redor de um incêndio que consuma progressivamente a realidade circundante, mas sem nunca queimá-lo. Uma crueldade procrastinada, ameaçadora e nunca colocada em prática que, de forma sádica, torna-se observadora. Uma mistura de esperança e terror que recusa-se a fechar seus olhos e testemunha sua invencível potência diante do abismo do medo.
Chantal adapta A Prisioneira (La prisonnière) de Marcel Proust ao seu estilo intimista e suas elegantes meditações sobre o tema existencial. Ao invés de uma narrativa linear, a diretora dá preferência à contínuas sequências carregadas de intensidade, colocando como pano de fundo a obra literária sem reduzi-la a um pretexto, mas destilando, com uma sábia parcimônia, seu espírito. Os elementos da obra proustiana podem ser encontrados pontualmente, através de um refinado trabalho de redução baseado em referências e alusões. Um apólogo sobre a distância intransponível entre o homem e a mulher em uma relação na qual o amor transforma-se em uma obsessão sufocante e paranoica. A força expressiva das imagens, o tom transparente, carregado de insinuações e o vazio calculado com cautela trabalham juntos e compõem uma experiência visual e sensorial que somente um verdadeiro autor é capaz de produzir.
Citando abertamente um de seus mestres literários, Anton Tchecov, Sokurov compõe uma de suas obras mais sofridas e inclassificáveis. O tema do retorno do passado é uma constante em seu "cinema da memória", mas em Kamen o 'fantasma" é retratado como uma mistura multifacetada de rostos, corpos e experiências contidas em uma pessoa. A morte não é uma saída satisfatória, embora mostre-se como a única possibilidade de fuga em um mundo hostil e agonizante, ainda que o "renascimento" do desconhecido seja mostrado como uma espécie de retorno à natureza, através dos pequenos fatos cotidianos: o prazer de um banho, o sabor de um alimento, o ar frio do inverno, a última caminhada. Em termos de estilo, o filme é, se possível, ainda mais rigoroso e formalmente impecável. Um branco e preto angustiante e expressionista, como na melhor tradição cinematográfica, atmosfera que lembra Orson Welles pelos enquadramentos e utilização da iluminação, pequenas pitadas de surrealismo e a maior característica do diretor, as inconfundíveis imagens distorcidas.
O desafio de Kaurismäki, lacônico diretor de coração quente apesar da latitude gelada e do niilismo quase natural, parece fundamentar-se na busca pela autenticidade trilhando, paradoxalmente, o caminho da reescritura. Juha é, acima de tudo, uma releitura fiel e inventiva da estética do mudo e do melodrama, com referências literárias e cinematográficas que vão de Kafka a Samuel Fuller. Um amálgama pós-moderno que, na música e nos raros sons utilizados como função dramática, encontra seus mais evidentes sinais de reconhecimento. Uma tentativa de liberar o cinema da estética da imagem forçada e do peso dos artifícios; uma tentativa bem sucedida de afirmar a modernidade na autenticidade. O cinema que recorda a si mesmo. O cinema que finge voltar aos primórdios, que se reflete na própria imagem e nos próprios sinais que o identificam.
É preciso ter coragem e muita confiança para adaptar uma obra tão complexa e poderosa como a do Yumeno Kyusaku pra o cinema. Matsumoto, no entanto, sintetizou tudo através de diálogos e imagens apoiados pela estética do absurdo com tons kafkanianos e criou uma obra cinematográfica refinada e perturbadora, repleta de mistério e erotismo, que sugere o tempo todo a precariedade do limite entre a sanidade mental e a loucura, a verdade e a mentira, o sonho e a realidade, a terapia e a manipulação. A total falta de linearidade talvez não agrade a algumas pessoas, mas também não deixa ninguém isento de uma reflexão profunda sobre as contradições dos tempo modernos.
"A primeira vez que assisti Eika Katappa pensei: "O que é isso?". É uma espécie de Nosferatu e O Corcunda de Notre Dame, mas também Juventude Transviada e Astros em Desfile… e Pasolini ou "Acossado" de Godard...
Não há outro filme em que tantas pessoas morram. Schroeter destruía pontos de conexão das histórias, matando pessoas que continuavam a viver, morriam umas três vezes ou morriam definitivamente. É óbvio que o mais importante para Werner era o gesto, nunca era a história em si."
A atormentada homossexualidade de Tchaikovsky é o núcleo da reconstituição biográfica, particularmente atenta ao caráter psicológico e psicanalítico do personagem: a música é parte integrante da ação, como estímulo à criação de imagens e metáforas visuais superaquecidas com elementos oníricos e surreais típicos de Ken Russell. Mais que um filme, é uma crítica visual.
Mais um dos incontáveis filmes censurados e confiscados pelo governo techecoslovaco que, com certeza, entendeu muito bem a metáfora, entre parábola bíblia e libreto de ópera, contra o governo. De qualquer forma, não foram capazes de censurar seu caráter profético. Afinal, qual o destino de uma comunidade (ainda que unida) quando a opressão, o medo e a incerteza tomam conta de cada um de seus integrantes?
Muitos comparam o trabalho de Terayama ao de diretores como Federico Fellini ou Alejandro Jodorowsky, mas, apesar de alguns pontos evidentemente em comum, se Fellini e Jodorowsky trabalham, de fato, sobre uma matéria onírica (o primeiro através da memória e o segundo através de uma espécie de magia superior), Terayama baseia-se na evocação da lembrança como um espectro que, de repente, atravessa nosso globo ocular como uma imagem latente desencadeada sem aviso prévio, antecipando-se ao pensamento. A recordação para Terayama é um mundo alegórico e bizarro, pintado com as cores do arco-íris, onde um circo sobrevive imóvel aos dias que passam. Um colorido caleidoscópio da mente humana: recordações que nos movem, nos condicionam e nos liberam. Um cinema livre de obrigações, transgressivo e experimental.
Crítica quase direta à tentativa do Marechal Tito de sufocar o anseio de liberdade e a identidade das etnias da Iugoslávia. Tito deixou bem clara a distinção entre cidadania e nacionalidade, sendo que os povos eram cidadãos iugoslavos e nacionais de seus países simultaneamente, mas, ao mesmo tempo, comandava um ditadura de partido único embora pregasse a fraternidade entre as nações iugoslavas. Desta forma, algumas leis fundamentais foram criadas para que essa "união" fosse assegurada, como o "Ato contra o Estado e o Povo", que aplicava penas muito severas a qualquer manifestação de propaganda de caráter étnico. Sendo assim, a fraternidade não funcionava de forma tão espontânea, mas através de uma forte imposição do Estado. Isso mascarava uma realidade bem diferente, que reprimia qualquer manifestação de nacionalidade "não iugoslava" e promovia a discriminação mais ou menos explícita dos iugoslavos, em especial os "sem nação", como albaneses, húngaros e outras minorias nacionais, principalmente os ciganos, ignorando a necessidade de discussões sobre problemas interétnicos, impedindo que se chegasse de uma forma objetiva a essa superação. Missão cumprida para Petrovic que, através de uma mistura de realismo e fantasia, mostra com grande força a epopeia dos Rom através de planos-sequência e primeiríssimos planos transformados em imagens incomparáveis, capazes de manter a pureza violada das mulheres e crianças, o orgulho dos pais, a cumplicidade muda dos animais e a melancolia intrínseca dos violinos e acordeões.
Foucault uma vez escreveu um texto sobre a fragmentação e a anarquização do corpo nesse filme e o texto foi muito criticado na época. Na verdade, isso me fez pensar bastante sobre a questão, principalmente em relação aos filmes em 8 mm e 16 mm da primeira fase dele. Acabei achando a resposta nas próprias palavras do Schroeter (e nos próprios filmes) que para se aproximar do que entendia como "sensualidade" insistia na gesticulação dos próprios atores, no exagero, na mímica, no melodrama caricato e no kitsch, além de abrir as portas do seu cinema para a transgeneridade sem preconceito nenhum. Schroeter foi o cineasta mais marginal e incompreendido do Novo Cinema alemão e a cada dia que passa ganha cada vez mais meu respeito e admiração.
Teatro filmado de alta classe. Ao transferir a encenação do palco para a tela, Peter Brook fez uso de todo o poder evocativo do cinema: primeiros planos a la Goya, uso sapiente do foco, dos movimentos de câmera e da iluminação; assim como uma companhia de atores excepcional - tanto a peça de Peter Weiss como o espetáculo de Peter Brook possuem dois pais espirituais: Brecht e Antonin Artaud, teórico do Teatro da Crueldade.
Do romance inacabado de Brecht, "Os Negócios do Senhor Júlio César", quatro cidadãos vestidos de antigos romanos (um banqueiro, um agricultor ex soldado, um advogado e um escritor), comentam sobre a passagem da sociedade escravista para a mercantil, da oligarquia do Senado e dos latifundiários para a autocracia - tudo alternado com as incursões pelo centro histórico congestionado de Roma. Não é um filme didático, mas uma metáfora sobre a história e seus ensinamentos que possibilitou ao casal Straub-Huillet uma abordagem poética (rigorosa, mas com sentimento) da figura de Júlio Cesar.
A beleza está em todos os lugares, mas precisa de um poeta como Sokurov para reconhecê-la. Precisa de um diretor como Sokurov para mostrá-la com a delicadeza de uma pintura ukiyo-e do período Edo. Na poesia de Smirennaya zhizn, o silêncio, o vento e os sons da natureza se misturam porque Umeno é o silêncio, o vento e a natureza. Umeno é tudo o que existe em um Japão que existe cada vez menos.
Os Anões Também Começaram Pequenos
3.5 38Um pesadelo narrado como tal, sem uma lógica e, em seu padrão caleidoscópico, sem um desenvolvimento linear nem um final, mas com base em um grande rigor estilístico:
a figura recorrente do círculo indica uma uma situação contínua e sem saída.
Édipo Rei
3.8 53Pasolini constrói um quadro sobre a vida provinciana no primeiro pós-guerra evocando o mito de Édipo que, sem saber, mata o pai e casa-se com a mãe até que descobre a verdade e, cegando-se, dá início a sua purificação em Colono. Um dos filmes mais autobiográficos do diretor que, através da história trágica de Édipo, mostra-se como um testemunho sobre a dificuldade de viver. O mais harmônico dos filmes "míticos" do diretor italiano que, ironicamente, atua no filme representando o sacerdote. Poesia e arte no máximo de sua expressão em cada fotograma. Apesar do título, o filme baseia-se nas duas versões da tragédia de Sófocles (Édipo Rei e Édipo em Colono).
A Cor da Romã
4.1 133Episódios, estáticos como quadros que não contam, mas mostram, evocam, sugerem por meio de várias metáforas, analogias, estros surrealistas e paisagens oníricas. Tudo acompanhado por uma trilha sonora (músicas, ruídos) tão importante quanto a composição visual pictórica. Hermético, mas deslumbrante.
Medéia, A Feiticeira do Amor
3.7 40Medeia é o quarto e último dos filmes trágicos e míticos de Pasolini e uma oportunidade para abordar a transição do velho mundo religioso-metafísico para o novo mundo laico-pragmático. Uma metáfora sobre o Terceiro Mundo e, talvez, o mais maneirista e um dos mais ideológicos de sua filmografia.
Afogando em Números
3.8 28Ao narrar moralmente esta história amoral, Greenaway produz uma comédia de humor negro que se transforma gradualmente em uma dolorosa tragicomédia repleta de ironia e de uma doçura brutal ao brincar com números, insetos, sexo, cadáveres e a solidariedade feminina. Trilha sonora sublime de Mozart.
O Sopro do Coração
4.0 97Malle demonstra como um tema tratado de forma trágica e punitiva,
o incesto entre mãe e filho
Fata Morgana
3.7 13Herzog inventa um gênero novo (inclassificável), composto por uma mistura de realismo fotográfico e miragem, que configura-se como um documentário surreal, no qual a visão de elementos nunca vistos e a paisagem típica do deserto subsaariano atingem os olhos com uma intensidade particular, levando o espectador a uma espécie de transe. Um espetáculo que dá à fotografia uma prioridade incontestável, com sua potência luminosa rara e constante, criando, juntamente com a trilha musical (que vai de Popol Vuh a Händel, Mozart e Leonard Cohen) uma sensível, harmônica e refinada composição narrativa. Uma visão pessimista do progresso humano em relação ao retorno à natureza.
A Viagem da Hiena
4.0 23A ironia mordaz, as situações surreais e a desconstrução de uma narrativa tradicional manifestam-se em cada enquadramento.
Significativamente, o filme se abre e se fecha com a imagem de um menino que guia um rebanho para o matadouro ao som de uma flauta: cena que contem o movimento e a imobilidade, transmitindo a ideia de um tempo congelado, de um espaço do qual não se pode fugir. E, de fato, entre estas duas cenas toma forma a utopia de dois jovens de níveis sociais distintos. Ambos apaixonam-se, mas sua cara metade é Paris, intensamente evocada pela canção de Joséphine Baker na qual o nome da cidade é repetido de uma forma obsessiva, irônica e trágica - que dá somente a partida inicial ao movimento, para depois interrompê-lo.
O Ato de Matar
4.3 135Às vezes, assistir a um filme pode torna-se uma experiência longe de ser agradável. É uma reticência instintiva que, no caso, não deriva da falta de qualidade da obra, mas da nossa falta de coragem em aceitar e afrontar o que nos é mostrado na tela. O documentário traz entrevistas com o ex-líder paramilitar Anwar Congo e seus comparsas e, com a desculpa de colocar em cena o extermínio dos comunistas, faz com que os próprios algozes (agora já velhos) interpretem o papel de suas vítimas, mostrando detalhadamente as técnicas utilizadas nos interrogatórios e nas execuções dos acusados de comunismo entre 1965 e 1968. E Oppenheimer, de uma forma ou de outra, consegue fazer com que se deem conta, talvez pela primeira vez na vida, da barbárie que comentaram.
O valor social de uma operação cinematográfica deste nível é imensurável. Não somente porque evidencia com orgulho a verdadeira potência resolutiva do cinema no equilíbrio mundial, mas principalmente porque respira, caça e vive com a fome de um animal faminto por verdade, sem jamais questionar o respeito pela dignidade humana, mesmo em frente aos assassinos. Entre os produtores estão nomes como Werner Herzog e Errol Morris, dois dos maiores documentaristas da história do cinema ainda vivos.
O Medo Devora a Alma
4.3 105 Assista AgoraUm Fassbinder longe do esplendor barroco de seus trabalhos mais autorais calibra com precisão uma obra crua e direta. Os dois 'insólitos" amantes parecem movimentar-se em um espaço delimitado, sufocante e cada vez mais desolador, sempre em compasso com a hostilidade de um mundo hipócrita, moralista e racista. Um filme glacial, mas humano e penetrante ao denunciar a falência de uma civilização que parece regredir aos primórdios de sua existência. A mistura de melodrama com crítica social funciona porque a primeira está a serviço da segunda como a circulação do sangue alimenta um organismo. O resultado é uma assustadora análise da consciência social fotografada em suas mais primitivas manifestações de intolerância. O amor não é suficiente para superar o preconceito.
A Terça Parte da Noite
3.8 35A Terça Parte da Noite é a tortura decorrente do inferno que suga o indivíduo, circundando-o ao redor de um incêndio que consuma progressivamente a realidade circundante, mas sem nunca queimá-lo. Uma crueldade procrastinada, ameaçadora e nunca colocada em prática que, de forma sádica, torna-se observadora. Uma mistura de esperança e terror que recusa-se a fechar seus olhos e testemunha sua invencível potência diante do abismo do medo.
A Prisioneira
3.5 18 Assista AgoraChantal adapta A Prisioneira (La prisonnière) de Marcel Proust ao seu estilo intimista e suas elegantes meditações sobre o tema existencial. Ao invés de uma narrativa linear, a diretora dá preferência à contínuas sequências carregadas de intensidade, colocando como pano de fundo a obra literária sem reduzi-la a um pretexto, mas destilando, com uma sábia parcimônia, seu espírito. Os elementos da obra proustiana podem ser encontrados pontualmente, através de um refinado trabalho de redução baseado em referências e alusões. Um apólogo sobre a distância intransponível entre o homem e a mulher em uma relação na qual o amor transforma-se em uma obsessão sufocante e paranoica. A força expressiva das imagens, o tom transparente, carregado de insinuações e o vazio calculado com cautela trabalham juntos e compõem uma experiência visual e sensorial que somente um verdadeiro autor é capaz de produzir.
A Pedra
3.9 6Citando abertamente um de seus mestres literários, Anton Tchecov, Sokurov compõe uma de suas obras mais sofridas e inclassificáveis. O tema do retorno do passado é uma constante em seu "cinema da memória", mas em Kamen o 'fantasma" é retratado como uma mistura multifacetada de rostos, corpos e experiências contidas em uma pessoa. A morte não é uma saída satisfatória, embora mostre-se como a única possibilidade de fuga em um mundo hostil e agonizante, ainda que o "renascimento" do desconhecido seja mostrado como uma espécie de retorno à natureza, através dos pequenos fatos cotidianos: o prazer de um banho, o sabor de um alimento, o ar frio do inverno, a última caminhada. Em termos de estilo, o filme é, se possível, ainda mais rigoroso e formalmente impecável. Um branco e preto angustiante e expressionista, como na melhor tradição cinematográfica, atmosfera que lembra Orson Welles pelos enquadramentos e utilização da iluminação, pequenas pitadas de surrealismo e a maior característica do diretor, as inconfundíveis imagens distorcidas.
Juha
3.8 10 Assista AgoraO desafio de Kaurismäki, lacônico diretor de coração quente apesar da latitude gelada e do niilismo quase natural, parece fundamentar-se na busca pela autenticidade trilhando, paradoxalmente, o caminho da reescritura. Juha é, acima de tudo, uma releitura fiel e inventiva da estética do mudo e do melodrama, com referências literárias e cinematográficas que vão de Kafka a Samuel Fuller. Um amálgama pós-moderno que, na música e nos raros sons utilizados como função dramática, encontra seus mais evidentes sinais de reconhecimento. Uma tentativa de liberar o cinema da estética da imagem forçada e do peso dos artifícios; uma tentativa bem sucedida de afirmar a modernidade na autenticidade. O cinema que recorda a si mesmo. O cinema que finge voltar aos primórdios, que se reflete na própria imagem e nos próprios sinais que o identificam.
Dogra Magra
3.8 8É preciso ter coragem e muita confiança para adaptar uma obra tão complexa e poderosa como a do Yumeno Kyusaku pra o cinema. Matsumoto, no entanto, sintetizou tudo através de diálogos e imagens apoiados pela estética do absurdo com tons kafkanianos e criou uma obra cinematográfica refinada e perturbadora, repleta de mistério e erotismo, que sugere o tempo todo a precariedade do limite entre a sanidade mental e a loucura, a verdade e a mentira, o sonho e a realidade, a terapia e a manipulação. A total falta de linearidade talvez não agrade a algumas pessoas, mas também não deixa ninguém isento de uma reflexão profunda sobre as contradições dos tempo modernos.
Eika Katappa
3.9 5"A primeira vez que assisti Eika Katappa pensei: "O que é isso?".
É uma espécie de Nosferatu e O Corcunda de Notre Dame, mas também Juventude Transviada e Astros em Desfile… e Pasolini ou "Acossado" de Godard...
Não há outro filme em que tantas pessoas morram. Schroeter destruía pontos de conexão das histórias, matando pessoas que continuavam a viver, morriam umas três vezes ou morriam definitivamente. É óbvio que o mais importante para Werner era o gesto, nunca era a história em si."
Wim Wenders
Delírio de Amor
4.1 10A atormentada homossexualidade de Tchaikovsky é o núcleo da reconstituição biográfica, particularmente atenta ao caráter psicológico e psicanalítico do personagem: a música é parte integrante da ação, como estímulo à criação de imagens e metáforas visuais superaquecidas com elementos oníricos e surreais típicos de Ken Russell. Mais que um filme, é uma crítica visual.
O Sétimo Dia, A Oitava Noite
3.8 1Mais um dos incontáveis filmes censurados e confiscados pelo governo techecoslovaco que, com certeza, entendeu muito bem a metáfora, entre parábola bíblia e libreto de ópera, contra o governo. De qualquer forma, não foram capazes de censurar seu caráter profético. Afinal, qual o destino de uma comunidade (ainda que unida) quando a opressão, o medo e a incerteza tomam conta de cada um de seus integrantes?
Pastoral: Morrer no Campo
4.4 19Muitos comparam o trabalho de Terayama ao de diretores como Federico Fellini ou Alejandro Jodorowsky, mas, apesar de alguns pontos evidentemente em comum, se Fellini e Jodorowsky trabalham, de fato, sobre uma matéria onírica (o primeiro através da memória e o segundo através de uma espécie de magia superior), Terayama baseia-se na evocação da lembrança como um espectro que, de repente, atravessa nosso globo ocular como uma imagem latente desencadeada sem aviso prévio, antecipando-se ao pensamento. A recordação para Terayama é um mundo alegórico e bizarro, pintado com as cores do arco-íris, onde um circo sobrevive imóvel aos dias que passam. Um colorido caleidoscópio da mente humana: recordações que nos movem, nos condicionam e nos liberam. Um cinema livre de obrigações, transgressivo e experimental.
Os Compradores De Penas
3.7 9Crítica quase direta à tentativa do Marechal Tito de sufocar o anseio de liberdade e a identidade das etnias da Iugoslávia. Tito deixou bem clara a distinção entre cidadania e nacionalidade, sendo que os povos eram cidadãos iugoslavos e nacionais de seus países simultaneamente, mas, ao mesmo tempo, comandava um ditadura de partido único embora pregasse a fraternidade entre as nações iugoslavas. Desta forma, algumas leis fundamentais foram criadas para que essa "união" fosse assegurada, como o "Ato contra o Estado e o Povo", que aplicava penas muito severas a qualquer manifestação de propaganda de caráter étnico. Sendo assim, a fraternidade não funcionava de forma tão espontânea, mas através de uma forte imposição do Estado. Isso mascarava uma realidade bem diferente, que reprimia qualquer manifestação de nacionalidade "não iugoslava" e promovia a discriminação mais ou menos explícita dos iugoslavos, em especial os "sem nação", como albaneses, húngaros e outras minorias nacionais, principalmente os ciganos, ignorando a necessidade de discussões sobre problemas interétnicos, impedindo que se chegasse de uma forma objetiva a essa superação. Missão cumprida para Petrovic que, através de uma mistura de realismo e fantasia, mostra com grande força a epopeia dos Rom através de planos-sequência e primeiríssimos planos transformados em imagens incomparáveis, capazes de manter a pureza violada das mulheres e crianças, o orgulho dos pais, a cumplicidade muda dos animais e a melancolia intrínseca dos violinos e acordeões.
A Morte De Maria Malibran
4.2 10Foucault uma vez escreveu um texto sobre a fragmentação e a anarquização do corpo nesse filme e o texto foi muito criticado na época. Na verdade, isso me fez pensar bastante sobre a questão, principalmente em relação aos filmes em 8 mm e 16 mm da primeira fase dele. Acabei achando a resposta nas próprias palavras do Schroeter (e nos próprios filmes) que para se aproximar do que entendia como "sensualidade" insistia na gesticulação dos próprios atores, no exagero, na mímica, no melodrama caricato e no kitsch, além de abrir as portas do seu cinema para a transgeneridade sem preconceito nenhum. Schroeter foi o cineasta mais marginal e incompreendido do Novo Cinema alemão e a cada dia que passa ganha cada vez mais meu respeito e admiração.
A Perseguição e o Assassinato de Jean-Paul Marat Desempenhados Pelos …
4.1 8Teatro filmado de alta classe. Ao transferir a encenação do palco para a tela, Peter Brook fez uso de todo o poder evocativo do cinema: primeiros planos a la Goya, uso sapiente do foco, dos movimentos de câmera e da iluminação; assim como uma companhia de atores excepcional - tanto a peça de Peter Weiss como o espetáculo de Peter Brook possuem dois pais espirituais: Brecht e Antonin Artaud, teórico do Teatro da Crueldade.
Lições de História
3.8 2Do romance inacabado de Brecht, "Os Negócios do Senhor Júlio César", quatro cidadãos vestidos de antigos romanos (um banqueiro, um agricultor ex soldado, um advogado e um escritor), comentam sobre a passagem da sociedade escravista para a mercantil, da oligarquia do Senado e dos latifundiários para a autocracia - tudo alternado com as incursões pelo centro histórico congestionado de Roma. Não é um filme didático, mas uma metáfora sobre a história e seus ensinamentos que possibilitou ao casal Straub-Huillet uma abordagem poética (rigorosa, mas com sentimento) da figura de Júlio Cesar.
Solidão
4.1 5A beleza está em todos os lugares, mas precisa de um poeta como Sokurov para reconhecê-la. Precisa de um diretor como Sokurov para mostrá-la com a delicadeza de uma pintura ukiyo-e do período Edo. Na poesia de Smirennaya zhizn, o silêncio, o vento e os sons da natureza se misturam porque Umeno é o silêncio, o vento e a natureza. Umeno é tudo o que existe em um Japão que existe cada vez menos.