Desde que ele aparece no primeiro plano do filme enquadrado ao lado de um pássaro em uma gaiola, o personagem do Alain Delon demora quase dez minutos pra falar pela primeira vez. Mas são palavras que pouco expressam, já que essa fala não passa de um requisito do seu plano pra forjar um álibi. A metáfora do pássaro preso na gaiola pode ser óbvia, mas ilustra bem o suficiente como o protagonista se relaciona com seu ofício de assassino de aluguel: não lhe é permitido expressar mais do que o necessário, nem parecer aos outros algo além da imagem impassível que precisa manter. Nada disso seria tão significativo se não fosse o método de Melville ao filmar esse homem, que transforma um filme que facilmente poderia ser um noir clássico em um estudo de personagem dos mais perfeitos.
Com personagens fechados e silenciosos, Melville atribui às cenas uma lógica típica do cinema mudo, na qual os diretores tinham que se fazer entender com nenhuma ou pouquíssimas palavras. Somente pelos enquadramentos e a forma com que eles são dispostos na montagem, mesmo sem diálogos explicativos e sem narração, é perfeitamente compreensível o que o protagonista está fazendo e até onde ele pretende levar seu plano a fim de cumprir sua tarefa. A questão é que tudo isso é claro apenas nos termos de um autômato, de uma criatura inumana, e a compreensão de seus atos só vai até os limites que tal característica impões: acompanhamos o protagonista como acompanharíamos um robô que foi programado pra realizar determinada tarefa sem carregar consigo qualquer reflexão ou impressão a respeito, que simplesmente faria o que lhe foi ordenado. Essa é a gaiola do protagonista, que ao mesmo tempo é sua característica fundamental, e que a performance brilhante cheia de nuances de Alain Delon progressivamente torna mais complexa e aos poucos desconstrói.
Em alguma hora, porém, a dinâmica objetiva de ir do ponto A ao ponto B a fim de alcançar um objetivo X sai do controle, afinal apesar de agir (ou tentar desesperadamente agir) como um autômato, o protagonista não o é. A partir de então, todo o cuidado de Melville ao manejar sua câmera se paga da forma mais inesperada: seu cuidado e rigor não serviu apenas pra prender a atenção nos momentos mais tensos, mas também pra desmontar, no momento certo, quem assiste da mesma forma que o protagonista perde a compostura ao ceder a impulsos que deveriam ser reprimidos. Quando revela-se que o personagem de Alain Delon também é um ser humano, uma respiração ofegante ou uma troca de olhares assumem um peso dramático destruidor— algo inacreditável quando notamos que captamos e sentimos tudo isso sem que, muitas vezes, uma palavra sequer seja dita.
Esse filme poderia ser sintetizado por aquela piada da pessoa que diz odiar clichês. Diz odiar mas logo que vê o personagem inacessível que não dá bola pra ninguém começar a se abrir pra novata tímida do colégio fica ruborizado ao pensar “meu deus, ele não dá bola pra ninguém mas começou a se abrir pra ela”. Crepúsculo é isso durante duas horas (na verdade, deveria ser), quer atingir justamente o público alvo sedento por esse tipo de coisa. Não por acaso mistura uma série de conceitos que a princípio em nada tem a ver exceto pelo fascínio natural que exercem: o vampiro que se apaixona pela humana; a novata do colégio que desperta atenção do cara mais inacessível; a menina que mudou de cidade e tenta se adaptar; os vampiros do bem amigos dos humanos que enfrentam os vampiros do mal. Tudo isso não precisa nem ser desenvolvido pra despertar curiosidade, e felizmente, até certo ponto, não o é: em seus melhores momentos, o filme se aproveita ao máximo da simplicidade desses clichês e ao invés de expandí-los a fim de escapar de seu caráter previsível, faz tudo exatamente como aquela pessoa que facilmente ruboriza esperaria ver.
Quase na metade do filme, a Bella expõe os resultados da sua tensa investigação e Edward pede pra ela dizer em voz alta quem ele realmente é: um vampiro. Ninguém é tonto de achar que uma informação que aparece desde a sinopse é revelada dessa forma, a essa altura do filme, com a intenção de ser uma surpresa. Todo o dramalhão, os close-ups intensos, só se encaixam porque não existe absolutamente nada de surpreendente nessa cena, e todos os elementos que a constituem abraçam justamente tal ausência. Nessa, e em todas as outras cenas que tem méritos similares por não negar a simplicidade do clichê, a encenação não faz mais do que apontar o que todo mundo já sabe: um corte em determinado momento do rosto do Edward pra revelar a reação da Bella, não articula nada que o diálogo não tivesse afirmado anteriormente, assim como a atuação não revela nenhuma emoção que não fosse esperada de se encontrar naqueles rostos independente de qual cara os atores fizessem.
Com poucas exceções, essa encenação limitada não faz mais do que o protocolar. Quando a cena é besta que nem aquela que citei, há pelo menos uma coerência que deixa o resultado gracioso. O problema é justamente que apenas esses momentos não preenchem as duas horas, e entre eles há outros destoantes que “enriquecem” o universo. É o problema que estragou todas as sequências: as relações entre os protagonistas se tornam mais complexas, as interações vão além da novata querendo se enturmar, o romance adolescente vira um triângulo amoroso tosco, a ação vira mais do que uma demonstração de força dos vampiros (como é a cena do baseball. Nessa hora, Bella diz que não acha que Edward vai ser capaz de pegar a bola, ao que a mãe dele responde que ele é muito rápido. E é lógico que é, apesar da Bella não saber, quem assiste sabe, e tudo se reduz a isso. Nos filmes posteriores, reduções assim não são possíveis.) — enfim, o universo do filme se expande e seus pontos de interesse se ampliam ao passo que a encenação segue tão protocolar como se continuasse representando só um clichê capaz de ser assimilado imediatamente por qualquer um. No primeiro filme da saga, ao menos, parte considerável de sua duração escapa desses problemas, mas não chega perto de ser o suficiente pra evitar que a simplicidade graciosa e previsível vire um humor involuntário em diversos momentos. A necessidade de levar um ponto da história ao seguinte gera essas situações, constrangedoras, em que tudo parece mais sério do que deveria.
Mais digno de nota do que o Almodóvar fazendo um filme de terror é a facilidade com que se pode inferir, após poucas cenas, que o tal filme foi dirigido por ele. Algumas das marcas de seu estilo, como as composições pouco naturais dos planos e também os personagens com comportamentos menos naturais ainda, deixam claro sua autoria mas assumem um efeito inédito e sinistro porque a tradicional graciosidade de sua encenação está ausente. É impressionante que, a princípio, o diretor consiga assimilar convenções do terror sem sacrificar totalmente seu estilo mas ao mesmo tempo sendo bem sucedido em anular o tom que usualmente seria provocado por ele: o que impede A Pele que Habito de se tornar um melodrama de humor ácido não é o fato do enredo ser aterrorizante (Ata-me e A Lei do Desejo, por exemplo, também contam com enredos bizarros, que também tratam de relacionamentos abusivos e criminosos e coincidentemente tem Antonio Banderas como o maluco da história, mas sem chegar perto de se tornarem filmes de terror), mas sim o cuidado minucioso com que o diretor o retrata.
A consequência de manter alguns de seus traços autorais mesmo em um gênero com o qual o diretor não é habituado a trabalhar é que, durante grande parte do tempo, o filme flutua de forma imprevisível, quase perigosa, entre o que ele involuntariamente poderia se tornar caso um mero deslize ocorresse (um corte mal colocado que cortaria a tensão; uma música deslocada que daria um humor inapropriado a determinado momento; um posicionamento de câmera mal escolhido que poderia ofuscar a seriedade com que os temas são abordados…) e o que ele de fato vai desenvolvendo— e desenvolve com um rigor notável que anula com sucesso as expectativas que surgiram quando o nome do diretor apareceu na tela. Quando, por exemplo, um homem fantasiado de tigre aparece, qualquer deslize técnico como os que citei poderia romper a corda que até então prendia o espectador, o separava da impressão de que esse é mais um melodrama divertidamente exagerado do diretor (as imoralidades e crimes retratados não seriam suficientes para tanto, uma vez que alguns de seus filmes anteriores também continham absurdos notáveis sem se aproximar do terror) e mantinha quem assiste assombrado tanto pela tensão das cenas quanto pela incerteza em relação ao que o filme pode se tornar a qualquer momento. Até certo ponto, as imagens são tratadas com o mesmo rigor que o enredo, sem que um se sobressaia demasiadamente na definição do tom que define o filme.
O grande ponto de inflexão do filme, porém, não se dá com o famoso plot twist — aliás, ocorre simultaneamente a ele, mas a real virada, a grande mudança em relação ao que acontecia antes e o que comentei nos primeiros parágrafos, é que o diretor deixa o enredo se sobressair e o valor das imagens, o cuidado com que elas por ora eram tratadas, torna-se secundário. A surpreendente coesão entre o estilo do diretor e essa história pouco habitual a ele, coisa que até então tornava a experiência extremamente curiosa, desaparece. Como se o enredo se tornasse, depois de suas viradas, tão bizarro que apenas sua ilustração fosse suficiente pra transmitir seu peso. Aí, aquilo que disse no começo (que o diretor manteve sua assinatura mesmo com mudanças no seu estilo) e se sustentava até o momento em questão, se perde: fica difícil encontrar alguma impressão positiva na reta final que seja deixada pela forma com que o roteiro é apresentado, e não por ele em si. O conjunto de planos altamente simbólicos, e os impactos notáveis que adquiriam quando montados com seus respectivos contraplanos, que ocuparam a primeira hora e meia, não se repetem no restante e dão lugar a uma pobreza técnica decepcionante.
Portanto, justo na parte do filme que deveria ser a mais importante e bem trabalhada, lega-se ao espectador a responsabilidade de procurar seu impacto depois que ele acaba, refletindo posteriormente sobre o que ele quis passar e separando o enredo do conjunto da obra. Certamente, há uma profundidade psicológica enorme envolvida e que merece ser observada, mas que a partir da grande virada que citei torna-se algo passível de ser separado do resto do filme e analisado à parte, desconsiderando o lado exclusivamente cinematográfico que constitui o filme e se restringindo às mensagens e metáforas — o problema é que isso pode ser feito sem prejuízos e sem empobrecer a experiência, já que nessa parte a experiência se reduz a acompanhar o enredo e suas reviravoltas. Nessa reta final, impressões que só o cinema seria capaz de deixar pouco existem. É como se ler o livro que inspirou o filme, ou ouvir alguém resumindo-o, fosse capaz de chocar da mesma maneira. Palmas de pé ao autor da obra original e apenas palmas contidas a Almodóvar, que realizou algo difícil e impressionante por grande parte da rodagem mas infelizmente não foi fiel a sua própria proposta até o fim.
Difícil achar alguma série tão maltratada quanto Halloween. E isso nem é só porque a maioria das sequências são um atentado atrás do outro, mas principalmente pelo fato de que o original do John Carpenter é uma obra-prima e os diretores subsequentes não chegaram perto perto de filmar as perseguições de Michael Myers como ele filmou. Mesmo quando tentaram se aproximar do seu estilo, também não conseguiram mais do que maltratá-lo - e é bem esse o caso de Halloween Kills: de novo fracassa quando tenta ser bem sucedido pelos mesmos meios do filme de 78, mas ao menos fica interessante quando tenta estabelecer uma lógica própria e até inversa do original.
As comparações com o Halloween original poderiam ser injustas, mas o próprio diretor as torna necessárias quando opta por reencenar alguns acontecimentos do primeiro retorno de Michael Myers a Haddonfield em 1978, além de criar outras cenas muito similares em momentos posteriores. Nesses momentos fica bem evidente a diferença entre Carpenter, com seu característico e absoluto domínio do suspense, capaz de entrar na cabeça do espectador muito antes da violência se concretizar, e Gordon Green, que ora pula as etapas intermediárias e vai direto, com alguma pressa, para as mortes, e ora falha em criar antecipação para os crimes por manejar a técnica no piloto automático. Em todo caso, os crimes vão se acumulando como se o grau de violência crescente deles fosse suficiente pra compensar a ausência de inventividade tanto durante sua antecipação, quando esta existe, quanto na hora de mostrá-los.
Por outro lado, a partir de certo ponto, Halloween Kills tenta ser outro filme, menos dependente de referências. Isso acontece quando ele deixa de seguir a lógica tradicional dos slasher, na qual acompanhamos um maluco perseguindo uma galera, e que nas mãos de Gordon Green se tornaria um desastre completo por conta daquelas deficiências que citei na hora de se aproveitar das mortes. Ao invés disso, é proposta uma lógica invertida: seguindo o movimento iniciado pelo primeiro filme dessa trilogia nova, o vilão deixa de só perseguir e acaba caçado devido ao espírito vingativo dos moradores de Haddonfield. A diferença principal é que essa inversão vai muito além da simples diferença nas sinopses. Dessa vez, não se trata de um pesadelo como era o Halloween de 78, em que a caçada de modo algum se justificava e as motivações (se existissem) não eram esclarecidas: antes, a caçada consistia apenas no mal encarnado, o próprio Michael Myers, inexpressivo e sem transparecer absolutamente nada, guiado por seu inato instinto assassino ao qual cabia a Laurie escapar. Em Halloween Kills, o "espírito vingativo" que está por trás dos acontecimentos não tem nada daquela força inexplicável que guia Michael Myers, dessa vez é algo muito mais carregado de claros significados, algo elaborado pra ser assimilado apenas racionalmente porque se trata de um subtexto político tão óbvio que vira uma lição de moral, sobretudo quando o voice over aparece para afirmá-la. Esse subtexto vira um problema porque se sobrepõe a todo o resto durante parte considerável do filme; vira a razão de ser do suspense já que a pobreza deste não permite que ele se pague sem algo a mais - Coisa que, ao meu ver, não acontece no filme anterior da trilogia, de 2018, no qual o subtexto, referente ao trauma da Laurie, mesmo sendo essencial pra justificar a existência do filme, funciona bem porque não parece estar lá só pra tapar buraco.
Em Halloween Kills, os momentos de ação revelam um diretor que parece gastar tanto tempo desenvolvendo aquele subtexto menos por decisão criativa e mais porque seria incapaz de desdobrar o filme inteiro com o pressuposto que as coisas acontecem simplesmente porque acontecem e, assim, abraçar o que pode sair de algo tão sensorial e restrito ao aspecto mais essencial do suspense. Incapaz disso, opta por explicar que os habitantes querem caçar o vilão porque a justiça falhou, opta por questionar a moralidade por trás, o que levou isso a acontecer, "quem são os verdadeiros monstros"… pelo menos, a partir de certo ponto, não parece mais esperar que o público reflita a respeito: depois de se regozijar ao exibir o vilão destruindo crânios, esse discurso torna-se no mínimo ambíguo, como se todo o papo que ocupou tanto tempo do filme estivesse ali pra preencher uma lacuna mas devesse ser ignorado. Pode ser minha propensão a querer relevar os defeitos, mas é justamente essa ambiguidade que salva o filme: entre o discurso que cerca e orienta os outros personagens e tudo que Michael Myers representa e que torna aquele discurso tão irrelevante como merecia ser.
Com isso, apesar dos caminhos tortuosos até chegar lá, Gordon Green, pelo menos, demonstra que entendeu o que o personagem representa. Se uma série de frases de para-choque de caminhão foram enunciadas até então, a máscara de Myers seguiu inexpressiva. Simultaneamente à perseguição feita pelos moradores de Haddonfield, guiada por palavras de ordem ditas por personagens esquecíveis (infelizmente, a Laurie foi totalmente ignorada nessa sequência), há a perseguição feita por Michael Myers, guiada pelo que sempre o guiou: algo que não se explica, e que sua máscara, seu jeito de andar parecido com o de um autômato, não permitem que seja explicado. À parte de todo aquele discurso pra encher linguiça, essa essência segue intacta até o fim do filme, e sobretudo no fim do filme. Não poderia haver prova maior do que o momento em que encurralam o vilão, tiram sua máscara, jogam-na no chão, e ele não corre, não reage, só pega a máscara e bota de volta. Próximo dessa parte, o voice over finalmente funciona pra alguma coisa positiva quando uma das personagens enfim reconhece Myers como a entidade sobrenatural que ele é. Pena que até essa hora chegar havia o resto do filme, indissociável de seu suspense tosco e do subtexto constrangedor que só perto do final perdeu a suposta importância que aparentemente era construída até então. Se o filme não conseguiu ser uma homenagem digna ao estilo de Carpenter, se mais uma vez o maltratou, ao menos acabou como algo minimamente digno ao nosso antagonista.
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James Wan é plenamente consciente do que está fazendo e faz questão de avisar isso durante todo o filme. O fato dele constituir seu filme a partir de um aglomerado de características que usualmente são renegadas pelo suposto bom gosto ou colocadas como essencialmente defeituosas demonstra uma autonomia louvável que faz certa falta hoje. Clichês do gênero, falta de realismo, um vilão que é mal por natureza e sobretudo a falta de um profundo significado que justifique os acontecimentos do filme… tentar diminuir o filme de James Wan por julgar esses aspectos como defeitos é ignorar toda uma geração que fez filmes de terror maravilhosos sem se envergonhar dessa essência. Por outro lado, a simples reivindicação do direito de se fazer um filme assim, e que é continuamente relembrada a cada nova passagem, no máximo implica em uma simpatia pela proposta, mas jamais seria suficiente pra dar outros méritos ao resultado final.
No fim das contas, a reivindicação deste filme é puramente aquela: de se fazer um filme de terror que não se envergonhe de ser “apenas” isso. O principal, portanto, não é nem de longe a reivindicação ou resgate do modo de filmar de grandes diretores do gênero (e do impacto específico que se tem ao assistí-los), porque James Wan não tenta emulá-lo: à parte do fundo familiar, com ideias e visual que explicitam uma reverência aos clássicos, na hora de encontrar os meios (um certo modo de mover a câmera, dispor os elementos no plano, acompanhar a ação) para atingir determinado efeito com uma cena, não há tributo, e o efeito é praticamente oposto do que seria nos filmes que reverencia: se uma situação seria assustadora, em Maligno ela torna-se quase engraçada devido à atmosfera que a cerca. A homenagem fica pela metade, e talvez essa tenha sido uma decisão mais acertada. Nos momentos de revelar uma assombração que se encontrava no ambiente, ou de filmar uma morte violenta, é apenas a própria visão de James Wan que se faz presente na encenação, mais especificamente sua visão para um filme que tem a metalinguagem como razão de ser. Nesses momentos e em quase todos há algo de previsível, óbvio e clichê — de propósito, evidentemente, afinal as cores e iluminação estilizadas e aqueles enquadramentos que gritam que alguma coisa assustadora vai aparecer assim o avisam. A questão é que quando a homenagem fica pela metade, algo que torna os clássicos bem sucedidos no terror se perde no meio do caminho e forma-se atmosfera que impede o filme de ir além da comédia e de ser encarado além do viés da ironia.
É irônico que um filme que quer tanto homenagear o terror aceite se reduzir tanto à sua simples e confortável proposta ao ponto de não abraçar mais possibilidades tanto do gênero quanto dos filmes cujo estilo buscou como inspiração. A atmosfera engraçada, irônica e certamente divertida de um filme quer a todo momento provar que pode fazer o que quiser é satisfatória de acompanhar, mas simplesmente anula certas emoções quando elas fazem menção de aparecer em algumas cenas que acabam deslocadas. Se sentimos medo, comoção, empatia, enfim, em um filme do Dario Argento ou Cronenberg, assim nos sentimos porque esses diretores nos atiraram nas atmosferas que criaram em seus filmes e nos convenceram delas de alguma forma, independente de quão pouco realistas eram. No caso de Maligno, ao contrário, a atmosfera apresentada por James Wan nos orienta a nos divertir com a forma com que outros filmes nos provocam esses sentimentos, de modo que quando o filme em si tenta atingi-los, o consegue apenas com ressalvas.
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Como sempre, se trata de observar a vida dos outros. O caso é que nesse filme os tais outros não interessam quanto o ato de observar em si — ou seja, a instigante oportunidade de imaginar quem os outros poderiam ser e julgá-los, e que não seria possível sem a liberdade proporcionada ao público por Rohmer quando ele opta por não impor juízos de valor.
Mas o ato lúdico de observar e imaginar inúmeras possibilidades instigantes em algum momento acaba. Então o protagonista (aquele que observa os outros) tem que viver sua própria vida, que, diferente dos momentos e conversas baseadas na curiosidade sobre a vida alheia, parece muito mais deprimente do que atrativa. A dramática vida real desse personagem quando aparece antes soa como um prólogo e quando aparece depois soa como um epílogo. Isso porque neles a personagem que mais sintetiza e representa o prazer de viver, ou observar, por um tempinho uma vida que não é a nossa (como se faz ao assistir a um filme) não está presente. (...) O resto deste texto que escrevi pode ser lido no instagram @CinemaMarginal
Sonhei com esse filme ontem então resolvi assistir imediatamente pra ver se tinha alguma iluminação. Infelizmente não tive mas foi bem interessante assistir pouco depois de ter visto uma adaptação tcheca de Alice, na qual o fato de ser live action por si só gera alguns momentos de terror (simplesmente pela estranheza de ver os personagens e situações nesse modo, e não em uma animação). A diferença é que em Alice o diretor tinha domínio do seu material e abraça essa estranheza ao invés de ignorar seus possíveis efeitos, e por isso não fez um filme necessariamente direcionado a crianças; Nesse, pelo contrário, a psicopatia de Willy Wonka, todo o purgatório pelo qual as crianças são obrigadas a passar e as esquetes de comédia quase aleatórias são inseridos com mais naturalidade do que deveriam e sem uma conexão com a pureza mirada pelo resto do filme. Ao invés de demonstrar consciência do que cenas assim podem representar, o diretor as apresenta só como algumas das infinitas possibilidades oriundas da curiosidade infantil em relação ao que poderia se passar em um lugar tão onírico e misterioso quando uma fábrica de chocolate. O filme se desenvolve plenamente a partir dessa curiosidade, da imaginação infantil, e assim justifica suas escolhas estilísticas e seus encaminhamentos. Em certos momentos, ambos se concretizam com a pureza desejada; em outros, parecem desconexos, com uma ambiguidade involuntária que parece servir sobretudo pra tornar a beleza das cenas seguintes menos óbvia - mas sem uma devida noção do diretor de que tais cenas ambíguas, desconexas, bizarras, por si só deixam uma impressão que é difícil apagar.
A tradução do título original para o português destaca a característica mais fundamental do protagonista mas oculta o que torna impactante a percepção desse vício durante o filme: o fato desse policial ser absolutamente o contrário do que deveria, não ser virtuoso em nada que faz — tanto em sua profissão quanto em sua posição como ser humano.
O título “Vício Frenético” pode parecer um convite a mais um filme de farra (dos que, quando não romantizam o vício em drogas, bebida ou jogos, ao menos o apresentam só como uma característica secundária, pouco digna de nota), dinâmico, excitante, que transmite por suas imagens o êxtase sentido pelos usuários. Não é disso que o filme de Abel Ferrara que se trata, assim como também não é o oposto (uma mensagem moralista sobre como vícios são ruins). Entre esses dois caminhos ele segue o mais difícil e que melhor se encaixa com sua falta de pudor característica já demonstrada em filmes anteriores: mostrar explicitamente as últimas consequências dos problemas sem se colocar como um mentor a ensinar como lidar com eles.
Nesse sentido, os momentos mais explícitos não o são porque algo gráfico foi mostrado. Cenas de sexo, violência, consumo de drogas, que em outro filme de plot similar poderiam ser adornadas em uma estética convidativa, se tornam repulsivas em seus contextos porque o diretor resolve deixá-las correrem até o limite, até o ponto em que as situações representadas se mostram tão degradantes quanto seriam na realidade — e ficam piores ainda quando invadem cenas onde não seria de “bom tom” aparecerem. É essa a lógica do filme, similar à lógica dos vícios na vida do personagem de Harvey Keitel: em uma cena, a primeira, ele deixa os filhos na escola, e, assim que eles se afastam do carro, ele tira cocaína do bolso e cheira, na frente da escola; em outra, ele vai a uma cena do crime e logo ignora a investigação pra comentar sobre uma aposta. Contrastes desse tipo são recorrentes, entre o que acontece em uma cena (e o sentimento referente a ela, geralmente desagradável) e a seguinte, na qual o sentimento da anterior continua reverberando apesar da resistência natural em aceitar que ele existe em um novo contexto, menos repugnante.
Esta ser a lógica da vida do protagonista, cuja existência acaba tornando-se o próprio vício descontrolado, mas não a de quem assiste gera uma vontade inevitável de se afastar daquilo que é mostrado, que afinal só é possível quando o filme acaba. A sobriedade do público (nunca colocado em uma posição de ter a experiência frenética do protagonista, mas sim na posição do observador consciente) segue sendo agredida pelos close-ups durante a performance estranha e brilhante de Harvey Keitel, sobretudo pelos planos longos, e assim o filme segue violando símbolos sagrados (não só a religião, mas também a família, a lei, e o que elas deveriam representar) e os sentimentos usualmente projetados neles.
Transitar entre dorama, comédia em primeira pessoa e terror já é algo curioso por si só, mas se torna verdadeiramente divertido porque o filme só revela seu real propósito depois que essas transições são feitas e após nos acostumarmos ao estilo anterior. No começo, não haviam indícios de que a emulação do dorama era carregada de ironia (e que um fantasma estaria atrapalhando o trabalho de uma editora de video), assim como, em momentos posteriores, não dá pra prever as outras transições que são feitas. Toda essa cuidadosa manipulação do espectador até a brusca revelação de "Opa, não é bem assim" dá o tom de comédia que cerca até mesmo as partes em que, sem contexto, uma cena mais melosa (como a primeira, e nesta o contexto só é dado depois) ou mais assustadora poderiam ser levadas a sério. Com esse tom já estabelecido, o romance exagerado vira uma brincadeira em relação a esse exagero, e o terror caricato uma brincadeira em relação aos filmes que se levam mais a sério do que deveriam. Pra completar o combo de autoconsciência, existem os comentários e análises dos personagens em relação ao que assistimos (Grande parte do filme é apenas uma tela do Adobe Premiere, então o que os personagens veem e o que espectador vê é a mesma coisa; um detalhe que curiosamente torna a experiência de assistir pelo computador mais interessante do que o normal.). Sendo eles o diretor do tal dorama e a editora que tenta resolver os problemas do filme com a edição, é engraçado ver como a oposição entre os dois expõe a diferença de impressões que pode existir sobre uma mesma cena, ou um mesmo filme: enquanto o diretor pode se achar brilhante por ter bolado um detalhe que super emocionaria quem assiste, a editora pode achar o resultado ridículo e tentar consertar se distanciando das intenções iniciais. Não dá pra saber se algo assim aconteceu durante a produção do filme que de fato assistimos, mas, apesar de alguns momentos que se repetem mais do que deveriam, ele acerta bastante nos seus objetivos centrais.
A falta de critério no uso da forma fica bem evidente quando o filme mira em criticar o impacto da pornografia mas se torna, ele mesmo, um filme pornográfico. Tal efeito colateral claramente foi o oposto do desejado, mas não há como escapar dele quando todo tipo de valor simbólico ou político que se pretende só é transmitido através de diálogos e cenas expositivas que explicitam "nosso filme é sobre isso", ao passo que nas cenas de sexo não há qualquer recurso formal que demonstre o que o conteúdo constantemente afirma existir. O desenvolvimento dos temas no decorrer do enredo segue a mesma lógica: a constante discussão sobre sonhos e sobre a influência da ficção na realidade soam mais como notas de rodapé pra esclarecer os objetivos e tornar o filme mais importante do que ele é, e que, inclusive, negam um possível impacto sensorial que poderia ocorrer - não fosse a falta de critério, também, durante a apresentação de um universo que o favoreça: o que resulta dos momentos de experimentalismo formal (que beira o aleatório) não é uma atmosfera de sonho e confusão em que os sentidos são estimulados, mas sim mais notas de rodapé que tentam desviar a atenção da pobreza que é esse filme.
Só lembrei do André Bazin falando que ser fiel ao adaptar uma obra de outra mídia não é só fazer tudo igual, porque tem coisas que podem funcionar perfeitamente no formato original mas não terem nenhum impacto no cinema. É exatamente isso: o fato desse filme ser praticamente um gibi filmado não implica em nada positivo. A maioria dos planos parecem saídos direto de uma HQ, mas o efeito limitado delas mostra que essa decupagem preguiçosa não resultou em uma boa adaptação. A caracterização dos personagens, os diálogos, etc, seguem a mesma lógica, mas sem considerar que tal coesão do estilo puramente baseado em parecer HQ pode não representar nada em outro formato, no qual os diálogos são ouvidos e as imagens são vistas em movimento.
Terror sinistro sem deixar de ser filme pra criança, muito porque nunca deixa de partir de medos e angústias infantis. O cenário criado pela Outra Mãe parece tão sedutor pra Coraline (como pareceria a qualquer criança ao comparar com o cenário original chuvoso, frio e chato) mas desde sua introdução (e até mesmo antes dela, com a cena da boneca sendo costurada) ele é filmado apotando dicas de que tem algo errado. Dicas sutis através de efeitos sonoros e posicionamento da câmera pouco amigáveis, que por não serem diegéticos nossa heroína não percebe, mas uma criança que assiste pode facilmente assimilar e começar a questionar se a insatisfação de Coraline com sua família é tão justificada quanto parecia. Não que não seja por um lado, mas todo o filme é também uma jornada de adaptação à mudança para uma nova cidade e de amadurecimento, em busca uma conciliação com sua nova situação e com a situação de seus pais. Jornada esta muito bem representada pelo gato, a voz da razão que nem sempre diz o que se quer ouvir mas sem o qual Coraline não poderia alcançar seus objetivos.
Mais um filme pro diretor mostrar seu enorme repertório de movimentos de câmera mirabolantes, belos planos, impressionantes mortes, etc, e dessa vez sacrificando no processo a construção de um universo que possa tornar cada uma dessas coisas realmente arrebatadora, para além da simples admiração de como ele sabe usar a câmera. Exceto em algumas grandes cenas nas quais a extravagância no uso da técnica reforça a emoção do momento ao invés de desviar a atenção dela, é mais um laboratório estético que um filme.
Achava que esse seria uma retratação em relação a O Nascimento de Uma Nacão, mas não. A visão idealista de Intolerância (que atribui ao sentimento do título a causa de tudo de ruim que acontece no mundo), embora nesse caso seja positiva, facilmente também pode servir pra justificar uma visão torta e deslocada da realidade como aquela que é defendida no filme anterior. Uma visão que permite ignorar inúmeros aspectos dos acontecimentos e fazer com que qualquer ideia (absurda ou não) pareça plausível. A diferença, que torna Intolerância um filmasso, é que este não depende de preconceitos ou simpatias prévias de um público alvo pra ser bem sucedido em gerar envolvimento com as situações. Na segunda parte de O Nascimento de Uma Nação, pelo contrário, existe essa dependência, na qual Griffith se escora e no máximo atiça, através de personagens e situações extremamente rasas, alguma emoção que espera-se que o espectador traga consigo (e que, se não trouxer, anula metade do filme). Em Intolerância, até o ápice final, todos os sentimentos envolvidos são motivados durante o filme sem depender de nada além dele mesmo, tornando-se universal e emocionante até hoje.
Certos tipos de filme exercem um apelo especial até sobre quem não se interessa de jeito nenhum por cinema. O documentário sobre crimes é um deles, em parte por seguir, muitas vezes, um estilo que mais lembra uma reportagem de TV do que um filme de cinema propriamente. The Thin Blue Line vai na direção oposta: lembra um suspense policial, um filme de mistério, um noir - a diferença é que seu enredo não é ficção e o crime abordado de fato aconteceu. No caso em questão, um homem foi condenado por homicídio graças a testemunhas questionáveis, provas pouco esclarecedoras e uma investigação cheia de ambiguidades. Em nenhum momento, porém, a forte estilização do documentário tira a seriedade dos acontecimentos: pelo contrário, ao reconstituir as contraditórias versões sobre o crime com um visual típico da ficção, o diretor reforça como o fator humano inerente à investigação pode abrir espaço pra erros e injustiças.
Como não existe narração, o diretor se faz entender por outros meios. Ele não fala, mas qualquer um entende o que ele quer dizer quando mostra uma mulher (cujo depoimento mentiroso foi utilizado para condenar um inocente) falando como queria participar de investigações, decidir quem matou quem, etc, e ilustra tal fala com a cena de um antigo filme de investigação. Assim como qualquer um entende quando evidências que supostamente provam a culpa do acusado vão sendo mais e mais comparadas até mostrarem-se, enfim, como falsas. O que outro diretor montaria como o relato objetivo de um crime real, uma simples enumeração de provas e ordenação de acontecimentos, torna-se nas mãos de Errol Morris a grandiloquente defesa de um inocente.
O que é colocado em questão, na verdade, é a tal imparcialidade que supostamente deveria orientar a produção de documentários. The Thin Blue Line tem um lado: o lado de Randall Adams, que, como o diretor conclui, foi falsamente acusado. Antes condenado a prisão perpétua, um ano depois do lançamento desse filme Adams foi liberado da prisão. O filme poderia se abster: buscar ser "imparcial", não tecer julgamentos, mostrar o depoimento da mulher que citei no parágrafo anterior como tão verdadeiro quando o depoimento de Adams tentando se inocentar. Essa suposta imparcialidade, porém, também seria assumir um lado: o lado da justiça furada que teria mantido Adams preso até hoje.
Comentário originalmente postado no instagram @CinemaMarginal
É interessante pelos registros de arquivo (óbvio), mas a maneira como é montado tentando emular a experiência do filme atrapalhou muito. Se eu quisesse ter a experiência de ver o filme original eu ia ver o filme original...
Podia ser o melhor filme do mundo que a experiência seria desagradável de todo jeito. Tem momentos maravilhosos, mas é difícil julgar o conjunto quando ele é todo picotado e exibido de uma forma que o diretor com certeza não pretendeu.
Purgatório nível Silent Hill, exceto que o único carrasco é o deus onipresente Rutger Hauer. Só faltou assumir de vez o sobrenatural pra certas coisas não ficarem tão forçadas.
Achava que esse seria uma retratação em relação a O Nascimento de Uma Nacão, mas não. A visão idealista de Intolerância (que atribui ao sentimento do título a causa de tudo de ruim que acontece no mundo), embora nesse caso seja positiva, facilmente também pode servir pra justificar uma visão torta e deslocada da realidade como aquela que é defendida no filme anterior. Uma visão que permite ignorar inúmeros aspectos dos acontecimentos e fazer com que qualquer ideia (absurda ou não) pareça plausível. A diferença, que torna Intolerância um filmasso, é que este não depende de preconceitos ou simpatias prévias de um público alvo pra ser bem sucedido em gerar envolvimento com as situações. Na segunda parte de O Nascimento de Uma Nação, pelo contrário, existe essa dependência, na qual Griffith se escora e no máximo atiça, através de personagens e situações extremamente rasas, alguma emoção que espera-se que o espectador traga consigo (e que, se não trouxer, anula metade do filme). Em Intolerância, até o ápice final, todos os sentimentos envolvidos são motivados durante o filme sem depender de nada além dele mesmo, tornando-se universal e emocionante até hoje.
A história continua interessante mas falta polimento nela e em todo o resto. As únicas vantagens em relação ao remake são a ausência daquela música ridícula de ruim do o que sera sera e a presença do Peter Lorre, que é sempre uma alegria.
Os personagens se apegam a cada leseira que é satisfatório ver que o filme representa essa condição brincando com a estética do jeito que pode. Cada personagem tem a sua cruzada particular, no geral querendo desapegar de alguém que ficou no passado, e nisso entram numa melancolia irracional na qual ficam presos. Esse estado emocional que os mantém desconectados da realidade é sentido quando a câmera os acompanha livremente, sem se prender a uma distância ou ângulo padronizados, nem a uma posição que sempre os deixe plenamente visíveis. Às vezes eles ficam meio escondidos atrás de uma parede ou de um vidro embaçado, ou ofuscados por uma placa luminosa, menos ajustados àqueles cenários do que normalmente estariam. A passagem de tempo, também, não é sentida por eles de um jeito normal, como reforça a recorrente queda de quadros por segundo e os vários cortes aparentemente desordenados.
Cada um fica imerso na sua própria realidade individual que não necessariamente faz sentido pra quem vê de fora. Ficam apegados a algo específico que funciona como a música pra doidinha da lanchonete, que, como ela mesma diz, ajuda a não ter que pensar. Quem mais destoa entre os quatro protagonistas é a criminosa da peruca loura, cujo único traço claro é a instabilidade característica do seu ofício — até que o primeiro policial tromba com ela por acaso. Ela aparece sem contexto e desaparece sem explicações, abrindo pouco ou nenhum espaço pra entrarem na sua realidade individual, ainda que o policial tente. A ele só é legada a perspectiva de algo diferente do seu estado emocional anterior, que a princípio parecia eterno. E isso é suficiente: (...)
A referência logo no início a Janela Indiscreta pode ter sido feita pra deixar clara a inspiração no clássico e escapar de alguma reclamação sobre a falta de originalidade de A Mulher na Janela. Outras reclamações podem fazer sentido, mas esta certamente não se justifica apenas pela comparação com o filme de Hitchcock, já que o conceito similar de ambos é aproveitado de forma bem diferente. No filme de 1954, a limitação do espaço é utilizada com um rigor formal que possibilita a ambiguidade entre o que James Stewart é capaz de ver e o que realmente acontece. Diferentemente, em A Mulher na Janela, há uma estilização dos espaços constante e atuações claramente exageradas que anulam qualquer ambiguidade entre realidade e percepção individual, mantendo o desenrolar do filme inteiro apenas na perspectiva confusa da protagonista sem apresentar um contraponto. O problema é que a tentativa de suspense ainda depende de uma ambiguidade similar com a de Janela Indiscreta, que, porém, o estilo do filme de 2021 não permite. Este torna previsíveis todos os diversos e repetitivos momentos em que o filme avisa “não foi bem assim que as coisas aconteceram”, sendo que em nenhum momento até então algo havia sido representado como digno de confiança.
Isso, a princípio, parece um tipo de rigor formal: utilizar uma série de recursos visuais e de montagem pra transmitir a sensação da protagonista com agorafobia ao público e limitá-lo a ver apenas o que ela vê, durante todo o filme. Mas não é o que acontece. A partir de uma das primeiras cenas, em que a protagonista vai de um cômodo a outro e as cores e luz dos ambientes mudam sem que nada tenha motivado isso, esse recurso visual das cores mostra-se vazio de sentido, assim como o estilo no geral também se mostrará. Diversas vezes a câmera apenas cria algo visualmente agradável sem se conectar a alguma sensação do momento ou estabelecer algo novo: o arsenal de técnicas diferentes que são utilizadas aos poucos vai anulando a identidade (desfavorável ao suspense, mas ainda uma identidade) que por grande parte da duração o filme apresentou. Se, por exemplo, no final for preciso uma cena de ação deslocada do resto pra resolver o conflito, assim acontece, e ainda insere-se no meio alguns belos planos pra justificar a existência dela.
O filme acaba se reduzindo a aspectos que deveriam valer por si mesmos, em meio a um suspense inexistente. O conjunto da obra, entre o estilo que deixa óbvia a confusão mental e a história com suas contínuas reviravoltas, não é capaz de fazer mais pela tensão do que enfatizar sempre que algo “surpreendente” vai acontecer. E quando enfim acontece, não há surpresa, muito menos impacto.
Não sei já postaram aqui, mas acho ESSENCIAL ler a seguinte crítica do Eric Rohmer. Não é uma explicação do filme, é uma das melhores definições possíveis dessa experiência única que é assistir Vertigo. Esse grande texto é de Rohmer, a tradução é de Diogo Serafim e a encontrei em seu blog. Lá vai:
A Hélice e a Idéia - Éric Rohmer (1959) "Ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, único, homogêneo, eterno." Platão
Perdoaríamos prontamente Alfred Hitchcock se ele tivesse sucedido o seu austero filme 'The Wrong Man' com uma obra mais divertida, ou pelo menos mais acessível às multidões. Talvez tenha sido essa a sua intenção quando ele decidiu trazer às telas o romance de Boileau e Narcejac 'D'entre les Morts'. Contudo, o esoterismo de 'Vertigo' foi rejeitado na América, e agora a crítica francesa parece lhe proporcionar uma recepção calorosa - aí está Hitchcock posto pelos nossos colegas no mesmo lugar onde sempre o instalamos. E aqui estamos, ao mesmo tempo, privados da agradável tarefa de prover sua defesa.
É inútil procurar em outro lugar um indicador para a sua genialidade. Hitch é ilustre o suficiente para não merecer outra comparação que não seja consigo mesmo. Se anexei em primeiro plano desse texto uma frase de Platão, que pode ser vista igualmente na cabeça do conto 'Morella' de Edgar Allan Poe, é porque o argumento, de certa forma, se assemelha àquele de 'Vertigo'. Não é que eu queira igualar o nosso cineasta ao autor de 'Parmênides' nem ao autor de 'Extraordinary Stories', mas apenas propor uma chave capaz de abrir o maior número de portas possíveis, e não há nada a se fazer além de usá-la, mesmo que ela soe tão pretensiosa. Não se trata de fazer de Hitchcock um metafísico. Da metafísica, o presente comentarista é o único responsável, e mesmo que a considere conveniente, acho-a inútil.
'Vertigo' me parece a terceira parte de um tríptico do qual as duas primeiras são os filmes 'Rear Window' e 'The Man Who Knew Too Much'. Esses três filmes são filmes de arquitetura. Primeiramente pela abundância que encontramos, nos três, de padrões arquitêtonicos, no sentido próprio do termo. Aqui, os primeiros trinta minutos são uma espécie de documentário sobre o cenário urbano de São Francisco. O pano de fundo é fornecido por várias mansões no estilo do século XX, nas quais as lentes da câmera têm prazer em descansar, da mesma maneira como já haviam descansado em 'To Catch a Thief', nas locações da Côte d'Azur. A imediata razão para as suas existências, pragmática, é que elas criam uma impressão de desorientação no tempo. Elas simbolizam esse passado para o qual o olhar do detetive se torna, simultaneamente como se torna também para a suposta louca.
Encontramos durante o filme uma outra arquitetura mais antiga, a de um mosteiro espanhol do século XVIII, e resgataremos, desta vez muito diretamente, através de uma torre, o principal tema da história: a vertigem. E aqui estamos um passo mais próximo da analogia dos dois filmes anteriormente citados. Em cada um deles, os heróis são vítimas de uma paralisia relativa ao deslocamento em determinado meio. Em 'Rear Window' se trata da imobilidade forçada do protagonista, o meio sendo o espaço propriamente. Em 'The Man Who Knew Too Much', o médico e sua mulher, conforme indica o título do filme, conhecem muito bem o futuro, mas ao mesmo tempo muito pouco: suas paralisias são a ignorância, o campo de análise já não é mais o espaço, e sim o tempo. Nesse filme o detetive, ainda interpretado por James Stewart (e que, portando um espartilho, lança uma piscadela ao fotógrafo de 'Rear Window') é vítima ele também de uma paralisia, a vertigem. O meio dessa vez é constituído pelo tempo, mas não mais o do pressentimento, orientado para o futuro. Pelo contrário, é dirigido ao passado: é o tempo da reminiscência.
Como os outros dois filmes, 'Vertigo' é um filme de puro "suspense", ou seja, de construção. A mola da ação não será mais constituída pela marcha de paixões ou qualquer tragédia moral (como em 'Under Capricorn', 'I Confess' ou 'The Wrong Man'), mas por um processo abstrato, mecânico, artificial, externo, pelo menos na aparência. Não é o homem que é a força motriz nesses três filmes. O destino também não o é, pelo menos não no sentido dado a ele depois dos gregos. É na realidade a própria forma desses elementos formais que são o Espaço e o Tempo. Vagaremos, sem dúvidas, indefinidamente para descobrirmos se há ou não "suspense" em Hitchcock. No sentido mais geral do termo, como o gênero podendo manter o espectador sem fôlego, diremos que este sempre existiu e aqui ainda mais que em outros lugares, mesmo que a trama principal (que fecha o romance) nos seja entregue 30 minutos antes do fim. Já se sabia que não era nos mistérios de um mecanismo retórico, por mais inteligente que fossem, que as portas secretas de Hitchcock se abriam. O importante é que sempre queremos saber mais e mais na mesma medida em que nos são dadas mais verdades, sendo que a solução do enigma não deve nunca rebentar, como uma a bolha de sabão, a massa de intrigas que até o último momento fora construída para fazermos uma bola de neve (crítica que poderia ter sido feita, por exemplo, no 'To Catch a Thief'). Aqui o suspense é de dupla ação: não apenas sensibiliza o futuro, mas aprimora o passado. Porque o passado não é aqui a massa desconhecida que um autor de direito divino reserva e que, atualizado, será capaz de desfazer todos os nós. Vemos que ele apenas os está apertando ainda mais com seu ressurgimento. Na medida em que as névoas da história vão se dispersando, aparece uma nova figura que não conhecíamos tão bem quanto a anterior, mas que sempre esteve presente. Essa Madeleine, crua, verdadeira, nunca é portanto realmente conhecida, é um verdadeiro fantasma, uma vez que existia apenas na mente do detetive, não sendo mais que uma ideia.
Assim como em 'Rear Window' e 'The Man Who Knew Too Much', 'Vertigo' é uma espécia de parábola do conhecimento. No primeiro filme, o fotógrafo virou as costas para o verdadeiro sol (leia-se a vida) e viu apenas as sombras na parede da caverna (no quintal). No segundo, o médico, muito confiante na dedução policial, também fracassou em seu objetivo, enquanto a intuição feminina teve sucesso. Aqui, o detetive é fascinado desde o começo pelo passado (representado pelo retrato de Carlotta Valdès a quem a falsa Madeleine pretende se identificar), e será continuamente propelido de uma aparição até a outra: apaixonado não por uma mulher, mas pela ideia de uma mulher. Mas, ao mesmo tempo, assim como nas outras duas partes da trilogia, além dessa significação intelectual (refiro-me a esse comentário relativo ao conhecimento) podemos distinguir uma outra, moral. Stewart é aqui novamente não apenas infeliz e enganado mas também culpado - digamos "falsamente culpado" para empregar a terminologia hitchcockiana, podendo assim também acusá-lo de falsamente inocente. Ele é acusado por um tribunal de ser responsável por sua falta de jeito com a morte da mulher. Mas se ele não foi nem um pouco culpado pela morte de Madeleine, será de fato dessa vez, devido à sua perspicácia e destreza recuperadas, responsável pela morte de Judy, esta falsamente acusada por ele de cumplicidade.
Empregando o termo "parábola", não quero taxar 'Vertigo' de sequidão ou irrealismo. Não é uma história. No máximo, como em todos os filmes do Hitchcock, podemos discernir esses pequenos desvios da verossimilhança - digamos que desprezo por certas "justificativas" - que no passado haviam causado tanta inquietude. Se 'Vertigo' é banhado por uma atmosfera encantadora, a névoa e a auréola estão no espírito do herói, não do autor, e isso não compromete de forma alguma o tom realista do filme. Admiremos, ao contrário, a arte com a qual o cineasta cria essa reprodução do fantástico pelos meios mais indiretos e mais discretos, especialmente o quanto ele o repele, em uma abordagem temática próxima àquela de 'Les Diaboliques' do Clouzot, para imprimir os menores instantes sobre nossos nervos. A impressão de estranheza é produzida não pela hipérbole, mas pela atenuação, por isso é que a primeira parte é filmada quase integralmente em planos gerais. O episódio satírico diversionário (a relação entre o detetive e a estilista) é tratado com um humor tão discreto e proibido que nossos pés, em nenhum momento, deixam a terra. A presença desse ambiente familiar não obedece unicamente ao jogo de compensações: ajuda-nos a entender melhor a personagem, nos familiariza mais com a sua loucura, faz com que esta não seja loucura efetivamente, mas um certo desvio do espírito humano, um espírito cuja natureza talvez seja esta de girar em círculos. Toda a passagem em que Stewart é transformado em Pigmalião é admirável, a ponto de quase perdermos o fio da história, atentos a seguir os esforços desse homem para tornar uma mulher naquilo que ele acredita que ela seja, até percebermos que essa é a própria história. Toda a profundidade de Hitchcock está na forma, isto é, na renderização. Como o olhar de Ingrid Bergman em 'Under Capricorn', essa ausência de maquiagem - que é apenas uma maquiagem - deve ser vista e não contada.
E finalmente, nesse filme silencioso e gelado, ainda mais do que o beijo ardente entre o detetive e aquela que ele tenta em vão trazer de volta dos mortos, o impressionante discurso final do Stewart é quem introduz uma dimensão que até então estava curiosamente ausente nessa história de amor - aquela da paixão. Essa não é uma reverência retórica, mas uma passagem para o discurso, bem como o monólogo de Bergman em 'Under Capricorn'. Pouco importa que esse brilho chegue tão tarde, já que esse filme é atravessado por uma dupla corrente onde futuro e passado trocam incessantemente suas posições. Todo o filme, sob o brilho dessa acusação vibrante, terá uma nova cor: o que estava dormente despertará e o que estava vivo morrerá simultaneamente e o herói, finalmente triunfante sobre a sua vertigem, verá que tal triunfo foi para nada, encontrando nada além de vazio abaixo de seus pés.
É claro que existem outras reconciliações para além dessas que eu sugeri com os outros filmes do diretor também estrelados por James Stewart. Permitam-me mais uma, desta vez com o filme 'Strangers on a Train'. Sabemos o quanto esse último devia, não apenas em rigor, mas em lirismo à presença assustadora de um padrão geométrico duplo, da linha e do círculo. Aqui a figura - o génerico de Saul Bass a desenha para nós - é a da espiral, ou mais exatamente do helicoide. Linha e círculo são casados pelo intermédio de uma terceira dimensão: a profundidade. A rigor, encontraremos apenas duas espirais materialmente representadas ao longo do filme, aquela da mecha do cabelo de Madeleine que desce para a sua nuca, uma cópia da de Carlotta Valdès (e não devemos esquecer que é ela que desperta o desejo do detetive), e depois a escada subindo para a torre. De resto, a hélice será ideal, sugerida pelo seu cilindro de revolução, representado seja pelo campo de visão de Stewart seguindo Novak de carro, ou pelo abismo de árvores acima da estrada, ou pelo tronco das sequóias, ou até por este corredor que Madeleine menciona e que Scottie reencontrará em um sonho (um sonho no qual, admito, os padrões chamativos ecoam com uma graça sóbria sobre as paisagens verdadeiras), além de muitos outros padrões que exigem mais revisões para serem detectados. O corte da sequóia milenar e o travelling circular (na realidade sendo o tema que realmente gira aqui e não a câmera) ao redor do beijo ainda pertencem à mesma família de ideias, uma família numerosa com muitos parentes. Geometria é uma coisa, arte é outra. Não se trata de encontrar uma espiral em cada uma das cenas desse filme, como em enigmas de desenhos de folhagens ou mesmo como nas cruzes de 'Scarface' de Hawks (um desafio magnificamente aceito, mas ainda assim um desafio). É necessário que essa matemática deixe a porta aberta para a liberdade. Poesia e geometria, longe de entrarem em conflito, nadam juntas. Andamos pelo espaço da mesma maneira que andamos pelo tempo e que também andam nossos pensamentos e os dos personagens. Não são nada além de imagens de sonda, mais precisamente imagens que estão girando para o passado. Tudo é um círculo, mas o ciclo não fecha, a revolução sempre nos leva um pouco mais fundo na reminiscência. Sombras sucedem as sombras, simulacros os simulacros, não como as partições surripiadas ou como os espelhos refletidos ao infinito, mas devido a um tipo de movimento mais perturbador ainda, por este não ter solução na continuidade e possuir às vezes a suavidade do círculo e às vezes a nitidez da linha. Ideias e formas seguem o mesmo caminho, e é porque a forma é pura, bonita, rigorosa, surpreendentemente rica e livre que se pode dizer que os filmes de Hitchcock e 'Vertigo', em primeiro lugar, têm como elementos fundadores - além daqueles que sabem cativar nossos sentidos - as Ideias, no nobre sentido platônico do termo.
(Tradução de Diogo Serafim, crítico da Multiplot.)
O Samurai
4.2 145Desde que ele aparece no primeiro plano do filme enquadrado ao lado de um pássaro em uma gaiola, o personagem do Alain Delon demora quase dez minutos pra falar pela primeira vez. Mas são palavras que pouco expressam, já que essa fala não passa de um requisito do seu plano pra forjar um álibi. A metáfora do pássaro preso na gaiola pode ser óbvia, mas ilustra bem o suficiente como o protagonista se relaciona com seu ofício de assassino de aluguel: não lhe é permitido expressar mais do que o necessário, nem parecer aos outros algo além da imagem impassível que precisa manter. Nada disso seria tão significativo se não fosse o método de Melville ao filmar esse homem, que transforma um filme que facilmente poderia ser um noir clássico em um estudo de personagem dos mais perfeitos.
Com personagens fechados e silenciosos, Melville atribui às cenas uma lógica típica do cinema mudo, na qual os diretores tinham que se fazer entender com nenhuma ou pouquíssimas palavras. Somente pelos enquadramentos e a forma com que eles são dispostos na montagem, mesmo sem diálogos explicativos e sem narração, é perfeitamente compreensível o que o protagonista está fazendo e até onde ele pretende levar seu plano a fim de cumprir sua tarefa. A questão é que tudo isso é claro apenas nos termos de um autômato, de uma criatura inumana, e a compreensão de seus atos só vai até os limites que tal característica impões: acompanhamos o protagonista como acompanharíamos um robô que foi programado pra realizar determinada tarefa sem carregar consigo qualquer reflexão ou impressão a respeito, que simplesmente faria o que lhe foi ordenado. Essa é a gaiola do protagonista, que ao mesmo tempo é sua característica fundamental, e que a performance brilhante cheia de nuances de Alain Delon progressivamente torna mais complexa e aos poucos desconstrói.
Em alguma hora, porém, a dinâmica objetiva de ir do ponto A ao ponto B a fim de alcançar um objetivo X sai do controle, afinal apesar de agir (ou tentar desesperadamente agir) como um autômato, o protagonista não o é. A partir de então, todo o cuidado de Melville ao manejar sua câmera se paga da forma mais inesperada: seu cuidado e rigor não serviu apenas pra prender a atenção nos momentos mais tensos, mas também pra desmontar, no momento certo, quem assiste da mesma forma que o protagonista perde a compostura ao ceder a impulsos que deveriam ser reprimidos. Quando revela-se que o personagem de Alain Delon também é um ser humano, uma respiração ofegante ou uma troca de olhares assumem um peso dramático destruidor— algo inacreditável quando notamos que captamos e sentimos tudo isso sem que, muitas vezes, uma palavra sequer seja dita.
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Crepúsculo
2.5 4,1K Assista AgoraEsse filme poderia ser sintetizado por aquela piada da pessoa que diz odiar clichês. Diz odiar mas logo que vê o personagem inacessível que não dá bola pra ninguém começar a se abrir pra novata tímida do colégio fica ruborizado ao pensar “meu deus, ele não dá bola pra ninguém mas começou a se abrir pra ela”. Crepúsculo é isso durante duas horas (na verdade, deveria ser), quer atingir justamente o público alvo sedento por esse tipo de coisa. Não por acaso mistura uma série de conceitos que a princípio em nada tem a ver exceto pelo fascínio natural que exercem: o vampiro que se apaixona pela humana; a novata do colégio que desperta atenção do cara mais inacessível; a menina que mudou de cidade e tenta se adaptar; os vampiros do bem amigos dos humanos que enfrentam os vampiros do mal. Tudo isso não precisa nem ser desenvolvido pra despertar curiosidade, e felizmente, até certo ponto, não o é: em seus melhores momentos, o filme se aproveita ao máximo da simplicidade desses clichês e ao invés de expandí-los a fim de escapar de seu caráter previsível, faz tudo exatamente como aquela pessoa que facilmente ruboriza esperaria ver.
Quase na metade do filme, a Bella expõe os resultados da sua tensa investigação e Edward pede pra ela dizer em voz alta quem ele realmente é: um vampiro. Ninguém é tonto de achar que uma informação que aparece desde a sinopse é revelada dessa forma, a essa altura do filme, com a intenção de ser uma surpresa. Todo o dramalhão, os close-ups intensos, só se encaixam porque não existe absolutamente nada de surpreendente nessa cena, e todos os elementos que a constituem abraçam justamente tal ausência. Nessa, e em todas as outras cenas que tem méritos similares por não negar a simplicidade do clichê, a encenação não faz mais do que apontar o que todo mundo já sabe: um corte em determinado momento do rosto do Edward pra revelar a reação da Bella, não articula nada que o diálogo não tivesse afirmado anteriormente, assim como a atuação não revela nenhuma emoção que não fosse esperada de se encontrar naqueles rostos independente de qual cara os atores fizessem.
Com poucas exceções, essa encenação limitada não faz mais do que o protocolar. Quando a cena é besta que nem aquela que citei, há pelo menos uma coerência que deixa o resultado gracioso. O problema é justamente que apenas esses momentos não preenchem as duas horas, e entre eles há outros destoantes que “enriquecem” o universo. É o problema que estragou todas as sequências: as relações entre os protagonistas se tornam mais complexas, as interações vão além da novata querendo se enturmar, o romance adolescente vira um triângulo amoroso tosco, a ação vira mais do que uma demonstração de força dos vampiros (como é a cena do baseball. Nessa hora, Bella diz que não acha que Edward vai ser capaz de pegar a bola, ao que a mãe dele responde que ele é muito rápido. E é lógico que é, apesar da Bella não saber, quem assiste sabe, e tudo se reduz a isso. Nos filmes posteriores, reduções assim não são possíveis.) — enfim, o universo do filme se expande e seus pontos de interesse se ampliam ao passo que a encenação segue tão protocolar como se continuasse representando só um clichê capaz de ser assimilado imediatamente por qualquer um. No primeiro filme da saga, ao menos, parte considerável de sua duração escapa desses problemas, mas não chega perto de ser o suficiente pra evitar que a simplicidade graciosa e previsível vire um humor involuntário em diversos momentos. A necessidade de levar um ponto da história ao seguinte gera essas situações, constrangedoras, em que tudo parece mais sério do que deveria.
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A Pele que Habito
4.2 5,1K Assista AgoraMais digno de nota do que o Almodóvar fazendo um filme de terror é a facilidade com que se pode inferir, após poucas cenas, que o tal filme foi dirigido por ele. Algumas das marcas de seu estilo, como as composições pouco naturais dos planos e também os personagens com comportamentos menos naturais ainda, deixam claro sua autoria mas assumem um efeito inédito e sinistro porque a tradicional graciosidade de sua encenação está ausente. É impressionante que, a princípio, o diretor consiga assimilar convenções do terror sem sacrificar totalmente seu estilo mas ao mesmo tempo sendo bem sucedido em anular o tom que usualmente seria provocado por ele: o que impede A Pele que Habito de se tornar um melodrama de humor ácido não é o fato do enredo ser aterrorizante (Ata-me e A Lei do Desejo, por exemplo, também contam com enredos bizarros, que também tratam de relacionamentos abusivos e criminosos e coincidentemente tem Antonio Banderas como o maluco da história, mas sem chegar perto de se tornarem filmes de terror), mas sim o cuidado minucioso com que o diretor o retrata.
A consequência de manter alguns de seus traços autorais mesmo em um gênero com o qual o diretor não é habituado a trabalhar é que, durante grande parte do tempo, o filme flutua de forma imprevisível, quase perigosa, entre o que ele involuntariamente poderia se tornar caso um mero deslize ocorresse (um corte mal colocado que cortaria a tensão; uma música deslocada que daria um humor inapropriado a determinado momento; um posicionamento de câmera mal escolhido que poderia ofuscar a seriedade com que os temas são abordados…) e o que ele de fato vai desenvolvendo— e desenvolve com um rigor notável que anula com sucesso as expectativas que surgiram quando o nome do diretor apareceu na tela. Quando, por exemplo, um homem fantasiado de tigre aparece, qualquer deslize técnico como os que citei poderia romper a corda que até então prendia o espectador, o separava da impressão de que esse é mais um melodrama divertidamente exagerado do diretor (as imoralidades e crimes retratados não seriam suficientes para tanto, uma vez que alguns de seus filmes anteriores também continham absurdos notáveis sem se aproximar do terror) e mantinha quem assiste assombrado tanto pela tensão das cenas quanto pela incerteza em relação ao que o filme pode se tornar a qualquer momento. Até certo ponto, as imagens são tratadas com o mesmo rigor que o enredo, sem que um se sobressaia demasiadamente na definição do tom que define o filme.
O grande ponto de inflexão do filme, porém, não se dá com o famoso plot twist — aliás, ocorre simultaneamente a ele, mas a real virada, a grande mudança em relação ao que acontecia antes e o que comentei nos primeiros parágrafos, é que o diretor deixa o enredo se sobressair e o valor das imagens, o cuidado com que elas por ora eram tratadas, torna-se secundário. A surpreendente coesão entre o estilo do diretor e essa história pouco habitual a ele, coisa que até então tornava a experiência extremamente curiosa, desaparece. Como se o enredo se tornasse, depois de suas viradas, tão bizarro que apenas sua ilustração fosse suficiente pra transmitir seu peso. Aí, aquilo que disse no começo (que o diretor manteve sua assinatura mesmo com mudanças no seu estilo) e se sustentava até o momento em questão, se perde: fica difícil encontrar alguma impressão positiva na reta final que seja deixada pela forma com que o roteiro é apresentado, e não por ele em si. O conjunto de planos altamente simbólicos, e os impactos notáveis que adquiriam quando montados com seus respectivos contraplanos, que ocuparam a primeira hora e meia, não se repetem no restante e dão lugar a uma pobreza técnica decepcionante.
Portanto, justo na parte do filme que deveria ser a mais importante e bem trabalhada, lega-se ao espectador a responsabilidade de procurar seu impacto depois que ele acaba, refletindo posteriormente sobre o que ele quis passar e separando o enredo do conjunto da obra. Certamente, há uma profundidade psicológica enorme envolvida e que merece ser observada, mas que a partir da grande virada que citei torna-se algo passível de ser separado do resto do filme e analisado à parte, desconsiderando o lado exclusivamente cinematográfico que constitui o filme e se restringindo às mensagens e metáforas — o problema é que isso pode ser feito sem prejuízos e sem empobrecer a experiência, já que nessa parte a experiência se reduz a acompanhar o enredo e suas reviravoltas. Nessa reta final, impressões que só o cinema seria capaz de deixar pouco existem. É como se ler o livro que inspirou o filme, ou ouvir alguém resumindo-o, fosse capaz de chocar da mesma maneira. Palmas de pé ao autor da obra original e apenas palmas contidas a Almodóvar, que realizou algo difícil e impressionante por grande parte da rodagem mas infelizmente não foi fiel a sua própria proposta até o fim.
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Halloween Kills: O Terror Continua
3.0 683 Assista AgoraDifícil achar alguma série tão maltratada quanto Halloween. E isso nem é só porque a maioria das sequências são um atentado atrás do outro, mas principalmente pelo fato de que o original do John Carpenter é uma obra-prima e os diretores subsequentes não chegaram perto perto de filmar as perseguições de Michael Myers como ele filmou. Mesmo quando tentaram se aproximar do seu estilo, também não conseguiram mais do que maltratá-lo - e é bem esse o caso de Halloween Kills: de novo fracassa quando tenta ser bem sucedido pelos mesmos meios do filme de 78, mas ao menos fica interessante quando tenta estabelecer uma lógica própria e até inversa do original.
As comparações com o Halloween original poderiam ser injustas, mas o próprio diretor as torna necessárias quando opta por reencenar alguns acontecimentos do primeiro retorno de Michael Myers a Haddonfield em 1978, além de criar outras cenas muito similares em momentos posteriores. Nesses momentos fica bem evidente a diferença entre Carpenter, com seu característico e absoluto domínio do suspense, capaz de entrar na cabeça do espectador muito antes da violência se concretizar, e Gordon Green, que ora pula as etapas intermediárias e vai direto, com alguma pressa, para as mortes, e ora falha em criar antecipação para os crimes por manejar a técnica no piloto automático. Em todo caso, os crimes vão se acumulando como se o grau de violência crescente deles fosse suficiente pra compensar a ausência de inventividade tanto durante sua antecipação, quando esta existe, quanto na hora de mostrá-los.
Por outro lado, a partir de certo ponto, Halloween Kills tenta ser outro filme, menos dependente de referências. Isso acontece quando ele deixa de seguir a lógica tradicional dos slasher, na qual acompanhamos um maluco perseguindo uma galera, e que nas mãos de Gordon Green se tornaria um desastre completo por conta daquelas deficiências que citei na hora de se aproveitar das mortes. Ao invés disso, é proposta uma lógica invertida: seguindo o movimento iniciado pelo primeiro filme dessa trilogia nova, o vilão deixa de só perseguir e acaba caçado devido ao espírito vingativo dos moradores de Haddonfield. A diferença principal é que essa inversão vai muito além da simples diferença nas sinopses.
Dessa vez, não se trata de um pesadelo como era o Halloween de 78, em que a caçada de modo algum se justificava e as motivações (se existissem) não eram esclarecidas: antes, a caçada consistia apenas no mal encarnado, o próprio Michael Myers, inexpressivo e sem transparecer absolutamente nada, guiado por seu inato instinto assassino ao qual cabia a Laurie escapar. Em Halloween Kills, o "espírito vingativo" que está por trás dos acontecimentos não tem nada daquela força inexplicável que guia Michael Myers, dessa vez é algo muito mais carregado de claros significados, algo elaborado pra ser assimilado apenas racionalmente porque se trata de um subtexto político tão óbvio que vira uma lição de moral, sobretudo quando o voice over aparece para afirmá-la. Esse subtexto vira um problema porque se sobrepõe a todo o resto durante parte considerável do filme; vira a razão de ser do suspense já que a pobreza deste não permite que ele se pague sem algo a mais - Coisa que, ao meu ver, não acontece no filme anterior da trilogia, de 2018, no qual o subtexto, referente ao trauma da Laurie, mesmo sendo essencial pra justificar a existência do filme, funciona bem porque não parece estar lá só pra tapar buraco.
Em Halloween Kills, os momentos de ação revelam um diretor que parece gastar tanto tempo desenvolvendo aquele subtexto menos por decisão criativa e mais porque seria incapaz de desdobrar o filme inteiro com o pressuposto que as coisas acontecem simplesmente porque acontecem e, assim, abraçar o que pode sair de algo tão sensorial e restrito ao aspecto mais essencial do suspense. Incapaz disso, opta por explicar que os habitantes querem caçar o vilão porque a justiça falhou, opta por questionar a moralidade por trás, o que levou isso a acontecer, "quem são os verdadeiros monstros"… pelo menos, a partir de certo ponto, não parece mais esperar que o público reflita a respeito: depois de se regozijar ao exibir o vilão destruindo crânios, esse discurso torna-se no mínimo ambíguo, como se todo o papo que ocupou tanto tempo do filme estivesse ali pra preencher uma lacuna mas devesse ser ignorado. Pode ser minha propensão a querer relevar os defeitos, mas é justamente essa ambiguidade que salva o filme: entre o discurso que cerca e orienta os outros personagens e tudo que Michael Myers representa e que torna aquele discurso tão irrelevante como merecia ser.
Com isso, apesar dos caminhos tortuosos até chegar lá, Gordon Green, pelo menos, demonstra que entendeu o que o personagem representa. Se uma série de frases de para-choque de caminhão foram enunciadas até então, a máscara de Myers seguiu inexpressiva. Simultaneamente à perseguição feita pelos moradores de Haddonfield, guiada por palavras de ordem ditas por personagens esquecíveis (infelizmente, a Laurie foi totalmente ignorada nessa sequência), há a perseguição feita por Michael Myers, guiada pelo que sempre o guiou: algo que não se explica, e que sua máscara, seu jeito de andar parecido com o de um autômato, não permitem que seja explicado. À parte de todo aquele discurso pra encher linguiça, essa essência segue intacta até o fim do filme, e sobretudo no fim do filme. Não poderia haver prova maior do que o momento em que encurralam o vilão, tiram sua máscara, jogam-na no chão, e ele não corre, não reage, só pega a máscara e bota de volta. Próximo dessa parte, o voice over finalmente funciona pra alguma coisa positiva quando uma das personagens enfim reconhece Myers como a entidade sobrenatural que ele é. Pena que até essa hora chegar havia o resto do filme, indissociável de seu suspense tosco e do subtexto constrangedor que só perto do final perdeu a suposta importância que aparentemente era construída até então. Se o filme não conseguiu ser uma homenagem digna ao estilo de Carpenter, se mais uma vez o maltratou, ao menos acabou como algo minimamente digno ao nosso antagonista.
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Maligno
3.3 1,2KJames Wan é plenamente consciente do que está fazendo e faz questão de avisar isso durante todo o filme. O fato dele constituir seu filme a partir de um aglomerado de características que usualmente são renegadas pelo suposto bom gosto ou colocadas como essencialmente defeituosas demonstra uma autonomia louvável que faz certa falta hoje. Clichês do gênero, falta de realismo, um vilão que é mal por natureza e sobretudo a falta de um profundo significado que justifique os acontecimentos do filme… tentar diminuir o filme de James Wan por julgar esses aspectos como defeitos é ignorar toda uma geração que fez filmes de terror maravilhosos sem se envergonhar dessa essência. Por outro lado, a simples reivindicação do direito de se fazer um filme assim, e que é continuamente relembrada a cada nova passagem, no máximo implica em uma simpatia pela proposta, mas jamais seria suficiente pra dar outros méritos ao resultado final.
No fim das contas, a reivindicação deste filme é puramente aquela: de se fazer um filme de terror que não se envergonhe de ser “apenas” isso. O principal, portanto, não é nem de longe a reivindicação ou resgate do modo de filmar de grandes diretores do gênero (e do impacto específico que se tem ao assistí-los), porque James Wan não tenta emulá-lo: à parte do fundo familiar, com ideias e visual que explicitam uma reverência aos clássicos, na hora de encontrar os meios (um certo modo de mover a câmera, dispor os elementos no plano, acompanhar a ação) para atingir determinado efeito com uma cena, não há tributo, e o efeito é praticamente oposto do que seria nos filmes que reverencia: se uma situação seria assustadora, em Maligno ela torna-se quase engraçada devido à atmosfera que a cerca. A homenagem fica pela metade, e talvez essa tenha sido uma decisão mais acertada. Nos momentos de revelar uma assombração que se encontrava no ambiente, ou de filmar uma morte violenta, é apenas a própria visão de James Wan que se faz presente na encenação, mais especificamente sua visão para um filme que tem a metalinguagem como razão de ser. Nesses momentos e em quase todos há algo de previsível, óbvio e clichê — de propósito, evidentemente, afinal as cores e iluminação estilizadas e aqueles enquadramentos que gritam que alguma coisa assustadora vai aparecer assim o avisam. A questão é que quando a homenagem fica pela metade, algo que torna os clássicos bem sucedidos no terror se perde no meio do caminho e forma-se atmosfera que impede o filme de ir além da comédia e de ser encarado além do viés da ironia.
É irônico que um filme que quer tanto homenagear o terror aceite se reduzir tanto à sua simples e confortável proposta ao ponto de não abraçar mais possibilidades tanto do gênero quanto dos filmes cujo estilo buscou como inspiração. A atmosfera engraçada, irônica e certamente divertida de um filme quer a todo momento provar que pode fazer o que quiser é satisfatória de acompanhar, mas simplesmente anula certas emoções quando elas fazem menção de aparecer em algumas cenas que acabam deslocadas. Se sentimos medo, comoção, empatia, enfim, em um filme do Dario Argento ou Cronenberg, assim nos sentimos porque esses diretores nos atiraram nas atmosferas que criaram em seus filmes e nos convenceram delas de alguma forma, independente de quão pouco realistas eram. No caso de Maligno, ao contrário, a atmosfera apresentada por James Wan nos orienta a nos divertir com a forma com que outros filmes nos provocam esses sentimentos, de modo que quando o filme em si tenta atingi-los, o consegue apenas com ressalvas.
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A Mulher do Aviador
4.0 26Como sempre, se trata de observar a vida dos outros. O caso é que nesse filme os tais outros não interessam quanto o ato de observar em si — ou seja, a instigante oportunidade de imaginar quem os outros poderiam ser e julgá-los, e que não seria possível sem a liberdade proporcionada ao público por Rohmer quando ele opta por não impor juízos de valor.
Mas o ato lúdico de observar e imaginar inúmeras possibilidades instigantes em algum momento acaba. Então o protagonista (aquele que observa os outros) tem que viver sua própria vida, que, diferente dos momentos e conversas baseadas na curiosidade sobre a vida alheia, parece muito mais deprimente do que atrativa. A dramática vida real desse personagem quando aparece antes soa como um prólogo e quando aparece depois soa como um epílogo. Isso porque neles a personagem que mais sintetiza e representa o prazer de viver, ou observar, por um tempinho uma vida que não é a nossa (como se faz ao assistir a um filme) não está presente.
(...)
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A Fantástica Fábrica de Chocolate
4.0 1,1K Assista AgoraSonhei com esse filme ontem então resolvi assistir imediatamente pra ver se tinha alguma iluminação. Infelizmente não tive mas foi bem interessante assistir pouco depois de ter visto uma adaptação tcheca de Alice, na qual o fato de ser live action por si só gera alguns momentos de terror (simplesmente pela estranheza de ver os personagens e situações nesse modo, e não em uma animação). A diferença é que em Alice o diretor tinha domínio do seu material e abraça essa estranheza ao invés de ignorar seus possíveis efeitos, e por isso não fez um filme necessariamente direcionado a crianças; Nesse, pelo contrário, a psicopatia de Willy Wonka, todo o purgatório pelo qual as crianças são obrigadas a passar e as esquetes de comédia quase aleatórias são inseridos com mais naturalidade do que deveriam e sem uma conexão com a pureza mirada pelo resto do filme.
Ao invés de demonstrar consciência do que cenas assim podem representar, o diretor as apresenta só como algumas das infinitas possibilidades oriundas da curiosidade infantil em relação ao que poderia se passar em um lugar tão onírico e misterioso quando uma fábrica de chocolate. O filme se desenvolve plenamente a partir dessa curiosidade, da imaginação infantil, e assim justifica suas escolhas estilísticas e seus encaminhamentos. Em certos momentos, ambos se concretizam com a pureza desejada; em outros, parecem desconexos, com uma ambiguidade involuntária que parece servir sobretudo pra tornar a beleza das cenas seguintes menos óbvia - mas sem uma devida noção do diretor de que tais cenas ambíguas, desconexas, bizarras, por si só deixam uma impressão que é difícil apagar.
Vício Frenético
3.9 124A tradução do título original para o português destaca a característica mais fundamental do protagonista mas oculta o que torna impactante a percepção desse vício durante o filme: o fato desse policial ser absolutamente o contrário do que deveria, não ser virtuoso em nada que faz — tanto em sua profissão quanto em sua posição como ser humano.
O título “Vício Frenético” pode parecer um convite a mais um filme de farra (dos que, quando não romantizam o vício em drogas, bebida ou jogos, ao menos o apresentam só como uma característica secundária, pouco digna de nota), dinâmico, excitante, que transmite por suas imagens o êxtase sentido pelos usuários. Não é disso que o filme de Abel Ferrara que se trata, assim como também não é o oposto (uma mensagem moralista sobre como vícios são ruins). Entre esses dois caminhos ele segue o mais difícil e que melhor se encaixa com sua falta de pudor característica já demonstrada em filmes anteriores: mostrar explicitamente as últimas consequências dos problemas sem se colocar como um mentor a ensinar como lidar com eles.
Nesse sentido, os momentos mais explícitos não o são porque algo gráfico foi mostrado. Cenas de sexo, violência, consumo de drogas, que em outro filme de plot similar poderiam ser adornadas em uma estética convidativa, se tornam repulsivas em seus contextos porque o diretor resolve deixá-las correrem até o limite, até o ponto em que as situações representadas se mostram tão degradantes quanto seriam na realidade — e ficam piores ainda quando invadem cenas onde não seria de “bom tom” aparecerem. É essa a lógica do filme, similar à lógica dos vícios na vida do personagem de Harvey Keitel: em uma cena, a primeira, ele deixa os filhos na escola, e, assim que eles se afastam do carro, ele tira cocaína do bolso e cheira, na frente da escola; em outra, ele vai a uma cena do crime e logo ignora a investigação pra comentar sobre uma aposta. Contrastes desse tipo são recorrentes, entre o que acontece em uma cena (e o sentimento referente a ela, geralmente desagradável) e a seguinte, na qual o sentimento da anterior continua reverberando apesar da resistência natural em aceitar que ele existe em um novo contexto, menos repugnante.
Esta ser a lógica da vida do protagonista, cuja existência acaba tornando-se o próprio vício descontrolado, mas não a de quem assiste gera uma vontade inevitável de se afastar daquilo que é mostrado, que afinal só é possível quando o filme acaba. A sobriedade do público (nunca colocado em uma posição de ter a experiência frenética do protagonista, mas sim na posição do observador consciente) segue sendo agredida pelos close-ups durante a performance estranha e brilhante de Harvey Keitel, sobretudo pelos planos longos, e assim o filme segue violando símbolos sagrados (não só a religião, mas também a família, a lei, e o que elas deveriam representar) e os sentimentos usualmente projetados neles.
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Edição de Videos Digitais com Adobe Première-Pro: Guia do Mundo …
4.0 2Transitar entre dorama, comédia em primeira pessoa e terror já é algo curioso por si só, mas se torna verdadeiramente divertido porque o filme só revela seu real propósito depois que essas transições são feitas e após nos acostumarmos ao estilo anterior. No começo, não haviam indícios de que a emulação do dorama era carregada de ironia (e que um fantasma estaria atrapalhando o trabalho de uma editora de video), assim como, em momentos posteriores, não dá pra prever as outras transições que são feitas.
Toda essa cuidadosa manipulação do espectador até a brusca revelação de "Opa, não é bem assim" dá o tom de comédia que cerca até mesmo as partes em que, sem contexto, uma cena mais melosa (como a primeira, e nesta o contexto só é dado depois) ou mais assustadora poderiam ser levadas a sério. Com esse tom já estabelecido, o romance exagerado vira uma brincadeira em relação a esse exagero, e o terror caricato uma brincadeira em relação aos filmes que se levam mais a sério do que deveriam.
Pra completar o combo de autoconsciência, existem os comentários e análises dos personagens em relação ao que assistimos (Grande parte do filme é apenas uma tela do Adobe Premiere, então o que os personagens veem e o que espectador vê é a mesma coisa; um detalhe que curiosamente torna a experiência de assistir pelo computador mais interessante do que o normal.). Sendo eles o diretor do tal dorama e a editora que tenta resolver os problemas do filme com a edição, é engraçado ver como a oposição entre os dois expõe a diferença de impressões que pode existir sobre uma mesma cena, ou um mesmo filme: enquanto o diretor pode se achar brilhante por ter bolado um detalhe que super emocionaria quem assiste, a editora pode achar o resultado ridículo e tentar consertar se distanciando das intenções iniciais.
Não dá pra saber se algo assim aconteceu durante a produção do filme que de fato assistimos, mas, apesar de alguns momentos que se repetem mais do que deveriam, ele acerta bastante nos seus objetivos centrais.
Desaprender a Dormir
2.5 10A falta de critério no uso da forma fica bem evidente quando o filme mira em criticar o impacto da pornografia mas se torna, ele mesmo, um filme pornográfico. Tal efeito colateral claramente foi o oposto do desejado, mas não há como escapar dele quando todo tipo de valor simbólico ou político que se pretende só é transmitido através de diálogos e cenas expositivas que explicitam "nosso filme é sobre isso", ao passo que nas cenas de sexo não há qualquer recurso formal que demonstre o que o conteúdo constantemente afirma existir. O desenvolvimento dos temas no decorrer do enredo segue a mesma lógica: a constante discussão sobre sonhos e sobre a influência da ficção na realidade soam mais como notas de rodapé pra esclarecer os objetivos e tornar o filme mais importante do que ele é, e que, inclusive, negam um possível impacto sensorial que poderia ocorrer - não fosse a falta de critério, também, durante a apresentação de um universo que o favoreça: o que resulta dos momentos de experimentalismo formal (que beira o aleatório) não é uma atmosfera de sonho e confusão em que os sentidos são estimulados, mas sim mais notas de rodapé que tentam desviar a atenção da pobreza que é esse filme.
Dredd
3.6 1,4K Assista AgoraSó lembrei do André Bazin falando que ser fiel ao adaptar uma obra de outra mídia não é só fazer tudo igual, porque tem coisas que podem funcionar perfeitamente no formato original mas não terem nenhum impacto no cinema. É exatamente isso: o fato desse filme ser praticamente um gibi filmado não implica em nada positivo. A maioria dos planos parecem saídos direto de uma HQ, mas o efeito limitado delas mostra que essa decupagem preguiçosa não resultou em uma boa adaptação. A caracterização dos personagens, os diálogos, etc, seguem a mesma lógica, mas sem considerar que tal coesão do estilo puramente baseado em parecer HQ pode não representar nada em outro formato, no qual os diálogos são ouvidos e as imagens são vistas em movimento.
Coraline e o Mundo Secreto
4.1 1,9K Assista AgoraTerror sinistro sem deixar de ser filme pra criança, muito porque nunca deixa de partir de medos e angústias infantis. O cenário criado pela Outra Mãe parece tão sedutor pra Coraline (como pareceria a qualquer criança ao comparar com o cenário original chuvoso, frio e chato) mas desde sua introdução (e até mesmo antes dela, com a cena da boneca sendo costurada) ele é filmado apotando dicas de que tem algo errado. Dicas sutis através de efeitos sonoros e posicionamento da câmera pouco amigáveis, que por não serem diegéticos nossa heroína não percebe, mas uma criança que assiste pode facilmente assimilar e começar a questionar se a insatisfação de Coraline com sua família é tão justificada quanto parecia. Não que não seja por um lado, mas todo o filme é também uma jornada de adaptação à mudança para uma nova cidade e de amadurecimento, em busca uma conciliação com sua nova situação e com a situação de seus pais. Jornada esta muito bem representada pelo gato, a voz da razão que nem sempre diz o que se quer ouvir mas sem o qual Coraline não poderia alcançar seus objetivos.
Charada
4.1 297 Assista AgoraI think everyone enjoys a nice murder, provided he is not the victim.
- Hitchcock
Terror na Ópera
3.6 114 Assista AgoraMais um filme pro diretor mostrar seu enorme repertório de movimentos de câmera mirabolantes, belos planos, impressionantes mortes, etc, e dessa vez sacrificando no processo a construção de um universo que possa tornar cada uma dessas coisas realmente arrebatadora, para além da simples admiração de como ele sabe usar a câmera. Exceto em algumas grandes cenas nas quais a extravagância no uso da técnica reforça a emoção do momento ao invés de desviar a atenção dela, é mais um laboratório estético que um filme.
Intolerância
4.0 108 Assista AgoraAchava que esse seria uma retratação em relação a O Nascimento de Uma Nacão, mas não. A visão idealista de Intolerância (que atribui ao sentimento do título a causa de tudo de ruim que acontece no mundo), embora nesse caso seja positiva, facilmente também pode servir pra justificar uma visão torta e deslocada da realidade como aquela que é defendida no filme anterior. Uma visão que permite ignorar inúmeros aspectos dos acontecimentos e fazer com que qualquer ideia (absurda ou não) pareça plausível.
A diferença, que torna Intolerância um filmasso, é que este não depende de preconceitos ou simpatias prévias de um público alvo pra ser bem sucedido em gerar envolvimento com as situações. Na segunda parte de O Nascimento de Uma Nação, pelo contrário, existe essa dependência, na qual Griffith se escora e no máximo atiça, através de personagens e situações extremamente rasas, alguma emoção que espera-se que o espectador traga consigo (e que, se não trouxer, anula metade do filme). Em Intolerância, até o ápice final, todos os sentimentos envolvidos são motivados durante o filme sem depender de nada além dele mesmo, tornando-se universal e emocionante até hoje.
A Tênue Linha da Morte
4.0 33Certos tipos de filme exercem um apelo especial até sobre quem não se interessa de jeito nenhum por cinema. O documentário sobre crimes é um deles, em parte por seguir, muitas vezes, um estilo que mais lembra uma reportagem de TV do que um filme de cinema propriamente. The Thin Blue Line vai na direção oposta: lembra um suspense policial, um filme de mistério, um noir - a diferença é que seu enredo não é ficção e o crime abordado de fato aconteceu. No caso em questão, um homem foi condenado por homicídio graças a testemunhas questionáveis, provas pouco esclarecedoras e uma investigação cheia de ambiguidades. Em nenhum momento, porém, a forte estilização do documentário tira a seriedade dos acontecimentos: pelo contrário, ao reconstituir as contraditórias versões sobre o crime com um visual típico da ficção, o diretor reforça como o fator humano inerente à investigação pode abrir espaço pra erros e injustiças.
Como não existe narração, o diretor se faz entender por outros meios. Ele não fala, mas qualquer um entende o que ele quer dizer quando mostra uma mulher (cujo depoimento mentiroso foi utilizado para condenar um inocente) falando como queria participar de investigações, decidir quem matou quem, etc, e ilustra tal fala com a cena de um antigo filme de investigação. Assim como qualquer um entende quando evidências que supostamente provam a culpa do acusado vão sendo mais e mais comparadas até mostrarem-se, enfim, como falsas. O que outro diretor montaria como o relato objetivo de um crime real, uma simples enumeração de provas e ordenação de acontecimentos, torna-se nas mãos de Errol Morris a grandiloquente defesa de um inocente.
O que é colocado em questão, na verdade, é a tal imparcialidade que supostamente deveria orientar a produção de documentários. The Thin Blue Line tem um lado: o lado de Randall Adams, que, como o diretor conclui, foi falsamente acusado. Antes condenado a prisão perpétua, um ano depois do lançamento desse filme Adams foi liberado da prisão. O filme poderia se abster: buscar ser "imparcial", não tecer julgamentos, mostrar o depoimento da mulher que citei no parágrafo anterior como tão verdadeiro quando o depoimento de Adams tentando se inocentar. Essa suposta imparcialidade, porém, também seria assumir um lado: o lado da justiça furada que teria mantido Adams preso até hoje.
Comentário originalmente postado no instagram @CinemaMarginal
Anabazys
4.0 2É interessante pelos registros de arquivo (óbvio), mas a maneira como é montado tentando emular a experiência do filme atrapalhou muito. Se eu quisesse ter a experiência de ver o filme original eu ia ver o filme original...
Ouro e Maldição
4.1 32 Assista AgoraPodia ser o melhor filme do mundo que a experiência seria desagradável de todo jeito. Tem momentos maravilhosos, mas é difícil julgar o conjunto quando ele é todo picotado e exibido de uma forma que o diretor com certeza não pretendeu.
A Morte Pede Carona
3.5 294Purgatório nível Silent Hill, exceto que o único carrasco é o deus onipresente Rutger Hauer. Só faltou assumir de vez o sobrenatural pra certas coisas não ficarem tão forçadas.
Intolerância
4.0 108 Assista AgoraAchava que esse seria uma retratação em relação a O Nascimento de Uma Nacão, mas não. A visão idealista de Intolerância (que atribui ao sentimento do título a causa de tudo de ruim que acontece no mundo), embora nesse caso seja positiva, facilmente também pode servir pra justificar uma visão torta e deslocada da realidade como aquela que é defendida no filme anterior. Uma visão que permite ignorar inúmeros aspectos dos acontecimentos e fazer com que qualquer ideia (absurda ou não) pareça plausível.
A diferença, que torna Intolerância um filmasso, é que este não depende de preconceitos ou simpatias prévias de um público alvo pra ser bem sucedido em gerar envolvimento com as situações. Na segunda parte de O Nascimento de Uma Nação, pelo contrário, existe essa dependência, na qual Griffith se escora e no máximo atiça, através de personagens e situações extremamente rasas, alguma emoção que espera-se que o espectador traga consigo (e que, se não trouxer, anula metade do filme). Em Intolerância, até o ápice final, todos os sentimentos envolvidos são motivados durante o filme sem depender de nada além dele mesmo, tornando-se universal e emocionante até hoje.
O Homem que Sabia Demais
3.5 74 Assista AgoraA história continua interessante mas falta polimento nela e em todo o resto. As únicas vantagens em relação ao remake são a ausência daquela música ridícula de ruim do o que sera sera e a presença do Peter Lorre, que é sempre uma alegria.
Amores Expressos
4.2 355 Assista AgoraOs personagens se apegam a cada leseira que é satisfatório ver que o filme representa essa condição brincando com a estética do jeito que pode. Cada personagem tem a sua cruzada particular, no geral querendo desapegar de alguém que ficou no passado, e nisso entram numa melancolia irracional na qual ficam presos. Esse estado emocional que os mantém desconectados da realidade é sentido quando a câmera os acompanha livremente, sem se prender a uma distância ou ângulo padronizados, nem a uma posição que sempre os deixe plenamente visíveis. Às vezes eles ficam meio escondidos atrás de uma parede ou de um vidro embaçado, ou ofuscados por uma placa luminosa, menos ajustados àqueles cenários do que normalmente estariam. A passagem de tempo, também, não é sentida por eles de um jeito normal, como reforça a recorrente queda de quadros por segundo e os vários cortes aparentemente desordenados.
Cada um fica imerso na sua própria realidade individual que não necessariamente faz sentido pra quem vê de fora. Ficam apegados a algo específico que funciona como a música pra doidinha da lanchonete, que, como ela mesma diz, ajuda a não ter que pensar. Quem mais destoa entre os quatro protagonistas é a criminosa da peruca loura, cujo único traço claro é a instabilidade característica do seu ofício — até que o primeiro policial tromba com ela por acaso. Ela aparece sem contexto e desaparece sem explicações, abrindo pouco ou nenhum espaço pra entrarem na sua realidade individual, ainda que o policial tente. A ele só é legada a perspectiva de algo diferente do seu estado emocional anterior, que a princípio parecia eterno. E isso é suficiente: (...)
Texto completo no instagram: @CinemaMarginal
A Mulher na Janela
3.0 1,1K Assista AgoraA referência logo no início a Janela Indiscreta pode ter sido feita pra deixar clara a inspiração no clássico e escapar de alguma reclamação sobre a falta de originalidade de A Mulher na Janela. Outras reclamações podem fazer sentido, mas esta certamente não se justifica apenas pela comparação com o filme de Hitchcock, já que o conceito similar de ambos é aproveitado de forma bem diferente. No filme de 1954, a limitação do espaço é utilizada com um rigor formal que possibilita a ambiguidade entre o que James Stewart é capaz de ver e o que realmente acontece. Diferentemente, em A Mulher na Janela, há uma estilização dos espaços constante e atuações claramente exageradas que anulam qualquer ambiguidade entre realidade e percepção individual, mantendo o desenrolar do filme inteiro apenas na perspectiva confusa da protagonista sem apresentar um contraponto. O problema é que a tentativa de suspense ainda depende de uma ambiguidade similar com a de Janela Indiscreta, que, porém, o estilo do filme de 2021 não permite. Este torna previsíveis todos os diversos e repetitivos momentos em que o filme avisa “não foi bem assim que as coisas aconteceram”, sendo que em nenhum momento até então algo havia sido representado como digno de confiança.
Isso, a princípio, parece um tipo de rigor formal: utilizar uma série de recursos visuais e de montagem pra transmitir a sensação da protagonista com agorafobia ao público e limitá-lo a ver apenas o que ela vê, durante todo o filme. Mas não é o que acontece. A partir de uma das primeiras cenas, em que a protagonista vai de um cômodo a outro e as cores e luz dos ambientes mudam sem que nada tenha motivado isso, esse recurso visual das cores mostra-se vazio de sentido, assim como o estilo no geral também se mostrará. Diversas vezes a câmera apenas cria algo visualmente agradável sem se conectar a alguma sensação do momento ou estabelecer algo novo: o arsenal de técnicas diferentes que são utilizadas aos poucos vai anulando a identidade (desfavorável ao suspense, mas ainda uma identidade) que por grande parte da duração o filme apresentou. Se, por exemplo, no final for preciso uma cena de ação deslocada do resto pra resolver o conflito, assim acontece, e ainda insere-se no meio alguns belos planos pra justificar a existência dela.
O filme acaba se reduzindo a aspectos que deveriam valer por si mesmos, em meio a um suspense inexistente. O conjunto da obra, entre o estilo que deixa óbvia a confusão mental e a história com suas contínuas reviravoltas, não é capaz de fazer mais pela tensão do que enfatizar sempre que algo “surpreendente” vai acontecer. E quando enfim acontece, não há surpresa, muito menos impacto.
Um Corpo que Cai
4.2 1,3K Assista AgoraNão sei já postaram aqui, mas acho ESSENCIAL ler a seguinte crítica do Eric Rohmer. Não é uma explicação do filme, é uma das melhores definições possíveis dessa experiência única que é assistir Vertigo.
Esse grande texto é de Rohmer, a tradução é de Diogo Serafim e a encontrei em seu blog. Lá vai:
A Hélice e a Idéia - Éric Rohmer (1959)
"Ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, único, homogêneo, eterno."
Platão
Perdoaríamos prontamente Alfred Hitchcock se ele tivesse sucedido o seu austero filme 'The Wrong Man' com uma obra mais divertida, ou pelo menos mais acessível às multidões. Talvez tenha sido essa a sua intenção quando ele decidiu trazer às telas o romance de Boileau e Narcejac 'D'entre les Morts'. Contudo, o esoterismo de 'Vertigo' foi rejeitado na América, e agora a crítica francesa parece lhe proporcionar uma recepção calorosa - aí está Hitchcock posto pelos nossos colegas no mesmo lugar onde sempre o instalamos. E aqui estamos, ao mesmo tempo, privados da agradável tarefa de prover sua defesa.
É inútil procurar em outro lugar um indicador para a sua genialidade. Hitch é ilustre o suficiente para não merecer outra comparação que não seja consigo mesmo. Se anexei em primeiro plano desse texto uma frase de Platão, que pode ser vista igualmente na cabeça do conto 'Morella' de Edgar Allan Poe, é porque o argumento, de certa forma, se assemelha àquele de 'Vertigo'. Não é que eu queira igualar o nosso cineasta ao autor de 'Parmênides' nem ao autor de 'Extraordinary Stories', mas apenas propor uma chave capaz de abrir o maior número de portas possíveis, e não há nada a se fazer além de usá-la, mesmo que ela soe tão pretensiosa. Não se trata de fazer de Hitchcock um metafísico. Da metafísica, o presente comentarista é o único responsável, e mesmo que a considere conveniente, acho-a inútil.
'Vertigo' me parece a terceira parte de um tríptico do qual as duas primeiras são os filmes 'Rear Window' e 'The Man Who Knew Too Much'. Esses três filmes são filmes de arquitetura. Primeiramente pela abundância que encontramos, nos três, de padrões arquitêtonicos, no sentido próprio do termo. Aqui, os primeiros trinta minutos são uma espécie de documentário sobre o cenário urbano de São Francisco. O pano de fundo é fornecido por várias mansões no estilo do século XX, nas quais as lentes da câmera têm prazer em descansar, da mesma maneira como já haviam descansado em 'To Catch a Thief', nas locações da Côte d'Azur. A imediata razão para as suas existências, pragmática, é que elas criam uma impressão de desorientação no tempo. Elas simbolizam esse passado para o qual o olhar do detetive se torna, simultaneamente como se torna também para a suposta louca.
Encontramos durante o filme uma outra arquitetura mais antiga, a de um mosteiro espanhol do século XVIII, e resgataremos, desta vez muito diretamente, através de uma torre, o principal tema da história: a vertigem. E aqui estamos um passo mais próximo da analogia dos dois filmes anteriormente citados. Em cada um deles, os heróis são vítimas de uma paralisia relativa ao deslocamento em determinado meio. Em 'Rear Window' se trata da imobilidade forçada do protagonista, o meio sendo o espaço propriamente. Em 'The Man Who Knew Too Much', o médico e sua mulher, conforme indica o título do filme, conhecem muito bem o futuro, mas ao mesmo tempo muito pouco: suas paralisias são a ignorância, o campo de análise já não é mais o espaço, e sim o tempo. Nesse filme o detetive, ainda interpretado por James Stewart (e que, portando um espartilho, lança uma piscadela ao fotógrafo de 'Rear Window') é vítima ele também de uma paralisia, a vertigem. O meio dessa vez é constituído pelo tempo, mas não mais o do pressentimento, orientado para o futuro. Pelo contrário, é dirigido ao passado: é o tempo da reminiscência.
Como os outros dois filmes, 'Vertigo' é um filme de puro "suspense", ou seja, de construção. A mola da ação não será mais constituída pela marcha de paixões ou qualquer tragédia moral (como em 'Under Capricorn', 'I Confess' ou 'The Wrong Man'), mas por um processo abstrato, mecânico, artificial, externo, pelo menos na aparência. Não é o homem que é a força motriz nesses três filmes. O destino também não o é, pelo menos não no sentido dado a ele depois dos gregos. É na realidade a própria forma desses elementos formais que são o Espaço e o Tempo. Vagaremos, sem dúvidas, indefinidamente para descobrirmos se há ou não "suspense" em Hitchcock. No sentido mais geral do termo, como o gênero podendo manter o espectador sem fôlego, diremos que este sempre existiu e aqui ainda mais que em outros lugares, mesmo que a trama principal (que fecha o romance) nos seja entregue 30 minutos antes do fim. Já se sabia que não era nos mistérios de um mecanismo retórico, por mais inteligente que fossem, que as portas secretas de Hitchcock se abriam. O importante é que sempre queremos saber mais e mais na mesma medida em que nos são dadas mais verdades, sendo que a solução do enigma não deve nunca rebentar, como uma a bolha de sabão, a massa de intrigas que até o último momento fora construída para fazermos uma bola de neve (crítica que poderia ter sido feita, por exemplo, no 'To Catch a Thief'). Aqui o suspense é de dupla ação: não apenas sensibiliza o futuro, mas aprimora o passado. Porque o passado não é aqui a massa desconhecida que um autor de direito divino reserva e que, atualizado, será capaz de desfazer todos os nós. Vemos que ele apenas os está apertando ainda mais com seu ressurgimento. Na medida em que as névoas da história vão se dispersando, aparece uma nova figura que não conhecíamos tão bem quanto a anterior, mas que sempre esteve presente. Essa Madeleine, crua, verdadeira, nunca é portanto realmente conhecida, é um verdadeiro fantasma, uma vez que existia apenas na mente do detetive, não sendo mais que uma ideia.
Assim como em 'Rear Window' e 'The Man Who Knew Too Much', 'Vertigo' é uma espécia de parábola do conhecimento. No primeiro filme, o fotógrafo virou as costas para o verdadeiro sol (leia-se a vida) e viu apenas as sombras na parede da caverna (no quintal). No segundo, o médico, muito confiante na dedução policial, também fracassou em seu objetivo, enquanto a intuição feminina teve sucesso. Aqui, o detetive é fascinado desde o começo pelo passado (representado pelo retrato de Carlotta Valdès a quem a falsa Madeleine pretende se identificar), e será continuamente propelido de uma aparição até a outra: apaixonado não por uma mulher, mas pela ideia de uma mulher. Mas, ao mesmo tempo, assim como nas outras duas partes da trilogia, além dessa significação intelectual (refiro-me a esse comentário relativo ao conhecimento) podemos distinguir uma outra, moral. Stewart é aqui novamente não apenas infeliz e enganado mas também culpado - digamos "falsamente culpado" para empregar a terminologia hitchcockiana, podendo assim também acusá-lo de falsamente inocente. Ele é acusado por um tribunal de ser responsável por sua falta de jeito com a morte da mulher. Mas se ele não foi nem um pouco culpado pela morte de Madeleine, será de fato dessa vez, devido à sua perspicácia e destreza recuperadas, responsável pela morte de Judy, esta falsamente acusada por ele de cumplicidade.
Empregando o termo "parábola", não quero taxar 'Vertigo' de sequidão ou irrealismo. Não é uma história. No máximo, como em todos os filmes do Hitchcock, podemos discernir esses pequenos desvios da verossimilhança - digamos que desprezo por certas "justificativas" - que no passado haviam causado tanta inquietude. Se 'Vertigo' é banhado por uma atmosfera encantadora, a névoa e a auréola estão no espírito do herói, não do autor, e isso não compromete de forma alguma o tom realista do filme. Admiremos, ao contrário, a arte com a qual o cineasta cria essa reprodução do fantástico pelos meios mais indiretos e mais discretos, especialmente o quanto ele o repele, em uma abordagem temática próxima àquela de 'Les Diaboliques' do Clouzot, para imprimir os menores instantes sobre nossos nervos. A impressão de estranheza é produzida não pela hipérbole, mas pela atenuação, por isso é que a primeira parte é filmada quase integralmente em planos gerais. O episódio satírico diversionário (a relação entre o detetive e a estilista) é tratado com um humor tão discreto e proibido que nossos pés, em nenhum momento, deixam a terra. A presença desse ambiente familiar não obedece unicamente ao jogo de compensações: ajuda-nos a entender melhor a personagem, nos familiariza mais com a sua loucura, faz com que esta não seja loucura efetivamente, mas um certo desvio do espírito humano, um espírito cuja natureza talvez seja esta de girar em círculos. Toda a passagem em que Stewart é transformado em Pigmalião é admirável, a ponto de quase perdermos o fio da história, atentos a seguir os esforços desse homem para tornar uma mulher naquilo que ele acredita que ela seja, até percebermos que essa é a própria história. Toda a profundidade de Hitchcock está na forma, isto é, na renderização. Como o olhar de Ingrid Bergman em 'Under Capricorn', essa ausência de maquiagem - que é apenas uma maquiagem - deve ser vista e não contada.
E finalmente, nesse filme silencioso e gelado, ainda mais do que o beijo ardente entre o detetive e aquela que ele tenta em vão trazer de volta dos mortos, o impressionante discurso final do Stewart é quem introduz uma dimensão que até então estava curiosamente ausente nessa história de amor - aquela da paixão. Essa não é uma reverência retórica, mas uma passagem para o discurso, bem como o monólogo de Bergman em 'Under Capricorn'. Pouco importa que esse brilho chegue tão tarde, já que esse filme é atravessado por uma dupla corrente onde futuro e passado trocam incessantemente suas posições. Todo o filme, sob o brilho dessa acusação vibrante, terá uma nova cor: o que estava dormente despertará e o que estava vivo morrerá simultaneamente e o herói, finalmente triunfante sobre a sua vertigem, verá que tal triunfo foi para nada, encontrando nada além de vazio abaixo de seus pés.
É claro que existem outras reconciliações para além dessas que eu sugeri com os outros filmes do diretor também estrelados por James Stewart. Permitam-me mais uma, desta vez com o filme 'Strangers on a Train'. Sabemos o quanto esse último devia, não apenas em rigor, mas em lirismo à presença assustadora de um padrão geométrico duplo, da linha e do círculo. Aqui a figura - o génerico de Saul Bass a desenha para nós - é a da espiral, ou mais exatamente do helicoide. Linha e círculo são casados pelo intermédio de uma terceira dimensão: a profundidade. A rigor, encontraremos apenas duas espirais materialmente representadas ao longo do filme, aquela da mecha do cabelo de Madeleine que desce para a sua nuca, uma cópia da de Carlotta Valdès (e não devemos esquecer que é ela que desperta o desejo do detetive), e depois a escada subindo para a torre. De resto, a hélice será ideal, sugerida pelo seu cilindro de revolução, representado seja pelo campo de visão de Stewart seguindo Novak de carro, ou pelo abismo de árvores acima da estrada, ou pelo tronco das sequóias, ou até por este corredor que Madeleine menciona e que Scottie reencontrará em um sonho (um sonho no qual, admito, os padrões chamativos ecoam com uma graça sóbria sobre as paisagens verdadeiras), além de muitos outros padrões que exigem mais revisões para serem detectados. O corte da sequóia milenar e o travelling circular (na realidade sendo o tema que realmente gira aqui e não a câmera) ao redor do beijo ainda pertencem à mesma família de ideias, uma família numerosa com muitos parentes. Geometria é uma coisa, arte é outra. Não se trata de encontrar uma espiral em cada uma das cenas desse filme, como em enigmas de desenhos de folhagens ou mesmo como nas cruzes de 'Scarface' de Hawks (um desafio magnificamente aceito, mas ainda assim um desafio). É necessário que essa matemática deixe a porta aberta para a liberdade. Poesia e geometria, longe de entrarem em conflito, nadam juntas. Andamos pelo espaço da mesma maneira que andamos pelo tempo e que também andam nossos pensamentos e os dos personagens. Não são nada além de imagens de sonda, mais precisamente imagens que estão girando para o passado. Tudo é um círculo, mas o ciclo não fecha, a revolução sempre nos leva um pouco mais fundo na reminiscência. Sombras sucedem as sombras, simulacros os simulacros, não como as partições surripiadas ou como os espelhos refletidos ao infinito, mas devido a um tipo de movimento mais perturbador ainda, por este não ter solução na continuidade e possuir às vezes a suavidade do círculo e às vezes a nitidez da linha. Ideias e formas seguem o mesmo caminho, e é porque a forma é pura, bonita, rigorosa, surpreendentemente rica e livre que se pode dizer que os filmes de Hitchcock e 'Vertigo', em primeiro lugar, têm como elementos fundadores - além daqueles que sabem cativar nossos sentidos - as Ideias, no nobre sentido platônico do termo.
(Tradução de Diogo Serafim, crítico da Multiplot.)